Trata-se de saber o quê, num discurso (analítico) se produz por efeito da Escrita. Vera Lúcia Santana. Escrita,linguagem,discurso, significante
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- Júlio Valverde Teves
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1 Trata-se de saber o quê, num discurso (analítico) se produz por efeito da Escrita. Vera Lúcia Santana Escrita,linguagem,discurso, significante Para Lacan, a escrita é o que se pode ler da erosão da linguagem, é o resultado do desgaste, pela ação do uso da linguagem, de um certo efeito de discurso, algo que não está no mesmo registro do significante. Quando se distingue a dimensão do significante, é porque ele nada tem a ver com o significado, qualquer que seja a sua origem. Isto não quer dizer que ele seja arbitrário, mas que a sua relação é estabelecida com aquele que o ouve, e, sendo assim, tem a ver com a particularidade, a singularidade de cada sujeito. Paulo César de Souza, ao examinar alguns conceitos fundamentais da nomenclatura psicanalítica, assinala que os psicanalistas são os responsáveis pela hipertrofia do significante, tendo como consequencia uma concepção negativa do uso linguístico decorrente do menosprezo pelo caráter social do significado. Diz ainda que para Laplanche e seu grupo, a orientação é: Jamais perder ou jamais apagar a pista do significante. Sob a visão da linguística, significante e significado têm a vantagem de marcar a relação de oposição e de inseparabilidade que há entre os dois, como uma folha de papel em que o pensamento é o anverso e o som o verso de modo que não é possível cortar um sem cortar também o outro. O discurso científico, define a escrita como a expressão do sentimento e do pensamento por meio de caracteres e de letras, ao tempo em que introduz a linguística com sua noção de significante. A dimensão da escrita é, portanto, dada pela Linguística, ciência da linguagem humana, que ao introduzir na fala, uma dissociação, funda a distinção entre significante e significado. E é justamente a noção desta diferença que nos introduz na dimensão propriamente dita da escrita. A partir da noção da diferença acima aludida, entre significante e significado, podemos concluir com Lacan que a dimensão da escrita é dada pela leitura do que se ouve do significante, e o que se ouve do significante, é o significado. A esse respeito, uma incursão na literatura, nos revela de modo inusitado, uma descoberta sui generis de Clarice Lispector com a sua Epifania da Escrita, onde ela diz de maneira singular então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou na entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a
2 não palavra ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler distraídamente. Isso é da mesma dimensão do que Lacan assinala quando pontua que a linguística introduz na fala uma dissociação graças a qual se funda a distinção do significante e do significado. Trata-se na verdade do aparecimento do terceiro termo, o referente, também denominado de S1, mas aquele S1 que não se ligou ao S2, que não foi transformado em saber, mantendo-se como um pequeno a, que embora significante é de outro estatuto, do estatuto de objeto, que dá o norte à cadeia significante, e ao mesmo tempo resta da operação significante onde aparece o sujeito. O referente é fruto de um liame entre os que falam a mesma língua. A sua origem está em tudo que é propriedade e herança comum, partilhada com todos os demais e é a Linguagem, com a função que lhe é própria, de referência maior, quem assujeita o Homem à sua Lei, quem o submete aos equívocos e aos mal entendidos da própria língua. A relação entre a fala e a linguagem é o grande problema do falasser e porisso mesmo a Função da fala, o Campo da linguagem e a Instância da Letra não dão conta da operação analítica, não recobrem o que se refere ao campo freudiano. Essa mesma linguagem que serve à comunicação, é apenas aquilo que o Discurso da Ciência elabora para dar conta de alíngua, que ao contrário da linguagem, como bem o demonstra a experiência do inconsciente, serve para apontar tudo que o ser que fala é incapaz de enunciar. Só a psicanálise interroga a relação que não se pode saber do ser, a estrutura desse saber que escapa ou que se capta entre os ditos, no interdito das palavras. É sobretudo no Discurso Analítico que o sujeito fala sem saber, e por mais que ele fale sempre faltará algo a ser dito, por mais que ele diga, jamais dirá exatamente o que quer dizer. É exatamente este o sentido que leva Lacan a dizer que Lei da Linguagem é a Lei do Homem, e que os animais ditos irracionais quando estabelecem e mantêm o seu sistema de comunicação o fazem pautado em um código onde a sinalização é dada em função de uma correlação fixa entre os seus signos e a realidade que eles expressam, sem aqueles efeitos particulares dos elementos da linguagem. Os animais não fazem uma leitura do que ouve, porque não têm um referente. Mas, antes mesmo de Lacan, Freud já descobre com a Psicanálise, a incidência na natureza do Homem, em todos os aspectos de sua vida, da relação que ele mantém com a ordem simbólica, e é na estrutura da linguagem, terreno conquistado por Lévi Strauss, que Freud assenta o inconsciente. É pela fala que toda realidade chega ao homem, que a mantém através dos tempos. O saber portanto, vem do Outro, e este o adquire pela veiculação de sua letra e mesmo assim, nunca o mesmo saber.
3 Além disso há também o corte no saber, que sustenta a Paixão da Ignorância, e que já está escrito como experiência do inconsciente, efeitos de alíngua, indo além de tudo que o falasser é susceptível de enunciar, mostrando que a questão da relação sexual será sempre impossível escrevê-la. É o discurso a condição de sustentação da escrita, visto que tanto a escrita quanto a letra são efeitos de discurso. No discurso analítico, trata-se do que se lê no sentido de reler-se, ou seja, ler algo além daquilo que o sujeito é incitado a dizer, a dizer qualquer coisa, a dizer o que vier a cabeça, a dizer besteira. Quando o sujeito comete um ato falho, ou deixa escapar um lapso, isto pode ser lido de muitas maneiras diferentes, ou seja, o que ele enuncia pela via do significante, tem uma leitura diferente do significado que é captado pelo analista, daquilo que ele ouve. Em Joyce, por exemplo, o significante aparece como se estivesse engastado em uma pedra e fosse preciso dela retirá-lo. De per si, já é ilegível porque escapa ao código vigente em qualquer comunidade. Como resultado disto, o significado é enigmático dando margem a uma ampla possibilidade de leitura. É a título de lapso que os significantes de Joyce significam alguma coisa. Então é possível se marcar uma diferença entre Joyce, quando apresenta a sua escrita, e Clarice Lispector, quando sugere uma leitura distraída daquilo que transmite. No primeiro caso, pode-se ler mal, ou mesmo nem se lê, dependendo daquele que se propõe a desenvolver a leitura. No segundo caso, os significantes estão sob uma referência maior, obedecem a um código, o que permite essa leitura (a leitura do significante) sendo o modo como cada um escuta ou ler este significante ( no caso leitura ) o que vai direcionar a sua interpretação, ou seja, o significado é dado em função da particularidade daquele que processa a leitura. De todo modo é a linguagem como aparelho de gozo que oferece a possibilidade de abordar a realidade. A linguagem é capaz de introduzir no real tudo que é accessível à função operatória. É isto que garante que entre as coisas e os seus nomes haja uma conexão aparentemente natural e necessária. Quando a linguagem falta, quando ela se descola do objeto que nomeia, quando a cola que as fixa está perdida, surge um sentimento de estranheza, que impede qualquer ação possível pois toda ação humana é regulada e definida pela relação entre as coisas e os seu nomes. Na Instância da Letra, Lacan define o sintoma como a linguagem que deve ser libertada. Na neurose, diz, de certo modo, a inibição, o sintoma e a angústia, expulsam a fala do discurso concreto que ordena o consciente. A inibição como movimento de paralização, impede a ação de desenvolvimento do Dito, provocando um avanço na direção do Gozo, levado pela imagem narcísica. Já o sintoma aparece aí como o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito. Mesmo assim, ainda com Lacan, na neurose estamos
4 diante de uma fala em exercício pois inclui o discurso do Outro no segredo de sua cifra. É também um fato da neurose a fala que escapa em um ato falho, surpreendendo o sujeito em um discurso bem sucedido, ou aquela que como o lapso irrompe como se estivesse aprisionada, livrando-se das grades. Ambas são decorrentes de um súbito aparecimento do sujeito do inconsciente naquele dito inesperado, que surgiu como alguma coisa duvidosa já que nada tinha a ver com o que se desejava dizer em termos de consciente. A linguagem do desejo já está escrita desde antes. Para libertar a fala do sujeito ele precisa ser introduzido na linguagem do seu desejo. Neste sentido, é ao sujeito que cabe reencontrar a sua medida. Ao analista cabe oferecer à fala do sujeito uma pontuação dialética, diz Lacan. O analista é com efeito aquele que está mais próximo de um saber que não se sabe, mas qualquer sujeito que dialoga há séculos, em todas as áreas do conhecimento, também sabe que entre o sujeito e o real existe o campo do significante que deixa a sua marca, o traço unário que vai marcar o sujeito antes mesmo dele existir. É daí que se origina a suposição de que o sujeito do inconsciente sabe ler, embora essa leitura nada tem a ver com o que se pode escrever a respeito. Trata-se da letra. A letra se lê. A letra é o que do significante se inscreve no corpo. A letra é incorporada. A letra é análoga a um gérmen, porque se inscreve no corpo e sobrevive a ele. A duração da letra se estende para além da vida do corpo como o nome próprio, como as letras do alfabeto fenício, que se achavam bem antes do tempo da Fenícia, sobre pequenas cerâmicas egípcias, onde serviam de marcas de fábricas e só muito tempo depois vieram a se transformar em letra, como efeito de discurso que versava no mercado da Fenícia. Na China, a letra como caractere, saiu do discurso chinês, e assim a história de cada língua nomeia a sua letra. As letras também podem assumir valores diferenciados, caso sejam extraídas da Teoria dos Conjuntos, da Álgebra, ou ainda do Discurso Analítico. O uso que fazemos de uma ou de outra difere, mas há entre elas uma relação de convergência, não importando de que discurso essa letra possa sair. Para Lacan, dentre todos os modos de expressão assumidos pela letra, a formalização matemática é a ideal porque pode transmitir integralmente o que se deseja. É essa formalização que ele denomina de Escrita propriamente dita, embora ela também só subsista se for apresentada em uma linguagem comum a determinada comunidade, ou seja, se for utilizada na sua apresentação a língua que esteja em uso nesta comunidade, pois toda formalização da língua se transmite com o uso da própria língua. Com Milller podemos dizer que a fala do analisando, em um sessão analítica, equivale a uma leitura de algo que já foi escrito antes. Isto ocorre em um lapso
5 de tempo que ganha dupla temporalidade: a que se dirige ao futuro, e a que se desloca ao passado para viver nele o presente, aquela volta temporal que naturalmente o analisando faz em sua sessão de análise, indo e vindo do passado ao presente, e vislumbrando o futuro, como o trajeto que se percorre do avesso ao direito na Banda de Moebius, permitindo uma redefinição no contexto do seu discurso analítico na relação com o seu gozo, assinalando a indestrutibilidade do desejo ou descobrindo que esse desejo encontra-se mascarado no seu próprio dizer. E este desejo é apontado a cada momento que o sujeito pretende alcançar o ponto de cruzamento das bordas da Banda, o ponto de torção, o que nunca alcançará porque ele será sempre reenviado a um novo horizonte, que aparece e permanece como profundidade, como furo que nunca será preenchido. Se a fala que o sujeito desenvolve em uma sessão de análise, equivale a uma leitura de algo que já foi escrito, e a condição da escrita é que ela se sustente por um discurso onde tudo escapa, onde o que se lê ou o que se pode ler, vem da erosão da linguagem, se pode concluir que tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever, como tal, a relação sexual, que jamais se poderá escrevê-la, escrevê-la como um verdadeiro escrito. Tudo isto ocorre porque a relação que existe entre o Sujeito e o Outro, vem da resposta que o Outro pode dar em função do código que ele detém. No nível sexual, não existe essa relação significante do Sujeito com o Outro, sendo esta a razão da impossibilidade de escrever a relação sexual. No discurso analítico, aquilo que o sujeito não sabe da sua escrita, é o próprio traço, a letra, onde se lê um efeito de linguagem, disso que não se pode saber do ser, da ruptura do ser, da estrutura desse saber que é proibido de dizer, ruptura de um saber solitário onde se situa a ex-sistência. Se o analista encarna no presente, a inscrição já passada da fala do sujeito, trazendo o passado para o presente, reenviando a fala do analisando a uma escrita de antes, com a sua interpretação, é porque a cadeia significante que um sujeito desenrola em sua análise, remete a algo que já foi escrito antes, mas a dimensão de uma cadeia significante não é a mesma de uma escrita, mesmo que a condição da escrita seja a de que ela se sustente por um discurso. Vera Lúcia Veiga Santana (membro da EBP-Bahia) Salvador, 20 de novembro de 2001 Bibliografia: Jacques Lacan, Seminário 20, Mais ainda, 1972/1973 Jacques Lcan, Os Escritos Jacques Alain Miller, A Erótica do Tempo
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