Ato I CENA I. É? Só esse É chega? Basta só ésse É? E você acha que uma pessoa normal pode ouvir um É desses sem te achar insensata?

Transcrição

1 Ato I CENA I Como, minha irmã? Mas que besteira! Você pretende abrir mão do nome de solteira? Solteira uma palavra sonora, doce, emocionante e você pretende abrir mão disso pra casar que coisa mais vulgar! É. É? Só esse É chega? Basta só ésse É? E você acha que uma pessoa normal pode ouvir um É desses sem te achar insensata? Mas, ora minha irmã, um casamento é só um casamento Por que esse teu ódio ao casamento, esse furor? É um ato de amor. Um horror! 11

2 Como? Eu disse horror! Você não sente um arrepio de horror ao pronunciar essa palavra repugnante? Arrepio, sim, mas não de horror. De espectante. A mim a palavra casamento só me traz visões imundas, submissões inúteis, contato repelente não consigo entender você contente. Pra mim a palavra lembra apenas marido, casa, filhos: existe nisso algo de assustar? Mas uma mulher precisa se realizar. E tem realização maior, pra alguém da minha idade, do que amar e ser amada, poder casar com o homem que deseja e construir com ele uma vida de compreensão e de felicidade? Meu Deus, que aspiração mesquinha, que pobreza! 12

3 Uma vida menor, insignificante, sem beleza: teu sonho é mudar fraldas, idolatrar um macho e lhe servir de capacho. Um lar só pode satisfazer às pessoas grosseiras, à gentalha vulgar. Põe teus sentimentos em objetivos mais amplos, em prazeres mais nobres. Despreza carinhos tolos, orgasmos da matéria, e pensa em coisa séria. Exemplo não falta aí está mamãe a quem todos chamam sábia e devotam admiração. Não seguir seu exemplo é degeneração. Mas não; prefere ser escrava de um homem, toda riqueza interior a ele confia, quando, como eu, devia se casar com a filosofia. A filosofia nos eleva acima da fraqueza humana e entrega à razão o comando supremo, submetendo às suas leis a inclinação passional que faz de cada um de nós um nojento animal. Aqui (aponta a cabeça) é que brilham as chamas da virtude, aqui é que estão os sentimentos nobres pertos dos quais teus desejos normais são horrivelmente pobres. O céu, querida irmã, que, como você sabe, é Todopoderoso não faz o bolo humano por igual gostoso. Cada ser, cada espírito, é uma fatia que nem sempre vem com a calda da filosofia. 13

4 Se teu espírito se inclina, melhor, se eleva, às alturas rarefeitas das especulações metaintelectuais, o meu, coitado, só está à vontade nas coisas triviais. É melhor porém não discutir as intenções celestes, eu sinto: é melhor cada uma de nós seguir seu próprio instinto. Você, cheia de inteligência e energia, fica morando no cume da filosofia: eu, que, sem tristeza, reconheço me faltar o talento, ficarei morando aqui, bem baixo, no chão do casamento. Embora propondo realizações contrárias, a minha atitude, quero esclarecer, é bem conciliadora, pois estaremos ambas imitando nossa progenitora. Você, o espírito científico, que não vacila nem erra; eu, o lado sensual, sensorial, sentimental, mais fraco e terra-a-terra. Você, a luz cultural, toda preocupação séria: eu, a simples leviandade da matéria. É o lado melhor que a gente deve imitar numa pessoa, nunca a maneira como ela cospe, tosse ou se assoa. Mas esse lado existe e é fundamental. Se a mamãezinha não tivesse cedido ao lado material do grosseiro marido, acho que minha irmãzinha nem teria nascido. Ninguém vem à luz do dia 14

5 por conceitos de filosofia. Olha, falando grosseiramente apesar de ser mulher: me atraem certas baixezas não temo até certas durezas. Se você acha que fora do espírito tudo o mais é imundo, acaba suprimindo algum pequeno sábio que queira vir ao mundo. Discutir com você é tempo perdido. Ninguém tira de tua cabeça a idéia sinistra de um marido. Mas pelo menos me diz quem você está cercando não vai me responder que pretende Cristóvão. E por que razão não pode ser Cristóvão? Por acaso é aleijado? Tem cabeça grande, pé chato, é mal-educado? Não: é bonito, elegante, muito bem-educado. Mas só uma mulher à toa quereria o que já é de uma outra pessoa. Acho que ninguém ignora que Cristóvão suspira por mim não é de agora. Sei, Armanda. Mas suspiros de amor são coisas levia- 15

6 nas e você não vai descer a baixezas humanas. Você renunciou ao casamento para sempre no dia em que se apaixonou pela filosofia. Confesse, se Cristóvão não te interessa, que te interessa então que eu me interesse? O domínio que a razão tem sobre o nosso desejo não nos faz insensíveis à lisonja e ao cortejo. Não quero pra marido o teu belo senhor mas acho-o indispensável como meu seguidor. Jamais impedi que ele dedicasse suas adorações a teu talento, teu espírito, tuas mil perfeições. Confessar, meus limites não me faz infeliz: só consegui Cristóvão porque você não o quis. Mas você não acha, irmã, muito arriscado aceitar um amante assim despeitado? Será que um sentimento novo o amor antigo corta? A chama que ardia por mim estará completamente morta? Ele me disse, Armanda: é por mim que ele delira. 16