O CONTO DE FADAS: A TRADIÇÃO QUE NUNCA É O MESMO.
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- Heitor Aleixo Caldeira
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1 1 O CONTO DE FADAS: A TRADIÇÃO QUE NUNCA É O MESMO. Socorro de Fátima Pacífico Vilar Universidade Federal da Paraíba RESUMO: Na relação estabelecida entre o Mesmo e o Novo, resgatar o conto de fadas, essa narrativa velha, significa recorrer ao sentido conhecido, rico, fácil e possível de ser implementado na escola. Nosso objetivo é apresentar ao professor, a partir da perspectiva psicanalítica de Bruno Bettelheim, as possibilidades afetivas, lúdicas e, sobretudo, criativas favorecidas pela prática de leitura dos contos de fadas. A nossa experiência parte da leitura de traduções completas, que preservam integralmente todos os aspectos das histórias. Sem os cortes, as adaptações e as ilustrações infantilizadas, os contos despertam o interesse principalmente dos adolescentes que supõem ser esta leitura própria às crianças menores. Palavras-chave: Conto de fadas/ Leitura/Psicanálise ABSTRACT: This essay aims at rescuing, through school practices, fairy tales, known as old and traditional narratives, as a valid educational method. For this purpose, it will make use of the psychoanalysis theory developed by Bruno Bettelheim, which means leads with the real affective, ludic and criative possibilities of this tales.our experience whith this stories started from lectures of complete and original translations e which w can not see childshness adaptations and illustractions. It interests adolescents and their internal conflicts, above all. Key-words: Fairy tales/ Lecture/ Psychoanalysis Independemente das verdades de alguns teóricos e sempre sábios educadores, os contos de fadas não deixam de encantar e interessar gerações inteiras, de diversos países e diversas culturas. Não é outra a razão que me traz aqui para tratar deste tema fascinante, polêmico e discutidíssimo. A rigor, não há um limite de idade para o encantamento provocado pelos contos de fadas. Pode-se afirmar que essas narrativas são uma tradição sempre renovada pelas demandas do homem que, embora marcado pelo tempo em que vive, atualiza sempre os mesmos sentimentos: amor, medos (da morte, de crescer, de amar), culpa, angústia, amizade, raiva etc. E é pelo fato de mobilizar tantos e tão variados sentimentos que os contos de fadas surgem como uma possibilidade a mais em sala de aula. Foi Bruno Bettelheim quem demonstrou, em seu estudo pioneiro A psicanálise do conto de fadas, a importância que essas histórias assumem na estruturação emocional da criança. Em linhas gerais, como o título do seu livro já sugere, ele identifica nos contos de fadas os principais conflitos que, segundo a psicanálise, acometem o ser desde a primeira infância. O escritor advoga a idéia de que essas narrativas ajudam a criança a desenvolver e organizar seus recursos interiores, na medida em que trabalham simultaneamente com a emoção, com a imaginação e com o intelecto (Bettelheim, 1992). Ao contrário de boa parte da atual produção literária destinada à infância, que alia belíssimas ilustrações a histórias asceticamente construídas, com a predominância
2 de temas ligeiros e infantis, ou para usar um termo em moda, politicamente corretos, o conto de fadas geralmente inicia com um problema sério, freqüentemente da ordem da sobrevivência: fome, abandono, incesto, morte. Esses impasses, segundo o autor, correspondem às pressões internas e dolorosas pelas quais a criança está passando. Assim, ao ouvir as histórias, a criança e, principalmente, o adolescente estabelecem uma relação inconsciente com esses dilemas que passam a servir-lhes de exemplo, principalmente no que diz respeito às soluções, tanto temporárias como permanentes, representadas nos contos. a despeito de todo o fabuloso, das fadas e princesas e até dos príncipes valentes, até chegar ao polêmico e necessário final feliz, ou o foram felizes para sempre que agrada até mesmo a nós adultos, a criança aprende que viver é lutar, como afirma o poeta, e que os confrontos e as dificuldades graves são inevitáveis na vida e que a grande lição é aprender a enfrentá-los. Porém, a despeito do seu comprovado encantamento e sua indiscutível receptividade, os doutíssimos teóricos e educadores construíram uma série de lugarescomuns convencionalmente ligados aos contos de fadas. Sabe-se que Rousseau fez restrições aos contos, banindo-os do currículo escolar, uma vez que acreditava serem as crianças já muito privilegiadas pela imaginação. Dessa forma, adotar os contos significava render-se ao gosto que sentiam pelos aspectos fantasiosos e imaginativos.(apud Warner, 1999). Outros preferem tomar os contos como belas mentiras, alienados da realidade, responsáveis por modelos de comportamento inadequados à plena cidadania, uma vez que a magia feérica dispensa ações efetivas, pois julgam que neles tudo se transforma com um simples passe de mágica. Esta última é a concepção dominante, uma vez que se trata da visão pejorativa, em relação aos contos de fadas, construída a partir de valores do nosso tempo, época que entra em contato com as histórias, a partir sobretudo dos filmes de Walt Disney. O cineasta leu os contos do ponto de vista da fantasia, retirando-lhe os aspectos mais rudes e inadequados ao conceito contemporâneo do que fosse próprio a uma criança. Os aspectos cruéis, sujos, desagradáveis, mesmo quando presentes, desaparecem em meio à graciosidade dos desenhos animados. A conseqüência disto é que esse colorido e infantilização, promovidos pela leitura de Disney, cristalizou-a, como aquela verdadeira, ou pior, como a única versão, retirando dos contos o aspecto fundamental de ser uma tradição sempre renovada, o mesmo sempre novo. Dou um exemplo: o dia em que resolvi ler para os meus alunos de literatura infantil uma versão de A Pequena sereia, em uma tradução mais próxima da original. A princípio, li em seus semblantes o enfado por ter que ouvir aquela história banalizada pelo seriado exibido quase diariamente. No entanto, à medida que os aspectos dolorosos, os dilemas e os impasses amorosos da pequena Ariel iam surgindo, os alunos começaram a comungar com os sofrimentos da personagem ao ponto de alguns não poderem disfarçar a comoção. O susto provocado pelo final da história surpreendeu a todos e, ouso afirmar, que alguns nem desconfiaram que o mal estar causado pela história tinha como origem a sua identificação, mesmo que inconsciente, com a impossibilidade de amar da Pequena Sereia. Na verdade, Walt Disney estava apenas acomodando os contos de fadas a uma concepção que, inclusive, baniu-os da escola pela crueldade, pelas crenças de caráter popular que veiculam, pela conotação sexual que revelam outro lugar comum devidamente esquecido. A saída encontrada pelas adaptações, muitas vezes, retirou do conto o sentido que o teria motivado. Assim, o assédio do pai incestuoso do conto Pele de asno é substituído pelo de um velho rei; o lobo que na história original ou devora 2
3 Chapeuzinho vermelho, ou é morto pela menina que, ao sair de sua barriga enche-a de pedras, é morto de forma saudável por um caçador. Outra cena cruel retirada de circulação já no filme de Disney é aquela que condena a madrasta de Branca de Neve a morrer dançando, calçada com sapatos de ferro em brasa. Atualmente, as restrições aos contos de fadas também dizem respeito ao caráter de dominação sexual que possuem, ordinariamente submetendo a figura da mulher a representações que vão de encontro às conquistas femininas após a revolução sexual dos anos 60. Essa leitura (e não necessariamente o conto de fadas) acredita que as histórias são responsáveis pela consagração de alguns estereótipos em relação às figuras femininas e masculinas, entre os quais o mais comum é aquele que representa a princesa sempre esperando o príncipe. Mais uma vez uso como exemplo a experiência com os alunos de literatura infantil. Trata-se de um aluno que ao analisar o conto A Bela Adormecida concluía o seu estudo, afirmando ser esse conto exemplo de representação da mulher submissa, cujo único objetivo é esperar passivamente o príncipe encantado. Ora, perguntei-lhe em quais contos ele havia se baseado para generalizar tais considerações. A resposta foi quase imediata: Cinderela, Branca-de-neve e a Bela Adormecida. Coincidência ou não esses contos foram adaptados por Walt Disney e, não duvido, que uma análise mais profunda possa descobrir-lhes tais sentidos. O que ocorre é que, tanto o meu aluno que já não defende esse ponto de vista, como aqueles que afirmam tais verdades, desconhecem outros contos de fadas os quais tratam do amadurecimento do herói masculino, e da sua espera por uma mulher ou princesa que venha tirá-lo da condição em que se encontra. Cito os exemplos conhecidíssimos das história de João e o pé de feijão, cujo final feliz só ocorre quando João depois de vencer o Gigante encontra uma bela princesa e casa-se com ela. Tem também o Príncipe sapo, que espera pacientemente o dia em que poderá enfim deitar-se ao lado da princesa, em sua cama. Por último, a Bela e a Fera, uma das últimas adaptações de Disney que, com tantas xicrinhas e bules dançando com a belíssima e premiadíssima trilha sonora, consegue retirar do filme a tragédia que é para a Fera ser visto e agir como tal até quando está realmente pronto para tornar-se um homem e amar verdadeiramente. A impossibilidade de congelar o conto de fadas como veiculador de um ponto de vista fixo em relação ao papel da sexualidade feminina e masculina é o que leva, não apenas o meu aluno, mas teóricos eminentes a emitir opiniões por vezes confusas, principalmente quando lidas muito tempo depois de emitidas. É o que observamos na leitura feita por Marilena Chauí, na década de 80, em seu importante livro Repressão sexual essa nossa (des)conhecida. Em sua análise, a filósofa tenta conciliar a teoria psicanalítica de abordagem dos contos de fadas ao tema da repressão sexual. Ela também toma como positivos os aspectos anteriormente salientados por Bruno Bettelheim aqueles referentes à solução dos conflitos internos e à liberação dos desejos e fantasias, mas faz ressalvas ao que ela chama de aspecto pedagógico que reforça os padrões da repressão sexual vigente uma vez que orientam a criança para desejos apresentados como permitidos ou lícitos, narram as punições a que estão sujeitos os transgressores e prescrevem o momento em que a sexualidade genital deve ser aceita, qual sua forma correta ou normal (Chauí, 1988:32) Contudo, os argumentos que Chauí lança mão, ao contrário do que supõe, não se sustentam quando, por exemplo, neste momento discutimos a sexualidade precoce das crianças brasileiras, a gravidez na adolescência. Ao contrário, parece muito salutar que os contos trabalhem 3
4 4 os momentos da sexualidade, que oriente as crianças para comportamentos lícitos, inclusive porque isso os protegeria de abusos. Além disso, uma série de análises desenvolvidas pelos alunos da disciplina Literatura Infanto-juvenil, todas baseadas nos pressupostos psicanalíticos e na recepção das crianças e jovens à leitura dos contos, têm demonstrado que as observações de Marilena Chauí dizem, não necessariamente dos aspectos encontrados nos contos, mas daqueles que lhes são roubados pelas péssimas traduções e inúmeras adaptações. O que se revela através de uma leitura menos dogmática dessas histórias é que os desejos lícitos e permitidos não traduzem os padrões da repressão sexual, mas os aspectos saudáveis da sexualidade humana; aquela que acontece sem dores, nem mutilações como as que ocorrem com a Pequena Sereia, por exemplo. Estes aspectos são tão bem compreendidos e assimilados pelas crianças que, de outro modo, quando minha aluna Taís contou a seus alunos a história original de Pele-de-asno, na qual fica explícita a investida incestuosa do pai, elas, para alívio seu, não representaram a relação incestuosa com uma representação real, mas de forma simbólica, numa manifestação clara e salutar de que o desejo do pai pela filha não é algo lícito ou permitido. Um último aspecto a ser discutido, relacionado aos estigmas consagrados aos contos, diz respeito ao caráter ideológico dos contos de fadas, que muitos acreditam ser disseminador de uma visão burguesa do mundo, da qual só teriam direito à felicidade plena apenas os bonitos, os ricos e os brancos. Ora, mais uma vez me vem à mente os filmes de Walt Disney, que estabeleceram um padrão hollywoodiano de beleza, disseminado em um sem número de ilustrações feitas para as várias edições dos contos. Entretanto, é preciso que se diga que as adaptações da Disney são lindas e válidas e por piores que sejam e nem são tão comprometedoras assim, se as tomamos apenas como uma leitura a mais e não como a leitura dos contos devemos sempre ter em mente as estratégias e astúcias dos leitores para driblar toda e qualquer sorte de sentido prévio, dado e acabado. Dessa forma, nada mais arbitrário do que privar a criança pobre e fora dos padrões cinematográficos de beleza de entrar em contato com essas histórias que, como obra de arte que são, mobilizam diferentes e inúmeras fantasias. Dizendo de outra forma, com Alberto Manguel, cada leitor confere a certos livros uma certa leitura (Manguel 1997: 236). Estas leituras dadas também podem ser observadas em algumas ilustrações destes contos. E é pelo fato de considerar a sua relação com a experiência e a recepção das crianças que, ao representar os contos através de desenhos, se fazem muitas vezes heróis e heroínas dessas histórias, que defendo hoje o ponto de vista segundo o qual, devemos contar a história para as crianças sem mostrar-lhes as gravuras. Afinal, não é a ilustração uma leitura da leitura? Teria a aluna de Taís se desenhado no lugar de Pele de asno caso ela tivesse visto a sua imagem em alguma ilustração. Enfim, podemos concluir que, se por um lado, os veículos atuais de divulgação dos contos de fadas, principalmente o cinema e a indústria do livro, ajudam a disseminar essas histórias, por outro, imprimem-lhes sua marca, seu estilo adaptando-os as suas conveniências o que implica levar em considerar noções alheias aos contos. O ideal seria que o professor e aqui vai outro lugar-comum conhecesse e desse a conhecer aos alunos várias e diferentes versões, principalmente as que se encontram nas escolas públicas, destas velhas, mas sempre atuais narrativas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas.9.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual. Essa nossa (desconhecida). 11.ed. São Paulo: Brasiliense, GILLIG, Jean-Marie. O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artmed, MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, WARNER, Marina. Da fera à loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das Letra,
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