ApCrim ( )

Transcrição

1 1 APELAÇÃO CRIMINAL Nº ( ) COMARCA DE PIRENÓPOLIS APELANTE SILVANE SANTOS SILVA APELADO MINISTÉRIO PÚBLICO RELATOR DES. NICOMEDES DOMINGOS BORGES REDATOR DES. ITANEY FRANCISCO CAMPOS APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO. VÍTIMA MENOR DE CATORZE ANOS. VULNERABILIDADE RELATIVIZADA ANTE AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. NAMORO. CONVIVÊNCIA. CONSIDERAÇÃO DO CONSENTIMENTO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL À LIBERDADE SEXUAL. Declara-se a absolvição da imputação do crime de estupro quando, embora haja a presunção de vulnerabilidade da pessoa menor de catorze anos no artigo 217-A do Código Penal, se extrai das particularidades do caso que a vítima namorou o acusado previamente às práticas sexuais e passou a conviver com ele posteriormente, ainda mais se ausente qualquer prova a respeito de que o agente haja constrangido ilegalmente a ofendida a assim agir. RECURSO PROVIDO.

2 2 A C Ó R D Ã O VISTOS, relatados e discutidos os presentes autos de Apelação Criminal nº ( ), Comarca de Pirenópolis, em que é Apelante Silvane Santos Silva e Apelado o Ministério Público. ACORDAM os integrantes da Quinta Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por maioria de votos, desacolhido o parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, em conhecer do apelo e dar-lhe provimento, para absolver o apelante, nos termos do voto do Desembargador Itaney Francisco Campos, designado Redator do acórdão. Votou vencido o Desembargador Nicomedes Domingos Borges, que acolhia em parte o parecer ministerial, conhecia do apelo e dava parcial provimento para adequar a fixação da pena base. VOTARAM, além do Redator, os Desembargadores Ivo Fávaro, que presidiu o julgamento, e Nicomedes Domingos Borges. Luzia Vilela Ribeiro. Presente a ilustre Procuradora de Justiça, Doutora Goiânia, 10 de setembro de DES. ITANEY FRANCISCO CAMPOS REDATOR 4-lcm

3 3 APELAÇÃO CRIMINAL Nº ( ) COMARCA DE PIRENÓPOLIS APELANTE SILVANE SANTOS SILVA APELADO MINISTÉRIO PÚBLICO RELATOR DES. NICOMEDES DOMINGOS BORGES REDATOR DES. ITANEY FRANCISCO CAMPOS VOTO PREVALECENTE Trata-se de Apelação Criminal interposta contra sentença que condenou Silvane Santos Silva a 9 anos e 4 meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática, em continuidade delitiva, do crime de estupro de vulnerável, com a incidência da atenuante da confissão (art. 217-A c/c art. 65, III, d c/c art. 71, CP). Nas razões, requer a defesa a absolvição, por atipicidade da conduta (consideração do consentimento da vítima), ou a extinção da punibilidade, pelo revogado inciso VII, do artigo 107, do Código Penal, em razão da alegada intenção do réu e da vítima de se tornarem companheiros. pertinente. E a busca principal da defesa me parece

4 4 Desde logo é importante registrar que doutrinadores da mais alta consideração veem na alteração promovida pela Lei /09 o encerramento da discussão acerca da presunção de violência, antes prevista no artigo 224 do Código Penal. Argumenta-se que a criação de um tipo penal do qual não consta o verbo constranger, mas sim as condutas ter e praticar (art. 217-A, CP), haveria eliminado a dúvida sobre ser necessário o dissenso do vulnerável: tendo conjunção carnal, o agente estará cometendo essa modalidade de estupro, ainda que a vítima tenha consentido no ato. A perspectiva seria de que a Lei, ao adotar o critério cronológico, acabaria por presumir iuris et de iure, pela razão biológica da idade, que o menor carece da capacidade e discernimento para compreender o significado do ato sexual. Daí negar-se existência válida a seu consentimento, não tendo ele qualquer relevância jurídica para fins de tipificação do delito. A Lei /09 não permitiria a prática de atos sexuais com aqueles que têm por vulneráveis, porque não teria concedido ao juiz margem de discricionariedade que possibilitasse aferir no caso concreto o grau de maturidade do menor 1. Por outro lado, outros estudiosos também 1 PRADO, Luiz Régis. Comentários Ao Código Penal, 5ª edição, Ed. RT, p MARCÃO, Renato Flávio. Crimes Contra a Dignidade Sexual, Ed. Saraiva, p GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, 7ª edição, Ed. Impetus, p MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado, 7ª edição, Ed. Atlas, p DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, 8ª edição, Ed. Saraiva, p. 705.

5 5 merecedores de destacada exaltação, sustentam que, embora o legislador haja se utilizado de outra técnica, ainda persistiria a problemática da relativização da vulnerabilidade, na linha de que o rótulo não altera a substância. Nessa visão, a tipificação do crime de estupro de vulnerável não se satisfaria com a simples demonstração de que a vítima tem menos de catorze anos. A vulnerabilidade merecedora de tutela penal deveria ser compreendida de forma restrita e casuisticamente, tendo como essência a fragilidade e a incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir com a prática do ato sexual. Isso porque a definição do patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade seria baseada numa ficção jurídica, que nem sempre encontra respaldo na realidade do caso concreto, notadamente quando se leva em consideração o acentuado desenvolvimento dos meios de comunicação e a propagação de informações, que acelera o desenvolvimento intelectual e a capacidade cognitiva das crianças. Não haveria qualquer parâmetro justificativo para a escolha de tal faixa etária, sendo tão somente uma idade escolhida pelo legislador para sinalizar o marco divisório dos menores que padecem de vício de vontade, a ponto de serem reconhecidos pelo status de vulneráveis, daqueles que possam vivenciar práticas sexuais sem impedimentos.

6 6 O legislador, ao editar o artigo 217-A do Código Penal, teria se afastado da realidade social, uma vez que ignorara não só a precocidade das crianças e adolescentes, como persistira em utilizar um critério etário para definir aqueles que em hipótese alguma podem manter relações sexuais. A norma do artigo 217-A do Código Penal, tal como o revogado artigo 224, alínea a, do mesmo diploma, mostrar-se-ia em total dissonância do que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo equivocadamente a idade de 14 anos para a iniciação sexual. Intelecção diversa provocaria conclusões absurdas como considerar autor de crime de estupro um indivíduo de 18 anos que queira, por meio de casamento, constituir família com a menor de 14 anos que engravidou, ainda que haja o livre consentimento desta, em descompasso com o artigo 1520 do Código Civil, que permite expressamente o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, em caso de gravidez 2. E, na linha de compreensão de outros casos em que a matéria veio à tona, considero que não basta a comprovação da idade para a tipificação do crime de estupro de vulnerável, uma vez que o critério etário não é absoluto. 2 NUCCI, Guilherme de Souza. FRANCO, Alberto Silva. Doutrinas Essenciais Direito Penal, vol. IV, Parte Especial II Crimes Contra a Dignidade Sexual, p. 7. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 4, 4ª edição, Ed. Saraiva, p

7 7 Por certo, não me parece ser o melhor caminho a criminalização de fatos em que há um relacionamento afetivo entre a vítima menor de quatorze anos e o autor, especialmente se dessa relação advém um filho, como no caso concreto. Ao contrário do que uma ideia inicial e mais simplificada possa supor, a aplicação da lei penal em situações tais me soa quase como um lavar aos mãos do Poder Judiciário frente à complexidade da questão. Dispensa-se de raciocinar e pensa-se que reprovando penalmente o ato sexual consentido entre adolescente e adulto estar-se-á contribuindo com o objetivo primordial da jurisdição de pacificação de tensões. Compreendo ser de melhor política a não intervenção da jurisdição penal nos casos em que não é possível afirmar categoricamente que houve, de um lado, violência por parte do acusado, e, de outro, dissenso da adolescente de praticamente 14 anos com o ato sexual, notadamente quando a menor declara, com todas as letras e em juízo, que tem a intenção de coabitar com o autor quando o processo penal terminar (fls. 84). Assim, por coerência com o que venho deliberando em situações análogas, declaro a absolvição do acusado, por atipicidade da conduta. Determino a expedição de alvará de soltura, se

8 8 motivos até então desconhecidos não recomendarem a manutenção do apelante sob custódia. Ao teor do exposto, desacolhendo o parecer da Procuradoria de Justiça, dou provimento ao recurso. É como voto. Goiânia, 10 de setembro DES. ITANEY FRANCISCO CAMPOS REDATOR 4