OS FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA: um saber inter, multi e transdisciplinar
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- Luiza Benevides das Neves
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1 OS FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA: um saber inter, multi e transdisciplinar Gilzane Silva Naves * RESUMO A bioética é um saber em movimento de consolidação. Este artigo procura analisar os seus fundamentos e apontar os caminhos para sua edificação em meio a uma realidade democrática, complexa e envolta pelos contornos da ciência e da tecnologia. Para isso, inicialmente ocupa-se em lembrar que este saber surgiu em meio a uma crise, muito semelhante àquela vivida pelos gregos da antiguidade, quando estes sistematizaram a ética. A crise de nossos dias também traz conflitos éticos e morais, cujos dilemas são inevitáveis. Com base no pensamento de alguns bioeticistas procura-se demonstrar a existência de três fases bem delimitadas que explicam o surgimento e desenvolvimento da bioética. Saber este que se caracteriza também como um movimento, integrando profissionais das mais diferentes áreas do conhecimento, sejam estas humanas ou biomédicas. O que reforça a tese de ser a bioética, cada vez mais, um saber inter, multi e transdisciplinar. Palavras-Chave: Bioética. Saber. Ciência. Dignidade Humana. THE FOUNDATIONS OF BIOETHICS: a knowledge inter, multi and transdisciplinary ABSTRACT Bioethics is a moving knowledge of consolidation. This paper aims at analyzing its principles and revealing the ways for its construction in a democratic and complex reality which is influenced by science and technology. It is important to notice that knowledge emerged from a crisis which is similar to that experienced by the Greek people while systematizing ethics in the ancient days. The current crisis also has ethic and moral conflicts, whose dilemmas are inevitable. Based on the work of some bioethics scholars we intend to show three remarkable phases that explain bioethics emerging and development. That knowledge is characterized as a movement with professionals of several areas (human and biomedical ones). The study reinforces the thesis that bioethics is more and more of an inter, multi and transdisciplinarity knowledge. Keywords: Bioethics. Knowledge. Science. Human Dignity. * Mestre em Filosofia na área de ética pela PUC-Campinas. Professor do Curso de Graduação em Filosofia e Coordenador do Curso de Especialização em Bioética e Saúde da Faculdade Católica de Uberlândia. 1
2 INTRODUÇÃO Há na história da filosofia uma cisão marcante que caracteriza uma guinada na forma de apreensão da realidade. Essa guinada se dá quando o homem deixa de pensar o cosmos e torna o objeto axial de sua reflexão o seu próprio ser e a compreensão de tudo o que o cerca, seja proveniente do mundo físico ou do universo metafísico. A filosofia deixa de ser cosmologia e se transforma em antropologia, na qual o homem e seu mundo são pensados de modo crítico e sistemático. O marco de tal conversão na rota da filosofia é Sócrates. Ao apontar o homem como objeto de preocupação filosófica, expressa na frase oracular conhece-te a ti mesmo, o ateniense dá início, juntamente com a antropologia, à reflexão ética, oriunda de todas aquelas preocupações que o homem deve possuir perante suas opções individuais e escolhas práticas, que por sua vez requerem uma adesão a valores, princípios e normas morais. Essa perspectiva será sistematizada posteriormente por outro grande filósofo da antiguidade, Aristóteles. Tomar a ética como um dos principais sinais dessa reviravolta, não somente para a filosofia, mas para toda a história da humanidade, é de capital importância para construirmos um paralelo que permita entender também a emergência da bioética como um campo fecundo de diálogo entre as ciências da vida e as ciências humanas. Acreditamos que essa linha interpretativa seja também um marco fundante para o início de uma nova era de diálogo entre os diversos saberes, que por meio da tolerância e do entendimento sedimente uma humanidade melhor. Pensando as origens e a edificação da bioética Se entendermos que o pensamento ético dos gregos da antiguidade é um sinal de que estes buscavam soluções para os dilemas que os afligiam, podemos também pensar que a bioética, em nossos dias, procura, em sua proposta inicial, apresentar, no sentido de colocar à disposição, subsídios teóricos para resolução de dilemas e enfrentamento de desafios, aos quais estamos expostos na contemporaneidade. O ser humano encontra-se hoje mergulhado como nunca em um universo técnicocientífico, o que possibilitou novas soluções a, até então, impensados problemas. Parece ter sido para atender a essa nova realidade que Van Rensselaer Potter criou o neologismo bioética, concebendo este campo de conhecimento como uma ética das relações vitais, dos seres humanos entre si e dos seres humanos com o ecossistema. Ou, como diz Soares: 2
3 O compromisso com a preservação da vida no planeta se tornou, desta forma, o cerne de seu projeto que possuía como característica principal o diálogo da ciência com as humanidades. De acordo com Potter, existem duas culturas que, aparentemente, não são capazes de se comunicar: a da ciência e das humanidades. Esta deficiência transformou-se numa prisão e põe em risco o futuro da humanidade, que não será construído só pela ciência ou, exclusivamente, pelas humanidades. É somente através do diálogo entre ciência e humanidades que será possível a construção de uma ponte para o futuro (2009, p. 2). Tal visão de Potter se alicerçava sobre a teoria de que o homem é sujeito ativo e passivo de uma evolução biológica, cultural e fisiológica. É no avanço da Biologia, na adaptação cultural e ética que o homem encontra possibilidades novas para sobreviver (SOARES, 2009, p. 2). O que fez de sua obra Bioethics: bridge to the future (Bioética: ponte para o futuro, 1971) a referência inicial no que tange ao surgimento da bioética. O que segundo PESSINI (2007), fez o autor americano compreender também a bioética como uma ciência da sobrevivência humana, o que se tornou um modo de promoção e defesa da dignidade da pessoa humana e da qualidade de vida, ultrapassando o âmbito humano em direção a uma realidade cósmico-ecológica. Mesmo ainda com tantas incertezas quanto ao que vem a ser decididamente a bioética, o seu mentor, V. R. Potter, já via neste saber um caminho capaz de conduzir o homem do século XX à promoção da dignidade e da qualidade de vida no planeta. Ideal muito amplo, que talvez justifique uma constatada desilusão deste pensador com seus próprios ideais em anos seguintes da publicação de suas idéias. A generalização da proposta uma ética geral - tornava inviável a sua aplicação imediata, ou ao menos, não era um indicador claro para uma aplicação há curto prazo. Contudo, a nossa reflexão aqui deseja ir além do simples fato do batismo do termo bioética. Visto que objetivamos a busca dos fundamentos deste conhecimento em construção, que se configura multi, inter e transdisciplinar, como, de fato, o desejamos compreender. Deste modo, não é nosso propósito aqui o abandono do ideal potteriano, pensamento capaz de conceber a bioética como uma ponte entre o saber científico-biológico e a ética, num desejo de interdisciplinaridade em prol de um desenvolvimento humano sustentável e possível. Contudo é necessário compreendermos outros fatores que envolvem este conhecimento complexo, de natureza pragmática, pois se seu idealizador propôs a bioética como uma ética geral, os demais propagadores deste saber não fizeram o mesmo percurso. Ao contrário, propuseram novos caminhos e aplicações ao neologismo. O que foi o caso, por exemplo, do obstetra, demógrafo, fisiologista fetal e fundador do Instituto Kennedy na 3
4 Universidade de Georgetown, o holandês Andre Hellegers, o qual utilizou o termo, aplicandoo à ética da medicina e das ciências biológicas, o que foi crucial para popularizar a bioética. Contudo, alguns pesquisadores, como Soares, por exemplo, atribuem outras causas para explicar a razão que levou a bioética a se aproximar mais das ciências da vida e da saúde: Nos anos posteriores à década de 1960, marcada pelo extraordinário crescimento industrial e econômico do Ocidente, que alguns não vacilam em qualificar de selvagem, surgem, na tentativa de responder aos vários questionamentos morais nascidos em contextos distintos da sociedade, as chamadas éticas aplicadas, tais como a Ética Ecológica e a Ética Empresarial (Business Ethics), como preocupações diferenciadas da ética geral. Esses contextos particulares foram, aos poucos, obrigando a Bioética a abandonar o paradigma da ética geral, preconizado por Potter. ( 2009, p. 2 ) Alguns autores chegam a estabelecer fases distintas na história da bioética com o intuito de melhor compreender os acontecimentos e situar os fatos que envolvem este saber em movimento. Entre estes, segundo Pessini (2007), está Edmund D. Pellegrino, que em uma matéria publicada no Kennedy Institute of Ethics Journal, de 1999, afirma compreender a existência de uma metamorfose conceitual que explicaria as mudanças e as diferentes conceituações do termo bioética, demonstrando existir três períodos distintos na história de sua evolução. Uma primeira, que ele chama de período educacional, que se estende de 1960 até Nesta fase descreve o autor: a linguagem dos valores humanos predominava. Neste contexto a religião e a teologia tinham um papel preponderante. Percepção da desumanização da medicina, devido ao crescente poderio da ciência e da tecnologia. (PESSINI, 2007, p. 53). Para Pellegrino esse fato se caracterizou como a fase de uma inserção de conteúdos tocantes aos valores humanos na formação de médicos e enfermeiros. O que era feito por ministros religiosos, alguns humanistas e outros médicos educadores, onde todos partilhavam a convicção de que um esforço multi e interdisciplinar era necessário (PESSINI, 2007, p. 53). A segunda fase teria a ética como disciplina central, por isso Pellegrino a chama de Bioética filosófica, que segundo ele vai de 1972 até Aqui, a ética assume um papel dominante na medida em que surgem dilemas complexos, a partir do rápido desenvolvimento da pesquisa biológica. A linguagem utilizada é a da ética filosófica (PESSINI, 2007, p. 53). Neste momento os eticistas treinados com os conceitos filosóficos têm papel decisivo, colaborando efetivamente para a educação e formação dos profissionais da medicina. O que, na interpretação de vários especialistas, indica a existência de uma ética médica tornando-se uma profissão, com método para resolver os conflitos éticos com os quais os profissionais se deparavam nos leitos dos hospitais. 4
5 Em meio a esta atmosfera, nos lembra Gottschall(2003), houve uma eclosão de modelos de análise teórica, que ainda hoje são os mais utilizados na bioética. Surge especialmente nesse período nos Estados Unidos, o chamado modelo principialista, quando por ocasião dos vários dilemas emergentes, o governo promoveu esforços para produzir diretrizes que visassem solucionar os problemas em torno da experimentação com seres humanos. Em 1974, o Congresso Americano criou a National Commission for the Protection of Human Subjects of biomediact and behavioral Research para levar a cabo uma pesquisa e estudo completo que identificasse os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação em seres humanos nas ciências do comportamento e na biomedicina. Foram reunidos doze membros na Comissão, filósofos, teólogos, médicos e dois eticistas. Após quatro anos, foi publicado em 1978 o Relatório Belmont (Belmont Report), considerando como bases da Bioética consensos que estivessem fortemente enraizados na ética da civilização ocidental. Daí surgiram os princípios da autonomia, da beneficência e da justiça (GOTTSCHALL, 2003, p ). Sobre o Relatório Belmont, é ainda relevante citar que este teve como foco as questões éticas derivadas da experimentação em seres humanos, estando de fora todo o campo da prática clínica e assistencial (GOTTSCHALL, 2003, p.302 ). Contudo, o relevante é compreender o esforço de se criar naquele momento, um documento por meio da soma de profissionais de campos tão distintos do conhecimento, das ciências biológicas e das ciências humanas. Um ano após a publicação do Relatório do governo norte-americano, surge a principal obra do paradigma principialista, possivelmente o modelo também mais conhecido mundialmente. A Obra de Tom Beuchamp e James Childress, intitulada Principles of biomedical ethics (Princípios de ética biomédica). Propõem quatro princípios orientadores da ação: beneficência, nãomeleficência, justiça e autonomia. Em sua visão esses princípios não tem nenhuma disposição hierárquica e são válidos prima facie. Em caso de conflito entre si, a situação em causa e suas circunstâncias é que indicarão o que deve ter precedência. Esse modelo tem ampla aplicação na prática clínica, em todos os âmbitos em que a bioética se desenvolveu, com resultados bastante positivos em relação ao respeito pela dignidade da pessoa (PESSINI, 2007, p. 46). Vale ressaltar ainda que este modelo, mesmo sendo largamente aceito no campo das ciências médicas, não é atualmente hegemônico entre os profissionais da saúde. Ramos (2002) lembra em um artigo intitulado Fundamentos e Princípios de Bioética, que há outros modelos auxiliares, que são muito úteis na tomada de posições ante os dilemas éticos. Outros 5
6 paradigmas, como o do bioeticista italiano Elio Sgreccia, propõe o Modelo Personalista Antropológico. A esse respeito, lembra-nos Ramos: O ponto de partida é reconhecer a pessoa, reconhecer a identidade da pessoa e a sua essência, pois só reconhecendo-a, podemos então saber como respeita-la. O reconhecimento tem como desdobramento o respeito à dignidade da pessoa humana. Então, o ponto é o reconhecimento e o respeito à dignidade da pessoa humana. (2002, p.4). Este exemplo é relevante apenas para termos a noção do quão complexo é este panorama que estabelece os diferentes paradigmas da bioética, já que o nosso objetivo não é estabelecer aqui a oposição entre os mais variados paradigmas, mas apenas constatar a existência de pontos distintos de abordagem. Voltando às concepções de Pellegrino, que apresentam fases históricas distintas para a compreensão da bioética, falta-nos aqui caracterizar a terceira e atual fase deste saber, que para o pensador se dá como uma bioética global, a partir de No dizer de Pessini: A gama de problemas se ampliou muito e obrigou os eticistas a considerar disciplinas para além de suas especialidades, tais como direito, religião, antropologia, economia, ciência política, psicologia e outras. As ciências sociais e comportamentais ganham proeminência e a bioética como ideal global ganha força e caracteriza-se mais como um movimento que como uma disciplina (2007, 53-54). Esta terceira fase, descrita por Pellegrino como uma bioética global, coincide também com uma globalização da bioética como movimento, quando aquela se estende para os países em desenvolvimento, como cita Pessini em sua obra magna, intitulada Problemas Atuais de Bioética: O movimento da bioética estabelece-se na década de 70 nos Estados Unidos, na Europa na década de 80, no início dos anos 90 na Ásia e a partir de meados da década de 90 nos países em desenvolvimento (PESSINI, 2007, p. 15). Esta expansão da bioética se torna um sinal do estudo sistemático da conduta humana nos mais diversos campos das ciências biológicas e da saúde, se fazendo cada vez mais urgente um enfoque verdadeiramente interdisciplinar, ou como alguns ainda sugerem, transdisciplinar. Sabemos que a bioética não está restrita às Ciências da Saúde, pois enfoca a vida em sua totalidade, tendo como horizonte muitas áreas do conhecimento, quando invariavelmente implica sobre a vida. O que justifica, cada vez mais, uma crescente participação em congressos de bioética de profissionais ligados ao direito, assim como também muitos filósofos, teólogos e economistas. Além de médicos, dentistas e enfermeiros (RAMOS, 2002). Deste modo, entendemos que o esforço deve ter cada vez mais uma dimensão interdisciplinar, integrando entre si as várias áreas do conhecimento. Desse modo se evidencia 6
7 aquilo que defendemos aqui, que a Bioética tem como proposta o diálogo entre os diversos saberes humanos. O que será afirmado por muitos, quando defendem que não é suficiente a simples presença nos congressos de bioética sem uma atitude de abertura ao diálogo. É preciso, então, como afirma Pessini e outros, mais do que termos uma visão multidisciplinar sinônimo de um amontoado de diferentes profissionais, de diferentes formações, que não interagem entre si que sejamos transdisciplinares, capazes de pensarmos o todo sem perder a identidade específica, buscando no diálogo a unificação conceitual entre as disciplinas, tendo em vista o encontro das melhores soluções. Ainda mais quando o saber que se está produzindo toca à vida, mais particularmente a vida das pessoas, como o faz as ciências médicas e da saúde. Pois há muito tempo se percebeu que os avanços científicos e tecnológicos não devem estar a serviço exclusivo de causas particulares, mas a disposição do bem-estar e da qualidade de vida das pessoas como um todo. É preciso, enfim, acreditar que ainda somos capazes de edificar, juntos, um futuro rico em novas possibilidades no que tange à construção de um novo modo de pensar e agir eticamente. Para que isto possa se concretizar é urgente resgatar a dignidade humana ante os avanços constantes da ciência e da tecnologia, realizando assim um salto qualitativo por meio deste saber que emerge como uma real ponte para o futuro, que desejamos acreditar ser promissor para toda a humanidade. REFERÊNCIAS GOTTSCHALL, Carlos Antonio M. Bioética e seus fundamentos. Revista AMRIGS, Porto Alegre, 47 (4): , out-dez Disponível em: < Acesso em: 23 de agosto de 09. PESSINI, L.& BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas Atuais de Bioética. 8.ed. São Paulo: Edições Loyola, RAMOS, Dalton Luiz de Paula, Fundamentos e princípios da bioética: Notandum; 2002; v. 5. nº 9, p Disponível em: < Acesso em 23 de agosto de 09. SOARES, André Marcelo M. De qual bioética estamos falando? Disponível em < Acesso em: 23 de agosto de 09. 7
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