do nômade. Os olhos
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- Sebastião Farias Figueiroa
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1 ...05 Os olhos do nômade Glamouroso e andarilho, seu olhar retratou de figuras do jet set à destruição implacável da savana africana. Artista plástico de renome, Peter Beard abriu seu mediterrâneo à MIT Revista para um balanço afetivo e profissional de seus quase 70 anos texto e fotos Marcio Scavone, de Cassis
2 C omo traçar o perfil de um artista que parece ter passado a maior parte da vida tentando apagar todos os frágeis contornos que em vão muitos tentaram esboçar? A resposta está na sua arte atemporal calcada na fotografia e na colagem. Difícil é também evitar o lugarcomum e não me comparar, nesta missão, a Stanley, o jornalista americano que no século 19 partia em busca do não menos elusivo dr. Livingstone, missionário britânico desaparecido no coração de uma África ainda romântica. Comecei minha busca por Peter Beard imaginando um encontro em Londres, Paris ou em sua base em Nova York. Mas minhas investigações acabaram por me levar direto ao covil do leão. Nosso encontro seria em Cassis, pequeno porto de pescadores a leste de Marselha que abrigava não o velho caçador que eu imaginava, mas um artista contemporâneo, incrivelmente conectado com o mundo. Um inquieto caçador de imagens e notícias para povoar suas colagens. No primeiro encontro disparei: My name is Marcio Scavone and I shoot photographers, but this time I came looking for a lion to shoot! Esperei sua reação me divertindo com a ambigüidade da língua inglesa no que se refere aos termos atirar e fotografar, ambos definidos pelo verbo to shoot. Olhei no fundo dos olhos de Peter, senti o sorriso e que ali começava uma grande amizade. Foi para a África com o bisneto de Darwin Diante de mim um personagem fascinante e charmoso, herdeiro cultural e possível sósia de um certo Denys Finch-Hatton, o caçador de big game e amante da escritora dinamarquesa Karen Blixen, que escrevia sob o pseudônimo de Isak Dinesen e que o imortalizou em A Fazenda Africana (Out of Africa), interpretado por Robert Redford na versão cinematográfica por aqui conhecida como Entre Dois Amores. Finch-Hatton, aventureiro e piloto que desapareceria mais tarde a bordo do seu biplano Gypsy Moth e que teria levado ninguém menos que Eduardo, o príncipe de Gales, famoso por abdicar do trono da Inglaterra, em um safári para matar o seu leão. Enfim, um americano universal, um globetrotter das páginas de um Hemingway. Era essa a imagem que eu tinha de Peter antes de conhecê-lo. Peter Beard escapou, como ele gosta de dizer, para o leste da África em 1955 em companhia do bisneto de Charles Darwin, quando os mau-maus incendiavam árvores e partiam para a destruição do que então integrava o maior santuário de vida selvagem na Terra. Difícil definir o homem que vim encontrar. Personagem da noite e do mítico Studio 54 de Nova York, onde em companhia de Truman Capote ou Andy Warhol desfilava ao lado da belíssima modelo Cheryl Tiegs, sua companheira entre 1978 e 1986, ou Dorothea McGowan sua segunda mulher, que foi fotografada para 17 capas da revista Vogue. Sempre habitando dois mundos, podia também ser encontrado nas manhãs brilhantes das savanas, sob o sol equatorial das montanhas Ingong ou atravessando o rio Athi para fotografar elefantes semimortos de inanição sendo devorados por crocodilos. Encontro Peter Beard costurado nas próprias imagens da sua grande colcha de retalhos africana à luz da dura realidade. Ou ainda no seu célebre auto-retrato sendo devorado pelas mandíbulas de um crocodilo morto, mas que num espasmo trava os dentes e o fere enquanto escreve seus diários em mais uma magnífica metáfora da fuga do tempo, este que tudo devora. Minha busca, no entanto, não me levara ao coração da África negra de suas fotografias, como um novo Marlow, aquele personagem de Joseph Conrad em Coração das Trevas, um dos seus livros de cabeceira, que ao se aprofundar na selva rio acima em busca do enigmático Kurtz mais parece navegar uma veia turva em direção aos limites da experiência humana e ao mais tenebroso aspecto do domínio do homem pelo homem forjado nos fornos do imperialismo europeu. Minha busca havia me levado à Provença de Cézanne, onde encontrei os olhos e as histórias de Peter. Peter Beard acredita nos golpes de sorte e do destino. Sua expressão africana favorita é sharia mangu, é a vontade de Deus Histórias de como ele se aproximou de Francis Bacon, um dos maiores pintores do século 20 na galeria Marlborough de Londres nos anos 60 e se apresentou timidamente. Bacon, que tinha visto seu recém-publicado livro The End of the Game, estava impressionado com as carcaças desidratadas dos elefantes mortos fotografados no livro e queria transformá-las em esculturas. Sobre elas mais tarde escreveu: Suas fotografias mais contundentes são aquelas de elefantes em decomposição, nas quais após algum tempo as carcaças se desintegram e dão lugar a uma magnífica escultura de ossos. Não esculturas abstratas, mas vestígios de vida, desespero e futilidade. Peter acredita nos golpes de sorte e do destino. Sua expressão africana favorita é sharia mungu: não se pode fazer nada, é a vontade de Deus. E foi assim a vida inteira. Foi assim quando Bacon fez não um retrato seu, mas três, um tríptico. O trato seria um para Peter e os outros dois para pagar uma dívida de jogo do pintor, à época meros 250 mil dólares para alguém cujas pinturas são vendidas hoje por 24 milhões de dólares... Foi assim ao ser pisoteado por um elefante ferido em certos lugares da África ainda é permitida a caça punitiva dos paquidermes que atacam as lavouras. Aconteceu durante um piquenique e não tínhamos nem arma nem câmera, conta. Meu guia e eu fizemos um trato fifty-fifty: ele correu para a esquerda, eu para a direita, prossegue ele com um sorriso nos lábios. Peter conta que sua visão escureceu No sentido horário, a partir do alto: Peter e Karen Blixen em 1962; Peter em seu apartamento em Cassis; Nejma Beard, mulher de Peter, e o pintor Francis Bacon; o artista alimenta uma girafa em seu Hog Ranch, Quênia
3 64 65 Elephants Memory, colagem de Peter Beard que mostra um desses paquidermes com o monte Kilimanjaro ao fundo. A imagem foi usada por John Lennon na capa de um de seus discos
4 e voltou gradativamente como se fossem pixels acendendo novamente. O saldo, uma temporada de muletas, duas placas de platina e 24 parafusos. Novamente o sharia mungu explicava o ataque e seu quase encontro com a morte. Outra pista para se explicar Peter Beard está na literatura. Uma pequena epígrafe abre seu monumental livro recém-publicado pela Taschen na Alemanha, e cujas 616 páginas pesam 20 quilos. O livro, fac-símile ampliado de seus diários, teve uma outra tentativa de publicação pelas mãos de Jacqueline Kennedy Onassis, sua amiga e conselheira editorial. Ainda segundo Peter, o diretor de arte da Viking Press folheou e riu de seu material durante as três horas do encontro antes de dizer que não acreditava na publicação. Trinta anos depois a editora alemã faz o sonhado livro que se esgota em poucos meses a dólares cada um e vem acompanhado de um aparador de madeira com cara desses banquinhos de caminhada, como se fosse parte integrante de um pacote ou kit que incluísse um ingresso e o direito de freqüentar a tenda principal de um requintado safári na savana africana. A epígrafe em questão é um verso do poema Paraíso Perdido, de John Milton, outro pilar sobre o qual a cabeça de Peter se encosta para admirar o mundo: But past who can recall, or done undo? Mas do passado quem se lembra, ou depois de feito quem o desfaz? Quem escreve diários escreve cartas para si mesmo num futuro distante. Mesmo que, como no caso de Peter, não as leia jamais. Manter um diário seria uma maneira de pregar uma peça no tempo. Congelar os verões americanos felizes e ensolarados da juventude em Montauk, aquela pontinha de Long Island hoje também comprometida pela especulação imobiliária e pela superpopulação. Um litoral mágico que atraiu de Andy Warhol a Richard Avedon, de Mick Jagger a Paul Simon, numa longa festa de fim de século. Nas ruas de Nairóbi, ele descobre Iman Quando um fotógrafo faz um diário de imagens está acorrentando o tempo, está levando pela mão a furtiva lembrança com o cuidado dos que não querem ser mal-interpretados amanhã. Peter, um apaixonado defensor de elefantes, talvez inconscientemente estivesse tentando roubar o seu traço mais marcante e por isso mesmo o mais intrigante para um animal irracional: a memória. Memória para não esquecer seu primeiro encontro com Karen Blixen, amiga de seu primo mais velho, o notável Jerome Hill, pintor, fotógrafo e filantropo, figura marcante em sua vida. Jerome, que privou da amizade de figuras como Brigitte Bardot ou a escritora dinamarquesa, é o homem por trás da sofisticada Camargo Foundation em Cassis, entidade que recebe artistas e intelectuais do mundo inteiro, estudiosos da cultura francesa. Mas a carta de apresentação do primo não foi o suficiente, pois a consagrada escritora, cuja vida e obra Peter conhecia de cor desde a adolescência, não queria ver ninguém da África. Mesmo assim o jovem fotógrafo foi para Copenhague e, no trem, acabou sentando-se ao lado do sobrinho favorito de Karen mais um golpe de sorte, mais um sharia mungu. Sentado na ante-sala antes de ser recebido pela escritora, ele estranhou a demora e descobriu um buraquinho na parede, pelo qual percebeu os olhos azuis da velha senhora analisando o aventureiro antes de abrir a porta e a vida. Em tempo, a nova amiga acabou por escrever legendas para suas fotos africanas. Nos anos 60, ele foi a testemunha silenciosa que registrou febrilmente com câmera, olhos e pena uma África que desaparecia Memórias Peter tem muitas. Os diários certamente teriam sua finalidade documental, sem nunca perder o valor estético como prova o livro da Taschen. Contou-me ainda da experiência de epifania que sentiu ao avistar uma deusa negra caminhando pela Standard Street em Nairóbi, Quênia. Tratava-se de sua mais famosa descoberta, a top model Iman, uma das primeiras negras a serem fotografadas pela Vogue e futura mulher de David Bowie. Memórias de uma vida transformada em obra de arte. Sua amizade com Karen Blixen o levou a comprar terras ao lado da fazenda da escritora no Quênia. Mais tarde o Hog Ranch, cenário de tantas imagens inesquecíveis, abrigaria um departamento de arte cujas ilustrações primitivas de seus artistas da velha África aparecem em seus pôsteres e colagens. Eram os anos 60 e os grandes caçadores lideravam safáris com todas as características coloniais que Peter tinha lido em Out of Africa. Mas aquele mundo desaparecia, e Peter era sua testemunha silenciosa que febrilmente registrava com a câmera, os olhos e a pena. A explosão demográfica do Quênia trouxe no bojo a fome e a luta selvagem pela sobrevivência. Homem e besta dividiam agora o mesmo destino amargo. Como Peter mesmo define, o elefante seria a metáfora imediata e Na página anterior, as pedras rajadas de Bestuan em Cassis, a única da cidade e onde Peter Beard toma seus banhos de mar
5 Zara, filha de Peter e Nejma, no Hog Ranch, Quênia; 02. Nejma Beard; 03. O muro de BB em Cassis hoje; 04. E na época em que Brigitte Bardot foi fotografada, ao lado de Jerome Hill, nos anos 60; 05. Peter fazendo suas colagens no apartamento; 06. O artista e o pôster da exposição Nomad, realizada no ano 200 em Paris; 07. O retrato de Peter pintado por Francis Bacon (08); 09. Peter com a casinha de Napoleão em Cassis ao fundo O artista em ação no chão de seu apartamento; 11. Retrato de Andy Warhol, escrito com a logomarca de Marlboro; 12. Mick Jagger fotografado em 1972; 13. O porto de Cassis; 14. O auto-retrato que celebrizou Peter Beard, engolido por um crocodilo; 15. Restos de lixo usados nas colagens; 16. Cap Canaille na visão pontilhista de Paul Savignac e na de Scavone (17); 18. Rua em Cassis; 19. Peter enfrentando um prato de espaguete; 20. O artista e Marcio Scavone
6 óbvia de um desastre anunciado. Logo o pesadelo de 30 milhões de quenianos próximos da inanição orquestraria o apocalipse de um equilíbrio ecológico de milhões de anos. Nessa atmosfera sombria e terrível surge seu primeiro livro, The End of the Game, de 1965, tocha acesa na caverna imunda e malcheirosa em que o sonho egoísta e colonial europeu havia transformado a África. Fotografou os elefantes famintos da reserva de Tsavo morrendo às dezenas de milhares na paisagem desolada de árvores devoradas. Sua honestidade como artista o fez caminhar na contramão da visão romântica sobre o que realmente acontecia na África e registrar a realidade sem sentimentalismo piegas. Suas fotografias aéreas de cadáveres de elefantes exibindo presas intactas são com certeza suas imagens mais constrangedoras, pois informam uma verdade terrível. Nelas, os elefantes aparecem como que arrumados de lado, deitados na terra, achatados como borboletas em uma vitrine de um museu natural gigante. Com uma certa graça parecem sorrir e, ao contrário do que os ambientalistas pensam, não foram vitimas da caça ilegal visto que exibem o tão cobiçado marfim intacto, acoplado às suas carcaças secas. Eles simplesmente sucumbiram à terra exausta, incapaz de lhes fornecer alimento. Demonstram em seu sacrifício final a impossibilidade de sobreviver confinados a espaços cada vez menores. E mais uma vez apontam a agulha para os quadrantes apocalípticos dessa nova África. Sua honestidade como artista o fez caminhar na contramão da visão romântica sobre o que realmente acontecia com os elefantes Nosso encontro em Cassis foi orquestrado pela bela Nejma, sua mulher, agente e porto seguro em Nova York, mãe de Zara, sua única filha e a quem dedicou um de seus mais sensíveis livros: Zara s Tales. Convivi com Peter e Lane Diko, seu assistente, durante quatro dias de um outono na Provença. Cassis está ligada à África pela ponte-aérea Marselha-Nairóbi, perfeita para quem vive os dois mundos, o glamour e a realidade crua. Uma simbiose digna das espécies que ele fotografou. Tem-se a impressão de que Peter vive uma metáfora dentro de uma metáfora. A sandália africana e a toalha enrolada na cintura contrastam com a edição do Daily Telegraph que Lane vai buscar religiosamente toda manhã no vilarejo encostado ao porto. As referências se sucedem: a embalagem do Ancienne Tarot de Marselha; um maço de cigarros Rooster encontrado no lixo; um rótulo de bordeaux; um cartão-postal antigo de umas férias em Biarritz no começo do século 20 comprado na calçada ao lado logo encontram o caminho para suas colagens. A velha Cassis mudou pouco desde que um jovem oficial da artilharia chamado Napoleão apontou seus canhões em direção à mesma vista eternizada pelo pontilhista Paul Signac, a mesma falésia de Cape Canaille exposta à luz mortiça e laranja do outono das aulas de pintura de Churchill, que também se hospedou na La Batterie, como ficou conhecida a propriedade adquirida por seu primo Jerome em fins dos anos Qualidade de herói renascentista Tudo isso Peter apontava e incluía durante nossas caminhadas e pequenas saídas para um mergulho na praia de Bestuan (Best One), a única realmente, forrada de pedregulhos listrados que, molhados, pareciam ter saído de algum ateliê de vidros de Murano. Pedras banais transformadas em confeitos, doces e esculturas. Tudo tinha um significado e um nome. Aquela é a casa onde filmaram Operação França. Naquele promontório fica o vinhedo de Georgina, apontava ele o Clos St. Magdeleine, que foi ocupado pelos nazistas na Segunda Guerra e que está na família da amiga Georgina desde os anos Ele continua: Veja, ali está o ninho de metralhadoras viradas para o mar. Na entrada do porto os nazistas afundaram um navio para impedir seu acesso a embarcações de grande calado. Mais adiante, o Roche Blanche é um hotel célebre. O nome se refere ao mármore de Cassis, a rocha branca e dura que foi arrancada para fazer portos Mediterrâneo afora, de Tânger a Marselha, e o maior orgulho a base da Estátua da Liberdade do outro lado do Atlântico. O que encontrei em Peter foi a energia vital, a pulsação das válvulas de criatividade de um dos maiores artistas plásticos americanos vivos. Ele demonstra aquela qualidade que o crítico Owen Edwards brilhantemente aponta no texto de apresentação do livrão da Taschen. Diz que Peter tem aquela qualidade do herói renascentista. Exibe generosamente a virtude da sprezzatura, a habilidade de fazer o que é difícil parecer fácil. De fato, ao olhar as velhas fotografias do jovem e apolíneo Peter Beard fica fácil entender a facilidade de trânsito e o sucesso entre as inúmeras celebridades que o acompanharam. Fisicamente o típico herói americano, o privilegiado que estudou na classe de um Michael Rockefeller e que portanto freqüentou o apartamento de seu pai Nelson, ex-governador de Nova York, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e, o mais importante para Peter, colecionador de Picassos. Uma mistura do jovem Charles Lindbergh sem o avião, mas com a confiança nos olhos de quem faria a travessia, com um golden boy saído das páginas de Fitzgerald. Talvez a escola em Essex e os anos de Inglaterra tenham deixado a marca profunda daquela que deve ser a maior qualidade do inglês: rir de si próprio, a fina ironia do understatement. Pois quando o assunto era fotografia, Peter mostrava um profundo ceticismo em relação à nossa arte, fotografia é uma A célebre foto aérea do elefante morto que, a exemplo de centenas de outros, apresenta as presas de marfim intactas. A maioria dos animais, na verdade, morreu de inanição, e não alvejada por caçadores clandestinos
7 Peter Beard em Cassis, Riviera Francesa: o jornal britânico The Daily Telegraph é ingrediente obrigatório no breakfast do artista 72 73
8 Especialmente para a MIT Revista, Peter faz uma intervenção a nanquim sobre sua foto de juventude, publicada no enorme livro da Taschen profissão para idiotas, ao mesmo tempo que ajoelhado sobre um print seu avançava na colagem e nos arabescos com bico-de-pena que tentavam transformar fotografias banais em algo mais interessante. Fina ironia deste que já declarou: Se Michelangelo tivesse uma Nikon ou uma filmadora, duvido que ficasse tirando lascas do mármore. Francis Bacon lançou mão de ninguém menos que Conrad e seu Heart of Darkness para tentar explicar a figura de Peter Certa vez, quando uma de suas fotografias foi parar na capa da Life, ele comentou segurando a revista: A foto não é boa, mas o elefante é magnífico. Coerente, explicava mais uma vez o seu credo: Sou parasita do assunto que fotografo. Sabem disso os grandes fotógrafos. No começo é sobre fotografia, depois, quando fazemos imagens que realmente ficam, é sobre as coisas que amamos. Um artista que insiste em afirmar que seus diários são inúteis, visto que somos todos formigas em um formigueiro, a vagar sem rumo entre o nascimento e a morte. Mas são exatamente esses diários, que acabam por dilacerar seu olhar e disparam mecanismos no canto mais obscuro de seu cérebro para alimentar sua criatividade. Peter trabalha para uma posteridade que só os visionários vislumbram. Difícil explicar esse leão. Francis Bacon lançou mão de ninguém menos que Joseph Conrad e seu Heart of Darkness para ajudá-lo na explicação. Lane surge orgulhoso com o livro nas mãos, abre no começo do terceiro capítulo e lê: O glamour empurrava-o para a frente, o glamour conservava-o incólume. Certamente não queria nada da selva além de espaço para respirar e seguir adiante. Tinha necessidade apenas de existir e continuar avançando, com o maior risco possível e o máximo de privações. Se alguma vez um espírito de aventura absolutamente puro, desinteressado e destituído de qualquer finalidade prática chegou a dominar um ser humano, tal era o caso desse jovem coberto de retalhos. Peter seria o jovem personagem perdido nos confins da África e que testemunhava agora o encontro entre Marlow e Kurtz, o encontro entre a velha e a nova África. Deixei Cassis com alguns pedregulhos da praia no bolso. Eles faziam um barulho de contas quando eu andava, e sorrindo para dentro eu me despedia daquelas falésias. Na pequena estação de trem uma placa e um verso provençal de Frédéric Mistral, que se transformou no moto da cidade, teimavam em mais uma vez me ajudar a explicar Peter Beard: Se você viu Paris, mas não viu Cassis, nada viu. O enigma ganhava contornos, finalmente. A sombra e a luz, o glamour e a simplicidade, a falésia silenciosa e o som e a fúria dos olhos de Peter Beard Foto de Peter Beard com legenda da escritora dinamarquesa Karen Blixen, que utilizava o pseudônimo de Isak Dinesen
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