UMA CRÍTICA À TEORIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO: A possibilidade jurídica do pedido como questão de mérito
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- Ana Vitória Pereira Figueira
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1 563 UMA CRÍTICA À TEORIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO: A possibilidade jurídica do pedido como questão de mérito Rafael Arouca Rosa (UNESP) Introdução Dentre as mudanças propostas no anteprojeto do novo Código de Processo Civil (CPC), atualmente em tramitação no Congresso, está a retirada da possibilidade jurídica do pedido do rol das condições da ação, o que viria a atender ao apelo de notável parte da doutrina, a qual afirma, ora a inconsistência, ora a falta de utilidade prática de tal instituto em nosso direito. A possibilidade jurídica do pedido integra, juntamente com a legitimidade de parte (legitimidade ad causam) e o interesse de agir, o rol das condições da ação, cuja sistematização é atribuída ao italiano Enrico Tulio Liebman. O eminente professor transferiu-se para o Brasil no ano de 1939, a partir de quando passou a influenciar, de maneira marcante, notáveis juristas brasileiros, a exemplo de Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, além do principal responsável pelo Código de 1973, o ministro Alfredo Buzaid. Daí se falar em uma escola processual de São Paulo, na qual Liebman teria disseminado sua doutrina a ilustres discípulos. Um fato curioso no citado Código, e que o torna passível de ataques, é o de que o instituto da possibilidade jurídica do pedido, previsto nas hipóteses de extinção do processo sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, VI), fora alvo de uma revisão do próprio autor antes mesmo de sua promulgação. Na terceira edição de seu Manuale, ao repensar o tema, Liebman passou a considerar tal condição da ação como sendo integrante do já citado interesse de agir, e não instituto autônomo. Não obstante a mudança na concepção do próprio autor quanto ao instituto citado, parte excelente da doutrina, a exemplo de Pontes de Miranda, nega-se a aceitar
2 564 a teoria das condições da ação da maneira como foi proposta, ora preferindo o termo pressupostos pré-processuais e processuais (1979, p. XXXV), ora condições do exercício legítimo do direito de ação (MOREIRA apud DIDIER JÚNIOR, 2005, p. 12), ora, ainda, alegando ser nada mais do que matéria exclusivamente de mérito. O objetivo do presente trabalho é demonstrar algumas das mais importantes dentre estas teorias, a fim de justificar a opção do legislador por promover tal mudança em nosso ordenamento jurídico. Ação O estudo das condições da ação requer, em primeiro lugar, a conceituação do que seria o direito de ação, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito e ao qual são impostas tais condições. Resumidamente, portanto, passaremos ao estudo dos conceitos de ação, tanto daquele sobre o qual Liebman estruturou sua teoria, quanto ao que tem sido modernamente aceito na doutrina. A ação na doutrina de Liebman Na doutrina do insigne mestre italiano, ter ação é ter direito ao provimento de mérito, ficando na área do direito material a definição quanto a ser favorável ou desfavorável esse provimento (LIEBMAN, 1984, p. 153). A teoria de Liebman ficou conhecida como teoria eclética, por defender que o direito de ação não depende do material, sendo, porém, instrumentalmente conexo a este, através das condições da ação, entendidas estas como espécies de requisitos que devem ser satisfeitos para que se passe a analisar o mérito da causa. Por esta concepção, a sentença que julga sem analisar o mérito nada mais seria do que algo como uma decisão administrativa, de modo que não haveria ação em sentido estrito, nem tampouco jurisdição.
3 565 Analisando o tema, Calmon de Passos (1960, p. 26) criticou o mestre italiano, ao afirmar que, ao defender que a extinção sem análise do mérito não é jurisdição, Liebman deveria ter definido qual a natureza desta atividade do juiz, visto que não é, também, mera decisão administrativa. 2.2 O moderno conceito de ação Modernamente, o direito de ação tem sido compreendido, conforme ensina Cândido Rangel Dinamarco como o direito subjetivo, autônomo, público e abstrato de invocar a tutela jurisdicional (2009, p. 273). A análise deste conceito permite-nos notar a total emancipação do direito processual com relação ao material, visto que não mais se prende ao mérito da causa, tal como ocorria com aquele de Liebman e com o dos adeptos das teorias concretistas, a exemplo de Savigny, para quem o direito de ação era o direito material em movimento (MACHADO, 2009, p. 101). Um exemplo clássico trazido pela doutrina para demonstrar a autonomia do direito processual é a ação declaratória negativa, na qual o autor, embora não tenha um direito material, invoca do Estado a tutela jurisdicional. Uma vez tomado este conceito de ação, torna-se nítida a contradição em que se coloca a teoria das condições da ação, já que prover a devida tutela jurisdicional não equivale a decidir sobre o mérito da causa. Atualmente tem-se entendido que ao negarse ao particular o acolhimento de uma demanda por falta de condição da ação com base na lei (CPC, art. 3º ou art. 267), não há que se falar em tutela jurisdicional não prestada. Condicioná-la desta forma seria voltar a uma concepção concretista, a exemplo daquelas em que só se tinha o direito processual se o mesmo ocorresse com o material. Daí a melhor propriedade da expressão condições de admissibilidade do julgamento do mérito, embora tais condições não sejam as mesmas que Liebman defendia. A possibilidade jurídica do pedido
4 566 A possibilidade jurídica do pedido foi concebida por Liebman como sendo a admissibilidade em abstrato do provimento pedido, isto é, pelo fato de incluir-se este entre aqueles que a autoridade judiciária pode emitir, não sendo expressamente proibido (1984, p.161). O exemplo principal trazido pelo mestre italiano era o divórcio, que era vedado pela lei italiana até o ano de 1970, quando foi instituído pela lei 898 de 01/12, à qual se seguiu sua mudança de concepção. Liebman passou, então, a incluir a condição possibilidade jurídica no interesse de agir. Outro exemplo destacado pela doutrina é o da dívida de jogo, cujo pedido é vedado pelo ordenamento. No campo das condições da ação, o tema mais controverso é, sem dúvida, a possibilidade jurídica do pedido. Tal instituto já foi compreendido das mais variadas formas. Conforme ensina Calmon de Passos (1960, p. 34), Oliveira Gusmão via o a possibilidade como problema de legitimação; Alberto dos Reis como questão de mérito, enquanto Micheli, dizia que trata-se de interesse de agir. Também com o fim de dar uma melhor conformação ao tema, Humberto Theodoro Júnior elaborou uma construção que preza pela restrição da possibilidade jurídica ao seu aspecto processual. Em sua concepção, a possibilidade estaria localizada no pedido imediato, ou seja, na permissão ou não do direito positivo a que se instaure a relação processual em torno da pretensão do autor. (2009, p. 61) Destaca ainda, que, embora vedado propor ação sobre o tema, não haveria impedimento à satisfação da pretensão, desde que operada no relacionamento direto entre as partes. O mesmo autor, hoje integrante da comissão de juristas que prepara o novo Código, aponta, porém, para a falta de utilidade prática do instituto, recomendando ao legislador a sua retirada do rol das condições da ação, de modo que restem apenas o interesse processual e a legitimidade de parte, tal como o próprio Liebman repensou a teoria, quando da terceira edição de seu Manuale, quando passou a considerar que nas hipóteses de provimento jurisdicional não admitido pela lei, falta ao autor o interesse de agir, o que fez com que a possibilidade jurídica do pedido perdesse sua aplicabilidade. A possibilidade jurídica do pedido e o mérito da causa
5 567 Defende Fredie Didier Júnior (2005, p. 20) que a possibilidade jurídica do pedido não pode ser tida como condição da ação, por se relacionar com o próprio exame do direito material em questão (mérito). Tal entendimento pode ser obtido quando se compreende que o fato alegado pelo autor não corresponde ao fato legal, ao qual teria que se subsumir. É este também o pensamento de Thereza Alvim (apud MEDINA, 1999, p. 382), para quem a decisão pela impossibilidade jurídica do pedido deveria ter a mesma natureza daquela que declara a decadência ou a prescrição, culminando, portanto, na coisa julgada material, visto que, diferentemente do que ocorre quando está em questão o interesse de agir ou a legitimidade de parte, tal análise não deixa de tocar no mérito da causa. Adroaldo Furtado Fabrício, citado por Fredie Didier (2005, p. 19), dá o exemplo da usucapião. Que diferença há entre a ação em que se embasa o direito numa posse de dois anos e aquela em que o autor alega já possuir o bem há vinte e cinco anos, sendo sentenciado, quanto à segunda que o tempo não é suficiente? Pois o primeiro caso é de resolução sem análise do mérito, enquanto o segundo é de decisão pelo mérito da causa. Considerado tal exemplo, torna-se frágil o argumento da economia processual defendido pelos adeptos da teoria de Liebman, visto que o autor da primeira ação poderá repropô-la, visto que não induz perempção. E é esta contradição que enseja ao apelo de juristas como Didier Júnior (2005, p. 25) e Calmon de Passos (apud DIDIER JÚNIOR, 2005, p. 25), para os quais a sentença que extingue o processo sem julgar o mérito deveria sim fazer coisa julgada, submetendo-se à perempção, para, aí sim, efetivamente, colaborar para a efetividade e celeridade da justiça. Conclusão Apesar dos esforços de grandes juristas, que com tanto afinco buscaram dar uma melhor conformação ao tema, a qual se fazia necessária devido à previsão na lei,
6 568 o instituto da possibilidade jurídica do pedido, chamado por Didier de a mais esdrúxula e despropositada das condições da ação (2005, p. 17), não resistiu às inconsistências e falhas apontadas por parte notável da doutrina, e que causavam confusão nos tribunais. Como resultado, o novo CPC, que, em breve deverá entrar em vigor, atenderá ao pedido daqueles que defendem ser a possibilidade jurídica questão de mérito, o que, espera-se, deverá pacificar o entendimento da jurisprudência, bem como da doutrina e dos estudantes do direito em geral. Referências CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Um réquiem às condições da ação. JUSPODIVM. Disponível em: < Acesso em: 11 mai LIEBMAN, Enrico Tulio. Manual de direito processual civil. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, MEDINA, José Miguel Garcia. Possibilidade jurídica do pedido e mérito. Revista de Processo, nº 93, MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo 1. 2ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, MEDINA, José Miguel Garcia. Possibilidade jurídica do pedido e mérito. Revista de Processo, nº 93. p PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no direito processual civil brasileiro. Salvador: Oficinas gráficas da imprensa oficial da Bahia, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
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