Um certo histórico acerca das campanhas de prevenção ao HIV/AIDS no Brasil
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- Suzana Faro Sales
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1 CAMPANHAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE ATRAVÉS D A MÍDIA DE MASSA: solidão e morte como representações de homossexualidade em um anúncio televisivo de prevenção ao HIV/AIDS Luís Henrique Sacchi dos Santos (UFRGS/PPGEDU/FACED/DEC) Um certo histórico acerca das campanhas de prevenção ao HIV/AIDS no Brasil Como parte de um esforço internacional para prevenir o HIV/AIDS, um vírus, uma síndrome/doença nomeados e descobertos na década de 1980, uma série de países, entre eles o Brasil, deu início, por recomendação de órgãos internacionais de saúde, à realização de campanhas de educação em saúde através da mídia de massa, incluindo a apresentação de mensagens via anúncios publicitários de utilidade pública na televisão. No Brasil essas ações têm sido realizadas no âmbito da Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS (CN-DST/AIDS), do Ministério da Saúde, e têm se dado através do que se denomina de ações de informação, educação e comunicação (IEC), para as quais são destinados tanto recursos humano s quanto financeiros. A pergunta que norteia as ações de IEC é como sensibilizar a população com mensagens de prevenção à AIDS? (Brasil, 1998, p.59). Dois caminhos principais são apontados: educação continuada e permanente a populações específicas e elaboração de campanhas de massa voltadas para a população em geral (Ibid.). Dessas duas grandes ações, interessou-me discutir, neste trabalho, aquela que envolve as campanhas de prevenção de massa, que, segundo informações disponibilizadas no site da CN- DST/AIDS, partem da análise das tendências da epidemia e da identificação das populações mais vulneráveis para dirigirem as suas mensagens. É possível afirmar que as campanhas oficiais de prevenção, desde que se iniciaram, sempre foram multidimensionais (ou de multimídia), seguindo assim, um dos princípios básicos das estratégias de Marketing Social aplicadas à saúde (Buchanan, Reddy & Hossain, 1994, p.53; vide também Baggaley, 1991; Lefebvre, 1992, 2001; Andreasen, 1995; Lamptey & Price, 1998). Ou seja, desde 1986, com a campanha Estar bem informado é a melhor prevenção, cujo anúncio era protagonizado pelo jogador de futebol Sócrates (Veja, 12/02/1986, p.47), já se associava diferentes tipos de mídia, valendo-se assim das especificidades de cada um desses meio s de comunicação para
2 2 atingir diferentes públicos. Assim, uma das idéias presentes na apresentação dos anúncios (como parte de uma campanha) na televisão era a de que eles poderiam alavancar outras ações da campanha de modo mais localizado. Entre essas estariam as intervenções comportamentais feitas junto a grupos específicos utilizando-se uma variedade de outros materiais e ações também produzidos e promovidos pela CN-DST/AIDS (vídeos, cartilhas, livros, impressos de toda a ordem, homepage, eventos naciona is e internacionais de ONGs, meios alternativos de comunicação, entre outros), além da distribuição universal e gratuita de anti-retrovirais destacada, nos últimos anos, como a principal e mais elogiada ação da CN DST/AIDS, seja em nível nacional ou internacional. De forma geral, as campanhas de educação em saúde através da mídia podem ser caracterizadas como um conjunto de peças publicitárias criadas, produzidas e veiculadas de forma coordenada em torno de um dado tema, sendo sua veiculação atrelada às especificidades de cada tipo de mídia. Hidelbrand (1995) refere que campanhas de natureza social, tal como as de prevenção ao HIV/AIDS, também podem ser chamadas (e enquadradas na categoria) de campanhas de mudança social, já que se constituem em um esforço de... convencer terceiros a aceitar, modificar, ou abandonar certas idéias, atitudes, práticas e comportamentos (Hidelbrand, op. cit., p.30). É necessário destacar que essas definições e objetivos são atribuídos às campanhas em geral, em sua dimens ão multidimensional, e não apenas aos anúncios televisivos. Esses, até onde entendo a sua função e o modo como eles têm sido tradicionalmente apresentados na televisão brasileira (restritos a determinadas épocas do ano e assumindo algumas questões como problema e não outras), não teriam condições de promover todos os objetivos propostos por uma campanha de educação em saúde através da mídia, tal como as de prevenção ao HIV/AIDS. Meu entendimento acerca desses anúncios passa por compreender que eles funcionam como alavancas, trazendo à tona algumas questões, polemizando algumas outras, mas, também, silenciando uma série de temáticas, como, e.g., as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na negociação do uso do preservativo por parte de seu(s) parceiro(s), as diversidades sexuais (e suas subculturas), a freqüente queixa (por parte de homens e mulheres) quanto à redução do prazer sexual pelo uso do preservativo, ou mesmo como as pessoas soropositivas podem
3 3 manejar as suas relações sexuais de modo que essas sejam seguras tanto para elas quanto para seus parceiros e parceiras, entre outras. Apesar de Polistchuck (1999) referir que há poucas informações sobre o HIV/AIDS na forma de campanhas preventivas no rádio, nos jornais e na televisão, penso que talvez seja possível dizer que o HIV/AIDS foi, provavelmente, a temática de saúde mais extensivamente apresentada/discutida na mídia televisiva brasileira nos últimos anos. Penso também que essa extensiva apresentação constituiu aquilo que Parker (1994, p.104) descreveu como... uma espécie de histórico de informações básicas crucial para a formação de atitudes e práticas relacionadas à infecção pelo HIV e à AIDS. No Brasil, em um período de quinze anos ( ) foram produzidos mais de setenta anúncios tele visivos, apresentados como parte de campanhas de educação em saúde através da mídia. Santos (2002) organizou esses anúncios segundo quatro grandes eixos temáticos (AIDS & transmissão sexual; AIDS & sangue; AIDS & serviços; e AIDS & solidariedade) e, a partir de uma metodologia inspirada pelos estudos culturais (vide. e.g., Nelson, Treichler & Grossberg, 1995; McGuigan, 1997), os analisou como artefatos culturais. Tal metodologia permitiu enfocar suas especificidades a partir de diferentes textos (narrado, visual, sonoro) e segundo quatro grandes perguntas norteadoras definidas e adaptadas a partir de Hidelbrand (1995, p ) e Baker, Rogers & Sopory (1992, p.16-17). Essas perguntas permitiram organizar os anúncios segundo o tipo de transmissão sexual (em cadeia, passando de uma pessoa para outra através da troca constante de parceiros; junto a outras doenças sexualmente transmissíveis), a época do ano em que são mais recorrentemente apresentados (o carnaval), às diferentes estratégias por eles utilizadas para promover a prevenção da transmissão do HIV/AIDS (dizer como se pega e como não se pega o HIV; enfatizar o medo e a culpa; usar o humor ou enfatizar o prazer; elevar a auto-estima; enfatizar a redução de parceiros sexuais e, por fim, enfatizar o uso do preservativo) e ao tipo de endereçamento do anúncio (vide Ellsworth, 2001), isto é, quem ele pensa que é o seu público. Além desse conjunto de desdobramentos a que os anúncios foram submetidos, a fim de promover aquilo que talvez se possa chamar de desmanche (i.e., a sua decomposição em diferentes partes para uma análise mais minuciosa vide anexos 1 e
4 4 2), eles também foram analisados tendo a seguinte questão como base: como as campanhas televisivas de prevenção ao HIV/AIDS participam no governo da população, especialmente através do modo como elas posicionam determinados grupos sociais como estando em risco? uma questão inspirada pelas noções foucaultianas de biopoder, biopolíticas e governamentalidade (Foucault, 1999, 2000). Fazer essa questão implica em entender que essas campanhas (e os seus anúncios televisivos) só fazem sentido porque compartilham suas práticas discursivas com outras instâncias culturais é nessa direção que a questão destaca a idéia de participar, pois os anúncios dessas campanhas não inauguram discursos e representações inéditos em relação à epidemia de HIV/AIDS (ou, no caso específico deste texto, em relação à homossexualidade). Antes, eles são resultado de um conjunto de práticas (da biomedicina, da publicidade e da própria mídia televisiva) que os antecede e que neles se atualiza e se multiplica. Eles são, por assim dizer, propaga(ndea)dores de alguns desses discursos e representações, fazendo-os circular, ao mesmo tempo em que apresentam as suas especificidades. Em outras palavras, a idéia é a de que os anúncios televisivos das campanhas, e elas próprias, não nos governam sozinhos (i.e., não é apenas através deles que recebemos indicações acerca do modo como devemos nos conduzir relativamente à epidemia de HIV/AIDS). Antes, eles se valem de diversos discursos e representações que circulam na cultura a fim de apresentar as suas mensagens. Assim, considerando... a forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea (Hall, 1997, p.22) procurei analisar as formas de governo através da cultura (Hall, op. cit.). E o governo (das populações) de que falo aqui deve ser entendido, em um sentido mais amplo, como um modo de organizar a conduta da conduta (Gordon, 1991; Gastaldo, 1997). Ou seja, estou sugerindo que os anúncios televisivos das campanhas oficiais de prevenção ao HIV/AIDS constituem uma das formas (a de maior abrangência) que as instâncias oficiais têm de manifestar as suas preocupações com a administração da vida da população, demarcando para ela quais são os seus riscos e como ela deve se conduzir a fim de evitálos. Embora essa preocupação seja com a vida da população (como um coletivo, um número de indivíduos), ela só terá efeito (potencial) na medida em que as orientações (apresentadas nos anúncios, reforçadas pelos médicos em seus consultórios, destacadas
5 5 na mídia impressa, retomadas pelos materiais alternativos etc.) acerca do modo como devemos nos conduzir em relação à epidemia de HIV/AIDS se inscreverem sobre os corpos individuais, produzindo sujeitos, moldando-os, guiando e afetando a sua conduta de maneira que eles se tornem pessoas de um certo tipo; formando suas próprias identidades de maneira que possam ou devam ser sujeitos (Marshall, 1994, p.28-29) de um dado discurso. Apesar disso, devo destacar que não se trata, tal como se pode pensar mais imediatamente, de uma análise acerca dos modos pelos quais as pessoas, individualmente, assumem ou resistem aos diferentes textos (visual, sonoro, narrado) e suas mensagens, apresentados pelos anúncios televisivos das campanhas de prevenção, mas sim de entender que esses anúncios (e o modo como eles se endereçam e criam dadas posições de sujeito) fazem parte de um modo de governar, i.e., de uma dada racionalidade. No caso específico deste trabalho, trata-se, sobretudo, de uma análise que procura mostrar que o modo como se representa a homossexualidade constitui as possibilidades de prevenção, demarcando, através de suas representações, as fronteiras entre quem está em risco e quem não está. Isso tanto para aqueles que se pensam/autodenominam como homossexuais quanto para o restante da população, que, ao não ser marcada como estando em risco, se torna (pelo menos teoricamente) mais vulnerável à infecção pelo HIV. Em suma, como refere Dean (1999), trata-se de se perguntar como governamos e como somos governados, bem como sobre a relação entre o governo de nós mesmos, o governo dos outros e o governo do estado. Solidão e Morte como representações culturais de homossexualidade Utilizo as expressões endereçado e endereçamento no sentido empregado por Ellsworth (2001). Essa autora retoma e contextualiza o conceito de modo de endereçamento, cunhado na teoria fílmica dos anos 1970, o qual pode ser resumido na seguinte pergunta: quem este filme pensa que você é? (Ellsworth, 2001, p.11). Embora a autora discuta esse conceito em relação ao cinema, trazendo-o para o campo da pedagogia e do currículo, penso que ele também pode ser utilizado em relação aos
6 6 anúncios, de modo a permitir que pergunte, igualmente, quem eles pensam que você é? De modo geral, pode-se dizer que modo de endereçamento tem a ver com a necessidade de apresentar qualquer comunicação, texto ou ação para alguém, acerca do qual se pressupõe algumas coisas, imaginando-se como ele é e como se quer que ele seja. No caso específico dos anúncios das campanhas de prevenção ao HIV/AIDS, e.g., entendo que o endereçamento se dá a partir das representações que se faz acerca do público (quais são os grupos ou segmentos da população mais afetados, como eles se comportam, quais são as suas principais práticas de risco, quais são os melhores modos de interpelá-los, etc.) e, também, segundo os próprios instrumentos de coleta de informações sobre esse público, baseados, e.g., nas pesquisas de opinião, que tanto podem reforçar essas representações quanto contestá-las. Um anúncio de prevenção de HIV/AIDS não nos convoca apenas na direção de sermos interpelados pelo modo como a câmera filma suas personagens e como essas apresentam seus textos, mas também de inseri-lo num conjunto de outras relações, de outros textos. A intertextualidade é, assim, crucial aos sentidos dados aos anúncios e isso é feito na relação entre o social, no caso o anúncio apresentado, e o individual, o sujeito que vê o anúncio e atribui algum sentido (qualquer que seja) a ele, segundo um repertório de outros textos. Considerando-se essas colocações é, então, possível entender que a posição-desujeito sugerida pelos anúncios nunca significa uma única coisa e que o espectador e a espectadora nunca são apenas, ou totalmente, aquilo que no anúncio pensa-se que eles são. Assim, essa distância entre quem o anúncio pensa que somos e quem nós pensamos ser (aquilo que Ellsworth chama de erro de alvo ) exige uma negociação constante (e nem sempre tranqüila) não somente com os significados dos anúncios, mas, também, com todos os demais modos de endereçamento a que se tem acesso e que nos acessam cotidianamente (vide Ellsworth, op. cit., p.21). É na direção dessa negociação que se pode falar sobre os efeitos dos anúncios, e em especial dos anúncios institucionais, cujas promessas não são a satisfação da compra de um objeto, mas sim o entendimento de um determinado conceito que requer, e.g., a mudança de hábitos considerados prazerosos (e.g., sexo sem o uso do preservativo). Assim, se os anúncios desse tipo também não apelarem para uma dimensão prazerosa (ou no mínimo compensatória) em
7 7 seus modos de endereçamento, seja no prazer em assistir a algumas imagens ou de se identificar com determinados textos, será muito difícil que eles consigam que os espectadores queiram se posicionar nas posições-de-sujeito por eles oferecidas. Isso porque, tal como ressalta Ellsworth (op. cit. p.24), os modos de endereçamento de um filme ou anúncio precisam situar o espectador ou a espectadora em uma posição de coerência, a partir da qual ele possa funcionar, adquirindo sentido, dando prazer, agradando dramática e esteticamente, vendendo a si próprio, bem como os produtos (e conceitos) que apresenta. Esse é o trabalho do filme ou do anúncio, mas há também o trabalho dos espectadores na direção de negociar com esses convites e de se posicionar em determinados lugares. Assim, embora determinados modos de endereçamentos não possam simplesmente posicio nar o público, eles oferecem sedutores estímulos e recompensas para que se assuma aquelas posições de gênero, status social, etnia/raça, nacionalidade, atitude, gostos, estilo etc. apresentadas por um determinado filme ou anúncio. Isso mostra, segundo Ellsworth (op. cit., p.24-25), o quanto o conceito de modo de endereçamento não é neutro, sendo perpassado por múltiplas relações de poder. Por fim, cabe destacar, a partir de Hall (1997, p.9), que não há uma resposta única ou correta à questão o que esta imagem significa?, ou o que este anúncio está dizendo?. Em outras palavras, não há um único significado para uma imagem e, além disso, esses se modificam ao longo do tempo. Assim, Hall (op. cit.) refere que todo o trabalho na direção de uma análise visual é sempre um trabalho interpretativo, não exatamente no sentido de escolher entre uma interpretação certa ou errada, mas entre interpretações cujos significados, muitas vezes, se contrapõem e se contestam. Nessa direção, esse autor refere que o melhor caminho para uma análise/leitura desse tipo é tentar justificá-la no detalhe. É essa justificativa que passo a fazer a seguir numa análise detalhada do anúncio Pierrô (1988), que tomei como referência para problematizar a representação de homossexualidade num dado período das campanhas de prevenção brasileiras. O quadro (anexo 1) apresenta a decupagem dos diferentes textos do anúncio Pierrô (anexo 2: figuras 1 a 4), os quais foram transcritos e articulados
8 8 espacialmente. Nessa operação, o anúncio em si, como objeto de análise, foi transformado em um tipo de texto que apresenta uma dada disposição espaço-temporal que deve ser lida horizontalmente. Essa forma de apresentação foi adaptada a partir do modo como Rutherford (2000, p.107) apresentou os três elementos por ele considerados em um anúncio: vídeo, áudio e texto. Adotei esse modelo para a apresentação dos anúncios e a ele atribuí uma nova subdivisão (texto escrito). Assim, o vídeo corresponde à decupagem daquilo que acontece em termos de imagens, i.e., como elas se sucedem, quais são os planos e ângulos de filmagem utilizados etc. O texto falado (texto para Rutherford, op. cit.), por sua vez, corresponde à transcrição da narração do anúncio, ou seja, daquilo que é efetivamente falado pelo narrador ou pelas personagens apresentadas. Por fim, o áudio procura descrever os tipos de música e os recursos sonoros utilizados e o texto escrito reproduz aquilo que é efetivamente escrito na tela da televisão durante a apresentação do anúncio. Esse quadro foi construído com o objetivo de dar conta (mesmo que minimamente) de uma impossível tradução, qual seja, da imagem para a palavra aqui, é oportuno citar Foucault (1995, p.25) quando ele diz que... por mais que diga o que vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem. Além disso, ele também foi construído com o objetivo de dar acesso aos leitores àquilo que denominei de uma fotografia textual dos anúncios, já que eles não têm acesso (seja na televisão, seja pela forma como os textos acadêmicos são apresentados) às imagens em questão. Toda (nova) imagem é sempre vista por olhos já marcados por uma história de ter visto outras imagens. Como um texto, a imagem sempre é lida/vista/interpretada em relação a outras imagens. Assim, tal como sugere Fischer (2001), um dos trabalhos possíveis ao ato de olhar é ir além das evidências, além do que nos é dado ver imediatamente, não para que aí se descubra o que se esconde, mas exatamente porque sempre olhamos de algum lugar,... a partir de um ponto de vista intuído, exercitado ou aprendido (p.56). Embora eu reconheça a necessidade de se realizar campanhas endereçadas às mais variadas subculturas homossexuais, destacando aspectos positivos e afirmativos
9 9 relativamente às diversidades sexuais, tal como é seguidamente requisitado pelos grupos envolvidos na crítica às campanhas nacionais de prevenção de massa, eu não afirmaria (tal como seguidamente é referido na mídia impressa) que o Governo Federal nunca realizou campanhas para homossexuais. I.e., entendo que há, sim, alguns anúncios endereçados aos homossexuais, mesmo que indiretamente, mesmo que se diga que eles erram o alvo, como ressalta Ellsworth (2001). Certamente, os anúncios que representam a homossexualidade dessa forma não podem ser destacados como afirmativos ou positivos das diversidades sexuais. Pelo contrário, eles representam a homossexualidade através de sua associação à solidão e à culpa destacadas como antíteses da alegria e da liberação. Segundo o modo como vi os anúncios televisivos das campanhas de prevenção entre 1986 e 2000, há pelo menos três deles (situados no período inicial das campanhas de prevenção, entre 1986 e 1994, segundo a classificação de Santos, 2002) que se valem de tal representação: Pierrô (1988), Solidão (1987) e Eu não tenho cura (1991). Assim, tomando Pierrô como exemplo, apresentarei elementos que estão também presentes nos outros dois anúncios. E meu argumento, já parcialmente explicitado, é o de que, embora nenhum desses anúncios tenha feito referência direta, seja na forma de texto narrado ou visual (i.e., as imagens não se valiam de representações estereotipadas da homossexualidade, tampouco mostravam, por exemplo, casais homossexuais), aos homossexuais masculinos, eles estavam lá, na pele do homem solitário que vive a alegria solitária e efêmera de um carnaval (como em Pierrô ), a solidão de um quarto de hospital (como em Solidão e, novamente, Pierrô ), a resignação culpada daquele que diz ter AIDS e não ter cura (como em Eu não tenho cura ). Por certo, não há outros marcadores mais evidentes dessa posição de sujeito nos textos dos anúncios para que se possa afirmar isso, à exceção talvez de Pierrô, cujo texto narrado vale-se de expressões usualmente endereçadas ao universo gay uma face iluminada, uma máscara que não revela o que é, ou seja, alguns indícios, que são resquícios de outros textos, de outras imagens. Nesse anúncio, Pierrô, tanto o texto falado quanto o visual se articulam e jogam com as oposições, o carnaval como (liberação da) fantasia, como algo que não corresponde à realidade, tal como ela deveria ser. Do outro lado, o da vida real, está a
10 10 AIDS e as suas conseqüências: tristeza, solidão, doença e morte. Pode-se ler no anúncio uma espécie de jogo de palavras/significados entre carnaval e homossexualidade, i.e., o carnaval pode ser entendido também como uma representação da homossexualidade, do sexo homossexual como fantasia. Do outro lado, o da vida real, a heterossexualidade apresenta-se como a norma. O carnaval, nessa direção, é apresentado como uma metáfora da alegria, da homossexualidade, do sexo desprotegido e da inconseqüência, por assim dizer, já que o folião é freqüentemente representado como alguém que bebe além da conta e que precisa ser lembrado de não dirigir, que só quer saber de sexo, que transa sem camisinha, que briga em bailes, etc. Penso que os textos do anúncio sugerem que esse tipo de vida, a homossexualidade (a fantasia), não se sustenta, e que o melhor a fazer é deixar disso, é parar com isso (e, assim, com a possibilidade de pegar a AIDS), é cair na real. Nessa direção, o anúncio, mesmo que de forma implícita, parece cumprir o seu papel de moralizar a população, estabelecendo o que é normal e o que não o é, bem como quais são as conseqüências para aqueles que transgridem essa norma: solidão, doença e morte. Em certa medida a análise desse anúncio (do ano de 1988) coincide com aquela realizada por Watney (1990), acerca das campanhas de prevenção do Governo Britânico na segunda metade da década de 1980, quando ele mostra que nelas estavam ausentes os homossexuais, à época os mais afetados pela epidemia, enfatizando em seu lugar os ideais da família (heterossexual e monogâmica), de forma a enquadrar esses grupos em uma dada norma. A associação que estabeleci entre a representação do homem solitário e aquela da homossexualidade não é despropositada. Como já referi anteriormente, nunca se lê um texto ou uma imagem isoladamente, essa leitura sempre conclama diferentes textos. Gilman (1988, p.246 e seguintes), discutindo como se vê o paciente de AIDS, retoma alguns aspectos da história da sífilis e mostra como as representações pictóricas dessa doença estiveram associadas, durante muito tempo, àquela do homem solitário. Mais do que isso, seu trabalho mostra como a categorização inicial da AIDS, como uma doença sexualmente transmissível (tal como a sífilis e não uma doença viral, como a hepatite), permitiu que se estabelecesse um paralelo entre a história visual da sífilis (uma
11 11 iconografia de mais de 500 anos) e a da AIDS, especialmente nos primeiros anos da epidemia. Nessa direção, esse autor diz que o que atinge inicialmente o observador é a representação do sofredor isolado, revelando [a esse observador] os sinais e os sintomas da sífilis tal como as chagas de [um] Cristo parodiado (Gilman, op. cit., p. 248). No caso da sífilis, Gilman (op. cit.) mostra que, no século XVI, o homem era visto, a despeito da origem sexual da doença, como um sofredor solitário e que foi só durante o Iluminismo (dois séculos depois) que a imagem do paciente sifilítico deslocou-se do homem para a mulher, posicionando-a, assim, como fonte de infecção (Ibid., p ). Segundo ele, é essa imagem (a de uma mulher que funciona como agente de infecção) que permeia a literatura médica do século XIX. Contudo, a história da sífilis é importante aqui na medida em que, a partir dela, se pode retomar um certo repertório de representações acerca de doenças contagiosas e vinculadas ao sexo, as quais parecem estar sempre à procura de atualização. Gilman (op. cit.) analisa, e.g., as imagens, publicadas na mídia impressa norte-americana nos primórdios da AIDS (década de 1980) e, a partir delas, resgata a imagem do paciente (homem) solitário que, em fins do século vinte, se encontra num quarto de hospital, sozinho ou separado por uma certa distância dos profissionais que o examinam. Para esse autor o significado contemporâneo dessas imagens é muito claro: o paciente solitário é um homossexual masculino:... não somente o sofredor, mas também a fonte de sua própria contaminação (Gilman, 1988, p.258) o culpado. Nesse sentido, pode-se dizer que esse paciente é aquele que caiu na real, que deixou cair a máscara da fantasia e que se depara, agora, com a realidade. Ele é um paciente solitário que precisa da solidariedade dos outros, os quais terão que ser lembrados, repetidamente, acerca de quais são os modos de se pegar (e de não se pegar) AIDS, bem como de que os doentes de AIDS precisam de afago, afeto, carinho, amizade, ternura, entre outras coisas (que não sejam sexo ao menos não nos anúncios das campanhas oficiais de prevenção ao HIV/AIDS). Penso que é possível dizer que os homens solitários representados nos anúncios Pierrô, e também em Solidão e Eu não tenho cura ocupam (ao mesmo tempo em que oferecem) uma posição de sujeito que facilmente os identifica como homossexuais. Todos eles estão tristes, isolados, condenados à morte, presos a um quarto ou cama de
12 12 hospital, e, sobretudo, sozinhos a condição que, segundo entendo, marca a sua orientação sexual nesses anúncios. Apesar desses anúncios não apresentarem as chagas da AIDS (e.g., Sarcoma de Kaposi), tal como aquelas que Gilman refere em relação à iconografia da sífilis, ao menos o anúncio Pierrô mostra, através do recurso à maquiagem, o progressivo emagrecimento (e transformação) do personagem. Assim, mesmo não mostrando as chagas, a leitura desse anúncio por parte dos leitores/telespectadores poderia ser completada pelas imagens de homens doentes, magros, cheios de manchas e de olhares fundos que abundavam nas mais diferentes mídias na mesma época de sua veiculação (vide, e.g., Bessa, 2002). Em outras palavras, talvez devêssemos dizer que colocar homens doentes em hospitais ou dizendo que têm AIDS e que não têm cura, no contexto dos últimos anos da década de 1980, quando a AIDS ainda era fortemente associada às noções de grupo de risco, sugere leituras muitos diferentes do que aquelas que faríamos se em seu lugar estivessem representadas as mulheres. Assim, por mais que as imagens de um Pierrô possam sugerir a ingenuidade e o sentimentalismo Ferreira (1999, p.1562) esclarece que Pierrô é um personagem originário da comédia italiana, ingênuo e sentimental, ou mesmo a saudade dos antigos carnavais que não voltam mais livres da ameaça da AIDS, penso que o contexto da epidemia, as representações acerca da homossexualidade, o modo como os textos (as imagens, o texto e a trilha sonora) conduzem os/as telespectadores/as de um extremo (alegria) a outro (doença/ morte) possibilitam que se leia o anúncio Pierrô na direção aqui sugerida.
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15 Anexo 1: Decupagem do anúncio Pierrô. PIERRÔ (1988) VÍDEO ÁUDIO TEXTO FALADO TEXTO ESCRITO A partir de um plano próximo, a câmera focaliza um homem, mascarado e fantasiado de pierrô, pulando solitariamente o carnaval (Figura 1). Música característica de carnaval. No rosto do pierrô observava-se uma expressão de alegria. Tal expressão é, no entanto, substituída pela de preocupação/ tristeza tão rapidamente quanto a retirada da máscara. A personagem, a partir de agora filmada em planos que oscilam entre o close-up e o plano de detalhe, começa a se despojar de sua fantasia, mantendo somente um dos lados da face pintado... (Figura 2).... A imagem desse rosto, ainda com resquícios da maquiagem de carnaval, aparece em outro ambiente, cujo fundo é verde e amarelo. Logo a seguir verifica-se que ele se encontra deitado em uma cama forrada por um lençol verde escuro. Lentamente, ele desloca sua cabeça para o seu lado direito. Agora, sem nenhuma pintura no rosto e com a cabeça já voltada para o seu lado esquerdo, ele parece estar dormindo. Ele abre os olhos vagarosamente e vira seu rosto para o outro lado. Em seu rosto magro há sinais de abatimento (Figura 3). A câmera, que até então focalizava em super close, se afasta progressivamente e, em ângulo alto, mostra a composição final da imagem em um plano geral. A A música começa a mudar de ritmo. Soam acordes mais monótonos e tristes, que se mantêm até o final. Quanto riso! Quanta alegria! Esse é o lado bom da folia! Mas existe uma outra face que não tem nada de iluminada: é a face trágica de uma doença mortal, chamada AIDS. Ela se transmite pelo sexo, pelas seringas e agulhas contaminadas, e até pelas transfusões clandestinas de sangue. A máscara da face não revela quem tem ou quem não tem a doença. Quem vê cara não vê AIDS. Faça da camisa-de-vênus a sua companheira inseparável, qualquer que seja o seu parceiro. Exija o teste anti-aids, se precisar de sangue. E se precisar de injeção, use seringas descartáveis. Nunca use de outras pessoas. Lembre-se de que a AIDS mata sem piedade. E está se
16 16 medida em que a câmera se desloca de um plano a outro, observa-se, progressivamente, vários objetos que compõem um cenário hospitalar: umidificador; suporte de soro e de bolsa de sangue; crucifixo na parede sobre a cama etc. No centro da tela, está a cama de hospital e o doente solitário que olha pela janela. Ele está visivelmente magro e recebe soro e sangue (Figura 4). espalhando por aí. Depende de você interromper este triste cordão. Não permita que este seja o último carnaval da sua vida. AIDS, pare com isso! Sobre um fundo preto aparecem escritas as seguintes informações: Saúde: Direito de Todos, Dever do Estado e Ministério da Saúde. Governo José Sarney Tudo pelo social. Saúde: Direito de Todos Dever do Estado MINISTÉRIO DA SAÚDE Governo José Sarney Tudo pelo social FICHA TÉCNICA: Agência: Denison Propaganda. Direção: Roberto Duarte. Fontes: Jornal do Brasil. A cara da AIDS e A camisinha-de-força do preconceito, em 22/02/1988. Anexo 2: figuras 1 4 do anúncio Pierrô. Figura 1 Figura - 2
17 Figura 3 Figura
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