34º Encontro Anual da ANPOCS. ST01: As fontes dos marxismos do Século XX
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1 34º Encontro Anual da ANPOCS ST01: As fontes dos marxismos do Século XX Título: A Dialética do Esclarecimento como síntese de múltiplas determinações Autor: Ricardo Pagliuso Regatieri Modalidade: Painel
2 Concluída em 1944, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, no exílio nos Estados Unidos, a Dialética do Esclarecimento foi publicada em 1947 por uma pequena editora de Amsterdã. Com esse livro, Adorno e Horkheimer promovem uma viragem de larga significação para o campo teórico cujo precursor é Marx. Síntese de múltiplas determinações, a Dialética do Esclarecimento tem conceitos de Marx como categorias centrais. Porém, expande-os vis-à-vis Marx e Lukács (os quais nunca aparecem explicitamente no livro), apropriando-se e procedendo a uma reconfiguração de Weber (sem, entretanto, citá-lo uma vez sequer) e da psicanálise de Freud (por vezes citado) bem como da filosofia de Kant, Hegel e Nietzsche. O presente trabalho tem como objetivo discutir sucintamente algumas questões do livro tendo em vista duas das fontes conformadoras da teoria crítica de Adorno e Horkheimer na década de 1940 e que, afora Marx, podem ser consideradas como suas mais importantes: o exame de Weber do processo de desencantamento do mundo e a teoria da cultura de Freud. No primeiro parágrafo do primeiro ensaio da Dialética do Esclarecimento, aparece uma frase que é uma clara referência à discussão weberiana sobre o desencantamento do mundo a frase, curta, é a seguinte: O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo 1. A questão colocada pela frase é um dos temas centrais do livro, cuja proposta ambiciosa, enunciada no prefácio, é nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie 2. Particularmente em A ética protestante e o espírito do capitalismo, no Prólogo (Vorbemerkung) de 1920 que a acompanhou em sua primeira edição brasileira 3 assim como o fez na edição norte-americana sob os cuidados de Parsons, em A ciência como vocação e em Rejeições religiosas do mundo e suas direções, Weber se ocupou em analisar o fenômeno do desencantamento, associado à crescente racionalização e à formação de esferas independentes umas das outras. Para Weber, o desencantamento significa despojar de magia o mundo, de forma que o homem possa dominar tudo por meio da previsão 4. Se Weber vê, em diferentes culturas e épocas históricas, processos que apontaram para isso, a peculiaridade do Ocidente é ter o desencantamento perpassado todas as esferas a racionalização da arte, as regras 1 Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do Esclarecimento, p Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Op. cit., p Trata-se da Introdução encontrada na edição da Livraria Pioneira Editora. 4 Max Weber. A ciência como vocação, p
3 racionais e a burocratização no Estado e no Direito, o cálculo racional na ação capitalista e os tipos de conduta religiosa 5 e, com isso, transformado radicalmente a cultura ocidental em comparação às outras. Adorno e Horkheimer dão ao desencantamento do mundo uma nova e inaudita formulação: para eles, o próprio mito é já uma específica forma de desencantamento, pois, ao procurar explicar, livra os homens, em certa medida, da ameaça do incompreensível, que lhes é, ao fim e ao cabo, potencialmente destruidor. Por outro lado, e simultaneamente, o desencantamento do mundo progressivamente recai na mitologia: as modernas formas míticas são a homogeneização e matematização do mundo promovidas pelo Esclarecimento. O positivismo, que assumiu a magistratura da razão esclarecida 6, é uma exacerbação do pensamento cujo cânone é a fórmula e sacramenta hoje em dia como algo eternamente intangível, na figura de fatos brutos, a injustiça social 7. Desdobrando a seu modo o conceito weberiano de desencantamento do mundo, Adorno e Horkheimer lhe conferem um sentido que o configura como um dos alicerces de uma crítica não só da modernidade, mas também dos rumos da própria civilização a dimensão crítica presente em Weber em relação ao desencantamento é acompanhada de sua resignação face às tendências sociais dominantes do mundo ocidental, por ele vistas como praticamente impossíveis de tomar outros caminhos. O primeiro intuito deste trabalho é, portanto, apontar para a apropriação e reformulação da tese weberiana do desencantamento do mundo por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. Analogamente à forma como se procede com a tematização de Weber, o segundo propósito perseguido é assinalar tanto o papel da teoria da cultura de Freud, tal como exposta, especialmente, em O mal-estar na cultura, quanto os desdobramentos dela levados a cabo no livro de Adorno e Horkheimer. No que diz respeito a Freud, a questão que interessa aqui neste trabalho é a maneira peculiar em que se apresenta o tema da dominação na teoria crítica desenvolvida na Dialética do Esclarecimento, especificamente no que se refere à dominação da natureza interna. É possível dizer que, no âmbito do marxismo ocidental, História e consciência de classe, de Lukács, foi a última obra a elaborar uma teoria da revolução e que Dialética do Esclarecimento, por sua vez, não tem uma teoria da revolução e sim uma teoria da 5 Cf. Max Weber. Introdução. 6 Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do Esclarecimento, p Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Op. cit., p
4 dominação. O livro mostra como uma lógica de dominação se desdobra desde os primórdios do processo civilizatório. O cerne dessa lógica é a dominação da natureza tanto a natureza externa quanto a interna. Segundo Freud, a cultura designa a soma das produções e instituições que distanciam a vida dos homens daquela de seus antepassados animais, servindo basicamente a dois fins: proteger o homem contra a natureza e regular as relações dos homens entre si 8. Um dos pontos centrais da Dialética do Esclarecimento é o modo pelo qual, na sociedade atual mas também ao longo da história até hoje decorrida, a cultura exigiu e segue exigindo dos indivíduos a dominação de sua natureza interna, dos instintos, impulsos e pulsões. Em O mal-estar na cultura, Freud trata do assunto considerando que a cultura necessariamente implica em renúncia. A renúncia possui, para ele, o caráter de uma frustração cultural 9, ou seja, a renúncia solicitada ou, melhor dizendo, forçada pela cultura produz frustração, e é nessa frustração que reside a causa da hostilidade contraposta à cultura. Dialética do Esclarecimento incorpora a idéia da civilização como renúncia um dos ensaios do livro, o excurso denominado Ulisses ou mito e Esclarecimento, ao tratar da prefiguração do Esclarecimento na Odisséia de Homero, aborda detidamente o tema da civilização enquanto renúncia e desenvolve a noção de uma hostilidade à cultura para além do modo em que ela está presente em Freud. A formulação do livro é que a humanidade teve que se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu e, dessa experiência de renúncia sob o signo do sofrimento, deriva o esforço para manter a coesão do ego ; porém, a tentação de perdêlo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo 10. A obrigatória e irrefletida dominação da natureza interna por parte dos sujeitos dá margem a formas violentas de irrupção daquilo que foi reprimido. Os impulsos e instintos dominados à força e sem elaboração elaboração que seria análoga àquela que a psicanálise busca efetuar, no plano individual, na clínica podem a qualquer momento vir à tona e ser dirigidos e manipulados pelos poderes existentes. Lançando mão dessa interpretação da teoria freudiana, os autores esquadrinham, no último ensaio que compõe o livro Elementos do anti-semitismo, o fenômeno anti-semita que abalou profundamente o 8 Sigmund Freud. El malestar en la cultura, p Sigmund Freud. Op. cit., p Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do Esclarecimento, p
5 momento histórico no qual escreveram, como uma forma de explosão brutal do reprimido, do não-tematizado. A dominação, seja em relação ao mundo externo ou ao interno, se orienta pela autoconservação dos indivíduos, o que faz com que Adorno e Horkheimer falem de uma razão instrumental, em constante desenvolvimento e ampliação na medida em que se potencializam ao longo da história as forças materiais da sociedade. Já prefigurada na narrativa homérica, onde aparece como astúcia que Ulisses emprega para superar situações difíceis, renunciando a entregar-se à sedução das potências naturais, essa razão instrumental, uma razão calculadora ligada à autoconservação, é encarada em Dialética do Esclarecimento como algo que se radicaliza com a emergência e o desenvolvimento do capitalismo modo de produção baseado, conforme demonstra Marx em O Capital, na abstração como operação que permite a existência do valor. Assim, ao associar à autopreservação uma razão calculadora, portanto abstrata e abstratizante, e ao identificar esse tipo de razão em momentos históricos anteriores, Adorno e Horkheimer promovem uma expansão da noção de abstração para além da concepção que a considera produto específico da modernidade burguesa. Desencantamento e dominação da natureza interna, incorporados desde outras matrizes, são problematizados numa chave que os reformula no âmbito alargado de uma teoria social com base em Marx, a qual adquire a capacidade de expandir a crítica marxiana no sentido de uma crítica, ao mesmo tempo, do próprio processo civilizatório e do presente histórico. 4
6 Bibliografia FREUD, Sigmund. El malestar en la cultura [1930]. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas Tomo 8. Madrid, Biblioteca Nueva, HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W.. Dialética do Esclarecimento [1947]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, JAY, Martin. A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, [1973]. Rio de Janeiro, Contraponto, LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista [1923]. São Paulo, Martins Fontes, MARX, Karl. O Capital [1ª edição: 1867] (Os Economistas), Livro Primeiro, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções [1915]. In: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia [1946]. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, A ciência como vocação [1917]. In: WEBER, Max. Ciência e Política. São Paulo, Editora Cultrix, A ética protestante e o espírito do capitalismo [1920]. São Paulo, Companhia das Letras, Introdução [1920]. In: WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo [1920]. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, WIGGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política [1986]. Rio de Janeiro, DIFEL,
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