Linguagem e Direito: os eixos temáticos

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2 Organizadores Malcolm Coulthard Virgínia Colares Rui Sousa-Silva Linguagem e Direito: os eixos temáticos Recife,

3 L755 Linguagem & Direito : os eixos temáticos [e-book] / organizadores Malcolm Coulthard, Virgínia Colares, Rui Sousa-Silva. -- Recife : ALIDI, p. : il. ISBN (E-Book) 1. Direito - Linguagem. 2. Linguagem e línguas. I. Coulthard, Malcolm. II. Colares, Virgínia. III. Sousa- Silva, Rui. CDU 34: Créditos Editora: Associação de Linguagem e Direito Organização: Malcolm Coulthard,Virgínia Colares, Rui Sousa-Silva Design da capa: Java Araújo Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz 3

4 Diretoria Biênio Virgínia Colares (UNICAP) Presidente Malcolm Coulthard (UFSC) Vice-Presidente Vinicius de Negreiros Calado (UNICAP) 1º Secretário Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN) 2ª Secretária José Antônio Albuquerque Filho (FACIPE) Tesoureiro Carmen Rosa Caldas-Coulthard (UFSC) Diretora de Fomento à Pesquisa Rui Sousa-Silva (Univ. do Porto) Diretor de Relações Internacionais Lucia Gonçalves de Freitas (UEG) Diretora de Cultura Conselho Fiscal Valda de Oliveira Fagundes (EDAF) João Pedro Chaves Valladares Pádua (UFF-RJ) André Luiz de Oliveira Almeida (UFPR) 4

5 Conselho Editorial Alexandre Freire Pimentel (UNICAP/ UFPE) Ana Cláudia Pinho (UFPA) Anabela Leão (Universidade do Porto) Belinda Maia (Universidade do Porto) Carmen Rosa Caldas-Coulthard (UFSC) Claudio Regis de Figueiredo e Silva (ESMESC) Conceição Carapinha (Universidade de Coimbra) Érica Babini Lapa do Amaral Machado (UNICAP) Fernanda Frizzo Bragato (UNISINOS) Jayme Benvenuto de Lima Jr. (UNILA) João Pedro Chaves Valladares Pádua (UFF-RJ) Lucia Gonçalves de Freitas (UEG) Luiz Henrique Urquhart Cademartori (UFSC) Malcolm Coulthard (UFSC) Marcelo Pereira de Mello (UFF-RJ) Marcus Alan Melo Gomes (UFPA) Marília Montenegro Pessoa de Mello (UNICAP/ UFPE) Patrícia Jerónimo (Universidade do Minho) Paulo Cortes Gago (UFRJ) Rui Sousa-Silva (Universidade do Porto) Virginia Colares (UNICAP) 5

6 Sobre os autores ANA VIRGÍNIA CARTAXO ALVES é professora da Associação Paraibana de Ensino Renovado - ASPER, onde é leciona disciplinas na área de Direito Civil e Direito Constitucional do curso de Graduação em Direito. Possui Pós-graduação lato sensu em Direito Processual Civil. É aluna do curso de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. É pesquisadora cadastrada no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, atua em dois grupos de pesquisa junto à Universidade Católica de Pernambuco: no grupo de pesquisa Linguagem e Direito, liderado pelos Professores Doutores Virgínia Colares e Malcolm Coulthard, e no grupo de pesquisa Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos, liderado pelo Professor Doutor João Paulo Allain Teixeira. É advogada, sócia fundadora do escritório Cartaxo, Paulino & Loureiro Advocacia, sediado na cidade de João Pessoa, Paraíba. CV Lattes: br/ ARTUR STAMFORD DA SILVA é professor da Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Pesquisador 1D do CNPq. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPE e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE. É membro do Grupo de Pesquisa Moinho Jurídico, membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito e membro do Instituto de Estudos da América Latina da UFPE. CV Lattes: buscatextual/visualizacv.do?id=k e3 BRUNA BATISTA ABREU é bolsista do CNPq. É Bacharel e Licenciada em Letras com habilitação em Letras Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É Mestre e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Linguagem da mesma Universidade. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: BRUNO LEMOS HINRICHSEN é mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Bacharel em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e bacharelando em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com período sanduíche na Eberhard Karls Universität Tübingen. Exerce Iniciação Científica/ 6

7 UFPE, e exerceu PIBIC/UNICAP. CV Lattes: br/buscatextual/visualizacv.do?id=k d8 CAROLINA SALAZAR L. Q. DE MEDEIROS é mestre em Direito pela UNICAP. Professora de Direito Penal da UNINASSAU. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: br/ CAROLINE ALVES MONTENEGRO Possui graduação em direito pelo Centro Universitario de João Pessoa (2002), especialização em processo civil (2004) e especialização em ciências criminais (2006) no mesmo centro universitário. Mestrado em Direito na Universidade Católica de Pernambuco/ UNICAP (2014). Tem interesse e pesquisa nas áreas de Direito Constitucional; Direitos Humanos, Sistema Interamericano; Direito Internacional; Direito Civil e Ciências Criminais. CV Lattes: cnpq.br/ CAROLINE DE ARAÚJO PUPO HAGEMEYER é professora na Faculdade Guairacá e na rede Estadual de Ensino do Paraná. É licenciada em Letras Português-Inglês pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Da mesma instituição, também é Mestre e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Linguagem. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: CRISTHOVÃO FONSECA GONÇALVES é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2013). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal, atuando no tema de Política Criminal de Drogas. Membro da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA) CV Lattes: DANIELA NEGRAES PINHEIRO ANDRADE é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), tendo realizado doutorado sanduíche na University of California Los Angeles (UCLA). É membra participante do grupo Fala-Em-Interação, coordenado pela Profa. Dra. Ana Cristina Ostermann e membra participante da International Gender and Language Association (IGALA). Trabalha com ensino de inglês como língua estrangeira. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística Aplicada, atuando nos seguintes temas: identidade discursiva, fala em interação, 7

8 análise da conversa, polícia civil, tribunal, hospital. CV Lattes: DANIELE NUNES DE ALENCAR é graduada em Direito pela UNI- CAP. CV Lattes: DÉBORA DE LIMA FERREIRA é mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - bolsista CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: br/ DEYVID BRAGA FERREIRA é Mestre em Educação, pelo Programa de Pós Graduação em Educação da UFAL (PPGE/ CEDU/UFAL). Integra o grupo de pesquisas Políticas Públicas: História e Discurso, na linha de pesquisa História e Política da Educação. Possui Especialização em Direito Processual pela ESMAL (2006), cursando atualmente especialização em Mídias na Educação pela Coordenadoria Institucional de Educação a Distância da UFAL (2014). É formado em Ciências Jurídicas e Sociais pelo CESMAC/ AL (2005). Ingressou nos quadros da Polícia Civil do Estado de Alagoas em 2003, onde permanece até a presente data. É Docente nas seguintes instituições: Policia Militar de Alagoas (Academia de Polícia Militar - APM e do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças - CFAP), Polícia Civil de Alagoas (Academia de Polícia) e da Faculdade Raimundo Marinho, onde integra não só o corpo Docente, mas de professores do Núcleo Docente Estruturante (NDE/ Colegiado do Curso de Direito). Atua, também, como tutor da Rede de Educação a Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública (EAD/ SENASP/ MJ). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em: Direitos e Garantias Fundamentais, Direito Constitucional, Direito Civil, Ciências Políticas e Economia Política. Atua principalmente nos seguintes temas: Segurança Pública Multifaceada, Docência no Ensino Superior, Utilização das TIC s nos cursos de capacitação online, Políticas Educacionais (com ênfase em Segurança Pública), Educação Brasileira (com ênfase em Segurança Pública), Análise de Discurso (linha francesa de Pêcheux), Tecnologias Bélicas Leves e Direitos Humanos. CV Lattes: DIEGO JOSÉ SOUSA LEMOS é mestrando em Direito pela UFPE. Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: ÉRICA BABINI LAPA DO AMARAL MACHADO é doutora em Direito Penal pela UFPE. Professora de Direito Penal e Criminologia da UNICAP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. CV Lattes: 8

9 FERNANDO JOSÉ DE SOUZA FILHO é mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Realizou curso na Universitá di Pisa, Alta Formazione in Giustizia Constituzionale (2013). Delegado de Polícia Civil de Pernambuco. Professor de Direito Penal da Faculdade Boa Viagem. CV Lattes: IDALINA CECÍLIA FONSECA DA CUNHA é pós-graduanda em Direito Urbanístico e Ambiental (PUC-MG) e Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) com período sanduíche na Universidad de Salamanca (USAL). Advoga na área de Direito Público com ênfase em Direito Tributário e Administrativo. Ensina Direito Tributário no Pejuris Cursos Jurídicos. CV Lattes: JOÃO PAULO FERNANDES DE SOUZA ALLAIN TEIXEIRA é Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Avaliador ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério de Educação (MEC/INEP). Membro da Comissão de Qualificação de Eventos da CAPES, área Direito. Líder do Grupo de Pesquisa Jurisdição Constitucional Democracia e Constitucionalização de Direitos na Plataforma Lattes. CV Lattes: br/ JOSÉ ANTÔNIO DE ALBUQUERQUE FILHO tem especialização na área de Processo Civil e Civil pela Escola Superior de Magistratura de Pernambuco e Mestrado de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Atualmente é Professor da Faculdade São Francisco da Paraíba - FASP, da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central - FACHUSC e integrante da Associação de Linguagem e Direito - ALIDI. CV Lattes: lattes.cnpq.br/ JULIA RODRIGUES TABOSA é graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Exerce o cargo de Analista Judiciário do Tribunal de Justiça de Pernambuco, atuando como assessora jurídica da 2ª Vara da Fazenda Pública. CV Lattes: 9

10 JULIANA DE BRITO GIOVANETTI PONTES é advogada. Mestra em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2013), na qualidade de bolsista da CAPES. Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2011). Atua no Grupo de Pesquisa Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos - UNICAP. CV Lattes: KÁTIA ELIANE MUCK é Bacharel em Letras e Licenciada com habilitação em Letras Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Da mesma instituição, também é Mestre em Letras/Inglês e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Linguagem. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: cnpq.br/ LÍVYA RAMOS SALES MENDES DE BARROS é advogada, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia PPGS da Universidade Federal de Alagoas UFAL. Bacharel em Direito pela Faculdade de Alagoas FAL. Especialista em Direito e Processo Penal pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió CESMAC. Atualmente, é professora de Direito Penal I, Direito Penitenciário e Execução Penal, Criminologia e Sociologia Jurídica no Curso de Direito da Fundação Educacional do Baixo São Francisco Dr. Raimundo Marinho FRM Maceió e professora de Direito Penal III e Direito Penal IV no Curso de Direito da Fundação Educacional do Baixo São Francisco Dr. Raimundo Marinho FRM Penedo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Condição Feminina (ICS/UFAL) e membro dos Grupos de Pesquisa Gênero e Emancipação Humana e Trabalho e Capitalismo Contemporâneo (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq). Trabalhou realizando pesquisa no Centro de Apoio às Vítimas de Crime de Alagoas (CAVCRIME). É advogada do Centro de Referência em Cidadania e Direitos Humanos de Alagoas CRCDH/AL vinculado a Secretaria de Estado da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos SEMCDH.CV Lattes: LÚCIA GONÇALVES DE FREITAS é doutorada em Lingüística pela Universidade de Brasília (UnB). Foi bolsista do Programa de Estágio de Doutorado no Exterior (PDEE), pela CAPEs, tendo sido pesquisadora visitante no Center for Advanced Research in English, na Universidade de Birmingham, Inglaterra. É professora do Mestrado Interdisciplinar Educação, Linguagem e Tecnologia da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Atua como colaboradora no Grupo de Pesquisa Observatório da Justiça Brasileira da UFRJ e no Grupo de Estudos de Narrativa da PUC-Rio. 10

11 LUCIANE FRÖHLICH é Doutora em Estudos da Tradução pela UFSC, com tese direcionada às particularidades da linguagem de textos jurídicos brasileiros. Trabalha como linguista forense e perita ad hoc em interpretações e traduções jurídicas na área de alemão. É membro da ALIDI e do grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. Integra o corpo docente do IPEBJ e o corpo editorial da revista Language and Law/ Linguagem e Direito. CV Lattes: LUIS CLÁUDIO AGUIAR GONÇALVES é doutorado do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, participando do projeto de pesquisa Mídia, memória discursiva, efeitos de sentidos e corrupção política no Brasil, vinculado à linha de pesquisa Memória, Discursos e Narrativas. Foi bolsista de Iniciação Científica durante a graduação, atuando no PRO- GRAMA DE BOLSAS DE ESTUDO NO PAÍS - FAPESB/UESB. Membro da Associação Brasileira de Linguística - ABRALIN e do Laboratório de Análise de Discurso - LAPADis, Departamento de Estudos Linguísticos e Literários - DELL, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, Campus de Vitória da Conquista - BA. É pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso - GPADis, cadastrado no CNPq e autorizado pela UESB, com experiência na área de Linguística, ênfase em Análise de Discurso de Linha Francesa, atuando principalmente nos seguintes temas: memória discursiva e interpretação, posição-sujeito e efeitos de sentido, discurso político e discurso jurídico, corrupção política e Lei da Ficha Limpa, filosofia e hermenêutica jurídica. CV Lattes: br/ MALCOLM COULTHARD é professor visitante no Programa de Pós- -Graduação em Inglês da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor emérito da universidade de Aston, Inglaterra. É co-autor do An Introduction to Forensic Linguistics, co-organizador do Handbook of Forensic Linguistics e co-editor da revista Language and Law Linguagem e Direito. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC e líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito na Plataforma Lattes do CNPq.CV Lattes: MARCELA DE ANDRADE NUNES é graduada em Direito pela UNICAP. CV Lattes: MÁRCIA CRISTIANE NUNES SCARDUELI é Agente de Polícia Civil em Santa Catarina, Professora da ACADEPOL/SC, Mestre em Ciências da Linguagem e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ci- 11

12 ências da Linguagem da Universidade da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), onde também é professora. É colaboradora do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC e tem interesse por pesquisas em Análise do Discurso, gênero, violência doméstica e Lei Maria da Penha. CV Lattes: do?id=k h4 MARIA DA CONCEIÇÃO FONSECA-SILVA é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPQ - nível 2 - CA LL - Letras e Linguística. Pós-Doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2006/2007). Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Mestre em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Pesquisadora nível 2 do CNPq. Atualmente é professora Titular/ Pleno do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, onde atua como professora pesquisadora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PP- GLin-Uesb) e do do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMEMORIALS-Uesb). Atuou na Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMEMORIALS-Uesb), desde a implantação do curso de mestrado em 2008 ate fevereiro de 2013, início do segundo ano da implantação do curso de doutorado. É co-editora do periódico Estudos da Língua(gem). É líder do Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso (GPADis/Uesb/CNPq) e do Grupo de Pesquisa em Estudos da Língua(gem) (GPEL/Uesb/CNPq). Tem experiência na área de disciplinar de Linguística e na área multidisciplinar de Memória, com ênfase em Análise de Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas: efeitos-sujeito e efeitos-sentido, memória discursiva, discurso político e discurso jurídico, corrupção política, mídia, sujeito mulher. CV Lattes: MARIA EMÍLIA MIRANDA DE OLIVEIRA QUEIROZ é coordenadora de Operações Acadêmicas do curso de Direito, da Faculdade Boa Viagem/De Vry. Professora da UNIFAVIP DeVry. Mestre em Direito pela UNICAP, onde foi bolsista CAPES. Durante o mestrado, fez intercãmbio acadêmico na Universidade Federal de Santa Catarina (PROCAD - 2 trimestres). Especialista pela Esmape/FMN. Graduada em Direito pela UNICAP, onde foi monitora e pesquisadora de Iniciação Científica (PIBIC/ CNPq). Membro do grupo Direito e Linguagem. CV Lattes: br/ MARÍLIA MONTENEGRO PESSOA DE MELLO é doutora em Direito pela UFSC. Professora de Direito Penal e Criminologia da UNICAP e da UFPE. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.CV Lattes: 12

13 MARINA PIOVESAN GONÇALVES é bolsista CNPq. É licenciada em Letras Português/Inglês pela Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC. É Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na área de Estudos da Linguagem e Tradução. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: buscatextual/visualizacv.do?id=k h6 MAURILO SOBRAL é mestrando em Direito pela UNICAP, Educador Social pelo IASC, integrante do grupo Asa Branca de Criminologia, advogado. CV Lattes: MIQUÉIAS RODRIGUES é professor na Universidad Mayor, Santiago. Ele é licenciado em Letras Português-Inglês pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É mestre e doutor em Letras/Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). CV Lattes: cnpq.br/ NAIRA CELI PEREIRA VINHAS é graduada em Direito pela UNI- CAP. CV Lattes: PEDRO SPÍNDOLA BEZERRA ALVES é mestre em direito pela UFPE, bacharel em direito pela UNICAP, professor de direito constitucional e processo civil da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central e Advogado na área cível. CV Lattes: RUI SOUSA-SILVA é investigador do Centro de Linguística da Universidade do Porto (CLUP), onde estuda linguística forense aplicada ao contexto português e à língua portuguesa. É pós-doutorando em kinguística forense, nomeadamente em cibercrime, em colaboração com o Ministério Público de Portugual. Desenvolve, paralelamente, trabalhos de consultoria em linguística forense. Possui doutoramento em Linguística Aplicada, na vertente de Linguística Forense, pela Aston University, de Birmingham (Reino Unido), onde apresentou e defendeu com máximo êxito a tese: Detecting Plagiarism in the Forensic Linguistics Turn. É autor e coautor de vários artigos dedicados à análise de autoria e coeditor, juntamente com o Professor Malcolm Coulthard, da revista Language and Law / Linguagem e Direito. É membro da ALIDI - Associação de Linguagem e Direito dos países de Língua Portu guesa, da APL - Associação Portuguesa de Linguística e da IFL - International Associatio of Forensic Linguists, e do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. Interessa-se pela investigação em linguística forense, em geral, e por deteção de plágio e análise de autoria aplicada 13

14 a contextos de investigação policial, em particular. CV Lattes cnpq.br/ SABRINA SILVEIRA DE SOUZA JORGE é bacharel e licenciada em Letras com habilitação em Língua Inglesa e Literaturas Correspondentes pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem o título de Mestre pela UFSC e agora é doutoranda, bolsista da CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Inglês na área de Estudos da Linguagem da mesma Universidade. É membro do Grupo de Pesquisa de Linguística Forense da UFSC. CV Lattes: VINICIUS DE NEGREIROS CALADO é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2000), com especialização em Direito Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002). Obteve o primeiro lugar na seleção para o programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2010), sendo aprovado com distinção em sua defesa pública (2012). Atua como professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Prática Jurídica na UNI- CAP (desde 2011). Atuou na Universidade Salgado de Oliveira - UNIVER- SO ( ), já tendo sido coordenador do Curso de Direito daquela instituição entre 2005 e Sócio fundador (2010) e vice-presidente da FEPODI - Federal Nacional dos Pós-graduandos em Direito ( ). Sócio fundador e ex-presidente da APPODI - Associação Pernambucana de Pós-graduandos em Direito ( ). É ainda advogado do Sindicato dos Médicos de Pernambuco, além de sócio do escritório Calado & Souza Advogados Associados. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PE ( ). Apresentou 6 trabalhos no CONPEDI. Publicou 4 artigos em periódicos especializados e 5 capítulos de livro. Possui 3 livros publicados. Atua na área de Direito, com ênfase em Direito Civil/Relações de Consumo. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes na contextualização da produção científica, tecnológica e artístico-cultural são: Relação de Consumo, Responsabilidade Civil, Direito Médico e Planos de Saúde. CV Lattes VIRGÍNIA COLARES é doutora (1999) em Linguística pela Universidade Federal e Pernambuco (UFPE). Realizou estágio pós-doutoral em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) Integra o Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes) e a International Language and Law Association (ILLA). Atualmente está como presidente da Associação de Linguagem & Direito ALIDI. CV Lattes: br/

15 Apresentação INTERFACES: terceira margem do rio 1 Margem da palavra Entre as escuras duas Margens da palavra Clareira, luz madura Rosa da palavra Puro silêncio, nosso pai Caetano Veloso/ Milton Nascimento Este livro Linguagem & Direito: os eixos temáticos, organizado por Malcolm Coulthard, Virgínia Colares e Rui Sousa-Silva, patrocinado pela Associação de Linguagem & Direito (ALIDI), foi construído a partir do diálogo entre esses dois domínios de saber, reúne quarenta pesquisadores desde os sêniores aos iniciantes com o propósito de estreitar o diálogo e estabelecer eixos temáticos nessa interface. A ideia da terceira margem do rio remete a uma espécie de entrelugar que a transdisciplinaridade evoca. O art. 3 da Carta da Transdisciplinaridade 2 afirma: A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa. Assim, com esse propósito, realizamos o primeiro congresso Linguagem & Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Di- 1. Agradeço a José Lindomar Albuquerque (UNIFESP) de quem ouvi o uso dessa alegoria numa remissão A terceira margem do rio, uma das narrativas que compõem o volume Primeiras estórias, do mineiro João Guimarães Rosa, publicado originalmente em A epígrafe traz uma estrofe da letra de Caetano Veloso e Milton Nascimento para a melodia com o mesmo título A Terceira Margem do Rio. 2. Adotada no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado no Convento de Arrábida, Portugal, 2-6 novembro, 1994; cujo comitê de redação foi constituído por Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu. 15

16 reito para construir coletivamente procedimentos teórico-metodológicos que subsidiem as reflexões acadêmicas sobre o discurso jurídico e judicial e sobre os papéis institucionais desempenhados pelo Poder Judiciário no Brasil, cujos atos processuais são mediados pela linguagem e têm a linguagem como suporte. A Linguística Forense é uma disciplina acadêmica oriunda dos países de língua Inglesa. O pesquisador britânico Malcolm Coulthard, um dos organizadores deste livro, atuou oficialmente como perito em mais de duzentos casos perante tribunais na Inglaterra, Alemanha, Hong Kong, Irlanda do Norte e Escócia. Na Grã-Bretanha, em 1993, fundou com outros investigadores a Associação Internacional de Linguistas Forenses (International Association of Forensic Linguists, IAFL). Hoje, Malcolm Coulthard é docente permanente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor emérito de Linguística Forense da Universidade de Aston, Birmingham, Grã-Bretanha. No momento, o Brasil vive uma efervescência nesta interface dos estudos da Linguagem e do Direito pela demanda emergente de conhecimento da natureza da linguagem em uso no âmbito jurídico. Um dos fatores mobilizadores é a Lei n /15, o Novo Código de Processo Civil brasileiro que exige dos juristas (juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público) maior conhecimento da interação interpessoal, pois são estimulados a ouvir e promover a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos. A linha de pesquisa Linguagem & Direito consiste nessa criativa construção de metodologias pela aplicação de princípios e teorias aos dados autênticos coletados no âmbito jurídico. A Associação Internacional de Linguistas Forenses (IAFL) ( assegura que em seu sentido mais amplo, a linguística forense abrange todas as áreas onde o direito e a linguagem se entrecruzam e se encontram. Em 03 setembro de 2012, na Universidade Católica de Pernambuco, no Recife-PE, foi criada a Associação de Linguagem & Direito (ALIDI) ( com pesquisadores de todo o Brasil e dos demais países da comunidade de língua portuguesa interessados nos diversos e plurais estudos da Linguagem em suas interfaces com o Direito. A ALIDI tem como propósito promover, desenvolver e divulgar a Linguística Forense, os estudos do Discurso Jurídico, as situações de Interação em contextos legais e o diálogo entre as Teorias do Direito e do Processo Judicial e as Teorias da Linguagem. Este livro está organizado em cinco partes, a seguir: Parte I: LINGUÍSTICA FORENSE - que trata do estudo da linguagem como evidência, como nos casos de direitos autorais e plágio, identificação de locutor e comparação de vozes, questões de publicidade, marcas, advertências de produtos de consumo, disputas contratuais e demais gêneros 16

17 textuais envolvidos numa lide ante o judiciário. Nesses casos os linguistas atuam como peritos na justiça. Parte II: DISCURSO JURÍDICO - volta-se para as relações de poder que se materializam nos gêneros textuais legais e questões interculturais e de mediação em contextos jurídicos como os casos dos direitos das minorias linguísticas. Esta linha também realiza a análise e interpretação dos textos legais nos mais diversos contextos. Parte III: PROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM - concentra-se na análise e interpretação dos textos legais em uso nos eventos comunicativos. Estabelece o diálogo entre as Teorias do Processo e a Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ). Parte IV: INTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS - volta-se para a análise de interrogatórios na delegacia e no tribunal, problemas de testemunhas vulneráveis, uso de intérpretes, etc. Parte V: CRIMINOLOGIA CRÍTICA - afasta-se de conceitos naturalizados sobre o crime e criminoso, próprios do senso comum, para problematizá-los à luz do interacionismo simbólico, segundo o qual é a partir das interações sociais, por meio da linguagem, que se constroem as relações e as identidades. Assim como estuda o processo de criminalização (primária e secundária), desde o controle social informal até o exercício oficial das agências de poder. Assim, esses eixos temáticos nessa interface Linguagem & Direito, tecem a terceira margem do rio, essa espécie de entrelugar no qual poderemos estudar/ compreender a linguagem em uso nessa instância social de estabelecimento do direito. Recife, 20 de junho de

18 Sumário Sobre os autores 6 Apresentação INTERFACES: terceira margem do rio 15 Parte I LINGUÍSTICA FORENSE 1. A adequação das advertências de cigarro no Brasil Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? Rui Sousa-Silva Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos Bruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck e Miquéias Rodrigues Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Luciane Fröhlich e Marina Piovesan Gonçalves 85 Parte II DISCURSO JURÍDICO 5. Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha Maurilo Sobral, Vinicius de Negreiros Calado e Virgínia Colares

19 6. Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado Vinicius de Negreiros Calado Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha Lúcia Freitas Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica Luis Cláudio Aguiar Gonçalves e Maria da Conceição Fonseca-Silva 178 Parte III PROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM 9. A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas Ana Virgínia Cartaxo Alves, Caroline Alves Montenegro e Juliana de Brito Giovanetti Pontes Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. Artur Stamford da Silva e Julia Rodrigues Tabosa Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF Deyvid Braga Ferreira e Lívya Ramos Sales Mendes de Barros Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica Bruno Lemos Hinrichsen, Idalina Cecília Fonseca da Cunha, João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e Pedro Spíndola Bezerra Alves

20 Parte IV INTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS 13. Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais Sabrina Silveira de Souza Jorge Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher Márcia Cristiane Nunes Scardueli Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-eminteração Daniela Negraes Pinheiro Andrade Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem Fernando José de Souza Filho 342 Parte V CRIMINOLOGIA CRÍTICA 17. Uma análise do discurso das decisões denegatórias e concessivas de habeas corpus de tráfico de drogas no estado de pernambuco: entre a (in)segurança pública e um direito penal do inimigo Cristhovão Fonseca Gonçalves e Marilia Montenegro Pessoa de Mello e Virgínia Colares A Importância da Criminologia Crítica para o Direito Penal: como Aplicar o Direito numa Perspectiva Interdisciplinar José Antonio de Albuquerque Filho, Maria Emília Miranda de Oliveira Queiroz A Análise da Neutralização da Vítima no Crime de Estupro De Vulnerável Naira Celi Pereira Vinhas e Érica Babini Lapa do Amaral Machado

21 20. Analisando a lei nº /12 com a lupa criminológica:as principais críticas ao cadastro de perfis genéticos dos criminosos à luz de uma abordagem criminodogmática Diego José Sousa Lemos Lei Maria da Penha: uma análise crítica da sua aplicação na cidade do Recife entre os anos de 2007 e 2010 Carolina Salazar L. Q. de Medeiros, Daniele Nunes de Alencar, Débora de Lima Ferreira, Marcela de Andrade Nunes, Érica Babini Lapa do Amaral Machado e Marília Montenegro Pessoa de Mello

22 Parte I LINGUÍSTICA FORENSE

23 1 A adequação das advertências de cigarro no Brasil 1. Introdução Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer Universidade Federal de Santa Catarina As ações relacionadas ao controle do Tabaco alcançam grandes proporções tanto no Brasil quanto em vários países ao redor do mundo. Tanto que a Organização Mundial de Saúde (WHO - World Health Organization) realizou um tratado internacional, FCTC ( 1 Framework Convention of Tobacco Control), na tentativa de deter o aumento desenfreado do uso do cigarro. Segundo FCTC, o tabaco tornou-se uma epidemia mundial com graves consequências para a saúde pública e, por este motivo, esta organização tem como meta principal divulgar as consequências para a saúde, a natureza viciante e a ameaça mortal que o consumo do tabaco e/ou a exposição a fumaça geram (webpage). Entre as ações preconizadas pelo FCTC e adotadas pelo governo brasileiro está o uso de advertências que combinam informações visuais e verbais. O principal objetivo das advertências é aumentar o conhecimento da população acerca dos riscos associados ao fumo, que pode, por sua vez, estimular os fumantes a pararem de fumar, e os não fumantes, especialmente adolescentes, a não começarem. As advertências podem ser vistas pelo menos vezes por ano, caso o consumidor fume um maço de cigarros por dia e por esta razão, as advertências devem ser meticulosamente elaboradas (Brasil, 2008). Este estudo objetiva analisar a eficácia de tais advertências levando em conta tanto o ponto de vista linguístico quanto jurídico. A próxima se- 1. Estrutura da Convenção de Controle de Tabaco 23

24 24 A adequação das advertências de cigarro no Brasil ção apresenta algumas considerações que servirão de base para a análise. Em seguida, serão discutidas algumas características dos pacote de cigarro bem como das advertências de cigarro veiculadas no Brasil. Posteriormente, será apresentada a metodologia utilizada para a análise que é seguida pela análise das advertências. Finalmente será apresentada a conclusão desta análise que apresentará algumas sugestões para melhorar a eficácia das advertências. 2. Definição de advertência Diversas áreas de conhecimento voltam-se para o estudo das advertências, como a Linguística, a Ergonomia e o Design. Estudos na área de ergonomia apontam que as advertências são comunicações de segurança usadas para informar as pessoas sobre os riscos para que as consequências indesejáveis sejam evitadas ou minimizadas (Wogalter, 2006: 03). Neste sentido, elas objetivam não somente informar o consumidor/a sobre o perigo, mas também persuadi-lo/a a usar o produto de uma forma segura, ou ainda, no caso do cigarro, a parar de fumar. Nesta área de estudos, as advertências visam modificar o comportamento das pessoas em nome da segurança. Mas, para que esta mudança aconteça, é necessário que a advertência chame a atenção do consumidor/a, para que ele/a se sinta motivado/a a mudar o comportamento, principalmente se o produto é usado de forma insegura por repetidas vezes sem ter sofrido nenhum dano. Na área da linguística forense, as advertências deveriam identificar e descrever a natureza e o perigo do risco. Depois elas deveriam dizer ao leitor como evita-los. Finalmente elas deveriam comunicar estas informações em uma linguagem clara e inteligível (Shuy, 2008, p. 72). Nesta definição, é visível a preocupação a respeito de como o destinatário irá receber a mensagem, isto é, se ele será capaz de lê-la e entendê-la. Faz-se necessário apontar que o destinatário é uma pessoa comum, que pode possuir pouco conhecimento sobre o assunto e ainda ter algumas limitações na competência em leitura. Estudos na área apontam as características que deixam as advertências mais claras e inteligíveis. Dumas (1992) conduziu uma investigação empírica sobre advertências de cigarro e concluiu que as advertências hipotéticas e o uso de palavras fortes, como veneno, podem fortalecer uma advertência, ao passo que, o uso de terminologia técnica pode enfraquece-las, visto que muitos consumidores podem ter certa dificuldade em interpretá- -las. Dumas ainda aponta que o uso de verbos modais devem ser evitados, pois transmitem incerteza. Dumas (2010) afirma que as advertências podem ser diretas ou indiretas, literais e não-literais. Além disso, algumas delas dependem do contexto e precisam de um certo grau de inferência do leitor para que haja

25 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 25 compreensão. Nestes casos, a probabilidade de o leitor fazer uma inferência errada aumenta, principalmente, quando há falta de informação. Tiersma (2002) observa que as advertências categóricas tem a função de informar, isto é, aconselhar que o produto pode oferecer algum tipo de risco, sugerindo indiretamente que ele deve ser evitado, por exemplo: fumar causa câncer de pulmão. Por outro lado, as advertências hipotéticas tendem a ser imperativas e são mais claras em relação a prevenção do perigo, por exemplo: Não fume. Tiersma ainda reforça que uma advertência eficiente deveria ser tanto informativa (categórica) quanto imperativa (hipotética), por exemplo: não fume cigarros, pois fumar pode matar você (p. 64). No entanto, o autor aponta que o elemento imperativo tende a ser evitado devido ao interesse das taxas provenientes do comércio do cigarro. A quantidade de informações transmitidas em uma advertência é outra característica que pode influenciar o sucesso das mesmas. É comum encontrar advertências que fornecem informações sobre como evitar uma situação perigosa, mas que falham por não informar o risco. Ao mesmo tempo, muitas advertências informam o risco, sem dar as direções sobre como ele deve ser evitado. Alguns linguístas forenses, como Tiersma e Shuy, apoiam-se no princípio de cooperação de Grice (1967) para mostrar a fragilidade destas comunicações. Uma vez que a máxima de quantidade faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerida (Guimarães, 2002, p. 32) é violada, o leitor poderá ter dificuldades em reconhecer a intenção da advertência. Segundo Tiersma (2002) informar mais do que necessário é tão prejudicial quanto informar menos do que é necessário para que a mensagem seja compreendida, e também viola a máxima de quantidade Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido (Guimarães, 2002, p.= 32). Neste exemplo de uma advertência de cigarro, fumar causa mau hálito, perda dos dentes e câncer de boca, o risco mais grave está diluído entre os riscos menos graves, enfraquecendo a advertência. Embora cada área tenha sua própria definição, elas possuem a mesma posição no que concerne o objetivo principal, que é informar o destinatário sobre os riscos que um produto oferece. É exatamente neste ponto que surge a principal dificuldade de uma advertência, como transmitir esta informação eficientemente, isto é, de forma visível, clara e que chame a atenção do consumidor. 3. Pacote de cigarro As indústrias de tabaco sempre investiram maciçamente em propagandas para conquistar o consumidor, que são em sua maioria jovens adultos e mulheres. Entretanto, as propagandas tem sido banidas em muitos países, como no Brasil. Logo, o pacote de cigarro, que já era visto como um importante componente na disseminação do cigarro, ganhou agora, o papel

26 26 A adequação das advertências de cigarro no Brasil principal. Eles são estrategicamente criados para apelar o novo usuário. Wakefield et al. (2002) observam que diferentemente de outros produtos, onde o pacote é descartado depois de aberto, os fumantes retém o pacote até o último cigarro ser usado (p. 73). Assim, o pacote é conhecido como badged product devido à associação entre o usuário e a imagem da marca (Wakfield et al., 2002). Por esta razão, o pacote é estrategicamente elaborado para atrair novos consumidores. Portanto, o uso de advertências eficazes é fundamental para desconstruir a imagem transmitida pelo pacote. 4. Advertências de cigarro no Brasil As advertências de cigarro no Brasil foram introduzidas em 1988 com a inserção da frase: O Ministério da saúde adverte: fumar faz mal a saúde. Em 1995, houve um acordo entre o governo e as industrias de tabaco que substituíram a primeira advertência por mensagens específicas sobre os riscos provenientes do cigarro, como: o Ministério da saúde adverte: fumar pode causar câncer de pulmão. Foi considerado um passo importante na propagação dos danos causados pelo fumo, visto que muitos deles eram desconhecidos por uma grande parcela da população, especialmente, pelas classes mais baixas (Brasil, 2008). As advertências foram reguladas pela lei federal em 1996, mas devido ao fato das cores e proporções de tamanho não serem definidas, as empresas de tabaco adotaram estratégias para dificultar a visualização das advertências, como combinação de cores que não destacam a advertência e dificultam a leitura, como branco e dourado. Finalmente, em 2001, as imagens foram incluídas, tomando 100% do verso do pacote de cigarro (veja imagem abaixo). O Brasil foi o segundo país do mundo a adotar o uso de imagens nas advertências. Além da imagem e das frases de efeito, o pacote ainda incluía informações sobre como conseguir ajuda para parar de fumar, por meio de uma linha telefônica exclusiva de ajuda. Além disso, a lateral do pacote veiculava informações sobre o alcatrão, a nicotina e o monóxido de carbono e também a mensagem não Imagem 1 Imagem 2

27 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 27 existem níveis seguros para o consumo destas substancias (veja imagem 2 abaixo). Como pode ser visto nas imagens acima, a combinação de cores, em branco e preto, aumenta a visualização e chama a atenção para a mensagem. Vale ressaltar que o uso destas cores segue uma determinação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão responsável pela regulamentação, controle e supervisão das advertências de cigarro. Na tentativa de dificultar a visualização das advertências e chamar a atenção para seus produtos, as empresas de tabaco adotaram o uso de cores diferenciadas para transmitir a imagem de um cigarro mais fraco, além do uso das palavras soft e light. No entanto, o uso de tais palavras foi proibido, assim como o uso de decalques que acompanhavam o pacote de cigarro, para serem colados em cima das advertências. Em 2003, um segundo grupo de 10 advertências foi lançado com mensagens e imagens mais fortes. Foram ainda incluídas as mensagens: Venda proibida para menores de 18 anos Leis 8.069/1990 e /2003 e este produto contém mais de substâncias tóxicas e nicotina que causam dependência física e psíquica. Não há níveis seguros para o consumo destas substâncias. Imagem 3 Um terceiro grupo de advertências substituiu aquelas inseridas em 2003 com o objetivo de aumentar a disseminação das informações sobre as doenças relacionadas ao uso do tabaco. Além disso, acredita-se que devido a longa exposição, seu impacto pode ser enfraquecido (Brasil, 2008). As advertências foram construídas com base em uma pesquisa extensiva envolvendo INCA, ANVISA e algumas universidades do Rio de Janeiro (UFRJ, UFF e PUC-RJ). A apresentação da advertência também sofreu algumas mudanças como, por exemplo, a inclusão de uma palavra ou frase de efeito que

28 28 A adequação das advertências de cigarro no Brasil traduz a imagem. Neste grupo de advertências, o número do disque ajuda, escrito em branco, foi destacado com um fundo preto (veja imagem abaixo). Em uma fase da pesquisa mencionada acima, foi investigada a reação emocional dos sujeitos em relação ao impacto das advertências usadas na primeira e segunda fase. Os dados revelaram que as imagens mais impactantes eram aquelas que mostravam um bebê prematuro no hospital e uma mulher com câncer de pulmão no leito de um hospital entubada, ao passo que, as menos impactantes foram aquelas que ilustravam um homem com mau hálito, falta de ar e dando mau exemplo para as crianças (Brasil, 2008). Imagem 4 As pesquisas desenvolvidas no Brasil relacionadas às advertências tendem a focalizar as imagens e a reação emocional desencadeadas por elas. De acordo com uma pesquisa conduzida pelo Data Folha (2002, apud Brasil, 2008), 76% dos entrevistados aprovaram o uso das advertências, sendo que 54% responderam que as advertências teriam mudado a opinião deles em relação às consequências do cigarro. Entretanto, tais pesquisas não parecem levar em consideração a analise linguística do texto escrito. Sendo assim, este estudo pretende preencher esta lacuna. 5. Metodologia Os dados deste estudo consistem nas advertência de cigarro adotadas no Brasil nas três fases, sendo: nove na primeira fase ( ); dez na segunda fase ( ) e dez na terceira fase (2009-agora). Primeiramente, será realizada uma análise do design, que engloba localização, fonte e cor. Depois, tendo como suporte as pesquisas conduzidas por linguístas forenses, Dumas (1992, 2010), Tiersma (2002) e Shuy (1990 e 2008), será

29 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 29 feita a análise da eficácia das advertências, e verificado se as mudanças sofridas em 2004 e 2008 foram capazes de fortalecer tais advertências. 6. Análise e discussão As advertências de cigarro no Brasil sofreram algumas mudanças em diferentes aspectos, como design, imagens, informações verbais e conteúdo das consequências relacionadas ao fumo. Devido a limitações de espaço, a análise das imagens não será abordada, embora acredita-se que as imagens sejam de suma importância, principalmente pelo fato de chamarem a atenção do consumidor de forma instantânea. As advertências cobrem 100% do verso do pacote tanto na primeira fase (2001), quanto na segunda (2004) e na terceira (2008), espaço maior que o preconizado pelo WHO, que sugere que seja de 30% a 50%. Em todas as fases a advertência é enquadrada por uma borda preta com o objetivo de destacar a mensagem que está escrita em branco. Esta determinação em relação ao uso de cores veio com o intuito de desarmar a tentativa das empresas de tabaco, que tentaram distrair a atenção dos leitores com a combinação de cores. Nas primeira e segunda fase, a mensagem está localizada acima da figura com o telefone do disque-ajuda abaixo. Na terceira fase, é possível verificar algumas mudanças, como a inclusão de uma palavra ou frase de impacto acima da imagem (veja imagem 5). A mensagem foi posicionada abaixo da imagem e o disque-ajuda, que tinha pouca visualização, foi transferido para a parte inferior da advertência, com a mensagem pare de fumar acima do número. A nova disposição dos componentes da advertência contribuem para uma melhor visualização dos mesmos. Imagem 5 O conteúdo é de extrema relevância para a eficácia das advertências. Dumas (2010) aponta que um fator determinante para a ineficiência das advertências é a superexposição, (...), falta de novidades (...) e falta de relevância

30 30 A adequação das advertências de cigarro no Brasil pessoal da advertência (p. 370). Sendo assim, uma advertência deve ter seu conteúdo renovado frequentemente e ser relevante para o público alvo. A tabela 1 abaixo, resume o conteúdo das advertências nas três fases. Tabela 1: Conteúdo das advertências nas três fases TEMAS 1 FASE 2 FASE 3 FASE Câncer de boca X X Câncer de pulmão X X X Infarto X X Impotência sexual X X X Perda do fôlego Câncer de laringe X X X Gravidez X X X Mau exemplo para as crianças Cigarro é uma droga X X X X Gangrene X X Sofrimento Derrame X X Fumaça tóxica X X Amputação Aborto X X Envelhecimento X Como pode ser visto na tabela acima, dos nove temas abordados na primeira fase, três não são repetidos na segunda fase, infarto, perda do fôlego e mau exemplo para as crianças. Além disso, quatro temas foram acrescentados

31 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 31 a esta fase: gangrena, amputação, aborto e doenças causadas pela fumaça tóxica. Em relação a terceira fase, temas relacionado a idade, derrame, sofrimento causado pela dependência e infarto foram introduzidos. Portanto, há evidências de que a mudança dos temas contribuem para a eficácia das advertências, uma vez que novas informações foram inseridas, promovendo a disseminação do conhecimento a respeito das consequências do cigarro. Na terceira fase, as advertências foram selecionadas com base um uma pesquisa que levou em conta a reação emocional dos participantes. Dessa forma, as advertências tidas como fracas ou menos chamativas foram substituídas (Brasil, 2008). O uso de muitas informações na mesma mensagem é um fator que deve ser levado em conta, pois pode enfraquecer uma advertência. A mensagem fumar causa mau hálito, perda dos dentes e câncer de boca, mistura riscos menos sérios, como mau hálito, com riscos mais sérios, como câncer de boca. Além disso, a imagem ilustra a ideia de mau hálito que é o risco menos serio de fumar cigarro. A esse respeito, Tiersma (2002) observa que misturar muitas informações tem o efeito de diluir ou banalizar advertências mais importantes (p. 51). Sendo assim, é possível concluir que a advertência acima é ineficiente. Imagem 6 A análise revela que a terminologia técnica pode interferir na compreensão da advertência. Exemplos: (1) nicotina é uma droga e pode causar dependência, (2) ele é uma vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar a amputação, (3) ao fumar você inala arsênico e naftalina, também usados contra ratos e baratas, (4) o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue, (5) o uso deste produto leva a morte por câncer de pulmão e enfisema. No primeiro exemplo, o leitor precisa inferir que a nicotina é um componente do cigarro. Os verbos obstrui e inala no terceiro e quarto exemplos não são adequados, uma vez que o leitor pode desconhecer o seu significado. Palavras usadas no cotidiano são

32 32 A adequação das advertências de cigarro no Brasil preferíveis, principalmente no caso de advertências, pois muitas vezes o leitor possui pouco conhecimento. Em relação aos tipos de advertências, a análise revelou que todas elas são categóricas/ informacionais. Isto é, elas informam o risco de fumar cigarro e o leitor precisa inferir que ele deve parar de fumar. Tiersma (2002) alega que este tipo de advertência é geralmente mais específica em relação a natureza do risco, mas deixa para o destinatário imaginar como evitá-lo (p. 63). O autor sugere que a combinação de informacional (declarativo) e imperativo seria o ideal, como Não fume cigarros: fumar pode matar você (p. 64). Nota-se que esta advertência é bastante clara e direta, apontando não somente o risco, mas também como evitá-lo. A linguagem adotada é simples e ao mesmo tempo chama a atenção, pois o uso da palavra matar fortalece a advertência. Entretanto, apesar de ser uma advertência de cigarros, gostaria de ressaltar que a advertência acima restringe-se somente ao cigarro, e que alguns consumidores podem inferir que somente o cigarro pode matar. Sendo assim, proponho deletar a palavra cigarro como em: Não fume, fumar pode matar você. Como já mencionado, as advertências da terceira edição sofreram algumas mudanças. Primeiramente, uma palavra ou frase de efeito foi incluída acima da imagem, e a mensagem principal alocada abaixo da imagem. Finalmente, o número do telefone de ajuda para parar de fumar foi transferido para a parte inferior da advertência, com a frase pare de fumar. Entretanto, esta frase faz a função de título para o telefone de ajuda, e não de uma advertência. Em nenhum momento, há informação de como o risco deve ser evitado, deixando a cargo do leitor fazer tal inferência com base nos riscos do cigarro. Percebe-se que o foco está somente nos riscos e doenças desencadeadas pelo fumo. Imagem 7 Além das mudanças apontadas acima, as advertências da última fase também sofreram mudanças no que tange a estrutura das frases, mais especifi-

33 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 33 camente em relação aos sujeitos e verbos. A estrutura mais utilizada no que tange as advertências de cigarro, que é inclusive empregada em diversos países, é (1) fumar causa câncer de pulmão. Esta estrutura foi usada quatro vezes na primeira fase e sete vezes na segunda. Por outro lado, ela não foi usada na terceira fase. Como é possível visualizar nos exemplos abaixo, a estrutura fumar causa foi substituída pela estrutura este produto + verbo ou o uso deste produto + verbo. (2) o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue. (3) este produto intoxica a mãe e o bebê, causando parto prematuro e morte. A estrutura usada na primeira e segunda fase, fumar causa transmite a ideia da ação, isto é, alguém fumando, o que não parece ocorrer com a estrutura da terceira fase. Portanto, há evidências de que as usadas nas primeiras fases sejam mais fortes. Além disso, a estrutura empregada nas primeiras fases possui forte conexão com o gênero e é familiar aos consumidores. Por outro lado, os verbos usados na última fase parecem fortalecer a advertência, pois obstruir e intoxicar sugerem uma ação acontecendo, principalmente pelo fato de se tratarem de processos (verbos) materiais, que de acordo com Halliday (1994: 110) expressam a noção de que uma entidade faz algo 2. Portanto, a ideia de que algo ruim vai acontecer é reforçada. Além disso, os processo são palavras fortes, que carregam consequências negativas. Por outro lado, é possível que alguns consumidores tenham dificuldades em entender a advertência (2) o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue, uma vez que o processo obstrui não é comumente usado pela população. Entretanto, tanto em fumar causa câncer de pulmão quanto em o uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue, não há referência explícita ao sujeito, como vemos em não fume, fumar pode matar você, onde o sujeito é marcado duas vezes. Acredita-se que quando há referência ao sujeito, o/a consumidor/a sente que a mensagem é endereçada pra ele/a, o que pode aumentar as chances de adesão à advertência. 7. Conclusão Com base na análise apresentada na seção anterior, pode-se concluir que as advertências da última fase tendem a ser mais adequadas. Primeiro, porque a distribuição das informações levam a uma melhor visualização. Segundo, a adição de palavras fortes ou de uma palavra ou frase de efeito chama a atenção do consumidor. Terceiro, a renovação em relação ao tema não somente aumenta o conhecimento da população mas também exclui as advertências tidas como fracas. Quarto, houve um ganho com a redução das in- 2. According to Halliday (1994: 110) express the notion that an entity does something

34 34 A adequação das advertências de cigarro no Brasil formações, isto e, riscos menos sérios foram removidos, aumentado o apelo das mesmas. Finalmente, os verbos empregados na última fase transmitem a ideia de fazer, que fortalece a advertência. Portanto, as mudanças ocorridas aumentaram a eficiência, pois parecem que chamam mais a atenção. Entretanto, apesar da evolução, há alguns pontos que podem influenciar para a não adesão dos/as consumidores/as, como por exemplo, a falta da informação de como o risco pode ser evitado. Além domais, o/a consumidor/a não é endereçado/a, e pode acreditar que a advertência não é endereçada à ele/a. Finalmente, ainda é possível verificar o uso de palavras técnicas ou incomuns, que podem dificultar o entendimento da mensagem. Referências BRASIL: Advertências Sanitárias nos Produtos de Tabaco Instituto Nacional de Câncer. Rio de Janeiro: INCA, DUMAS, B. K. Consumer Product Warnings: Composition, Identification, and Assessment of Adequacy. Routledge Handbook of Forensic Linguistics, ed. Malcolm Coulthard and Alison Johnson. Oxford and New York: Routledge, 2010 ( ). DUMAS, B. K. Warnings. Reader s Guide to the Social Sciences, ed. J. Mitchie. London and Chicago: Fitzroy Dearborn. 2001,Vol. 2, DUMAS, B. K. Warning Labels and Industry Safety Information Standards: The Case of Loctite RC/609. Chapter 17 of Language in Action: New Studies of Language in Society, ed. J. Peyton and P. Griffin. Cresskill, New Jersey: Hampton Press, ( ). An Analysis of the Adequacy of Federally Mandated Cigarette Package Warnings. Chapter 11 of Language in the Judicial Process, ed. J. N. Levi and A. G. Walker. NY: Plenum Press Corp., Reprinted in the Tennessee Law Review 59.2 (1992), , and Advertising Law Anthology XVI Part I (Jan. June 1992). GRICE, H. P. Meaning. In: Harnish, R. M. (ed.) Basic Topics in the Philosophy of Language. Englewood Cliffs: Prentice Hall, GUIMARÃES, E. Os Limites do Sentido: Um Estudo Histórico e Enunciativo da Linguagem. Campinas, SP: Ed. Pontes, 2002 (37-43). HALLIDAY, M.A.K. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold, HAMMOND, D; FONG, G.T.; BORLAND, R.; CUMMINGS, M. K., MCNEILL, A. & DRIEZEN, P. Text and graphic warnings on cigarette packages. Finding

35 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 35 from the international tobacco control four country study. American Journal of Preventive Medicine, 2007(32) 3. THRASHER, J. F. ET AL. Evaluating tobacco control policy in Latin American countries during the era of the Framework Convention on Tobacco Control. Disponível em: TIERSMA, P. M. The Language and Law of Product Warnings. Language in the Legal Process. ed. Janet Cotterill. Houndmills, Basingstoke, Hampshire and New York: Palgrave Macmillan, (54-71). SHUY, R. W. Fighting over words. Oxford: OUP, 2008 (75-119). WAKEFIELD, M.; MORLEY, C.; HORAN, J. K.; & CUMMINGS, K.M. (2002). The cigarette pack as image: new evidence from tobacco industry documents. Disponível em: content/11/suppl_1/i73.full.html#related-urls. WHO. Disponível em: WOGALTER, M. S. Purposes and Scope of Warning. Handbook of Warnings. ed. Michael Wogalter. Lawrence Erlbaum Associates, Anexos Advertências Sanitárias 1ª fase ( ) O ministério da saúde adverte: 1. Fumar causa mau hálito, perda de dentes e câncer de boca. 2. Fumar causa câncer de pulmão. 3. Fumar causa infarto do coração. 4. Quem fuma não tem fôlego para nada. 5. Fumar na gravidez prejudica o bebê. 6. Em gestantes, o cigarro provoca parto prematuro, nascimento de crianças com peso abaixo do normal e facilidade de contrair asma. 7. Crianças começam a fumar ao verem os adultos fumando.

36 36 A adequação das advertências de cigarro no Brasil 8. A nicotina é droga e causa dependência. 9. Fumar causa impotência sexual. 2ª fase ( ) O ministério da saúde adverte 1. Esta necrose foi causada pelo consumo do tabaco. 2. Fumar causa impotência sexual. 3. Crianças que convivem com fumantes têm mais asma, pneumonia, sinusite e alergia. 4. Ele é uma vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar a amputação. 5. Fumar causa aborto espontâneo. 6. Ao fumar você inala arsênico e naftalina, também usados contra ratos e baratas. 7. Fumar causa câncer de laringe. 8. Fumar causa câncer de boca e perda dos dentes. 9. Fumar causa câncer de pulmão. 10. Em gestantes, fumar provoca partos prematuros e o nascimento de crianças com peso abaixo do normal. 3ª fase (2009- atual) O ministério da saúde adverte: GANGRENA O uso deste produto obstrui as artérias e dificulta a circulação do sangue. VÍTIMA DESTE PRODUTO Este produto intoxica mãe e o bebê, causando parto prematuro e morte. MORTE O uso deste produto leva à morte por câncer de pulmão e enfisema. INFARTO O uso deste produto causa morte por doenças do coração.

37 Caroline de Araújo Pupo Hagemeyer 37 HORROR Este produto causa envelhecimento precoce da pele. FUMAÇA TÓXICA Respirar a fumaça deste produto causa pneumonia e bronquite. SOFRIMENTO A dependência da nicotina causa tristeza, dor e morte. DERRAME CEREBRAL O risco de derrame cerebral é maior com o uso deste produto. IMPOTÊNCIA O uso deste produto diminui, dificulta ou impede a ereção.

38 2 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? 1 Rui Sousa-Silva CLUP Centro de Linguística da Universidade do Porto 1. Plágio jornalístico O plágio jornalístico constitui um dos temas de investigação sobre plágio mais desafiantes. Ao contrário do plágio de estudantes, a reutilização textual por jornalistas sem indicação (ou com uma indicação muito limitada) das fontes originais não é, frequentemente, considerada plágio (COULTHARD & JOHNSON, 2007), nem mesmo nos casos em que essa reutilização é substancial, conforme assinala Angèlil-Carter (2000). Uma vez que as fronteiras que identificam um texto como plagiador dependem tanto da definição de plágio aplicável e da intenção do autor, como do género de texto, a utilização, por jornalistas, de grandes volumes de texto sem atribuição adequada da autoria tende a ser minimizada ou, inclusivamente, desvalorizada. Esta tendência de desvalorização ou minimização resulta do pressuposto de que as peças noticiosas relatam, supostamente, factos e eventos do mundo real. E uma vez que estes factos e eventos não podem (ou, por questões inerentemente éticas, não devem) ser relatados com prejuízo da fidelidade jornalística, quanto mais fiel for a descrição dos factos, menor é a liberdade de escrita criativa do jornalista e, em teoria, mais elevado será o grau permissível de sobreposição textual. Neste contexto, sobreposição textual pode ser, assim, facilmente associada a profissionalismo, o que dificulta a consideração de qualquer texto jornalístico como plágio. Um fator adicional que contribui para esta aparente complacência com a usurpação de material noticioso é a prática corrente de subscrição de serviços noticiosos pagos, cujos conteúdos os media estão autorizados a reutilizar. Paralelamente, quando confrontados com a necessidade de cita- 1. Este capítulo é uma versão traduzida e reformulada do capítulo publicado originalmente em Sousa-Silva (2015). 38

39 Rui Sousa-Silva 39 rem as suas fontes, os jornalistas parecerem reger-se por dois pesos e duas medidas. Por um lado, com o objetivo de assegurarem a veracidade da peça noticiosa, não hesitam em citar inequivocamente as suas fontes de informação primárias. Em casos extremos, levam até às últimas consequências a proteção dessas fontes, o que implica manter o seu anonimato e confidencialidade e, inclusivamente, resistir a pressões internas e externas para identificarem e nomearem essas fontes. Por outro lado, reutilizam, frequentemente, o texto de outras fontes de texto (secundárias) para redigirem os seus próprios artigos, nem sempre citando essas fontes, como é o caso de reutilização de notícias publicadas por outros media ou, inclusivamente, escritas por agências noticiosas. Apesar destas condicionantes, que dificultam a análise de potenciais casos de plágio, não são raros os exemplos de jornalistas acusados e punidos por plagiarem. Em fevereiro de 2015, Jared Keller, diretor de informação do site de notícias Mic, foi demitido depois de se descobrir que tinha retirado e reproduzido, literalmente ou com pequenas alterações, trechos de texto de outras fontes noticiosas sem citar devidamente as fontes. Nesse mesmo mês, o jornal The Australian demitiu o cronista Tanveer Ahmed depois um blogger o ter acusado de plagiar um website político americano. Dois anos antes, o então autor do New Yorker Jonah Lehrer foi despedido por reciclar publicações no blog da revista, para além de cometer outros atos transgressivos. Um dos casos mais paradigmáticos, contudo, é indubitavelmente o caso de Jayson Blair, o jornalista do The New York Times que apresentou a sua demissão, em 2003, depois de ter sido acusado de praticar diversos atos fraudulentos na sua carreira como jornalista, incluindo plágio. Blair foi acusado, em particular, de ter utilizado indevidamente material de agências noticiosas e de outros jornais, tais como o Washington Post e o The San Antonio Express-News. No universo da língua portuguesa, casos de plágio como estes também não são inéditos. Em 2007, um leitor do jornal português de referência Público descobriu que Clara Barata, uma das jornalistas, tinha copiado textos de outras fontes, incluindo da Wikipedia. O caso desta jornalista é ainda mais complexo do que os descritos anteriormente, uma vez que a peça noticiosa não reutilizava o texto de um original na mesma língua, mas sim originais escritos noutra língua, nomeadamente em inglês. Um caso idêntico foi o de um repórter do jornal Telegraph-Journal, no Canadá, que foi demitido em 2009 por ter reutilizado indevidamente texto do L Acadie Nouvelle. Neste contexto, este capítulo discute de que modo uma análise linguística de natureza forense poderá auxiliar a deteção e/ou o fornecimento de elementos de prova em casos de plágio jornalístico, defendendo que é essencial desenvolver um método que permita recorrer a elementos linguísticos para identificar determinado texto como constituindo um potencial caso de plágio, não só com o objetivo de levantar suspeitas relativamente à sua originalidade, mas também com o intuito de contribuir para o desenvolvi-

40 40 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? mento de técnicas de deteção de plágio translingue (SOUSA-SILVA, 2014). Uma proposta deste método é apresentada de seguida. 2. Notícias, plágio e usurpação Apesar da proliferação da investigação sobre plágio ao longo das últimas décadas (ANDERSON, 1998; ANGÈLIL-CARTER, 2000; CARROLL, 2001; CARROLL E APPLETON 2001; JAMESON, 1993; LINDEY, 1952; PECORARI, 2008; ROBILLARD, 2008; ROIG, 2001; SCOLLON, 1995; HOWARD1995), a maioria dos estudos realizados focou sobretudo o plágio académico, em detrimento de outras ocorrências de reutilização textual. O facto de o plágio académico ser comummente visto como um problema de formação educativa dos estudantes, que necessita de ser identificado (e, consequentemente, resolvido) no decorrer do seu percurso académico (CARROLL, 2001; CARROLL E APPLETON 2001), nomeadamente mostrando aos estudantes como adotar uma conduta académica adequada (HOWARD, 1995), faz com que o plágio académico ocupe um lugar central na investigação sobre plágio em geral. Pelo contrário, o volume de investigação sobre reutilização (indevida) de textos jornalísticos tem sido objeto de um volume de investigação comparativamente menor. Exemplo disso são as opiniões firmes, normalmente coincidentes com o argumento de jornalistas infratores, de que a redação de notícias diverge da escrita académica e que, em defesa da boa leitura de um artigo, não é prático citar todas as fontes secundárias. Paradoxalmente, as inúmeras convenções e regulamentações aplicáveis à utilização de material das agências noticiosas não são universais, mas são muito claras a esse respeito. Normalmente, as agências noticiosas exigem a atribuição da(s) fonte(s), proibindo a utilização de artigos assinados (isto é, artigos de autoria de jornalistas individuais, por oposição a peças da agência noticiosa, em geral) sem a devida citação. O Manual de Jornalismo da Reuters (REUTERS, 2008), por exemplo, descreve o ato de plágio como um pecado mortal, apesar de realçar que, enquanto os princípios orientadores de ética contribuem para um jornalismo melhor, as regras rígidas restringem e limitam a capacidade de trabalhar. O Guia de Estilo da Reuters 2 afirma, ainda, que, em conformidade com o seu Código de Conduta, é sempre exigida aos seus jornalistas a procura e o relato da verdade, inexoravelmente, com honestidade e sinceridade (REUTERS, 2008: 1). Para além de considerar que o plágio é um pecado mortal, este guia de estilo considera a falsificação e o plágio dois dos 10 valores inquestionáveis do jornalismo para a Reuters, exigindo aos seus jornalistas uma atribuição adequada às fontes respetivas de material que não seja seu, e realçando o princípio de que é insuficiente identificar um vídeo ou uma fotografia como nota à imprensa ; pelo contrário, é impera- 2. Disponível em inglês em

41 Rui Sousa-Silva 41 tivo identificar claramente a fonte. Este guia de estilo afirma ainda que é essencial, por uma questão de transparência, que o material que não seja recolhido por nós próprios seja claramente atribuído, nas peças noticiosas e nas reportagens, à respetiva fonte, incluindo nos casos em que a fonte seja uma organização concorrente, concluindo que o incumprimento desta norma poderá sujeitar-nos a acusações de plágio (REUTERS, 2008: 5). De modo idêntico, a International Federation of Journalists (IFJ e, em Portugal, o Sindicato dos Jornalistas ( consideram o plágio uma infração profissional grave. Também o guia de estilo de um dos principais jornais de referência portugueses, o Público 3 proíbe terminantemente o recurso ao plágio, acrescentando que todas as informações relevantes recolhidas junto de outras organizações de comunicação social ou de agências noticiosas devem ser atribuídas. No caso de notícias baseadas em material de diferentes agências noticiosas, os contributos de cada uma destas agências devem ser citados no texto pela ordem com que mais contribuíram para a redação da peça. Sempre que o material das agências noticiosas for utilizado como fonte e o artigo for escrito sobretudo pelos seus jornalistas, as agências devem ser citadas no corpo da peça noticiosa. Porém, se o artigo se basear sobretudo em serviços noticiosos, então deverá ser incluída uma referência aos mesmos e, no caso de textos traduzidos de outras línguas, deverá ser claramente assinalado como tradução e indicar o nome dos tradutores. Tendo em conta a política editorial do jornal Público, não é, por isso, surpreendente que o jornal tenha publicado um pedido de desculpas aos leitores, em 2006, depois de uma das suas jornalistas, Clara Barata, ter publicado um artigo que constituía sobretudo uma tradução de material da New Scientist e da Wikipedia. As suspeitas foram levantadas por um leitor que reparou, após a leitura da peça noticiosa, que o texto lhe parecia familiar, tendo de seguida identificado as fontes originais. O jornal instaurou um processo de investigação e detetou, posteriormente, que a jornalista tinha plagiado 13 excertos relevantes recorrendo à tradução. O caso foi comparado ao do famoso jornalista do New York Times, Jayson Blair, que, em 2003, foi demitido depois de o jornal sofrer acusações de plágio e ser alvo de processos legais instaurados por outras organizações noticiosas. Não obstante, há vários anos que são reportados casos de plágio jornalístico, o que revela que não se trata de um problema recente. Em 1996, por exemplo, a agência noticiosa portuguesa Lusa apresentou uma queixa ao Sindicato dos Jornalistas contra vários organismos de comunicação social portugueses, que estavam a plagiar textos assinados pelos seus jornalistas. Em sua defesa, os media plagiadores argumentaram que eram subscritores dos serviços noticiosos da agência, estando, por isso, autorizados a reproduzir esses textos. Porém, os textos assinados não se encontram incluídos nos serviços de subscrição e, como quaisquer outros materiais sujeitos a direitos de autor, não podem 3. Disponível em

42 42 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? ser reproduzidos sem autorização explícita, e muito menos sem atribuição às fontes. Tendo em consideração a posição adotada por estas organizações, os casos de plágio jornalístico têm sido tratados mais frequentemente com recurso à autorregulação, códigos de ética e deontológicos, do que recorrendo aos mecanismos legais, o que não surpreende. Por outro lado, este posicionamento tradicional que perspetiva o jornalismo como não estando sujeito a acusações de plágio tem sido questionado, não só pela prática jornalística, mas também à luz dos casos descritos anteriormente. Assim, é evidente que, apesar de reportarem factos, as notícias estão sujeitas aos mesmos princípios de originalidade que outros géneros de texto, incluindo trabalhos académicos, o que nos permite concluir, então, que o plágio noticioso não merece um tratamento muito diferente daquele que é utilizado em situações de plágio académico. De facto, tal como o plágio académico, o plágio jornalístico não só está sujeito a regras e normas internas, como também tem tendência para ser resolvido internamente pelas respetivas organizações. Contudo, definir um enquadramento e princípios orientadores para resolução de casos de plágio jornalístico não é o único desafio; um outro desafio inerente ao tratamento da reutilização de texto jornalístico é a deteção. Neste sentido, Coulthard & Johnson (2007) defendem que as tecnologias que facilitam o plágio também tornam mais fácil a sua deteção, e, consequentemente, a punição dos plagiadores. É um facto que os desenvolvimentos tecnológicos das últimas décadas passaram a facilitar o processo de deteção. Porém, embora a sensação de déjà-vu seja menos provável em casos de plágio jornalístico do que em casos de plágio académico, não são raras as vezes em que os casos de usurpação de texto, no plágio jornalístico, são detetados através da intuição dos leitores, que, muitas vezes, ao sentirem que já leram o texto noutra ocasião, iniciam um processo de denúncia. O caso de Clara Barata descrito acima é disso um bom exemplo. A reutilização de texto a partir de um original na mesma língua pode ser facilmente detetada utilizando técnicas e ferramentas de comparação de texto mais simples ou mais complexas; neste caso, uma comparação direta é suficiente para identificar os trechos que texto que não são originais, como demonstrei anteriormente (SOUSA-SILVA, 2014). Pelo contrário, a deteção de reutilização de texto disponível originalmente noutra língua é significativamente mais complexa. Uma vez que o texto plagiado (o texto original objeto de plágio) e o texto plagiador (o texto derivado do original) estão redigidos em duas línguas diferentes, a tradução funciona como uma técnica de ofuscação, que impede a comparação textual direta. Decorrente da diferente língua dos textos, nestes casos não é possível, em primeiro lugar, utilizar sistematicamente a deteção automática ou a deteção assistida por computador para efeitos de comparação textual. Em segundo lugar, a pesquisa manual utilizando trechos de texto julgados particularmente sus-

43 Rui Sousa-Silva 43 peitos, como é o caso das pesquisas realizadas normalmente pelos docentes, não devolve resultados conclusivos, uma vez que o texto suspeito e o texto original não são textualmente idênticos. 3. Deteção de plágio: um caso de linguística forense Ao longo dos últimos anos, muitos foram os especialistas de diversas áreas, desde críticos literários até advogados especializados em direito de autor, passando por professores e linguistas forenses, que demonstraram um interesse crescente na investigação e deteção de plágio, ainda que por diferentes motivos, conforme explicam Coulthard & Johnson (2007). Enquanto o crítico literário poderá estar mais interessado em avaliar a qualidade literária de uma obra, o professor estará mais interessado na formação dos seus estudantes, e, por conseguinte, mais preocupado com os valores morais do próprio plágio do que com as implicações financeiras da violação; o advogado, pelo contrário, tem tendência para se interessar mais pelas implicações financeiras do plágio, procurando os respetivos mecanismos de compensação (HOWARD, 1995; HOWARD & ROBBILARD, 2008; SCOLLON, 1994; SCOLLON, 1995). Tradicionalmente, o plágio tem sido considerado um ato imoral, mais do que um ato ilegal (GARNER, 2009), pelo que poderia ser tratado de forma mais adequada enquanto um problema ético do que uma infração legal (GOLDSTEIN, 2003). Sobretudo tendo em conta que os trabalhos sujeitos a proteção são de natureza imaterial e ubíqua, podendo ser, consequentemente, utilizados por diferentes pessoas em simultâneo, o que compromete a capacidade do autor original para controlar a utilização do seu trabalho (PEREIRA, 2003: 20). Porém, estudos anteriores demonstraram que, na realidade, o plágio é, quer imoral, quer ilegal (FINNIS, 1991; EIRAS & FORTES, 2010), o que o torna um ilícito punível legalmente (PEREIRA, 2003). Por conseguinte, não será exagerado afirmar-se que, idealmente, o plágio deverá ser tratado, não só como uma questão moral e ética, mas também como uma questão legal. Como defendi anteriormente, o plágio comporta, na vertente moral, implicações sociais, tendo capacidade para arruinar a reputação do plagiador, enquanto, na vertente legal, tem subjacente a infração de direitos morais e, muitas vezes, de direitos financeiros, ambos puníveis por lei (SOUSA- -SILVA, 2013: 61). De facto, uma vez que esses direitos financeiros são mais fáceis de quantificar do que os respetivos direitos morais, não constitui surpresa que sejam os primeiros a serem resolvidos mais prontamente pelos tribunais. Ainda assim, não é raro que as instâncias de plágio comportem sérias implicações legais, do mesmo modo que não é raro que os casos levados a tribunal se limitem, frequentemente, àqueles que possuem implicações financeiras. Como ilustram diversos casos conhecidos trazidos a público nos últimos anos, não só o plágio é visto como uma violação de códigos de ética,

44 44 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? como também é punido. E o plágio jornalístico não é exceção, como ilustram os casos apresentados acima. Estas circunstâncias tornam o plágio particularmente adequado a uma abordagem da Linguística Forense, tendo em conta que os linguistas forenses tomam como objeto da sua investigação, não só o aspeto legal, mas também o aspeto moral do ato de plagiar, podendo tecer, além disso, considerações acerca do(s) resultado(s) desse ato. Em casos de natureza jurídica, os linguistas forenses desempenham um papel investigativo e/ou um papel probatório. Do ponto de vista investigativo, contribuem para o processo de investigação, participando em comissões e conselhos de ética, ou elaborando pareceres relativos à natureza e dimensão da reutilização textual para consideração pelos decisores respetivos. Do ponto de vista probatório, os fornecem elementos de prova suficientemente fundamentados para sustentar a tese de que dois ou mais textos foram produzidos de forma independente, ou, pelo contrário, foram produzidos com base num terceiro texto, cuja cronologia prova ter sido produzido anteriormente. A linguística forense, enquanto ramo da linguística aplicada que consiste na análise da linguagem em todos os tipos de interação no contexto jurídico (CALDAS-COULTHARD, 2014: 2), foca os aspetos da interação entre a Linguagem e o Direito. Contudo, os linguistas que operam em contextos forenses contribuíram significativamente para casos que vão além da natureza puramente legal. Na área do plágio, em particular, as análises linguísticas evoluíram nos últimos anos, quer no que diz respeito à deteção de plágio em textos escritos na mesma língua que o original, quer no que diz respeito à deteção de plágio translingue. Decorreram quase 20 anos desde que Johnson (1997) comparou um conjunto de textos académicos, desenvolvendo um método que consistia em comparar apenas itens lexicais, em vez de utilizar técnicas de comparação de texto, para concluir que esses textos não eram originais. Com base neste método, a autora conseguiu demonstrar tratar-se do resultado de colusão, isto é uma espécie de plágio de grupo. Embora a redação dos textos tenha sido alterada de modo a produzir versões ligeiramente diferentes, uma comparação dos itens lexicais mostrou que esses textos não tinham sido produzidos independentemente. A análise linguística de Johnson não envolveu os tribunais, mas foi suficiente para demonstrar a reutilização textual entre estudantes; porém, mais importante ainda, os seus métodos de análise foram posteriormente aplicados em casos de judiciais. É o caso do trabalho de Turell (2004) que, baseando-se no trabalho de Johnson (1997), procurou verificar se aquele tipo de análise linguística, comprovada em casos de plágio académico, também poderia ser utilizada para determinar com êxito a ocorrência de plágio em traduções de textos literários publicadas. Para o efeito, a autora comparou quatro traduções da obra Júlio César, de William Shakespeare, para espanhol, mostrando como uma análise linguística forense é suficientemente robusta para provar que uma determinada tradução é uma deri-

45 Rui Sousa-Silva 45 vação de outra tradução do mesmo original, e não uma tradução produzida independentemente. A autora mostrou claramente, ainda, de que modo esta análise forense poderá ser utilizada como prova da reutilização textual. A comparação das quatro traduções realizada por Turell incluiu a análise de sobreposição de vocabulário, partilha de palavras e expressões utilizadas uma única vez e vocabulário singular. O desempenho robusto deste método baseia-se no simples princípio de que, uma vez que todos estes elementos são relativamente independentes da ordem de palavras, têm tendência para apresentar um desempenho melhor do que os métodos de comparação de texto. O caso estudado por Turell é um exemplo típico dos casos de plágio frequentemente levados a tribunal, na medida em que estas traduções são, elas próprias, obras literárias originais, e, por conseguinte, estão protegidas por legislação em matéria de direito de autor. Assim, este tipo de violação do direito de autor possui, por isso, implicações financeiras, para além de implicações morais, decorrentes do facto de o tradutor e/ou a editora responsável pela publicação da obra serem detentores dos direitos de propriedade intelectual da obra traduzida, de modo idêntico aos direitos detidos pelo autor e/ou pela editora da obra original. Numa perspetiva da linguística forense, esta tarefa é particularmente desafiante: uma vez que qualquer tradução é, de certa forma, inevitavelmente condicionada pela forma e pelo conteúdo do original, quanto mais literal for a tradução, mais difícil será demonstrar a sua originalidade. Apesar deste obstáculo, a análise realizada por Turell revelou claramente que a tradução suspeita tinha plagiado uma outra obra traduzida publicada anteriormente. Embora estes e outros estudos na área da linguística forense tenham sido fundamentais para a investigação sobre plágio, a investigação realizada centrou-se sobretudo no plágio infralíngua, isto é, na análise da reutilização indevida de textos produzidos na mesma língua. Pelo contrário, tem sido escassa a investigação dedicada ao estudo do plágio translingue (SOUSA- -SILVA, 2013) isto é, de casos de plágio com recurso à tradução, em que um texto reutiliza um texto ou parte dele, literalmente ou com algumas alterações, escrito noutra língua, sem uma atribuição clara, adequada e inequívoca. Duas razões potenciais contribuem para este facto. Em primeiro lugar, a investigação na área do plágio tem-se debruçado sobretudo sobre a língua inglesa. De facto, para além de a maioria da investigação sobre integridade académica, políticas educativas e honestidade académica decorrer no contexto anglo-americano, também a amplitude do objeto de investigação não deixa muita margem para analisar textos originais escritos noutras línguas. Decorrente deste facto, também na vertente da deteção foi criado software destinado a satisfazer as necessidades deste contexto específico. Além disso, tomando como exemplo a Internet em geral, a maioria dos textos disponíveis em todo o mundo encontra-se atualmente escrita em

46 46 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? inglês 4, sendo a procura de textos redigidos noutras línguas consideravelmente inferior. Em segundo lugar, apesar da necessidade urgente de detetar a reutilização textual de textos escritos noutras línguas, nomeadamente em resultado do elevado volume de produção científica em inglês, a deteção deste tipo de plágio exige um esforço muito significativo. Por imposição destas restrições, não existem atualmente, tanto quanto se conhece, formas fidedignas de verificar sistematicamente a existência de plágio translingue nos textos, a exemplo do que acontece com a deteção de plágio em textos escritos na mesma língua. Por esse motivo, estes casos de plágio só podem ser detetados quase exclusivamente por intuição, sem qualquer apoio computorizado. Na sua maioria, o plágio translingue é constituído por textos traduzidos livre e informalmente de outra língua, sem citação do autor original. Ao contrário das obras literárias, cuja tradução é, normalmente, realizada por tradutores profissionais, a tradução de outros géneros de texto (tais como notícias e publicações em blogs, sem esquecer os textos de natureza académica) sem atribuição às fontes pode passar facilmente despercebida. Isto porque, ao contrário do problema analisado por Turell, o texto plagiado não é outra tradução na mesma língua, mas sim o original produzido noutra língua. Acresce, ainda, o facto de as traduções não literais dificultarem o processo de deteção. Neste contexto, uma análise linguística de natureza forense é crucial, não só para fundamentar o processo de deteção, mas também para demonstrar a amplitude da reutilização, bem como determinar se um texto constitui um caso de plágio ou, pelo contrário, se essa reutilização textual é aceitável. Mais importante ainda, esta análise permite recolher provas de que determinado texto (ou grupo de textos) não foi produzido independentemente. Este é o tema abordado na próxima secção. 4. Da suspeição à deteção Este capítulo começa por investigar a deteção de reutilização literal do texto de artigos noticiosos. De seguida, propõe-se um método para levantar suspeitas relativamente ao plágio de determinado texto. Em terceiro lugar, este capítulo mostra como recolher provas de plágio em determinado texto, comparativamente a um ou mais textos noutra língua. Esta análise assenta num corpus de notícias publicadas em órgãos de comunicação social que, supostamente, foram produzidas independentemente de outras notícias do mesmo tipo, apesar de versarem sobre temas idênticos. 4 Segundo o website Internet World Stats, em 2013 a língua inglesa era, de longe, a língua mais utilizada na Internet ver

47 Rui Sousa-Silva 47 Plágio literal A deteção de plágio literal, nos casos em que determinado texto derivado reutiliza (quase) literalmente o texto original na mesma língua, sem alterações, é relativamente simples e fácil; desde que o original seja conhecido e esteja identificado, uma simples comparação do texto original e dos textos suspeitos (manualmente ou utilizando ferramentas informáticas comuns) é suficiente para identificar o volume de sobreposição, bem como a dimensão da reutilização. Com o objetivo de ilustrar este ponto, selecionei aleatoriamente um texto fornecido pela agência noticiosa portuguesa Lusa entre um corpus de 28 notícias escritas e assinadas por jornalistas internos da agência. Uma simples pesquisa na Internet de algumas expressões do texto permitiu identificar dois casos individuais de reutilização textual sem atribuição às fontes, que, consequentemente, constituem plágio: o primeiro foi publicado pelo jornal de referência português, Jornal de Notícias (JN); o segundo foi publicado online pela estação televisiva TVI. Estes textos são reproduzidos nos dois excertos seguintes. O texto plagiado literalmente é apresentado em tipo de letra itálico nos dois casos; o texto sublinhado indica ligeiras alterações do texto original (e que, contudo, não interferem com o sentido do texto). Excerto 1: Jornal de Notícias Os microscópicos grãos de pólen das plantas poderão vir a derrubar a ideia de que ainda há crimes perfeitos, ao dar pistas seguras para deslindar casos que desafiam os limites da investigação criminal. A PJ já recorreu a este tipo de análise para resolução de pelo menos três crimes. O que parece fazer parte dos domínios da fábula ou da ficção científica é uma realidade já em prática por meia dezena de investigadores forenses no mundo [, e]. Portugal faz parte dessa vanguarda através de Mafalda Faria, que [desenvolve o seu trabalho] trabalha na Universidade de Coimbra e no Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). [A metodologia, fruto também do engenho e arte de quem a vem desbravando, não é mais do que a] A análise do pólen e de esporos de plantas que ficam agarrados ao corpo de pessoas e de objectos [vão] vai ajudar a reconstituir o percurso e locais de acção de criminosos e vítimas. Em homicídios, violações, roubos, contrafacção de medicamentos, tráfico, contrabando e até no combate ao terrorismo a Palinologia, ciência oriunda da Botânica, tem vindo a ajudar as ciências forenses a investigar e a explicar crimes. A Inglaterra e a Nova Zelândia fazem da Palinologia uma prática corrente para casos mais complexos, e é aceite como prova pericial em

48 48 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? tribunal. Nos EUA, Austrália e Portugal tem dado uma ajuda à investigação criminal. PJ já recorreu a análises do polén O contributo dos estudos de Mafalda Faria, nos dois últimos anos, foi solicitado pela Polícia Judiciária para ajudar a reconstituir crimes como os do jovem universitário que em Coimbra assassinou a ex-namorada, no homicídio de um homem numa quinta de Viseu ou em casos de tráfico de droga. Para certas situações, a Palinologia é a única que pode resolver. Se, por exemplo, se encontra a arma do crime sem impressões digitais poderá ter pólen, não daquele local, mas da sua proveniência, explica a investigadora à agência Lusa, preconizando o seu alargamento a várias áreas da investigação criminal. Depende do tipo de crime. Se for tráfico, contrafacção ou contrabando, são os próprios produtos analisados. No homicídio tem de se ir ao local recolher amostras das plantas e solo para analisar. Na vítima são amostras no cabelo, nas cavidades nasais e no vestuário, se tiver, explica a investigadora. Potencial singular para investigação criminal Os grãos de pólen apresentam características que lhe conferem um potencial singular para a investigação criminal. Pode ser encontrado agarrado em praticamente qualquer objecto ou pessoa, e é altamente resistente à degradação mecânica, biológica e química. Os agressores podem lavar o sangue, mas não os grãos de pólen, porque não os vêem, por serem microscópicos, afirma Mafalda Faria, frisando que mesmo após lavagens das roupas será possível encontrá-los nelas. Por outro lado, esses microscópicos grãos têm uma grande capacidade de transferência, das plantas para as pessoas e entre pessoas e, ao mesmo tempo, são bastante aderentes. A Palinologia Forense é uma investigação pós-doutoramento que Mafalda Faria, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), irá concluir no final do corrente ano, sob orientação do neozelandês Dallas Mildenhall e do português Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). É financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Ela é o resultado do bichinho pelas ciências forenses que a levou a concorrer, sem sucesso, a lugares na Polícia Judiciária e no INML. Queria trabalhar em investigação forense em

49 Rui Sousa-Silva 49 vestígios não biológicos, para dar sequência à sua formação em ecologia. Excerto 2: TVI O fim dos crimes perfeitos? A palinologia, que analisa grãos de pólen, desafia dogmas e quer ajudar a investigação criminal Por: Redacção /PP Os microscópicos grãos de pólen das plantas poderão vir a derrubar a ideia de que ainda há crimes perfeitos, ao dar pistas seguras para deslindar casos que desafiam os limites da investigação criminal, escreve a Lusa. O que parece fazer parte dos domínios da fábula ou da ficção científica é uma realidade já em prática por meia dezena de investigadores forenses no mundo, e Portugal faz parte dessa vanguarda através de Mafalda Faria, que desenvolve o seu trabalho na Universidade de Coimbra e no Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). A metodologia, fruto também do engenho e arte de quem a vem desbravando, não é mais do que a análise do pólen e de esporos de plantas que ficam agarrados ao corpo de pessoas e de objectos e vão ajudar a reconstituir o percurso e locais de acção de criminosos e vítimas. Em homicídios, violações, roubos, contrafacção de medicamentos, tráfico, contrabando e até no combate ao terrorismo a Palinologia, esta ciência oriunda da Botânica, tem vindo a ajudar as ciências forenses a investigar e a explicar crimes. A Inglaterra e a Nova Zelândia fazem da Palinologia uma prática corrente para casos mais complexos, e é aceite como prova pericial em tribunal. Nos EUA, Austrália e Portugal tem dado uma ajuda à investigação criminal. O contributo dos estudos de Mafalda Faria, nos dois últimos anos, foi solicitado pela Polícia Judiciária para ajudar a reconstituir crimes como os do jovem universitário que em Coimbra assassinou a ex-namorada, no homicídio de um homem numa quinta de Viseu ou em casos de tráfico de droga. A única resposta Para certas situações, a Palinologia é a única que pode resolver. Se, por exemplo, se encontra a arma do crime sem impressões digitais poderá ter pólen, não daquele

50 50 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? local, mas da sua proveniência, explica a investigadora à agência Lusa, preconizando o seu alargamento a várias áreas da investigação criminal. Depende do tipo de crime. Se for tráfico, contrafacção ou contrabando, são os próprios produtos analisados. No homicídio tem de se ir ao local recolher amostras das plantas e solo para analisar. Na vítima são amostras no cabelo, nas cavidades nasais e no vestuário, se tiver, explica a investigadora. Os grãos de pólen apresentam características que lhe conferem um potencial singular para a investigação criminal. Pode ser encontrado agarrado em praticamente qualquer objecto ou pessoa, e é altamente resistente à degradação mecânica, biológica e química. Podem lavar o sangue, mas não os grãos de pólen Os agressores podem lavar o sangue, mas não os grãos de pólen, porque não os vêem, por serem microscópicos, afirma Mafalda Faria, frisando que mesmo após lavagens das roupas será possível encontrá-los nelas. Por outro lado, esses microscópicos grãos têm uma grande capacidade de transferência, das plantas para as pessoas e entre pessoas e, ao mesmo tempo, são bastante aderentes. A Palinologia Forense é uma investigação pós-doutoramento que Mafalda Faria, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), irá concluir no final do corrente ano, sob orientação do neozelandês Dallas Mildenhall e do português Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). É financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Ela é o resultado do bichinho pelas ciências forenses que a levou a concorrer, sem sucesso, a lugares na Polícia Judiciária e no INML. Queria trabalhar em investigação forense em vestígios não biológicos, para dar sequência à sua formação em ecologia. A notícia publicada pelo JN (Excerto 1) possui uma sobreposição textual de 96%, correspondente a 527 em 554 palavras (a notícia original publicada pela Lusa possui 550 palavras), resultante das ligeiras alterações ao artigo noticioso publicado no jornal. Note-se que a Lusa é referida indiretamente, uma vez que as citações diretas utilizadas no texto são atribuídas à agência noticiosa. Porém, a autoria original da notícia não é atribuída no artigo do jornal. O texto publicado pela TVI (Excerto 2) apresenta uma sobreposição

51 Rui Sousa-Silva 51 textual de 100%: a notícia publicada online reutilizou as 550 palavras da notícia publicada pela Lusa, apesar de ter acrescentado algumas palavras (o texto publicado pela TVI possui 566 palavras). A notícia publicada pela TVI também inclui uma referência indireta à Lusa, atribuindo as citações diretas à agência noticiosa, mas vai além do JN, na medida em que atribui a autoria ao seu próprio repórter e à redação da estação televisiva ( Redacção/PP ). As alterações efetuadas ao texto da TVI são mínimas, mesmo comparativamente às alterações efetuadas pelo JN. Curiosamente, falta uma palavra no artigo original que levanta algumas questões de agramaticalidade: Se, por exemplo, se encontra a arma do crime sem impressões digitais poderá ter pólen, não daquele local, mas da sua proveniência. Para que a frase seja gramatical, é necessário incluir pelo menos um pronome após digitais e antes de poderá, como, por exemplo, ela ou esta. Contudo, nem o JN, nem a TVI pareceram ter detetado esta falha, reproduzindo o erro, o que constitui uma prova inequívoca da reutilização textual. Além disso, os aspetos cronológicos mostram a direcionalidade da reutilização, ou seja, que o JN e a TVI reutilizaram o texto da Lusa (ou copiaram-se mutuamente), mas o inverso não acontece. 5. A tradução como ferramenta de investigação Conforme ilustrado na secção anterior, a deteção de plágio jornalístico (sobretudo tratando-se se textos na mesma língua) é relativamente simples e fácil, sobretudo tendo em conta que os media se encontram cada vez mais disponíveis online. Porém, são necessárias técnicas mais sofisticadas para levantar suspeitas de plágio no caso de textos traduzidos de outras línguas livremente pelos jornalistas (recorrendo, muitas vezes, a motores de tradução automática gratuitos, como o Google Translate), normalmente para a sua língua materna. Nestes casos, o resultado da tradução automática é, normalmente, imperfeito, exigindo uma revisão mais ou menos profunda, não só para tornar o texto legível, mas também e sobretudo publicável. Para levantar suspeitas de que um texto deriva de um original noutra língua e, consequentemente, detetar ocorrências deste tipo de plágio (como é o caso do jornal Público referido acima), é frequente ter de partir da intuição (isto é, da sensação de déjà-vu), ou proceder a uma análise linguística. Esta análise também é necessária para fornecer provas da usurpação do texto, uma vez que a intuição, neste caso, não é suficiente. Uma análise sintática, especificamente, quando integrada nesta abordagem linguística possui um elevado potencial para levantar suspeitas de que determinado texto constitui uma ocorrência de plágio, desde que as duas línguas envolvidas possuam uma sintaxe distinta. Esta hipótese assenta no pressuposto muito simples de que um texto escrito a partir de fontes noutra língua retém tendencialmente elementos sintáticos da língua original, ao contrário do que acontece com os textos escritos de raiz na mesma língua. Os excertos que se seguem ilustram este ponto:

52 52 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? Excerto 3: The renewal of the Toural square in the center of Guimarães, will move to the end of the year, but the design is totally different from the planned study presented two years ago. The project challenged by vimaranenses resolve the tunnel road and underground parking. The car traffic will be maintained throughout the area, but there will be news. It is planned to create a street in the far east of Alameda de S. Damasus, within what is now the garden, and to distribute the traffic from the city center. The remaining garden is enhanced with more plant species, and have a new design, giving an idea of urban forest. The project, coordinated by Maria Manuel Oliveira, the department of architecture at the University of Minho, provides the return of the fountain of Toural, public source of the sixteenth century passed, about one hundred years, the garden of Caramel. One of the central ideas expressed by the architects is the reuse of existing elements, such as furniture. The assistance is extended to the Republic of Brazil and off street of Santo António, changing the configuration of public transport. The taxi stand will be reduced and parking of buses transferred to the field of Kitchen. In the tower of the old wall with the inscription Here Born Portugal plans to establish a viewpoint that is an ideal place to observe the new floor of the square, designed by the plastic artist Ana Jotta, based on the same rocks of quartz and basalt now available. The assistance will be financed by EU funds after being approved an application to the program of urban regeneration of the NSRF in the value of 9.9 million. Authority takes possession of convent Well near the Toural, the former Convent of Dominica, in the seventeenth century, will be incorporated in the project of Capital of Culture. The municipality approved yesterday by the declaration of ownership of the property where usucapião are installed several cultural associations. In the building, now dilapidated, will be installed in the residence artists. The camera will have to find an alternative site for the installation of the seats of Tertulia Nicolina and Child Center of Popular

53 Rui Sousa-Silva 53 Culture, although not yet officially have contacted the associations. The building for the House of Memory is also flagged. This is an old industrial plastics, the Count of Margaride avenue, into the city. This partially empty factory has an area free in the back so that the building is created from scratch. Excerto 4: Iran rallies planned amid clampdown Anti-government protesters in Iran have announced they are to hold another rally in the capital to dispute the veracity of a presidential election. Supporters of candidate Mir Hossein Mousavi called on Wednesday for a rally to go ahead at 5pm local time (13:30 GMT), despite the authorities imposing a ban on the opposition gatherings. Mahmoud Ahmadinejad, the incumbent president, was officially declared winner of Friday s election by a margin of two-to-one over Mir Hossein Mousavi. Hossein, a reformist candidate who was the nearest rival to Ahmadinejad, a conservative, has accused the authorities of rigging the vote. But Ahmadinejad has said that the result proved he has popular support. The election result confirmed the work of the ninth government which was based on honesty and service to the people, he said on Wednesday in a statement to Iran s ISNA news agency. Violence on tape Despite the restrictions placed by the government on the media, violent scenes of police beating Mousavi supporters taken on mobile phones have been broadcast on news bulletins across the world. The Revolutionary Guard has warned the country s online media it will face legal action if it creates tension. Within the country, mobile phone text services have been down since the election. There is no access to Facebook, Twitter, or YouTube. The interior ministry has ordered an investigation into an attack on university students in which it is claimed four people were killed. Anoushaka Maraslian, a Middle East analyst in London, told Al Jazeera: University cities in Iran have always been very active in political dissent. That s the concern of the elders; that s the concern of the Guardian Council, and that s why they re making conessions, because they realise that young Iranians are leading the protests... with paral-

54 54 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? lels to [the revolution in] At least seven people have been killed in recent clashes between the authorities and the opposition movement, according to state media reports, while hundreds more are thought to have been injured. For its part, the foreign ministry summoned the Swiss ambassador, who represents US interests in Tehran, on Wednesday to protest at interventionist US statements on Iran s election. Obama told CNBC there appeared to be little difference in policy between Ahmadinejad and Mousavi. Either way we are going to be dealing with an Iranian regime that has historically been hostile to the United States, he said. Mousavi has called on his supporters to hold peaceful demonstrations or gather in mosques on Thursday in solidarity with people killed or hurt in the post-election unrest. In the course of the past days and as a consequence of illegal and violent encounters with [people protesting] against the outcome of the presidential election, a number of our countrymen were wounded or martyred, Mousavi said on his website. I ask the people to express their solidarity with the families... by coming together in mosques or taking part in peaceful demonstrations. Embora seja claro para qualquer falante de inglês que nenhum dos textos reproduzidos nos excertos 3 e 4 foi originalmente escrito em inglês, a qualidade linguística dos dois textos varia; o Excerto 3 apresenta uma qualidade muito fraca, sendo, por vezes, praticamente impercetível, enquanto o Excerto 4, apesar de não estar totalmente correto, é bastante claro e inteligível. Um falante de inglês, sem quaisquer conhecimentos de português, conseguirá compreender melhor a tradução do artigo apresentada no Excerto 4 do que a tradução do artigo apresentada no Excerto 3. O que é surpreendente é que os dois artigos foram publicados no mesmo jornal, o jornal de referência português Público, tendo em consideração que, de modo a evitar possíveis enviesamentos decorrentes de diferenças de política editorial entre órgãos de comunicação social distintos, tomou-se a decisão (aleatória, mas intencional) de selecionar os artigos de duas secções diferentes do mesmo jornal. O Excerto 3 foi publicado na secção Local, enquanto o Excerto 4 foi publicado na secção Mundo. Os dois artigos foram, depois, traduzidos para inglês utilizando o Google Translate ( tendo como resultado as versões em inglês dos textos transcritos acima. A estranheza muitas vezes encontrada em textos traduzidos (normalmente de menor qualidade) é um bom marcador em casos de plágio, que, quando complementado por tradução automática, permite procurar e, subsequentemente, fazer uma comparação lado a lado do texto suspeito com o suposto original. De facto, conforme explicado anteriormente (SOUSA-

55 Rui Sousa-Silva 55 -SILVA, 2014), a tradução automática de textos suspeitos (neste caso, textos escritos em português) para inglês oferece ao linguista forense uma pista de que o texto poderá ser reutilizado de outra fonte o que, confirmando-se as suspeitas, indica tratar-se de plágio. Os Excertos 5 e 6 ilustram este método. O Excerto 5 reproduz o artigo publicado originalmente em português no Público. A notícia não atribui o texto a qualquer agência noticiosa em particular, antes pelo contrário: o texto só faz uma referência genérica a Agências no início. Depois de traduzir este texto para inglês, selecionei algumas frases para fazer uma pesquisa na Internet utilizando itens lexicais como palavras-chave, dispensando as palavras funcionais. Estes itens lexicais foram, assim, utilizados como n-gramas filtrados (MAIA et al., 2008). A pesquisa baseada nestes parâmetros devolveu dois artigos relevantes: um foi publicado pelo jornal The Australian 5 e o outro foi publicado no website da Channel News Asia 6. À exceção de diferenças mínimas em detalhes relacionados com as datas (por exemplo, Sunday ou weekend, e um parágrafo utilizado pela Channel News Asia que não foi reproduzido pelo The Australian), os dois artigos são praticamente idênticos. A autoria foi atribuída à mesma fonte, Agence France Presse (AFP), nos dois casos e, no caso da Channel News Asia, também a ls/yb. O Excerto 6 apresenta uma transcrição do texto publicado originalmente pelo The Australian. Uma vez que os dois textos são reproduzidos nos Excertos 5 e 6 na língua em que foram inicialmente publicados pelos respetivos órgãos de comunicação social, a comparação baseou-se na identificação das expressões com similaridade semântica, mas não textual. O texto apresentado em negrita indica as expressões com ideias sobrepostas, enquanto os números apresentados no início da expressões em destaque indicam as expressões correspondentes no outro texto. Excerto 5: Notícia do jornal Público Encontro com Abbas em Washington Obama defende um Estado palestiniano e o fim da expansão dos colonatos :25:00 PÚBLICO, Agências O Presidente Barack Obama defendeu hoje a criação de um Estado palestiniano. [01]No fim do seu primeiro encontro com o presidente da Autoridade Palestiniana, o líder norte-americano repetiu uma vez mais o seu [02]apelo a

56 56 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? Israel [02]para que ponha fim à construção nos colonatos erguidos dos Territórios Palestinianos e honre os compromissos que assumiu. As duas partes, afirmou Obama na Casa Branca, têm [05] obrigações face ao roteiro o plano internacional de 2003 para a resolução do conflito israelo-palestiniano. Nestas inclui-se parar com a colonização. [04]Durante a discussão com o novo primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a semana passada, fui muito claro quanto à necessidade de travar a colonização, esclareceu ainda Obama. Os palestinianos devem por seu turno fazer progressos na melhoria das suas forças de segurança e na redução do incitamento anti-israel, defendeu. Sou um grande crente da solução de dois estados, disse ainda Obama, afirmando-se confiante na possibilidade de progressos em direcção à paz entre israelitas e palestinianos. Nas curtas declarações à imprensa que tiveram lugar depois do encontro de Washington, Mahmoud Abbas sublinhou, por seu turno, a urgência de tais progressos, declarando que [03] o tempo [é] um factor essencial no processo. O apelo ao fim da colonização na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental já tinha sido feito na véspera pela secretária de Estado, Hillary Clinton: [06] Nenhuns colonatos, nenhumas excepções de crescimento natural. E já hoje, antes do encontro entre Abbas e Obama, Israel reagira pela voz do porta-voz do Governo, que explicou que o futuro dos colonatos só será decidido através das negociações com os palestinianos. [07] Entretanto, temos de permitir que a vida continue normalmente nestas comunidades, disse Mark Regev. O que isso significa é que mesmo que não sejam construídos novos colonatos, a expansão dos já existentes poderá prosseguir. Excerto 6: Notícia do jornal The Australian Obama presses Israel on settlements but rules out peace timetable May 29, 2009 US President Barack Obama has renewed pressure on Israel over settlements but rejected a timetable for his peace drive, noting domestic pressures heaped on Israeli Prime Minister Benjamin Netanyahu. [01]As Mr Obama met Palestinian leader Mahmud Abbas for the first time as president, he [02]called for a halt to settlement building on the occupied West Bank, as his administration

57 Rui Sousa-Silva 57 sparred with Israel over the sensitive issue. Mr Obama vowed an aggressive mediation effort, ahead of his visit to Saudi Arabia and Egypt next week, while Mr Abbas pledged to live up to all previous peace agreements and warned [03] time is of the essence for a two-state solution. [04]The US president recalled that last week he had been very clear with Mr Netanyahu about the need to stop settlements and again stated his desire to see a two-state solution to the Israeli-Palestinian conflict. Asked if he would strong-arm Israel if it did not back down in its refusal to support a Palestinian state, Mr Obama said: I think it s important not to assume the worst, but to assume the best. He rejected an opportunity to set a date for the establishment of a viable, potential Palestinian state. I want to see progress made, and we will work very aggressively to achieve it. I don t want to put an artificial timetable, he said. I am confident that we can move this forward if all parties are ready to meet their obligations. On Wednesday, Secretary of State Hillary Clinton had significantly hardened the US position on settlements, prompting a blunt dismissal from Israel. But Mr Obama appeared to give Netanyahu some leeway, noting the fierce pressures imposed on the Israeli leader by his hawkish right-wing coalition. I think that we don t have a moment to lose, but I also don t make decisions based on just a conversation that we had last week, Mr Obama said. Because obviously Prime Minister Netanyahu has to work through these issues in his own government, in his own coalition. The US president also called on Mr Abbas to offer security improvements to Israel and to quell anti-israel incitement in Palestinian mosques and schools. Mr Abbas warned that all parties should work to alleviate the plight of the Palestinians and move towards statehood. I would like to take this opportunity to affirm to you that we are fully committed to all of our [05]obligations under the roadmap, from the A to the Z, he said. Mr Abbas added that he had shared ideas with Mr Obama based on the roadmap and the 2002 Saudi peace plan backed by the Arab league. The US-backed roadmap calls for a halt to Jewish settlement activity in Palestinian territories and an end to Palestinian attacks against Israel but has made little progress since it was drafted in Ms Clinton said Mr Obama wants to see a stop to settlements. [06]Not some settlements, not outposts, not natural growth exceptions. But Israel dismissed the blunt

58 58 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? US call. [07] Normal life will be allowed in settlements in the occupied West Bank, government spokesman Mark Regev said, using a euphemism for continuing construction to accommodate population growth. He added the fate of settlements will be determined in final status negotiations between Israel and the Palestinians and in the interim, normal life must be allowed to continue in those communities. The Palestinian Authority has ruled out restarting peace talks with Israel unless it removes all roadblocks and freezes settlement activity. Mr Netanyahu told Mr Obama last week at their first White House meeting that he was willing to immediately relaunch the peace talks but failed to publicly back the creation of a Palestinian state or to freeze settlement activity. The Israeli prime minister told his cabinet at the weekend he did not intend to build new settlements but that it makes no sense to ask us not to answer to the needs of natural growth and to stop all construction, aides said. The Abbas meeting represented Mr Obama s latest attempt to revive the stalled Middle East peace process, which have included talks with Jordan s King Abdullah II, Mr Netanyahu and in London with Saudi King Abdullah. Next week, Mr Obama will meet the Saudi King in Riyadh and deliver a long-awaited address to the Muslim world in Cairo. But he said he would not lay out his long-awaited peace plan in the speech, which he said was designed to lay out a path for a better US relationship with the Islamic world. AFP A análise linguística superficial apresentada acima mostra que algumas orações ou frases com afinidade semântica são constituídas por citações, pelo que têm tendência para serem utilizadas adequadamente no texto. Ao citarem o discurso direto de outras pessoas, estas expressões constituem o tipo de factos que não podem estar sujeitos a plágio. A análise também revela que a ordem das ideias diverge nos dois textos, pelo que as expressões idênticas são utilizadas em secções diferentes do artigo noticioso, o que poderia sugerir que o texto foi produzido de forma independente. Adicionalmente, o artigo em português foi publicado no dia 28 de maio, enquanto os artigos publicados pelo The Australian e pela Channel News Asia foram publicados no dia 29 de maio. Embora o critério da cronologia de publicação dos artigos possa ser um forte indicador de autoria original, tal não significa que o artigo em português não possa ter-se baseado na peça da agência noticiosa AFP, sobretudo tendo em consideração que os dois artigos da secção Mundo (que atribuem a autoria original à agência noticiosa internacional, a AFP)

59 Rui Sousa-Silva 59 apresentam uma elevada sobreposição textual. Não obstante o facto de a notícia original da AFP ser de acesso restrito, a comparação com os dois artigos em inglês publicados no dia 29 de maio sugere que o artigo em português também deriva, pelo menos em parte, da mesma fonte. A comparação mostra, também, que diversas cadeias de palavras do artigo que, supostamente, foi produzido de modo independente são idênticas às expressões do texto cuja autoria é atribuída à AFP. Curiosamente, a frase Ms Clinton said Mr Obama wants to see a stop to settlements. Not some settlements, not outposts, not natural growth exceptions é atribuída a Hilary Clinton no texto em português, apesar de a AFP descrever esta frase como discurso indireto de Obama, na voz de Clinton. 6. A relevância da estranheza Os resultados da análise evidenciam que o plágio jornalístico (que, além de ser proibido, é seriamente punido pelos órgãos mediáticos) não só existe, como é passível de deteção, mesmo em texto que reportam factos. Os casos discutidos revelam que, embora os jornais de referência sejam mais cuidadosos na citação das suas fontes (normalmente, conhecidas agências noticiosas internacionais), a atribuição às fontes originais encontra-se muitas vezes incompleta, é inadequada ou vaga. Nos casos apresentados neste capítulo, por exemplo, o JN não fez qualquer atribuição às fontes, o Público atribuiu a autoria às Agências sem referir quaisquer agências específicas, e a TVI reutiliza o texto original na íntegra, assumindo a autoria como sendo de um dos seus repórteres. Estes atos representam, normalmente, uma violação das normas e das políticas de ética estabelecidas, quando vigentes. Por exemplo, o facto de o Público possuir uma política de ética e instruções claras sobre quando e como citar as fontes não impediu que o jornal publicasse um artigo atribuindo a autoria, de forma vaga, a Agências. Neste sentido, o plágio jornalístico não é muito diferente do plágio académico, excetuando talvez o facto de este último ser praticado por falantes em fase de formação em escrita, enquanto o primeiro é praticado por escritores profissionais. A análise dos textos também mostra que as ferramentas (gratuitas) de tradução automática constituem um bom recurso para testar casos suspeitos de plágio translingue. No caso analisado, o resultado da tradução automática de um artigo insuspeito permitiu selecionar algumas frases, que foram utilizadas de seguida para fazer uma pesquisa na Internet. Depois de descartar as palavras funcionais, focando os itens lexicais, foram encontrados dois artigos publicados em dois órgãos de comunicação social diferentes, com uma probabilidade elevada de decorrerem da mesma fonte. Embora seja possível alegar que a análise contrastiva do texto (suspeito) escrito em língua portuguesa com o texto cuja autoria é atribuída à AFP não é suficiente para sustentar as acusações de plágio, essa análise mostra claramente que a versão portuguesa não foi produzida de forma independente, apesar de não existir uma correspondência exata entre o artigo em português e os

60 60 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? dois artigos em inglês, nem em termos da linguagem utilizada, nem relativamente à ordem de descrição dos factos. Tal sugere que a notícia publicada no jornal português pode ter sido redigida com base em diferentes notícias de media e websites internacionais. 7. Conclusão O trabalho apresentado neste capítulo, apesar de se basear numa análise linguística superficial, defende a conceção de uma nova abordagem à deteção de plágio translingue, cujo potencial foi previamente demonstrado (SOUSA-SILVA, 2014). Este estudo contribuiu para um já extenso volume de investigação realizada ao longo das últimas décadas que demonstra que a linguística forense possui potencial investigativo e probatório em casos de plágio, bem como em casos de violação de direito de autor. De um ponto de vista investigativo, uma análise linguística forense contribui para o desenvolvimento de métodos, ferramentas e procedimentos utilizados na revelação e deteção de casos de plágio. De um ponto de vista probatório, análises linguísticas forenses permitem fornecer provas de que determinada reutilização textual constitui um caso de plágio ou, pelo contrário, que as suspeitas e/ou acusações de plágio são improcedentes. Esta última possibilidade, em particular, é uma área que exige uma análise linguística mais aprofundada, e que se encontra fora do âmbito deste artigo. A natureza forense do plágio foi questionada com frequência sob o pretexto de que inúmeros casos de plágio (como é o plágio académico) não envolverem as instâncias legais ou, pelo menos, não diretamente. De facto, os casos de plágio académico são, maioritariamente, geridos pela academia, do mesmo modo que os casos de plágio jornalístico são tendencialmente geridos pelas organizações de comunicação social envolvidas. Por conseguinte, normalmente (ainda que nem sempre) estes casos são avaliados como uma questão moral, mais do que uma questão legal, e resolvidos fora dos tribunais; porém, o envolvimento dos tribunais em casos de plágio (incluindo académico) não é inédito, sobretudo como recurso de anulação de graus académicos. Contudo, tendo em consideração que as acusações de plágio podem ter sérias implicações na vida do suspeito plagiador, provar ou refutar um caso como plágio pode ser inquestionavelmente relevante, quer nos tribunais, quer fora deles. Assim, o futuro da investigação sobre plágio é prometedor, revelando nitidamente uma ótima oportunidade para investigação interdisciplinar, com potencial de colaboração entre linguistas forenses e juristas, sem esquecer linguistas computacionais e especialistas em ciências da computação. Muito embora se tenham desenvolvido métodos bem fundamentados de investigação linguística sobre plágio, existirá sempre margem para aprofundar essa investigação, não só concebendo novos métodos de análise, mas também adaptando métodos existentes (cuja relevância tem sido demonstrada ao longo do tempo) a novos desafios. A linguística forense computacional

61 Rui Sousa-Silva 61 constitui, definitivamente, uma das áreas que pode contribuir significativamente para a deteção de plágio. Embora os sistemas que utilizam informações de natureza linguística apresentem um bom desempenho, o software de deteção de sobreposição textual produz, muitas vezes, resultados dececionantes. Neste sentido, tal como Maia et al. (2008: 83) defenderam que a colaboração entre linguistas e engenheiros (informáticos) é essencial para a linguística computacional, também aqui se defende que a linguística forense, pela seu caráter, se encontra na posição ideal para promover essa investigação interdisciplinar. Agradecimentos Este capítulo é baseado na investigação realizada no âmbito do meu doutoramento (SOUSA-SILVA, 2013), investigação essa que foi parcialmente apresentada na 9 th International Conference of the IAFL, em Amesterdão, em 2009, e no Congresso da IAMCR, que decorreu em Braga em Este trabalho foi parcialmente apoiado pela bolsa de investigação SFRH/BD/47890/2008 FCT-Portugal, cofinanciada pelo POPH/FSE. Referências ANDERSON, J. Plagiarism, Copyright Violation and Other Thefts of Intellectual Property: An Annotated Bibliography with a Lengthy Introduction. Jefferson, North Carolina & London: McFarland & Company, Inc, 1998 ANGÈLIL-CARTER, S. Stolen language? : plagiarism in writing. Real Language Series. Harlow: Longman, CALDAS-COULTHARD, C. R. ReVEL na Escola: o que é a Linguística Forense? ReVEL, 2014(12) 23. CARROLL, J. What kinds of solutions can we find for plagiarism?. Online, disponível em CARROLL, J. & APPLETON, J. Plagiarism: A Good Practice Guide. Oxford: Oxford Brookes University, COULTHARD, M. & JOHNSON, A. An Introduction to Forensic Linguistics: Language in Evidence. London & New York: Routledge, EIRAS, H. AND FORTES, G. Dicionário de Direito Penal e Processo Penal. Lisboa: Quid Juris, 2010.

62 62 Plágio jornalístico: Uma matéria de linguística forense? FINNIS, J. Intention and side-effects. Capítulo 2 de Liability and responsibility: Essays in law and morals, ed. R. G. Frey & C. W. Morris. Cambridge: Cambridge University Press, 1991 (32 64). GARNER, B. A. Black s Law Dictionary. St. Paul, MN: West, 2009 (9ª ed.). GOLDSTEIN, P. Copyright s highway: from Gutenberg to the celestial jukebox. Stanford: Stanford University Press, HOWARD, R. Plagiarisms, Authorships, and the Academic Death Penalty. College English, 1995(57) 7. HOWARD, R. & ROBILLARD, A. Plagiarisms. Capítulo Plagiarism de Pluralizing Plagiarism: Identities, Contexts, Pedagogies, ed. R. Howard & A. Robillard. Portsmouth: Boynton/Cook, 2008 (1 7). JAMESON, D. A. The Ethics of Plagiarism: How Genre Affects Writers Use of Source Materials. Bulletin of the Association for Business Communication, 1993(56) 2. JOHNSON, A. Textual kidnapping a case of plagiarism among three student texts?. The International Journal of Speech, Language and the Law, 1997(4) 2, LINDEY, A. Plagiarism and originality. New York: Harper & Brothers, MAIA, B.; SOUSA SILVA, R.; BARREIRO, A. & FRÓIS, C. N-grams in search of theories. Capítulo de Corpus Linguistics, Computer Tools, and Applications State of the Art (PALC 2007), vol. 17. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Wien: Peter Lang, PECORARI, D. Academic Writing and Plagiarism: A Linguistic Anaylsis. London: Continuum, PEREIRA, A. L. D. Problemas actuais da gestão do direito de autor: gestão individual e gestão colectiva do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação. Capítulo de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, REUTERS. Reuters Handbook of Journalism. Online, disponível em

63 Rui Sousa-Silva 63 ROBILLARD, A. E. & HOWARD, R. M. Plagiarisms. Capítulo de Pluralizing Plagiarism: Identities, Contexts, Pedagogies, ed. R. M. Howard & A. E. Robillard. Portsmouth, NH: Boynton/Cook, 2008, 1 7. ROIG, M. Plagiarism and Paraphrasing Criteria of College and University Professors. Ethics and Behavior, 2001(11) 3, SCOLLON, R. As a matter of fact: The changing ideology of authorship and respon- sibility in discourse. World Englishes, 1994(13) 1, SCOLLON, R. Plagiarism and ideology: Identity in intercultural discourse. Language in Society, 1995(24), SOUSA-SILVA, R. Detecting Plagiarism in the Forensic Linguistics Turn. Tese de doutoramento, School of Languages and Social Sciences, Aston University, Birmingham, UK, SOUSA-SILVA, R. Investigating Academic Plagiarism: A Forensic Linguistics Approach to Plagiarism Detection. International Journal for Educational Integrity, 2014(10) 1. SOUSA-SILVA, R. Reporter fired for plagiarism : a forensic linguistic analysis of news plagiarism. Oslo Studies in Language, 2015(7) 1. TURELL, M. T. Textual kidnapping revisited: the case of plagarism in literary translation. The International Journal of Speech, Language and the Law, 2004(11) 1, 1 26.

64 3 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos Bruna Batista Abreu e Kátia Eliane Muck Universidade Federal de Santa Catarina Miquéias Rodrigues Universidad Mayor, Santiago, Chile 1. Introdução Existe no meio acadêmico o objetivo de produzir e compartilhar conhecimentos. O labor da pesquisa tem por finalidade alcançar descobertas que proporcionem contribuições para a área de estudo em que cada um atue e divulgá-las. Entretanto, tem-se observado cada vez mais a ocorrência da prática de plágio nesse contexto, o que tem ocasionado discussões e maior preocupação dentro da comunidade acadêmica a respeito de como se lidar com tais situações. Desse modo, é importante salientar que há diferentes contextos em que essas incidências ocorrem, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Além disso, pode-se encontrar plágio em publicações de periódicos, em teses, dissertações, monografias e, também, em trabalhos de disciplinas. As causas que levam o estudante ou o pesquisador a cometer plágio variam enormemente, motivo pelo qual torna-se necessário tratar cada caso de acordo com a abordagem mais apropriada como discutido na seção seguinte. O fato é que diariamente nos deparamos com notícias sobre plágio acadêmico, seja na mídia ou nos corredores das universidades. De um lado estão os alunos, que geralmente são desinformados sobre o assunto, enquanto que do outro lado estão os professores, que somam às suas atividades corriqueiras a nova tarefa de detectar plágio. Também é fato que o avanço da tecnologia tem possibilitado o desenvolvimento e aperfeiçoamento de programas de computador que facilitaram a identificação de indícios 64

65 Bruna Batista Abreu 65 de existência de plágio. Sob tal ponto de vista, identificar plágio tem ficado cada dia mais fácil, mas plagiar também muitas vezes bastando apenas o uso das opções copiar e colar. A produção intelectual mundial está a um clique de distância de qualquer um com acesso à internet. Isso tem mudado nossa maneira de produzir, consumir e distribuir conhecimento. Consequentemente, essa nova prática social exige uma adequação das práticas pedagógicas. Considerando a importância de tal assunto, a presente investigação tem por objetivo documentar e revelar de que forma duas instituições de ensino superior, uma no Brasil e outra no Chile, lidam com o plágio acadêmico, e qual o nível de conhecimento dos alunos e professores acerca da existência das regras sobre plágio ou da falta delas. Este estudo inclui e parte de um outro estudo desenvolvido por Abreu & Coulthard (2014) apenas investigando as percepções dos alunos de pós-graduação da mesma instituição brasileira ora investigada. Abreu & Coulthard (2014) basearam sua investigação numa sugestão de Coulthard & Johnson (2007, p. 197) 1. Este capítulo está organizado em quatro seções, além desta introdutória. A primeira seção, revisão de literatura, apresenta uma breve exposição de alguns dos aspectos do tema, indicando algumas complexidades inerentes ao assunto. A segunda seção, aspectos metodológicos, descreve os participantes, os materiais e os procedimentos utilizados para coleta e análise dos dados. A terceira seção, resultados e discussão, relata os resultados dessa investigação e contrasta as respostas dos participantes nas duas instituições. Finalmente, a conclusão apresenta algumas considerações finais advindas da pesquisa juntamente com sugestões e reflexões para o desenvolvimento de novas práticas pedagógicas. 2. Revisão de Literatura Nesta seção apresentamos um breve panorama do tema, destacando alguns aspectos que se mostram mais relevantes para o presente trabalho. Sabe-se que um dos requisitos dentro do gênero acadêmico é o de embasar-se teoricamente em outros autores para o desenvolvimento do próprio trabalho. Nesse contexto, plágio pode ser definido como o roubo, ou uso não admitido de um texto criado por outro 2 (COULTHARD & JOHNSON, 2007, p. 187). Sendo assim, é legítimo utilizar o texto de outro dentro do próprio, desde que devidamente citado, utilizando-se marcadores convencionados por normas pré-estabelecidas. No Brasil, por exemplo, costuma-se adotar as regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Entretanto, algumas 1. Gostaríamos de expressar nossa gratidão aos professores Coulthard e Figueiredo, que ministraram uma disciplina sobre linguagem e direito da qual as duas autoras participaram como alunas, pelas valiosas contribuições oferecidas para o questionário originalmente utilizado na pesquisa de Abreu e Coulthard (2014). 2. Nossa tradução para: the theft, or unacknowledged use, of text created by another.

66 66 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos instituições adotam outras, como as da American Psychological Association (APA) ou da Modern Language Association (MLA). Independentemente do modelo escolhido pela instituição ou pela revista, o objetivo da utilização das normas é padronizar as citações e referências por meio de convenções, ou seja, procedimentos que sejam de comum entendimento entre todos, estando acessíveis para consulta. Por estar diretamente ligado à produção científica, o meio acadêmico difere, por exemplo, de textos jornalísticos, especialmente por lidar com conhecimentos de natureza mais duradoura e advinda de um intenso labor de pesquisa. Conforme mencionado por Coulthard (2007, p. 185), as convenções nos ramos do conhecimento divergem no modo de olhar o problema, pois algumas desaprovam o plágio mais do que outras jornalistas aparentemente se sentem na condição de tomar emprestados pedaços inteiros de textos sem atribuição alguma de autoria, enquanto que acadêmicos se sentem muito ansiosos em ter todas as fontes devidamente citadas 3. Por haver uma construção conjunta do conhecimento em determinada área dentro da academia, deve-se partir do que já tem sido realizado de modo a acrescentar as próprias contribuições, destacando e valorizando todos os trabalhos. Além disso, os interesses que permeiam produções textuais acadêmicas não se restringem a objetivos financeiros. Como destacado por Krokoscz (2014, p. 94), autores acadêmicos são caracterizados não pelo interesse financeiro ou obtenção de vantagens materiais, mas pela conservação de sua reputação, credibilidade e reconhecimento atribuído pelos pares devido à contribuição dada à edificação do conhecimento. Portanto, a inclusão de outras vozes no próprio texto não desmerece o próprio trabalho ao contrário, garante maior credibilidade a este. Considerando isso, apesar de em diversos casos tratar-se de uma conduta antiética, plágio pode indicar principalmente falta de maturidade acadêmica e desconhecimento acerca da importância da presença de outros textos no próprio para se obter suporte e o ponto de partida para novos avanços. 3. Nossa tradução para: The conventions of individual disciplines cross-cut the problem, because some frown on plagiarism more than others journalists apparently feel able to borrow large chunks of text with no attribution at all, whereas academics are ever more anxious to have every source acknowledged.

67 Bruna Batista Abreu 67 Entretanto, as causas que na maior parte dos casos podem levar um aluno a incorrer em plágio vão além de questões éticas. Pelo contrário, por conta da falta de conhecimento sobre as normas de citação e de maior habilidade em escrita acadêmica, muitos acabam plagiando de forma não intencional. Conforme ressaltado por Howard (1995, p. 797), o aspecto moral não é necessariamente um componente do plágio, e desconhecimento em citação não é a única alternativa fora disso. Uma terceira possibilidade, raramente reconhecida, é que os alunos podem ter motivos louváveis (ênfase do autor) para se envolverem em patchwriting 4, uma estratégia textual comumente classificada como plágio. 5 É importante que ocorrências de plágio dentro do contexto educacional sejam observadas mais detidamente e que seja levado em conta o histórico do aluno bem como seu estágio dentro do processo de aprendizagem em escrita acadêmica. Considerando a necessidade de prevenir plágio entre seus alunos, algumas instituições disponibilizam guias de escrita acadêmica bem como as normas de citação e referência adotadas pelo programa de ensino. Além disso, universidades no Reino Unido, por exemplo, contam com uma ampla estrutura institucional para lidar com plágio. Entretanto, tem-se investigado de que forma tais abordagens são feitas bem como a eficácia das medidas adotadas 6. Por outro lado, as instituições pesquisadas no Brasil e no Chile nem sequer possuem documentos ou guias de orientações para evitar o plágio até o momento. As ações preventivas são realizadas em sala de aula pelos próprios professores, especialmente nas disciplinas de escrita acadêmica. Nessas oportunidades os alunos são orientados acerca de como usar as normas para citação e referências em seus textos e conscientizá-los acerca da importância de se respeitar tais procedimentos. Apesar disso, tem-se encontrado nos dois programas de ensino investigados alunos incorrendo em plágio em trabalhos de aula (especialmente na graduação, onde este tipo de 4. Patchwriting é um termo cunhado por Howard, que descreve a prática escrita utilizada por alunos em processo de aprendizagem em escrita acadêmica. De modo geral, trata-se de montar um texto valendo-se de diversos fragmentos de outras fontes. 5. Nossa tradução para: Since paraphrasing consists largely of the student s own words, that writing is considered to belong to them and thus is presented within the student text absent any citation. 6.Com este objetivo, a pesquisa de doutoramento da primeira autora deste trabalho tem sido desenvolvida.

68 68 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos atividade é mais recorrente), artigos finais de disciplinas e até mesmo em trabalhos de conclusão de curso, teses e dissertações. Além da importância fundamental de medidas preventivas, tem-se observado também a necessidade de a instituição possuir as próprias regras e até mesmo uma legislação específica para tratar casos de plágio o que não ocorre nas instituições pesquisadas no presente estudo. Isso acontece porque apesar de sua relação com as leis de direitos autorais, existem outros fatores no plágio acadêmico que o diferenciam da violação de tais direitos de forma geral. Apesar de em alguns casos a interferência de tais leis se fazer necessária (como plágio em teses e em publicações de periódicos), incidências dentro da instituição de ensino devem ser abordadas sem se perder de vista o objetivo principal que deve reger os ambientes educacionais: a formação educacional do indivíduo, a qual inclui o desenvolvimento das habilidades em escrita acadêmica. Finalmente, um último aspecto importante que mencionamos sobre o tema diz respeito às famigeradas ferramentas de detecção. Como já apontado por Sousa-Silva (2014, p. 40), tais recursos, embora possam auxiliar na identificação de similaridades textuais, apresentam limitações na detecção de outros tipos de cópia. Desse modo, o software por si só não é capaz de avaliar se há plágio no texto, pois paráfrases, traduções, entre outras estratégias comumente utilizadas, não são detectadas, o que requer o olhar de um profissional qualificado. Nas palavras de Sousa-Silva (2014), [a]s análises e relatórios advindos dos sistemas de detecção podem ser interpretados com a assistência da análise da linguística forense, para que, por um lado, falsas suspeitas sejam descartadas e, ao mesmo tempo, sejam descobertas instâncias ocultas, não encontradas por tais sistemas. 7 (p. 40) Além disso, tais programas detectam quaisquer similaridades textuais, o que inclui trechos que são devidamente citados e que, portanto, não configuram plágio. Sendo assim, é importante aliar o uso do sistema de detecção à análise feita por um ser humano, que pode ser o próprio educador ou, especialmente em casos mais complexos, com o suporte de um especialista em linguística forense. Após a exposição deste breve panorama sobre plágio, a seção seguinte apresentará a descrição dos aspectos metodológicos que guiaram este estudo. 7. Nossa tradução para: the analyses and the reports provided by detection systems can be interpreted with the assistance of a forensic linguistic analysis, so as to discard false positives, on the one hand, while at the same time unveiling hidden true positives that may have been missed by the detection systems.

69 Bruna Batista Abreu Aspectos metodológicos Para cumprir o objetivo dessa investigação, que é revelar o conhecimento de alunos e professores acerca das definições de plágio bem como das regras relacionadas a tal prática em suas instituições, estabelecemos os seguintes aspectos metodológicos descritos neste seguimento: os participantes da investigação, e os materiais e os procedimentos utilizados para coleta e análise de dados. 2.1 Participantes Os participantes são alunos e professores de um curso de pós-graduação de uma universidade pública brasileira e alunos de graduação e seus professores de outra instituição de ensino superior chilena. No que se refere aos participantes da universidade brasileira, eles são professores, alunos e ex-alunos de curso de mestrado e doutorado de um programa de pós-graduação voltado às áreas de língua e literatura inglesas. Responderam ao questionário 2 professores e 21 alunos e ex-alunos. Importa ressaltar que os dados dos participantes alunos e ex-alunos foram extraídos de Abreu & Coulthard (2014). No tocante aos participantes da instituição chilena, eles são alunos e professores do curso de graduação em pedagogia em inglês. No total, responderam ao questionário, 4 professores e 16 alunos. A escolha dessas duas instituições ocorreu em decorrência do acesso dos pesquisadores aos programas dessas universidades, e devido à disponibilidade dos mesmos em encaminhar o convite de participação aos alunos e professores. A participação de todos ocorreu de forma confidencial, anônima, voluntária e consentida para uso dos dados de maneira específica na apresentação em uma conferência de Linguística Forense no Brasil e na publicação resultante desta conferência. 2.2 Materiais Os materiais empregados para a presente investigação foram o estudo desenvolvido por Abreu & Coulthard (2014) e dois tipos de questionários em língua inglesa, um aplicado aos alunos da instituição chilena (Anexo 1), e outro aos professores de ambas instituições (Anexo 2). O trabalho desenvolvido por Abreu & Coulthard (ibid) investigou o conhecimento de alunos de um curso de pós-graduação acerca do plágio. Alguns dos participantes haviam recentemente deixado o programa, e outros ainda estavam cursando. Observou-se da parte deles desconhecimento acerca das normas do programa para se lidar com casos de plágio, o que de fato decorre da ausência

70 70 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos de tais normas bem como de maiores informações por parte do programa a respeito da abordagem do assunto plágio. O questionário aplicado aos alunos da instituição de ensino superior chilena (Anexo 1) seguiu o modelo utilizado por Abreu & Coulthard (2014), com mínimas adaptações. Uma delas foi a inclusão de uma pergunta específica para revelar a fase do curso em que o aluno se encontra. Outra adaptação ocorreu na forma de coletar os dados. Enquanto Abreu & Coulthard (2014) enviaram os questionários por , obtendo, também, as respostas por , optamos por elaborar o questionário online utilizando a ferramenta Form do Google Drive ( Esse aspecto metodológico garantiu tanto a confidencialidade dos participantes, como já garantida por Abreu & Coulthard (2014), quanto a anonimidade dos mesmos. Em outras palavras, enquanto os pesquisadores acima citados conheciam a identidade dos respondentes, nós desconhecemos a identidade dos respondentes dos questionários online, fato que pode fazer com que aumente o número de respondentes em pesquisas. Sendo assim, esse questionário é composto pela questão do perfil e por mais seis questões que respondem essa pesquisa. A questão referente ao perfil é de múltipla escolha, onde os alunos deveriam indicar qual a fase do curso que estavam cursando. Dentre as outras seis questões, que buscam investigar o que os alunos sabem tanto sobre plágio quanto sobre como a instituição onde estudam lida com o assunto, cinco são abertas e uma é de múltipla escolha. Dependendo da resposta a essa questão de múltipla escolha, os alunos poderiam responder mais quatro questões abertas. O questionário aplicado aos professores de ambas as instituições (Anexo 2) também foi baseado no questionário desenvolvido por Abreu & Coulthard (2014), contando com quatro questões: duas abertas e duas de múltipla escolha, sendo que uma destas últimas foi subdividida em mais questões abertas, que deveriam ser respondidas dependendo da resposta à questão de múltipla escolha. Esse questionário também foi elaborado num espaço online, da mesma forma descrita acima sobre o questionário aplicado aos alunos. Ambos questionários foram desenvolvidos na língua inglesa por duas razões. Primeiramente, tínhamos o intuito de manter o questionário o mais próximo possível do empregado por Abreu & Coulthard (2014), visto que contrastar os resultados é parte integrante do objetivo da nossa pesquisa. O outro motivo é que os resultados, inicialmente, seriam divulgados em língua inglesa e poderíamos apresentar as respostas originais dos participantes, sem traduções. Todavia, o melhor meio de divulgação mostrou-se ser em língua portuguesa e as traduções fizeram-se necessárias. Importa mencionar que, mesmo que os questionários tenham sido distribuídos em língua inglesa, não havia nenhuma exigência de que eles devessem ser respondidos nessa língua. Todos os participantes conheciam ao menos um dos

71 Bruna Batista Abreu 71 pesquisadores e sabiam da proficiência dos mesmos nas línguas portuguesa, espanhola e inglesa. Além disso, todos os participantes eram proficientes em inglês, pois era uma exigência para pertencer aos programas. 2.3 Procedimentos para coleta e análise dos dados Foram utilizados dois procedimentos para coleta dos dados nesta investigação: os resultados do trabalho de Abreu & Coulthard (2014) para fins de comparação; e a coleta de dados por meio de dois questionários online, um para os alunos da instituição chilena, e outro para os professores de ambas as instituições. Os pesquisadores enviaram s aos grupos de específicos de cada instituição e de cada grupo de participantes (professores e alunos) convidando-os a participar desta pesquisa. O identificava os pesquisadores, fornecia seus contatos, ressaltava a importância da participação e fornecia o link de acesso ao questionário apropriado. Apesar de os questionários terem preservado a confidencialidade e anonimidade dos participantes, conforme mencionado anteriormente, obtivemos uma participação modesta, principalmente em relação à quantidade de professores das duas universidades. Além disso, estamos cientes de que buscamos dados de um curso de graduação em uma instituição e dados de um curso de pós-graduação em outra instituição. Essa foi uma escolha metodológica que objetivava revelar um cenário mais amplo sobre a abordagem do plágio, já que estávamos impossibilitados de pesquisar ambos universos em ambas universidades. Todavia, não consideramos tais fatos como limitações deste estudo, uma vez que o objetivo é revelar a necessidade de investigar e documentar a percepção e a prática em relação ao plágio acadêmico. No que se refere aos procedimentos para análise de dados, a presente pesquisa é de enfoque qualitativo. As análises, portanto, foram feitas a partir das respostas oferecidas nos questionários. Ryan (2006) diz que devemos analisar os dados em vez de apenas deixar que eles falem por eles mesmos. A autora explica que os dados brutos, que aqui seriam as respostas de cada participante, não nos dizem nada. É necessário, segundo ela, que os dados brutos passem pelo processo de análise para que eles façam algum sentido, constituindo o que chamamos de resultados de pesquisa (RYAN, 2006, p. 92). Posto isso, para que os dados brutos passassem a revelar algum significado, eles foram primeiramente classificados nas seguintes categorias pré-estabelecidas por Abreu & Coulthard (2014): definição de plágio; conhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio; conhecimento das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio; conhecimento de casos envolvendo plágio na instituição; e opiniões e sugestões sobre punições por plágio. Em seguida, dentro de cada uma dessas categorias, as respostas foram organizadas por afinidade originando subcategorias que

72 72 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos surgiram dos dados. Por fim, os resultados foram contrastados a fim de revelar o retrato do universo pesquisado. Ainda, na fase de escritura deste capítulo, os excertos escolhidos para exemplificar os resultados apresentados na próxima seção foram traduzidos para o português. 4. Resultados e discussão Para apresentar os resultados de maneira organizada, esta seção os abordará seguindo a categorização de Abreu & Coulthard (2014), na seguinte sequência: (3.1) definição de plágio; (3.2) conhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio; (3.3) conhecimento das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio; (3.4) conhecimento de casos envolvendo plágio na instituição; e (3.5) opiniões e sugestões sobre punições por plágio. Além disso, cada subseção apresenta instâncias textuais dos dados advindos das respostas dos participantes. 3.1 Definição de plágio Em suas respostas, os alunos da instituição chilena demonstraram conhecer a definição de plágio, como nos exemplos abaixo. Eles advertem saber como utilizar-se de textos de livros, ideias, fotografias, trabalhos, entre outros, de outras pessoas, o que corrobora os resultados de Abreu & Coulthard (2014) 8 : Plágio é quando você usa mesmas ideias, frases, pensamentos, fotografias, etc. como se eles fossem seus, mas eles pertencem a outra pessoa. Plágio é a cópia da ideia de outra pessoa, ele pode ser relacionado com seu trabalho, dever de casa, artigo, entre outros. Eu definiria como a ação de tomar a ideia de outra pessoa usando-a como se fosse originalmente nossa O roubo de ideias Dizer que eu inventei algo que foi inventado por outra pessoa. 8. Todas as evidências textuais foram traduzidas do original respondido pelos participantes, em inglês.

73 Bruna Batista Abreu 73 Tomar as ideias de outros usando-as como se elas fossem nossas próprias ideias, tanto em discursos escritos quanto orais. Diferentemente de Abreu & Coulthard (ibid), muitos alunos evidenciaram, em suas definições de plágio, como se tratando de uma apropriação em que não se referencia a autoria, como se pode observar nos seguintes excertos: Eu definiria plágio como o ato de copiar exatamente o mesmo que eu li num artigo ou livro, e não escrever a fonte ou autores desses textos. É importante enfatizar que se eu copio alguma informação de um livro e não escrevo o autor, o documento será meu, e isso é plágio; pelo fato de eu estar roubando as ideias de outras pessoas. Como o ato de usar material criado por outro autor, sem o citar de forma apropriada de modo a mostrar que o material usado foi criado por aquele autor, e não por nós. Quando você usa as ideias de alguém sem mencionar o autor. Entretanto, mais uma vez corroborando os resultados de Abreu & Coulthard (ibid), nenhum aluno mencionou como sendo plágio a apropriação de ideias e textos de autoria própria em trabalhos anteriores. Pode-se dizer que para estes participantes plágio é visto apenas como tal quando ocorre a apropriação de algo cuja autoria é de outra pessoa. Em relação aos professores da instituição chilena, dois participantes responderam que plágio envolve o fornecimento de informação sem referenciá-la propriamente. Outro participante definiu plágio como o processo de copiar e colar, e o quarto respondeu que plágio significa a obtenção de lucro intelectual de outro trabalho, sem autorização. Em relação a universidade brasileira, ambos os professores respondentes definiram plágio como o uso de ideias de outros sem referenciar. 3.2 Conhecimento sobre as regras da instituição acerca de plágio Com exceção de um aluno, que disse não saber das regras sobre plágio porque não havia informações sobre isso nem mesmo na página da internet da universidade, todos os demais disseram conhecer as regras sobre plágio existentes na instituição chilena, como mostram alguns excertos, que seguem: Se um professor de qualquer disciplina descobre que você cometeu plágio em um

74 74 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos documento, ele ou ela pode te dar a nota mínima (1.0). Por outro lado, se ele considera importante, ele ou ela pode deixar a cargo dos superiores da faculdade ou da universidade e eles podem adotar punições mais fortes. Se um aluno é pego fazendo plágio ele ou ela vai ter a nota mínima numa média final de disciplina. Se um aluno plagiou algo, os professores são autorizados a colocar a nota mínima. Na universidade casos de plágio são penalizados pela nota mínima, então isso é proibido. Na instituição brasileira, de acordo com Abreu & Coulthard (2014), os dados mostraram que os alunos parecem não dominar as regras do programa sobre plágio ou não ter certeza quanto às sanções. Entretanto, assim como observado na instituição chilena, um dos motivos é a ausência de uma divulgação mais ampla dessas informações e até mesmo de uma legislação específica para o estabelecimento formal de tais regras. Quando perguntados se foram explicitamente informados sobre as normas da universidade sobre plágio, as respostas parecem discordar umas das outras, conforme apresentado na Tabela 1. Possivelmente tal contradição advém da incerteza de tais regras, visto que inexiste uma legislação oficial dentro da instituição, restringindo tais informações ao que os professores orientam a respeito. Tabela 1: Recebimento de informação sobre regras da universidade acerca de plágio (alunos chilenos). Recebimento de informação # alunos Percentual Sim 9 56,25 Não 5 31,25 De alguma forma 1 6,25 Não respondeu 1 6,25 TOTAL Como demonstrado, 56,25% dos alunos afirmam terem sido informados das regras da universidade sobre plágio, enquanto que 31,25% afirmam que não receberam nenhum tipo de informação. O participante que disse que recebeu informação de alguma forma afirma que fizeram um módulo sobre

75 Bruna Batista Abreu 75 regras de APA, mas que ninguém ofereceu exemplo sobre algo com plágio, conforme excerto abaixo: Existe um módulo na nossa disciplina principal em que somos ensinados sobre as normas do APA; entretanto, ninguém nos disse que tipo de artigo seria plágio para que tivéssemos um exemplo. Todos os professores respondentes da universidade do Chile conhecem as regras sobre plágio do seu departamento, segundo suas respostas. Além disso, eles informaram que as regras não são institucionais, mas que são decididas dentro do departamento ou pelos próprios professores, que estabelecem tais regras para as disciplinas que lecionam. Da mesma forma, os professores da universidade brasileira também afirmaram conhecer as regras sobre plágio. Um dos participantes respondeu que são as mesmas regras utilizadas em qualquer outro contexto, sem especificar que regras seriam essas. O outro participante respondeu que as regras seguidas são as estabelecidas pelas normas técnicas de padronização de citações e referências. Nesse sentido, observa-se um descompasso entre o conhecimento de alunos e professores sobre as regras. Enquanto estes afirmam conhecê-las, os alunos não se mostram certos a respeito. Pode-se constatar que o motivo pelo qual os professores sabem das regras é o fato de que aparentemente são eles quem as ditam. Os alunos, por outro lado, além de não poderem participar de tais decisões, não possuem acesso formal a tais regras que, pelo observado, não parecem ser oficiais. 3.3 Conhecimento das penalidades para quem descumpre as regras sobre plágio Quando indagados se a violação das regras estabelecidas pelo curso levam a uma punição, os alunos da universidade do Chile, em sua maioria (15 dentre os 16 participantes) responderam afirmativamente. Houve apenas um participante que admitiu não saber sobre isso. Contudo, em seguida, quando perguntados se conheciam quais eram as penalidades, as respostas foram confusas. Muitos alunos afirmaram saber que a punição para quem pratica plágio é a nota mínima que é, no caso dessa instituição, 1 (um). Seguem alguns exemplos: Como eu disse antes, nós somos punidos com a nota mínima, sem chance de reclamar disso. Você tira 1. A nota mínima (1.0).

76 76 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos Geralmente você tira a nota mínima, 1.0. Outros alunos apenas informaram que recebem a nota mínima, mas não disseram explicitamente conhecer quanto ela vale: A nota mínima na media final da disciplina. Se alguém é pego fazendo plágio de um material escrito, esta pessoa recebe a nota mais baixa possível. Além disso, mostra-se relevante observar a informação nova abordada pelo aluno: a nota mínima é na média final. Parece que essa notícia não é compartilhada pelos outros alunos, já que ninguém mais comentou sobre esse detalhe. Ainda, alguns alunos listaram outras sanções, como a expulsão do curso, atribuição de notas menores, cancelamento de matrícula e atribuição de nota zero, com risco de prisão. Todavia, tais informações não foram confirmadas pela universidade como procedimentos adotados: A expulsão do curso Eu acho que a penalidades na universidade é a atribuição uma nota ruim para a pesquisa Alunos tiram notas baixas. Num caso extremo, você, como aluno, sua matrícula pode ser cancelada e, se isso acontece, você não pode entrar novamente na universidade em qualquer curso. Ser avaliado com zero, eu entendo agora que no Chile você pode ir a prisão por plágio. Quando os alunos foram perguntados se existem níveis de plágio, 6 responderam que não, 6 responderam que não sabiam dessa informação e 3 responderam que sim, embora estes últimos não soubessem qual seria esse nível, como expresso abaixo: Sim, eu acho que depende do tipo de documento que você está plagiando, porque é diferente plagiar um documento de três páginas de um seminário valendo nota.

77 Bruna Batista Abreu 77 Eu acho que a sanção depende do grau, mas eu não sei como isso é medido. Os mesmos resultados de informações confusas e desencontradas entre os alunos foi observado também no estudo de Abreu & Coulthard (2014). Há algumas possíveis explicações para tais divergências, sendo que uma delas, conforme já ressaltado, deve-se à ausência de divulgação formal por parte da instituição e até mesmo de políticas específicas para lidar com plágio. Entretanto, os participantes parecem se sentir intimidados de declarar que desconhecem tais regras resposta esta que seria legítima, considerando que elas não existem oficialmente. Como eles são cientes de que plágio é tratado como um erro grave e muitas vezes até como um crime dentro da academia, deduziram que há punição e, assim, confiaram em suas próprias opiniões acerca dos procedimentos, que nem sempre coincidiram com o que é em realidade adotado. No que respeita aos professores, três dos professores da universidade chilena responderam que a violação às regras de plágio levam a penalidades, enquanto um respondeu que não. Quando indagados sobre quais eram as penalidades, todos os 3 que responderam afirmativamente relataram que era a atribuição de nota 1. Além disso, um deles citou o uso do programa de computador chamado Viper, que é utilizado para averiguar se os trabalhos contém plágio, sendo que o percentual de cópia acima de 20% é considerada plágio, segundo este participante. Por outro lado, tais penalidades parecem não estar bem definidas, pois quando foram questionados se a penalidade é atribuída de acordo com o nível de plágio, suas respostas diferiram um pouco entre si e entre as oferecidas anteriormente. Enquanto um deles disse que se há detecção acima de 20%, dá-se nota 1, o outro assinalou 10% como suficiente para o aluno receber essa nota. O terceiro respondente disse que qualquer plágio é punido, sem especificar. Em relação aos professores da universidade brasileira, todos responderam que a violação às regras de plágio levam a penalidades, como cancelamento do diploma, segundo um respondente, e, segundo o outro, tais medidas são decididas por professores e autoridades, pois não há regras ou legislação específica para esse assunto. Diferentemente dos professores da universidade do Chile, os brasileiros afirmam que não sabem ou acreditam não existir níveis de plágio. 3.4 Conhecimento sobre casos envolvendo plágio na instituição Sobre conhecimento de casos envolvendo plágio na instituição, o resultado geral das respostas dos alunos da universidade do Chile foi parecido com o resultado encontrado por Abreu & Coulthard (2014). Parte dos alunos

78 78 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos chilenos mostrou não ter conhecimento de casos de plágio no seu curso, a saber 7 respondentes, e 6 alunos responderam que conhecem casos de plágio, como excertos abaixo demonstram: Sim. Eu soube de alguns colegas que tiraram a nota mínima em importantes trabalhos escritos, e que a medida envolveu se dar mal nas disciplinas. Eu ouvi de alguém sendo pego por ter feito uso do trabalho de outra pessoa. Essa pessoa recebeu a nota mais baixa possível. Fui informada de uma situação. Meu professor de linguística nos contou que ele havia punido um grupo de alunos porque eles tinham feito plágio em seus ensaios. Ele disse que havia diminuído as notas deles, mas eu acho que ele foi um pouco simpático. Em relação aos professores, todos os respondentes de ambas universidades disseram conhecer casos de plágio na universidade em que trabalham. Entretanto, não foi relatado a forma como foram tratados. 3.5 Opiniões e sugestões sobre punições por plágio Os respondentes alunos da universidade do Chile, quando convidados a oferecer opiniões e sugestões sobre punições por plágio, deram respostas diversificadas. Três deles responderam que não mudariam nada nas punições que são aplicadas atualmente. Um respondente disse não ter opinião formada sobre o assunto. Os demais tiveram as mais variadas respostas, dentre elas a sugestão de que esse assunto já seja abordado na escola, antes de entrar para a faculdade e assim que ingressassem na universidade, como evidenciado em algumas das respostas abaixo: Acho que é algo que tem que ser enfrentado durante os tempos de escola. Alunos tem que ser ensinados desde quando estão na escola que plágio é ruim, como roubar ou colar numa prova. Eu acho que é importante estabelecer as regras desde o começo, assim que os alunos chegam na universidade. Eu acho que muitos alunos não são totalmente familiarizados com plágio, eles não sabem o que é, nem até que ponto é errado. Eu acho que os alunos deveriam ser ensinados sobre

79 Bruna Batista Abreu 79 o que é plágio e também como citar de forma correta. Isso deveria ser resolvido durantes os anos de ensino médio. Em relação às mudanças que fariam, os professores da universidade do Chile responderam que ensinariam os alunos, desde cedo, como parafrasear e citar de maneira correta. Além disso, estabeleceriam regras claras em caráter institucional como maneira de evitar problemas, já que pensam que em muitos dos casos os alunos não sabem que estão cometendo plágio. Na instituição brasileira, um dos professores sugeriu que a coordenação do curso alerte os alunos para a seriedade do assunto e informe sobre a facilidade de como o plágio pode ser detectado. O outro professor participante sugeriu que uma legislação clara seja estabelecida em nível institucional. Tais sugestões, tanto de alunos quanto de professores, parecem atender a uma necessidade de abordar o assunto de plágio com mais precisão e de informar regras precisas aos alunos assim que ingressarem nos cursos. 5. Conclusão Os resultados encontrados na pesquisa com alunos chilenos apresentam muitos aspectos em comum com os advindos da realizada com alunos brasileiros. Os níveis de escolaridade dos participantes alunos (no Chile, um curso de graduação, e, no Brasil, um curso de pós-graduação) não motivou divergências significativas em relação ao entendimento dos participantes sobre o que é plágio e a incerteza quanto a falar a respeito das sanções dentro da instituição para infrações. Tais evidências podem demonstrar certa semelhança entre as instituições brasileira e chilena, visto que foi possível observar em ambas a ausência de políticas para prevenção e procedimentos oficiais para abordar casos de plágio. Foi identificado, ao invés disso, a existência de algumas medidas estabelecidas pelo corpo docente, como a atribuição da nota 1 e utilização de um software para auxiliar na detecção de similaridade textual no Chile, e expulsão ou perda de título no Brasil. Em decorrência disso, exceto nos casos em que os professores alertam em suas aulas, não há divulgação de informações a respeito nem um guia para fornecer orientações sobre como evitar o plágio. Apesar de estarem lidando com níveis diferentes, ambas as instituições carecem de políticas antiplágio e de recursos pedagógicos que viabilizem os meios com os quais os alunos possam obter informações mais precisas acerca do tema e de como evitar plágio em suas produções intelectuais. Os conhecimentos dos professores das duas instituições divergem dos conhecimentos de seus alunos no que se refere ao entendimento das regras de plágio de seus departamentos. Tal fato revela a necessidade de estabelecer um canal comunicativo entre professores e alunos, possivelmente, no

80 80 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos sentido de definir regras tanto para evitar o plágio quanto para a punição aos que o cometem, uma vez que ambas instituições não possuem direcionamentos oficiais acerca do assunto. Como sugerido por um participante aluno, o ensino médio parece ser um momento adequado para expor o aluno à definição de plágio. Segundo Buckley (2015), a transição desta etapa escolar para a universidade é um momento marcado por uma série desafios para o aluno novo (p. 352) 9 e o peso do plágio acaba aumentando a carga das novas tarefas nessa nova fase. Atualmente, o ensino médio tem sido um contexto onde a prática vigente de certa forma induz o desenvolvimento de atividades em que os alunos ficam mais propensos a cometer plágio, como no caso das famigeradas pesquisas que os alunos precisam fazer sobre determinado assunto e apresentar ou entregar na próxima aula. O aluno conduz uma procura sobre o assunto na internet, copia e cola vários trechos que julga interessante, entrega o trabalho e ainda recebe uma avaliação alta. Esse mesmo aluno, de um momento para o outro, muda de contexto, saindo do ensino médio e entrando na universidade. Contudo, ele continua atuando como aluno do ensino médio no que concerne produção escrita, pois essa é a única prática social que ele conhece. Ou seja, esse aluno desenvolverá trabalhos da mesma maneira que vinha desenvolvendo, com a diferença de que em vez de receber uma avaliação positiva, agora alguém o avisará que ele está cometendo um crime. Buckley (2015) sintetizou muito bem o que acontece com os alunos nesta fase de transição quando eles parafraseiam: Como a paráfrase consiste em grande parte de palavras próprias do aluno, tal escrita [a paráfrase] é considerada pertencer a eles e, portanto, é apresentada no texto do aluno ausente de qualquer citação. Todavia, onde o tutor vê plágio, o aluno vê suas palavras, uma parte legítima da escrita acadêmica. 10 Portanto, seja no ensino médio ou no primeiro ano de graduação, faz-se necessária a inclusão formal da abordagem do tema plágio no currículo. Entendemos, também, que tal abordagem deve evitar o discurso ameaçador em torno do tema e focar no desenvolvimento de habilidades de escrita para que o aluno possa estar devidamente informado e tenha, inclusive, capacidade de escolher entre assumir uma postura ética ou cometer um crime (de plágio). Afinal de contas, como afirma Pithan & Vidal (2013, p. 78), o plágio trata-se de uma questão ética, antes do que jurídica. É de grande 9. Nossa tradução para: marked by a series of challenges for the new student. 10. Nossa tradução para: Since paraphrasing consists largely of the student s own words, that writing is considered to belong to them and thus is presented within the student text absent any citation.

81 Bruna Batista Abreu 81 importância a função educativa da universidade para o desenvolvimento de pesquisas científicas com integridade ética. Finalmente, este trabalho objetivou trazer à tona o conhecimento de alunos e professores a respeito de plágio e das sanções que tal prática acarreta nas instituições em que pertencem. Espera-se, com este estudo, trazer contribuições para futuros trabalhos que investiguem questões de plágio bem como aspectos relacionados com o meio educacional e contraste de culturas entre países. 6. Referências ABREU, B. B. & COULTHARD, R.M.: Plagiarism in the academic context: an investigation of PPGI students awareness of the problem. Echoes: Reflections on Language and Literature. Organizadores: Celso Henrique Soufen Tumulo, Magali Sperling Beck e Malcolm Coulthard. Programa de Pós-Graduação em Inglês UFSC: Florianópolis, Disponível em Acesso em 19 de novembro de BUCKLEY, C. Conceptualizing plagiarism: using Lego to constructo students understanding of authorship and citation. Teaching in Higher Education, Vol. 20, No. 3, março, 2015, p COULTHARD, M. & JOHNSON, A. An Introduction to Forensic Linguistics: Language in Evidence. London: Routledge, HOWARD, R. M. Plagiarisms, Authorships, and the Academic Death Penalty. College English, Vol. 57, No. 7, novembro, 1995, p KROKOSCZ, M. Em outras palavras: análise dos conceitos de autoria e plágio na produção textual científica no contexto pós-moderno. Tese de doutorado. USP: São Paulo, PITHAN. L.H; VIDAL, T.R.A. O plágio acadêmico como um problema ético, jurídico e pedagógico. Direito & Justiça. Vol. 39, No 1, jan/jun 2013, p Disponível em article/viewfile/13676/9066 Acesso em 16 de março de RYAN, A.B. Methodology: Analysing Qualitative Data and Writing Up Your Findings. In: Antonesa, M., Fallon, H., Ryan, A.B., Ryan, A., Walsh, T. and L. Borys (eds.) Researching and Writing your Thesis: a guide for postgraduate students, MACE: Maynooth, Disponível em eprints.maynoothuniversity.ie/871/1/methodology.pdf Acesso em 16 de março de 2015.

82 82 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos SOUSA-SILVA, R. Investigating academic plagiarism: a forensic linguistics approach to plagiarism detection. International Journal for Educational Integrity. Vol. 10, No 1, junho, 2014, p Disponível em ojs.unisa.edu.au/journals/index.php/ijei/ Acesso em 19 de novembro de Anexo 1 Questionário aplicado aos alunos da instituição chilena Dear Students! Bruna Batista Abreu, PhD candidate, along with Professor Malcolm Coulthard, has designed a questionnaire on the subject of plagiarism that was applied to the students of a Graduate English Program at a university in Brazil. With a view to broadening the scope of her research and to offering your own viewpoints on the subject, we have decided to apply the same questionnaire (with only minor modifications) to students at the (inserimos aqui o nome da universidade chilena) Undergraduate English Program. Therefore, for the purposes of unveiling possible contrasting views on the subject, we kindly invite you to participate in this research by answering the questionnaire provided in what follows. The results of this research will be presented and published in a Forensic Linguistics Conference to be held in Brazil. You and your institution will remain anonymous. You will receive a copy of the final work. IMPORTANT: When answering the questionnaire and submitting your answers, you will be consenting to the use of your data to the research ends specified above. We thank you for your collaboration! Researchers: Bruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck, Miquéias Rodrigues * Required 1. Please tick below the Semester you are currently in: * Mark only one oval How would you define plagiarism? * 3. What are the rules about plagiarism in your university? * 4. When you entered the university, were you informed about these rules? If so, how, when and by whom? 5. Does the violation of these rules lead to any penalties? * Mark only one oval. Yes No I don t know 5.1 What are the penalties?

83 Bruna Batista Abreu Does the penalty depend on the degree of plagiarism? If so, how is this measured? 5.3 What is your opinion about these penalties? Are they too lenient, too heavy or about right? 5.4 Do you know of any actual cases of students who were punished? Do you have any views on the level of their punishment? 6. What changes, if any, would you make to the way this problem is currently treated? * 7. As an exercise, identify whether there is plagiarism in either the following texts and explain your conclusion. (A note: only the first poem was published). Poem 1: In Case of Fire Roger McGough In case of FIRE break glass In case of GLASS fill with water In case of WATER wear heavy boots ( In case of more times) In case of FIRE break glass (At the end of the poem, the author noted:) This poem was inspired by Jenny Lewis, one of my students at Lumb Bank [a creative writing course centre] Poem 2: In Case of Fire Jenny Lewis In case of fire, break glass In case of water, lift glass In case of wine, lift several glasses ( In case of more times) In case of fire, break glass (This poem was not published before or alongside the first one) Powered by Anexo 2 Questionário aplicado aos professores das instituições chilena e brasileira Dear Professors! Bruna Batista Abreu, PhD candidate, along with Professor Malcolm Coulthard, has prepared a questionnaire on the subject of plagiarism that was applied to the students at a Graduate English Program at a university in Brazil. With a view to broadening the scope of her research and to offering professors viewpoints on the subject, we have decided to apply the same questionnaire (with only minor modifications) to professors at that same Graduate English Program. Additionally, for the purposes of unveiling possible contrasting views on the subject, we kindly invite the professors of the English Undergraduate Program at (neste espaço foi inserido o nome da instituição chilena, quando enviado os professores da mesma) to participate in this research by answering the questionnaire provided in what follows. The results of this research will be presented and published in a Forensic Linguistics Conference to be held in Brazil. You and your institution will remain anonymous. You will receive a copy of the final work.

84 84 Plágio no âmbito acadêmico: Percepções de alunos e professores brasileiros e chilenos IMPORTANT: When answering the questionnaire and submitting your answers, you will be consenting to the use of your data to the research ends specified above. We thank you for your collaboration! Researchers: Bruna Batista Abreu, Kátia Eliane Muck, Miquéias Rodrigues * Required 1. How would you define plagiarism? * 2. Do you know what are the rules about plagiarism in your university? * Mark only one oval. Yes No 2.1 If so, what are they? 3. Does the violation of these rules lead to any penalties? * Mark only one oval. Yes No I don t know 3.1 What are the penalties? 3.2 Does the penalty depend on the degree of plagiarism? If so, how is this measured? 3.3 What is your opinion about these penalties? Are they too lenient, too heavy or about right? 3.4 Do you know of any actual cases of students who were punished? Do you have any views on the level of their punishment? 4. What changes, if any, would you make to the way this problem is currently treated?

85 4 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia 1 1. Introdução Luciane Fröhlich e Marina Piovesan Gonçalves Universidade Federal de Santa Catarina Quando analisamos a literatura ofertada na área de Linguística Forense no Brasil, principalmente no que tange aos estudos da tradução forense, temos um grande desapontamento. Não apenas pela falta de material disponível em bibliotecas ou em outras instituições mas, principalmente, pelo pequeno número de pesquisas diretamente ligadas a essa área dentro do Brasil. Os Estudos da Tradução Forense, ramificação da Linguística Forense, é um campo de pesquisa interdisciplinar relativamente novo, em franca expansão, que está inserido entre o universo das Letras e o do Direito. E é justamente desta característica interdisciplinar que resulta a carência de estudos mais direcionados à área, já que se faz necessária uma aliança entre pesquisas destas duas vertentes. Dentro dessa abordagem, o presente trabalho pretende colaborar na expansão das pesquisas na área no Brasil, fornecendo uma investigação que une e discute informações relevantes ao Direito e à Linguística, aplicadas aos estudos tradutológicos. 2. Contexto investigativo De fato, considerando sua natureza interdisciplinar, esta pesquisa insere-se na interface entre os Estudos da Tradução e a Linguística Forense e investiga os desafios e as competências intrínsecas ao ofício do tradutor jurídico no Brasil, apresentando-o como perito, tanto no universo da linguagem, quanto no do Direito. É de se observar, outrossim, que a tradução jurídica quase 1. Contém parte dos estudos da tese da primeira autora, Luciane Fröhlich, defendida na PGET/UFSC em

86 86 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia sempre é realizada por um tradutor público, uma vez que os documentos jurídicos precisam de juramentação para se tornarem válidos no exterior. Desta forma, a responsabilidade civil e criminal, pela tradução de qualquer texto com juramentação, eleva consideravelmente a responsabilidade do tradutor, principalmente em se tratando de documentos jurídicos, como é o caso da carta rogatória (CR), exemplo que será aqui abordado, cujo gênero, por natureza, interliga dois sistemas linguísticos (o do Juízo Rogante e o do Juízo Rogado). Deste modo, é apresentado um levantamento do processo envolvido na tradução 2 da CR, desde a intimação do tradutor até o protocolo de entrega da tradução juramentada, com foco, no entanto, no papel do tradutor dentro desse processo jurídico, sua formação especializada e seus desafios perante a hermenêutica jurídica. 2.1 Definindo tradução forense Deborah Cao, Professora de Tradução e Linguagem Jurídica da Griffith University/Austrália, define o termo tradução jurídica como segue: Legal translation is a type of specialist or technical translation, a kind of translational activity that involves special language use, that is, language for special purpose (LSP) in the context of law, or language for legal purpose (LLP) (CAO, 2010). Assim, conforme Cao, tradução jurídica seria um tipo de tradução especializada ou técnica, uma espécie de atividade translacional que envolve uso especial da linguagem, ou seja, a linguagem com um propósito especial (LSP), no contexto do Direito, ou a linguagem com fins legais (LLP) 3. Note que Cao utiliza o adjetivo legal ao invés de forense. Esta é a escolha mais comum. Em praticamente todos os textos da área, o termo tradução forense, ainda é pouco explorado. Normalmente opta-se pelos termos sinônimos tradução jurídica, tradução judicial ou mesmo tradução legal. Neste trabalho usa-se, preferencialmente, a palavra forense para tentar abarcar todo o espectro de significados ligados ao universo do Direito e também para fazer uma espécie de diferenciação, em contraposição aos adjetivos legal, jurídico ou judicial, uma vez que estes parecem possuir 2. Nesse caso particular de estudo, a primeira autora fez parte de todo processo, atuando diretamente como tradutora pública, previamente intimada como perita ad hoc pela Justiça Federal do Estado de Santa Catarina. Esse trabalho in loco lhe permitiu visualizar de perto todas as etapas e percalços envolvidos nas situações de pesquisa. 3.Tradução nossa.

87 Luciane Fröhlich 87 o mesmo significado. Algumas definições sobre a temática, conforme FER- REIRA (1986): Forense = [Do lat. forense]. Adj. 2 g. 1. Respeitante ao foro judicial. 2. Judicial. Judicial = [Do lat. judiciale]. Adj. 2 g. 1. Que tem origem no poder judiciário ou perante ele se realiza. 2. Respeitante ao juiz, a tribunais ou à justiça; forense. [Sin. Ger.: judiciário]. Judiciário = [Do lat. judiciariu]. Adj. 1. Relativo ao direito processual ou à organização da justiça; judicial. Legal = [Do lat. legale]. Adj. 2 g. 1. Conforme ou relativo à lei. [...]. (FERREIRA, 1986) Como se observa acima, os adjetivos forense, judicial e judiciário trabalham em sintonia, no entanto o adjetivo legal, difere-se, possuindo carga semântica diferente, abarcando o universo dos códigos, das leis. Acquaviva (2006), em seu dicionário jurídico brasileiro, apresenta um texto extenso, que ocupa três colunas de sua obra, em que procura definir historicamente a origem da palavra lei. Abaixo um pequeno extrato, em que explica que lei teria uma: Etimologia incerta. A mais aceita atualmente faz derivar o termo do sânscrito laugh, que originou o verbo grego légein e a conhecida expressão latina lex, sugerindo, por outro lado, a ideia de estabelecer, tornar estável, permanente. Todavia, em Cícero (De legibus, I, 6, 19), lex deriva do verbo legere ou deligere, eleger, porque a lei indicaria o melhor caminho a ser trilhado pelo cidadão. O próprio Cícero, contudo, insinua que lex poderia derivar, também, de legere, ler (lex a legendo 4 ), pelo fato de as leis serem escritas e dadas ao povo para leitura e conhecimento. [...] (ACQUAVIVA, 2006, p. 520) Da explicação de Acquaviva (2006) chegamos ao seguinte esquema: 4. Leitura da lei.

88 88 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Figura 1: Definindo o sentido da palavra lei Assim, o termo lei poderia ser definido resumidamente como algo escrito, estável, que está codificado, que advém de instância superior e serve para a informação, e, mais ainda, normatização da sociedade. Já o termo jurídico, definido por Ferreira (1986 p. 995): [Do lat. juridicu]. Adj. 1. Relativo ou pertencente ao direito. [...], parece ser mais extenso, no qual o termo judicial, como apresentado anteriormente, figura como seu sinônimo. Também aqui Acquaviva (2006) se esmera para qualificar a etimologia da palavra direito, ocupando cinco colunas e meia de seu dicionário jurídico. Abaixo seguem alguns excertos de seu texto: A palavra direito é plurívoco-analógica, isto é, apresenta uma pluralidade de sentidos análogos [ ]. Provém do latim directu, que suplantou a expressão jus, do latim clássico, por ser mais expressiva. Em Roma havia o jus e o fas. O jus é o conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas a dar ordem à vida em sociedade; fas é o conjunto de normas de origem divina, religiosa, que regeriam as relações entre os homens e as divindades. Nos primórdios da história de Roma o fas imperava, sua aplicação cabia aos pontífices, ministros supremos da religião [ ]. A palavra direito penetrou no vocábulo das nações por via latina, originando-se de um primitivo radical indo-europeu (rj) em substituição ao latino clássico jus, como vimos. [...] A palavra direito significaria remotamente, portanto, guiar, conduzir. Entretanto, se a etimologia da palavra parece ser a que foi exposta, as acepções da palavra direito variam grandemente, embora sejam análogas.

89 Luciane Fröhlich 89 O direito só pode ser definido à luz de cada uma das acepções do vocábulo [...]. Eis algumas significações da palavra direito: 1. Direito objetivo: o direito brasileiro pune o duelo. 2. Direito subjetivo: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5, II da CF). 3. Direito no sentido do justo: o operário tem direito de participar nos lucros da empresa. 4. Direito no sentido da ciência: cabe ao Direito o estudo da posse e da propriedade. Portanto, as definições a seguir referemse ao direito objetivo: Sistema de normas de conduta que coordenam e regulam as relações de convivência de uma comunidade humana, e que se caracterizam por um poder de obrigatoriedade igualmente extensivo ao grupo e aos indivíduos que o formam (Joaquim Pimenta). [ ] (ACQUAVIVA, 2006, p. 300) Direcionando os significados da palavra direito, extraídos dos fragmentos acima, com a esfera objetiva alinhada à subjetiva, poderíamos resumir o termo com a figura abaixo: Figura 2: Definindo o sentido da palavra direito

90 90 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Em síntese, a palavra direito poderia ser definida resumidamente como um conjunto de normas jurídicas que disciplinam a sociedade, fazendo alusão ao aspecto objetivo do Direito, com a norma agendi, ou seja, a lei escrita. Neste contexto, segundo Costa (s.d.), é possível definir Direito como a ordenação da convivência humana segundo a justiça, atribuindo-se a cada um aquilo que é seu, sendo a ordem jurídica o resultado dessa ordenação. Não obstante, retomando a discussão entre legal e jurídico, e considerando as definições sobre lei e direito explanadas durante este capítulo, podemos concluir que o adjetivo legal está apoiado na lei (lex) e jurídico, com significado mais abrangente, refere-se à lei (escrita) e também ao direito, que pode ser definido como um conjunto de normas de conduta que regulam a convivência humana em sociedade (com normas ou não, como moral e ética). Texto legal, no entanto, pode ser considerado como sendo relativo à lei; e texto jurídico relativo à lei e ao Direito. Sendo assim, usar o adjetivo legal para qualificar tradução remeteria a um sentido limitado ao universo legal, ou seja, das leis, não alcançando, portanto, todas as áreas do Direito. Deste modo, considerando as nuances de sentido envolvidas entre forense, legal, jurídico ou judicial, optou-se aqui por priorizar o termo forense por este envolver, com mais plenitude, os significados envolvidos na interface entre tradução, linguagem e Direito. E dessa diversidade definiu-se o termo tradução forense como uma tradução especializada, da esfera do Direito, com abordagem de textos legais e jurídicos com carga social, de alta complexidade técnica, que envolve responsabilidade civil e criminal (FROHLICH, 2012). 3. Trabalhando o texto jurídico De fato, documentos jurídicos são dotados de textos com características especiais e objetivos distintos (com a finalidade discursiva de instruir, julgar, normatizar), situações nas quais diferentes gêneros (gênero livro, gênero sentença, gênero lei, etc.) conferem identidade à linguagem do Direito. Não obstante, sob a perspectiva da textualidade jurídica como manifestação semiótica, Eduardo Bittar, em sua obra Linguagem jurídica (BITTAR, 2010), vai além dessa caracterização do discurso jurídico. Ele contribui com a matéria classificando os discursos jurídicos em quatro categorias (normativo, decisório, burocrático e científico). Nesse sentido, ele acrescenta o discurso burocrático à classificação de Torres e Almeida (2013). Essa categorização é sustentada pela semiótica jurídica, que por sua vez se debruça sobre as práticas jurídico-textuais. Sendo assim, segundo Bittar (ibidem), o discurso normativo tem como pressuposto de pesquisa a discussão das perspectivas que abrem o conceito de norma, sendo o legislador o agente investido de competência e poder para realização de uma tarefa social, a da regulamentação de condutas. Já o discurso decisório é a prática textual

91 Luciane Fröhlich 91 jurídica exercida por órgãos coletivos ou individuais que, investidos de poder e dever de julgar, expõem os fatos da causa e o estado do procedimento, seguindo um ritual no qual sua estrutura se fundamenta. A sentença tem a função de uma regra que, por sua vez, cita outra regra, a legislação que lhe deu respaldo. Já o discurso burocrático remete à linguagem utilizada nas relações jurídicas, fundada na prática institucional e tendo o Estado como protagonista, tendo características neutras, sem interferências ideológicas. O discurso científico, por sua vez, é o discurso da teoria do Direito, sendo doutrina é científico, dizendo respeito à ciência do Direito, ao conhecimento aprofundado da matéria (BITTAR, 2010). Com base nesse cenário, é apresentado abaixo um tipo de documento jurídico peculiar, que apresenta um conjunto de textos (discursos) distintos, nomeado de Carta Rogatória (CR), que colabora para o levantamento das particularidades da linguagem jurídica brasileira. 3.1 Carta rogatória Cartas rogatórias, por possuirem características muito especiais (documento de um juízo rogante nacional a um juízo rogado internacional), fazem parte de um seleto grupo de documentação jurídica. Essa particularidade se dá por várias razões, dentre elas, por ser um instrumento jurídico que exige, por essência, tradução. Ademais, o gênero CR é composto por um conjunto de outros gêneros (sendo as petições, sentenças, despachos e procurações os mais frequentes), que são parte integrante da mesma, variando de acordo com a sua finalidade e particularidade, conferindo-lhe assim perfil próprio. Sob esta perspectiva, cartas rogatórias podem ser consideradas como um hipergênero (um gênero que abriga outros gêneros), que preenche quesitos como propósitos comunicativos próprios, organização textual característica [...] e produtores e receptores definido (BONINI, 2001). De acordo com o Código de Processo Civil (CPC) 5, lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Carta Rogatória é: Art É a requisição feita à Justiça de outro país para a prática de uma diligência judicial. A carta rogatória obedecerá, quanto à sua admissibilidade e modo de seu cumprimento, ao disposto na convenção internacional; à falta desta, será remetida à autoridade judiciária estrangeira, por via diplomática, depois de traduzida para a língua do país em que há de praticar-se o ato. 5.Fonte: Acesso:

92 92 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Desta forma, cartas rogatórias diferem-se dos demais atos processuais por serem dirigidas à autoridade judiciária estrangeira. Conforme as Disposições Gerais sobre as Comunicações dos Atos (CPC, Cap. IV, Seção I): Art Expedir-se-á carta de ordem se o juiz for subordinado ao tribunal de que ela emanar; carta rogatória, quando dirigida à autoridade judiciária estrangeira; e carta precatória nos demais casos. (Grifo nosso). É possível observar, nas figuras 3 e 4 uma Carta Rogatória (anverso e verso) autêntica, pertencente à Ação Ordinária (Procedimento Comum Ordinário) nº 500[...] 6, em que fazem parte o Autor (G.K.) e seu respectivo Advogado (O.C.G.); Réu 1, neste caso um espólio (de R.S.) e seu respectivo Advogado (A.A.S.); e Réu 2, a própria União (Advocacia Geral da União). Figura 3: anverso da Carta Rogatória brasileira Figura 4: verso da Carta Rogatória brasileira A CR, apresentada no quadro acima, foi emitida pela Justiça Federal brasileira (Juízo Rogante) para o Juízo competente da Alemanha (Juízo Rogado), com prazo de 90 (noventa) dias para seu cumprimento. Neste caso foi concedida ao requerente o benefício da justiça gratuita, nos termos da Lei nº1.060, de 5 de fevereiro de Todos os dados particulares foram omitidos para não expor as partes e por se tratar de sigilo judicial.

93 Luciane Fröhlich Percalços da tradução Quando se trata de tradução forense, logo de partida o tradutor se depara com as dificuldade inerentes à área jurídica brasileira, resumidas como juridiquês (termos obscuros, estruturas textuais e orais complexas, por vezes desconexas e sem coesão, etc). No caso da Carta Rogatória, o primeiro desafio aflora com a tradução, ou melhor, entendimento do termo (termo que nomeia o documento presente no alinhamento 3 do quadro 1 apresentado abaixo). Considerando que seja um pedido de ajuda jurídica entre dois países, previsto nos acordos internacionais de reciprocidade, é preciso achar o termo correspondente na língua estrangeira. No caso da língua alemã, tem-se o termo Rechtshilfeersuchen, palavra do gênero neutro que na sua forma literal (lendo-se da direita para a esquerda) se auto-explica: pedido de auxílio jurídico. Na sequência, enfrentamos o desafio de traduzir Ação Ordinária (Procedimento Comum Ordinário), presente no alinhamento 1 do quadro 1. A palavra ação, no geral, pode ser traduzida por Klage, Verfahren ou Gerichtsverfahren. Neste caso, escolheu-se a última opção, por esta se encaixar com o adjetivo ordinário (ordentlich), no sentido de um processo comum/ordinário e além de ser mais específica. Desta forma chegamos à expressão Ordentliches Gerichtsverfahren. No entanto, a explicação que segue atrelada à ação (Procedimento Comum Ordinário) tornou-se redundante em alemão. Procedimento pode ser traduzido por Verfahren, Prozedur, Vorgehen, todos com sentido semelhante. E os adjetivos comum e ordinário possuem, da mesma forma, carga semântica semelhante ao termo ordinário, podendo ser traduzido por ordentlich. Neste caso, optou-se por simplesmente omitir essa duplicidade de sentido. Segundo Acquaviva (2006): Sob a epígrafe ação ordinária inclui-se a maioria das ações cíveis, cuja tramitação deve observar o procedimento ordinário, previsto nos Arts. 282 e ss. do CPC 7. O procedimento ordinário é adotado, portanto, como regra. Desde que a causa não seja pertinente ao rito sumário ou ao especial, aplica-se o rito ordinário, em que pese o disposto no art [...]. (ACQUAVIVA, 2006, p. 61) 7. A Lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, institui o Código de Processo Civil (CPC) e pode ser conferida na íntegra no site (Acesso em ).

94 94 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Com a delimitação de sentido do rito como ordinário/comum, fechou-se o enquadramento da primeira parte. Assim, Ação Ordinária (Procedimento Comum Ordinário) foi traduzido por Ordentliches Gerichtsverfahren. O próximo item na ordem da CR (alinhamento 2 do quadro 1) foi a indicação das partes envolvidas no processo: Autor, Advogado e Réu. Sua tradução é menos complexa, pois são termos muito usados na área: Kläger, Anwalt e Angeklagter, no entanto é necessário dominar a terminologia forense para legitimar à tradução do termo. A etapa seguinte (alinhamento 4 do quadro 1) é exclusiva do modelo CR, uma vez que usa termos diretamente relacionados ao seu gênero, quais sejam: Juízo Rogante e Juízo Rogado, cuja tradução para o alemão seria Ersuchendes Gericht e Ersuchtes Gericht, respectivamente. Abaixo segue um quadro 8 com sugestão de tradução parcial 9 da Carta Rogatória em questão, dividida pelas etapas de tradução, que abarca: Quadro 1: Sugestão de tradução parcial - Carta Rogatória 8. O quadro apresenta somente a tradução dos termos principais da CR, contemplando assim as primeiras partes da CR. 9. Não foi abordada toda a tradução da carta no presente trabalho por falta de espaço. Para maiores detalhes sobre tradução de cartas rogatórias, conferir FRÖHLICH (2014).

95 Luciane Fröhlich 95 Embora não se tenha observado presença marcante de juridiquês, na apresentação da CR apresentada no quadro 1, por ser um documento curto e pontual, justifica-se apontar o problema, uma vez que este é um percalço recorrente na tradução de textos forenses brasileiros (como petições, sentenças, procurações, etc.), inclusive nos documentos que foram anexados a essa CR. A procura por uma linguagem rebuscada e perfeita, no sentido da precisão de sentido, acaba levando o Jurista à formação de sentenças truncadas, evasivas, que por vezes pode levar à falsa interpretação. Neste caso, forma-se um abismo linguístico, em que de um lado se encontra o profissional forense 10 e do outro a população em geral. A linguagem permanece no centro, obscura e imperfeita aos olhos da coerência. Esses hábitos linguísticos podem ser enquadrados como juridiquês, cujo sentido pode ser definido como segue: [...] uso da linguagem jurídica de forma extrema e complexa, que se propõe, mesmo que inconscientemente, a persuadir e desorientar o leitor, com o uso de recursos linguísticos altamente terminológicos (como o uso de jargão profissional), muitas vezes arcaicos (como o uso extremo de latinismos), e de construções impessoais (como o uso de passivas), que despersonalizam o autor da fala, mas que, no entanto, não raras as vezes, são vistos como necessários para validar o gênero do documento. (FROHLICH, 2014, p. 185). Essa definição de juridiquês, representa o ponto de vista de muitos pesquisadores que têm se esmerado para contribuir com pesquisas mais aprofundadas sobre o assunto. Valdeciliana da Silva Ramos Andrade 11, por exemplo, em seu artigo O Juridiquês e a Linguagem Jurídica: O Certo e o Errado no Discurso (ANDRADE, 2009), também discute sobre o uso de juridiquês na produção textual: Há que se acrescentar que juridiquês não é só o uso de arcaísmos, palavras rebuscadas, 10. Também chamado de Jurista é considerado aqui qualquer profissional bacharelado e atuante na área do Direito. 11. Professora de Linguagem Jurídica da Faculdade de Direito de Vitória/ FDV.

96 96 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia neologismos, latinismos e o uso inadequado da língua portuguesa, mas também contribui para a existência do juridiquês a produção textual truncada, extensa [ ]. (ANDRADE, 2009) Desta forma, o uso do juridiquês põe em xeque o ofício do Jurista, na medida em que este falha na exposição clara de seus textos, contrariando sua essência romana de interpretar, para os cidadãos comuns, as normas escritas a eles até então não reveladas. Como exemplo de juridiquês, Andrade (2009, p.03) cita em seu artigo alguns sinônimos para o termo petição inicial (peça que se inicia uma ação petição = pedir), como é previsto pelo art. 282 do Código de Processo Civil. Abaixo seguem 12 das 33 ocorrências levantadas por ela: 1. peça atrial 2. peça autoral 3. peça de arranque 4. peça de ingresso 5. peça de intróito 6. peça dilucular 7. peça prodrômica 8. peça inaugural 9. peça incoativa 10. peça introdutória 11. peça ovo 12. peça preambular Estes exemplos são neologismos que afrontam a língua portuguesa, pois saem da esfera de meros sinônimos, utilizados para formar um texto coeso e coerente. A linguagem jurídica precisa ser clara. Além disso, há um termo clássico para designar o sentido que se deseja alcançar, qual seja: petição inicial. Andrade (2009) vai além e apresenta outros exemplos de juridiquês, tais como:

97 Luciane Fröhlich Alvazir de piso = o juiz de primeira instância 2. Aresto doméstico = alguma jurisprudência do tribunal local 3. Autarquia ancilar = Instituto Nacional de Previdência Social (INSS) 4. Caderno indiciário = inquérito policial 5. Cártula chéquica = folha de cheque 6. Consorte virago = esposa 7. Digesto obreiro = Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) 8. Ergástulo público = cadeia 9. Exordial increpatória = denúncia (peça inicial do processo criminal) 10. Repositório adjetivo = Código de Processo, seja Civil ou Penal De fato, pode-se julgar que tais exemplos são neologismos que desafiam a língua portuguesa, pois saem da esfera de meros sinônimos e entram na esfera prolixa do discurso escrito. Não obstante, é consenso entre os pesquisadores da área, que a linguagem jurídica precisa ser clara. Há um termo clássico para designar o sentido que se deseja alcançar, qual seja: petição inicial, que já faz parte do repertório terminológico jurídico. Com efeito, Andrade (ibidem) menciona que um texto jurídico bem escrito deve conter apenas o essencial, falar o que deve ser dito, argumentar com coerência e precisão, averiguar o veículo adequado da comunicação e vislumbrar o destinatário, sabendo que, muitas vezes, este nem sempre coincide com interpretante real. O desafio está posto (ANDRADE, 2009). Desta forma, no caso da tradução de tais termos, uma das soluções seria os tradutores assumirem esse desafio, ponderando todas as faces do problema, transformando o texto original pouco coerente/coeso em um texto traduzido limpo e o mais informativo possível, com o uso de apenas um termo (de preferência o mais conhecido, como é o caso de petição inicial ). Tais desafios da hermenêutica jurídica exigem, portanto, atenção redobrada por parte do tradutor/intérprete, bem como conhecimento profundo e especializado nas línguas envolvidas. E relembrando, ao caso da Carta

98 98 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Rogatória, exemplo aqui explorado, soma-se a responsabilidade civil e criminal às quais o tradutor jurídico é exposto, elevando exponencialmente sua responsabilidade tradutológica. 4. Tradução juramentada e interpretação comercial no Brasil No Brasil, é bastante comum que as traduções jurídicas e as interpretações em juízo sejam realizadas por tradutores públicos, juramentados. No caso do recebimento de uma Carta Rogatória estrangeira, por exemplo, sua tradução oficial é obrigatória, sendo um dos requisitos indispensáveis para a homologação de uma sentença estrangeira no Brasil. Desta forma, neste ato, faz-se necessário o trabalho de um tradutor público juramentado. De acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF), os requisitos indispensáveis são: i) haver sido proferida por autoridade competente; ii) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia; iii) ter transitado em julgado; e iv) estar autenticada pelo Cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor oficial ou juramentado no Brasil. A partir desta requisição, imposta pela legislação, que o trabalho do tradutor forense público torna-se necessário. A tradução pública, legalmente conhecida como tradução juramentada, é realizada no Brasil por um tradutor concursado, ou, na falta deste, por um ad hoc nomeado para cada ato, pela Junta Comercial de cada Estado ou diretamente pela Justiça Federal. De acordo com Aubert 12, o termo tradução juramentada pode ser assim definida: Por tradução juramentada entende-se a tradução de textos de qualquer espécie que resulte em um texto traduzido legalmente reconhecido como uma reprodução fiel do original (com fé pública). Esta característica de fidelidade, por sua vez, significa que, por meio de tal tradução, o texto original, expresso em um idioma estrangeiro, torna-se capaz de produzir efeitos legais no país da língua de chegada e, ainda, que tal tradução é correta, precisa, exaustiva e semanticamente invariante em relação ao original [ ]. (AUBERT, 1998, p.14) A também tradutora pública e pesquisadora, Lúcia de Almeida e Silva Nascimento (2006, p.11-17) descreve em sua tese de doutorado, intitulada Investigating Norms in the Brazilian Official Translation of Semiotic Items, 12.Tradutor juramentado do Estado de São Paulo.

99 Luciane Fröhlich 99 Culture-Bound Items, and Translator s Paratextual Interventions, as particularidades do ofício de um tradutor público no Brasil, com ênfase naqueles que trabalham no Estado de Santa Catarina 13, onde foi sua sede por mais de 20 anos, assim como detalhes da entrada e tomada da função pública de tradutor e interprete comercial. Paralelamente, Nascimento (2006) apresenta uma investigação sobre algumas estratégias de tradução utilizadas por tradutores juramentados no Brasil, com o par linguístico português-inglês, relacionando alguns poucos pesquisadores que dedicaram parte de suas pesquisas às particularidades da tradução juramentada no Brasil. Entre eles, cita Silveira (1996), que investiga o treinamento profissional de tradutores oficiais; Coelho (1998), que apresenta um estudo aplicado a três traduções oficiais baseado em Vinay e Darbelnet (1958); assim como Aubert (1998) e Campbell (1983), ambos tradutores juramentados com grande experiência e pesquisas na área. O estudo de Nascimento (2006) é de relevância acadêmica, pois além de descrever o ofício da tradução juramentada e da interpretação comercial no Brasil lida com um tema pouco explorado na academia, abrangendo três aspectos específicos da tradução juramentada no Brasil, quais sejam: a) a tradução de itens semióticos; b) a tradução de marcadores culturais; c) e a inclusão de intervenções paratextuais. Com relação à legislação brasileira, que rege o ofício e afins da tradução juramentada, assim como da interpretação comercial, levantou-se a seguinte listagem 14 : DECRETO Nº Regulamenta a Lei nº 8.934, de 18 de Novembro de 1994, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e dá outras providências DECRETO Nº Estabelece novo Regulamento para ofício de tradutor público e intérprete comercial no território da República DECRETO-LEI Nº Código de Processo Penal DECRETO-LEI Nº Consolidação das Leis do Trabalho 13. Atualmente, no entanto, Lúcia Nascimento está lotada em Brasília, Distrito Federal. 14. Lista parcialmente extraída do site da Associação dos Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais do Rio de Janeiro (Acessado em ).

100 100 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia INSTRUÇÃO NORMATIVA DNRC N 51, de 06/03/ Carteira de Exercício Profissional INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 77, de 29 de janeiro de 2008 Determinação do Ministério do Trabalho e Emprego e do Conselho Nacional de Imigração que dispõe sobre a União Estável, no artigo 5 consta prescrita a obrigatoriedade da tradução juramentada para documentos estrangeiros INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 84 - Dispõe sobre a habilitação, nomeação e matrícula e seu cancelamento de Tradutor Público e Intérprete Comercial e dá outras providências INSTRUÇÃO NORMATIVA DREI Nº 17, de 5 de dezembro 2013 INSTRUÇÃO NORMATIVA DNRC N 107, de 23/05/ Livro Digital para Tradutores e Intérpretes LEI Nº Código de Processo Civil 15 LEI Nº Dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e dá outras providências LEI Nº 9707 Arbitragem (Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras) LEI Nº Institui o Código Civil Conforme análise prévia, desenvolvida por Fröhlich (2014), embora consolidem a profissão do tradutor público, que assume com maior frequência o papel de tradutor forense, as leis vigentes mostram-se defasadas e incompletas. De fato, tanto no CPC, Lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, quanto no Decreto Federal Nº , na Instrução Normativa DREI Nº 17, bem como no Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina (CGJ/SC), não há uma seção clara que designe e/ou oriente 15. Em fase de alteração.

101 Luciane Fröhlich 101 o tradutor forense, bem como conduza os serventuários da justiça a nomear e/ou fiscalizar de maneira eficiente os profissionais especializados. Ademais, só há menção e nomeação específica ao perito (artigos 145, 128, 146 e 147 da Lei Nº 5.869) e, de forma mais superficial, ao intérprete (artigo 151 da lei Nº 5.869), embora o tradutor forense seja considerado um auxiliar da justiça pela legislação brasileira (seção II da lei no 5.869, bem como no artigo 236 do CPC, de 1941). Esta constatação fortalece a hipótese da existência de uma lacuna na legislação brasileira (principalmente no que tange à lei Nº 5.869), com relação às particularidades do ofício do tradutor forense. Não obstante, é exigido do tradutor forense, além do necessário domínio da linguagem jurídica da língua fonte (L1) e da língua alvo (L2), conhecimento das particularidades das esferas civil e criminal envolvidas em sua profissão, principalmente no que tange às suas responsabilidades civis e criminais. Esta exigência reforça a necessidade de uma formação especializada do tradutor forense, com interação direta com a justiça, através da qual se projeta uma menor incidência de erros e consequentes penalidades, conforme previsto no Decreto Federal Nº , por meio dos artigos 21 e 22, que abordam a questão da impugnação das traduções, bem como sua punição, mesmo a tradutores não concursados. 4.1 Dinâmica do ofício Em síntese, há duas maneiras de se atuar como tradutor juramentado e intérprete Comercial no Brasil: 1. Via concurso público estadual, com validade em todo o território nacional 2. Via nomeação ad hoc No primeiro caso, é necessário prestar o concurso no Estado onde o tradutor reside há mais de um ano, não sendo obrigatória a comprovação de nenhum conhecimento acadêmico e/ou profissional (como diploma de graduação ou especialização), basta ser um cidadão idôneo. No segundo caso, via nomeação ad hoc, no entanto, é exigido vasta experiência, diplomação e notório saber na área. A nomeação é realizada normalmente de duas maneiras: a primeira através da Junta Comercial de cada Estado, após análise do pedido, que é feito em formulário próprio, para cada ato, anexando-se uma cópia dos documentos a serem traduzidos e pagando-se uma taxa, fixada por cada Estado. No caso do Estado de Santa Catarina o formulário está atualmente qualificado sob nome Atos e Eventos, de número 403 Nomeação ad hoc de tradutor e intérprete comercial.

102 102 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia Já a taxa de nomeação JUCESC 16 enquadra-se dentro de Atos integrantes da tabela de preços dos serviços do registro público de empresas mercantis e atividades afins, relacionada à Ordem Nomeação ad hoc de tradutor e intérprete comercial 17. Já a segunda maneira concretiza-se por meio de intimação judicial, realizada a pedido de um Juiz, normalmente relacionada a ações com trâmite internacional, como em traduções de cartas rogatórias. Após sua nomeação ad hoc, o tradutor investe-se do poder público de juramentação, podendo exercer a tradução pública para a qual foi previamente qualificado, dando fé ao documento. No caso da tradução forense pública de cartas rogatórias em Santa Catarina, os principais estágios, que envolvem o tradutor, são os seguintes: 1. Intimação do tradutor (concursado ou não) por parte da Vara responsável 2. Aceitação por parte do tradutor 3. Definição dos honorários 4. Estipulação do prazo de entrega 5. Tradução efetiva 6. Protocolo de entrega junto ao órgão competente que fez a intimação Tão logo o juiz responsável pelo processo tenha expedido o despacho, a intimação/nomeação segue por escrito e é efetivada normalmente de duas formas: (1) Via impressa, através de um oficial de justiça, que entregará pessoalmente o documento a ser traduzido: a) Neste caso, o prazo estipulado pelo juiz começará a contar a partir da data da entrega da intimação, com assinatura do tradutor. (2) Pela internet, via (processo eletrônico): a) Neste caso, o prazo estipulado pelo juiz começará a contar a partir da data de recebimento do . Em seguida o tradutor, por escrito, aceita o encargo ou o recusa, com justificativa bem elaborada, visto que se trata de uma intimação de prestação de serviço ao Poder Público. Juntamente com o aceite, são definidos os honorários do tradutor, que podem variar, de acordo com a concessão ou não da gratuidade de justiça. 16. Para maiores detalhes, conferir site da JUCESC: pfm?codpagina= (Acesso em ) (Acessado em ).

103 Luciane Fröhlich 103 Em se tratando de ação, em que é concedida à parte requerente o benefício da Justiça Gratuita, nos termos da Lei Nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, os honorários são pagos pelo Estado competente. No caso da Justiça Federal em Santa Catarina, os honorários são pagos pela Seção Judiciária do Estado, nos termos da Resolução Nº 558, de 22/05/2007, da Presidência do Conselho da Justiça Federal 18 (após a prestação do serviço) 19. Em face da complexidade das traduções jurídicas, os honorários são normalmente fixados com o triplo do valor estabelecido pela Tabela III 20, na forma que autoriza o art. 4 o, parágrafo único, da Resolução vigente Nº 558. Já no caso de não concessão de Justiça Gratuita, os honorários são pagos pela parte requerente. No Estado de Santa Catarina, usa-se então a tabela estipulada pela JUCESC 21 (Resolução 02/13, vigente a partir de 18/04/2013) 22 e nessas circunstâncias os honorários devem ser aprovados antes do início do trabalho de tradução, através da aceitação das partes envolvidas e posterior despacho de pagamento pelo juiz competente. O pagamento, nesse caso, assim como no primeiro caso, é feito após a prestação do serviço. Além disso, existe uma diferenciação interna na tabela vigente da JU- CESC 23 que subdivide os gêneros textuais dos documentos em três categorias: (A) Textos comuns (B) Textos jurídicos, técnicos, científicos, comerciais, etc. (C) Documentos de alta complexidade técnica ou dificuldade de leitura No primeiro caso (A), na categoria dos textos comuns, são enquadrados documentos como passaporte, certidões dos registros civis, carteiras de identidade, de habilitação profissional, documentos similares, inclusive cartas pessoais que não envolvam textos jurídicos, técnicos ou científicos. Já no segundo caso (B), os documentos envolvidos são texto jurídicos, técnicos, científicos, comerciais, inclusive bancários e contábeis, marítimos, certificados e diplomas escolares Último acesso em março de Conforme o número de laudas do documento original. Neste caso, uma lauda corresponde a caracteres (35 linhas x 70 toques). 20. Parágrafo único. Os valores fixados na Tabela III do Anexo I poderão ser ultrapassados em até 3 (três) vezes, observadas as cautelas previstas no 1º do art. 3º desta Resolução. 21. No entanto, uma lauda corresponde a caracteres (25 linhas x 50 toques), calculada com base no texto traduzido e não no texto original. 22. Cf. Último acesso em outubro de Cf. tabela na íntegra em: Último acesso em março de 2014.

104 104 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia No último tipo (C), são delimitados documentos de alta complexidade técnica, ou dificuldade de leitura, em que o original é de difícil compreensão, devido à gramática ou ortografia deficientes, ou lacunas etimológicas, original em dialeto, disposições jurídicas que se diferenciam consideravelmente no idioma de origem e no de destino, texto que trata de mais de uma área técnica especializada, quando for necessária a decodificação de inúmeras abreviaturas, texto de difícil compreensão devido a estilo antiquado ou informações codificadas, cópia parcialmente ilegível e caligrafia parcialmente ilegível 24. Desta forma, há alteração de preço conforme a categoria e origem de cada documento. No caso de uma tradução (texto em língua estrangeira para o vernáculo), o preço é menor do que no caso de uma versão (texto em língua portuguesa para uma língua estrangeira). Também há diferenciação de preço no caso de tradução entre dois idiomas estrangeiros, havendo acréscimo de 50% aos respectivos emolumentos 25. Após a definição dos honorários, o tradutor forense (ad hoc ou não) inicia sua jornada tradutológica, em grande parte sozinho, sem contar com a figura de um revisor, cujo papel é de extrema importância, uma vez que teria como função auxiliar na legitimação da tradução. 4.2 Qualidade e relevância Uma das barreiras relacionadas à qualidade da oferta do serviço de tradução e interpretação no Brasil diz respeito à formação profissional e acadêmica do tradutor/intérprete. De fato, como não é uma profissão regulamentada no país, à princípio, qualquer pessoa pode exercê-la, com ou sem titulação ou conhecimento comprovado. Uma tentativa positiva, com intuito de organizar tal ofício no país, foi a criação de um Sindicato da categoria. O SINTRA, Sindicato Nacional dos Tradutores, foi criado em 30 de Novembro de 1988, no Rio de Janeiro, e desde sua inscrição no Ministério do Trabalho e Previdência Social, representa os tradutores e intérpretes em todo o território nacional, agindo como um defensor da categoria. Uma de suas conquistas foi a descrição da profissão, que a partir de 2000 passou a constar no Catálogo Geral das Profissões do Ministério do Trabalho. 24. Neste caso, na prática, quem decide enquadrar o texto neste gênero textual é o próprio tradutor, ao analisar o documento. A demarcação da categoria usada é mencionada na apresentação dos emolumentos, com a letra C, sendo o preço calculado de acordo com a tabela da Junta Comercial competente (no caso de Santa Catarina, a JUCESC). Cf. orientações ACTP 2014, disponíveis em último acesso em julho de Conferir artigo 5 da respectiva tabela.

105 Luciane Fröhlich 105 A ABRATES, Associação Brasileira de Tradutores, foi fundada a partir do SINTRA e membros natos, em 3 de dezembro de A Associação funciona atualmente de forma totalmente independente do Sindicato, sendo responsável pelos exames de credenciamento de tradutores em todo o Brasil, assim como assuntos de interesse geral da categoria. Com relação à formação acadêmica desses profissionais, temos ainda muito a aprender com nossos colegas europeus. A oferta de cursos específicos de tradução é mínima. Além da pouca oferta de cursos especializados em tradução, de um modo geral, o que se vê nas instituições de ensino superior em Estudos da Tradução no Brasil é a priorização de pesquisas voltadas à área literária, com pouca ênfase na área técnica, especializada. E essa falta de estudo mais direcionado não condiz com as exigências do mercado, que está cada vez mais especializado e em franca expansão. De fato, há alguns anos, a demanda por tradução de textos jurídicos tem crescido significativamente por conta do aumento do trânsito internacional de pessoas, bens e serviços. De acordo com a reportagem do jornal online G1, de 31/01/ , no ano de 2003, por exemplo, foram emitidas carteiras de trabalho. Cinco anos depois (em 2008) esse número já havia duplicado, chegando a No ano de 2013, no entanto, o aumento do número de emissões foi ainda maior, alcançando a marca de carteiras emitidas. Apenas entre os dias 1º e 27 de janeiro de 2014, haitianos entraram no Brasil pelo estado do Acre. A procura por melhores condições de vida e a facilidade em se obter visto de residência, bem como carteira de trabalho, tem provocado uma emigração em massa daquele país. Os haitianos, no entanto, não são os únicos a eleger o Brasil como destino de trabalho. De acordo com a referida reportagem, há muitos bolivianos, argentinos, portugueses, espanhóis, italianos, alemães e mais outros tantos estrangeiros que tiraram carteira de trabalho no Brasil em Esses dados apontam para uma tendência de expansão linguística no país e, infelizmente, não refletem o número total de imigrantes 27. Francês, espanhol, italiano, alemão, dentre outros idiomas, começarão a despontar não só em novos lares, mas também nas ruas, comércio e, por consequência, em contratos, em processos judiciais, em cartórios, em delegacias, em empresas, etc. Uma amostra aplicada dessa expansão pode ser observada no número crescente de empresas estrangeiras no Brasil, que não apenas empregam brasileiros, como também trazem consigo muitos trabalhadores temporários 26. De acordo com a reportagem do jornal online G1, de 31/01/2014 (htttp://g1.globo.com/ brasil/noticia/2014/01/emissao-de-carteiras/-de-trabalho-para-estrangeiros-aumenta-53- em-2013.html). Último acesso em fevereiro de O censo de 2010 registrou que pessoas imigraram para o Brasil nos últimos dez anos (

106 106 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia de seu país de origem. Por exemplo, o Brasil possui cerca de empresas alemãs, ou de origem alemã, empregando mais de pessoas. De outro lado, há cerca de 50 empresas brasileiras ativas na Alemanha, que empregam em torno de pessoas 28. Circunstâncias como essas geram documentação jurídica bilíngue 29. Entre 2010 e 2011, quase 600 mil pessoas vieram morar no Brasil. Nunca houve tantos imigrantes desde Desta forma, torna-se visível a necessidade cada vez maior de tradutores e intérpretes forenses à disposição não só da justiça direta, como também de bancos, escritórios de advocacia, empresas bi- e multinacionais, órgãos públicos (como no Ministério do Trabalho), etc. 30 Outro dado, retirado do jornal Gazeta do Povo do Paraná, de 15/02/ , mostra que em um ano, o número de presos estrangeiros no país cresceu 6,3% (totalizando em junho de 2012). Segundo a matéria, o aumento foi semelhante ao da população carcerária total, que chegou a 6,9% no mesmo período. Com efeito, essa tendência de crescimento na demanda por tradutores e intérpretes forenses não é perceptível somente no Brasil. É fato que a necessidade de traduções forenses, em nível global, tem aumentado consideravelmente por conta da globalização. As leis europeias, por exemplo, são traduzidas simultaneamente para quase todas as línguas da comunidade. Em jurisdições bilíngues ou multilíngues, como é o caso do Canadá e da Suíça, há demanda constante por redação e tradução bi- e multilíngue. A China é outro exemplo, a maioria das firmas estrangeiras empregam continuamente tradutores forenses para traduzirem seus contratos e demais textos jurídicos. Não obstante, será que as traduções forenses estão sendo executadas de maneira apropriada, ou seja, será que as traduções dos documentos jurídicos estão atingido legitimidade tradutória, bem como estão tendo o alcance legal esperado? Deborah Cao comenta, em seu livro Translating Law (CAO, 2007), que quando a China estava em ascensão à OMC (Organização Mundial do 28. De acordo com Último acesso em junho de Um exemplo é o acordo bilateral, assinado entre Brasil e Alemanha, que define detalhes sobre a previdência social desses trabalhadores. Essa documentação está disponível em alemão e português em: Último acesso em junho de Eventos desportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, são exemplos de outros fatores que elevam exponencialmente a circulação de estrangeiros no país e, por consequência, a necessidade por interpretação e tradução de textos jurídicos, decorrentes de procedimentos de toda a ordem (em delegacias, aeroportos, bancos, empresas, etc.). 31.Cf. Último acesso em fevereiro de 2014.

107 Luciane Fröhlich 107 Comércio), o governo chinês teve que declarar como inaceitáveis algumas das traduções da OMC, devido a erros graves de tradução. Desde então, o governo tem publicado oficialmente traduções chinesas sancionadas, no entanto, somente os textos jurídicos da OMC em suas línguas oficiais (inglês, francês e espanhol) têm força legal, as traduções chinesas não. Com efeito, tribunais nacionais e instituições internacionais europeias têm igualmente relatado grande dificuldade em encontrar tradutores e intérpretes especializados em tradução forense 32. Para trabalhar essa questão, em nível nacional, parece prudente que se estimule a formação especializada do tradutor forense, também nas Universidades, em parceria com os operadores do Direito, rumo a um reconhecimento textual e legal de sua tradução. Aplicando o pensamento de Sandra Hale (2008), que foca na competência de intérpretes jurídicos no universo da tradução jurídica na Austrália, nos deparamos no Brasil com os mesmos problemas, tanto no que tange à perícia dos tradutores quanto dos intérprete jurídicos. Resumidamente, temos: O tradutor/intérprete necessita de alto nível de competência (linguística, cultural, discursiva..., etc); o tradutor/intérprete precisa de suporte para ter uma performance adequada; o tradutor/intérprete deve ser incentivado a treinamentos especializados em linguagem forense; os profissionais jurídicos precisam trabalhar em conjunto com tradutores/intérpretes para que o objetivo final seja alcançado; os tradutores/intérprete jurídicos precisam ser reconhecidos como peritos e não apenas como máquinas de tradução. Infelizmente, a situação atual brasileira ainda não garante tais habilidades em sua plenitude. No entanto, o profissional da área tem a chance de sozinho aprimorar suas competências, entrando em contato com outros tradutores da área, discutindo suas dificuldades, fazendo cursos de aprimoramento e atuando constantemente na busca de um cenário melhor. 5. Conclusões preliminares Observou-se essencialmente que a tradução forense quase sempre é realizada por um tradutor juramentado, é regida por leis incompletas e não se restringe somente à terminologia jurídica, incluindo aqui as armadilhas do juridiquês, mas também abrange convenções linguísticas e legais, algo 32. Cf. Último acesso em maio de 2014.

108 108 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia raramente transmitido nos cursos acadêmicos de formação de tradutor/intérprete no Brasil (FROHLICH, 2014). Também constatou-se que os textos jurídicos (a exemplo da Carta Rogatória analisada) apresentam estruturas textuais e orais complexas, exigindo atenção redobrada por parte do tradutor/intérprete, bem como conhecimento profundo e especializado nas línguas envolvidas. De um modo geral, é necessário que haja operações intelectuais para ler e compreender um determinado texto, no entanto, o autor de textos jurídicos normalmente não fornece estrutura textual satisfatória para seu entendimento (como a utilização de elementos coesos e coerentes, linguagem clara, etc.), deixando esse trabalho ao leitor e, por consequência, ao tradutor. Considerando o conjunto dessas reflexões, conclui-se que, de fato, a linguagem jurídica brasileira é complexa e merece muita atenção, tanto por parte do tradutor, que traduz os documentos jurídicos, quanto por parte dos operadores do Direito, que os elaboram. Dentro desse contexto, parece prudente pensar em uma modernização das leis vigentes, bem como em uma simplificação da linguagem jurídica, que se oriente à diminuição de barreiras linguísticas dentro das esferas comunicativas (entre os agentes de diálogo: operadores do Direito e público leigo) o que contribuiria para um melhor desempenho dos tradutores. Não obstante, a competência do tradutor é tão importante quanto uma possível simplificação da linguagem jurídica a ser trabalhada por ele. Desta forma, o que se constata é que haverá maior chance de se atingir legitimidade tradutória quando houver compreensão real do que se traduz, o que, por sua vez, só existirá quando o tradutor tiver formação e orientação adequadas. Referências ACQUAVIVA, M. C. Dicionário jurídico brasileiro Acquaviva. 13. ed. Atual, rev. e ampl. São Paulo: Ed. Jurídica Brasileira, ANDRADE, V. S. R. O Juridiquês e a Linguagem Jurídica: o Certo e o Errado no Discurso Disponível em: Último acesso em: maio de AUBERT, F. H. Tipologia e Procedimentos da Tradução Juramentada. SP: USP, BITTAR, E. C. B. Linguagem Jurídica. 5a. ed. São Paulo, Brasil: Saraiva, 2010.

109 Luciane Fröhlich 109 BONINI, A. Em Busca de um Modelo Integrado para os Gêneros do Jornal. In: CAVALCANTI, M. M.; BRITO, M. A. P. (Ed.). Gêneros textuais e referenciação. Fortaleza: Grupo Protexto, CAO, D. Legal Translation Translating legal language. In: The Routledge Handbook of Forensic Linguistics. Routledge: London & NY, (Ed.). Translating Law. Clevedon: Multilingual Matters, COSTA, W. O. Norma jurídica: espécies normativo jurídicas. (s.d.).disponível em COULTHARD, M. & JOHNSON, A. An Introduction to Forensic Linguistics: Language in Evidence. Routledge: London & NY, COULTHARD, M. & JOHNSON, A., (Orgs.). The Routledge Handbook of Forensic Linguistics. Routledge: London & NY, FERREIRA, A. B. De Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, FRÖHLICH, L. Desafios e competências do tradutor/intérprete forense no Brasil: uma questão de perícia. (Palestra proferida na Conferência Linguagem & Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Direito na UNICAP/Recife, em 03 de setembro de 2012).. Tradução Forense: um estudo de cartas rogatórias e suas implicações. Tese (doutorado) PGET, Universidade Federal de Santa Catarina, GIBBONS, J. Forensic linguistics: an Introduction to Language in the Justice System. Malden, USA; Oxford, UK; Victoria, Australia: Blackwell Publishing, HALE, S. Working with interpreters effectively in the courtroom. (Paper presented at the AIJA conference: The use of interpreters in courts and tribunals March 2008, Freemantle, WA). NASCIMENTO, L. A. S. Investigating Norms in the Brazilian Official Translation of Semiotic Items, Culture-Bound Items, and Translator s Paratextual Interventions. (Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras/Inglês e Literatura Correspondente (PPGI) da UFSC, 2006).

110 110 Desafios e competências do tradutor forense no Brasil: uma questão de perícia OLIVEIRA, W. A Norma Jurídica: Espécies Normativo Jurídicas. Disponível em Acesso em 03/12/2012. TORRES, S.; ALMEIDA, M. B. de. Documentação Jurídica: Reflexões sobre a Função Social do Documento Legislativo. In: Proceedings do II Congresso Brasileiro em Representação e Organização do Conhecimento, FGV, Rio de Janeiro, 2013.

111 Parte II DISCURSO JURÍDICO

112 5 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha 1 Maurilo Sobral, Vinicius de Negreiros Calado e Virgínia Colares Universidade Católica de Pernambuco 1. Introdução Este capítulo analisa o Acórdão nº (Apelação Criminal nº APR) da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), cujo processo é oriundo do 3 Juizado de Violência Domestica e Familiar Contra a Mulher de Brasília (Ação Penal IP 698/10). O estreitamento teórico entre a Análise Crítica do Discurso (ACD) e a Ciência Social Crítica abre o diálogo para abordagens nas quais a prática discursiva estabelece a mediação entre o texto e a prática social. A ADC, portanto, tem como fulcro a abordagem das relações (internas e recíprocas) entre os textos, as práticas discursivas e as práticas sociais. Os textos produzidos socialmente em eventos autênticos, como a prolatação do Acórdão nº , sob análise, são resultantes da estruturação social da linguagem que os consome e os faz circular. Por outro lado, esses mesmos textos são também potencialmente transformadores dessa estruturação social da linguagem, assim como os eventos sociais são tanto resultado quanto substrato dessas estruturas sociais. O aporte legal - Lei Maria da Penha para a decisão judicial em apreço traz em sua tessitura textual a reprodução e legitimação de valores e crenças machistas/ feministas que 1. Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada individualmente em CALADO, Vinicius de Negreiros. Análise crítica do discurso jurídico em caso de absolvição de acusado em fato enquadrado na Lei Maria da Penha: desvelamento do fundamento implícito reformador do julgado e suas consequências. In: Regina Lucia Teixeira Mendes; Fernando Antonio de Carvalho Dantas; Leonel Severo Rocha. (Org.). Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas. 1ed.Florianópolis: FUNJAB, 2013, v. 1, p

113 Maurilo Sobral 113 circulam nessa sociedade que promulgou tal lei, assim como a utilização desse diploma legal reflete modos de operação da ideologia (THOMPSON, 1995) do sistema penal e processual penal. A lacuna ou insuficiência, nas ciências sociais, de teorizações do papel da linguagem na vida social e as ferramentas apropriadas para a análise empírica desses materiais verbais, constatada por Chouliaraki (2005), o fez caminhar para as práticas sociais. Já para Fairclough (2001, p.167), a análise das práticas sociais constitui um foco teoricamente coerente e metodologicamente efetivo. Por essa razão, eleger a agenda da ACD para tratamento dos dados verbais produzidos na instância jurídica vem sendo tão profícua. Desde a criação, por Virgínia Colares, do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito na Plataforma Lattes do CNPq, no ano 2000, esses estudos transdisciplinares têm sido nomeados de Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ) 2. O propósito dessa agenda de pesquisa é estudar a linguagem na instância jurídica como prática social e, para tal, considerar o papel crucial do contexto social. Esse tipo de análise se interessa pela relação que há entre a linguagem e o poder - relações de dominação, discriminação e controle, na forma como elas se manifestam através da linguagem (WODAK, 2003). Nessa perspectiva, a linguagem é um meio de dominação e de força social, servindo para legitimar as relações de poder estabelecidas institucionalmente. A ACD rompe com a análise de discurso (AD) na medida em evita o postulado de uma simples relação determinista entre os textos e as estruturas sociais, ou seja, a /.../ ACD permite analisar as pressões provenientes de cima e as possibilidades de resistência às relações desiguais de poder que aparecem em forma de convenções sociais (WODAK, 2003, p.19-20). A ACD não pode ser considerada um método único, porém uma agenda que tem consistência em vários planos, pois faz ancoragem em: (a) a tradição da análise textual e linguística; (b) a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas sociais ; e (c) a tradição interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum partilhados. (FAIRCLOUGH, 1989, 2001) A ACD nunca se propôs a ser um corpo teórico homogêneo, assim, daquele grupo fundador, cada um dos pesquisadores constrói uma heterogeneidade de abordagens identificadas pelo mesmo guarda-chuva de princípios da ACD e diferenciadas pelo ecletismo teórico. Norman Fairclough e outros da escola de Lancaster realizam a articulação entre Linguística Sistêmica Funcional (LSF) e Sociologia (FAIRCLOUGH, 2003, 2006); Theo van Leeuwen amplia o conceito de texto e trabalha as questões de multi- 2. Análise Crítica do Discurso Jurídico é o título do relatório de pesquisa individual de Virgínia Colares, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/ Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; Protocolo n

114 114 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha modalidade e hibridização, tornando-se um expoente da Semiótica Social (VAN LEEUWEN, 2007); Teun van Dijk retoma diálogo entre Linguística Textual e cognição social de onde iniciou (VAN DIJK, 1989, 1993, 2001); Ruth Wodak articula a Sociolinguística e a História (WODAK, 1996), para mencionar algumas nuances do projeto inicial da agenda da ACD. Parece que a aparente heterogeneidade guarda princípios da agenda inicial para atender ao modelo tridimensional (texto, prática discursiva, prática social). Norman Fairclough afirma que deverão ser consideradas três perspectivas analíticas, (1) a multidimensional com a tarefa de avaliar as relações entre mudança discursiva e social, relacionando as propriedades particularizadas dos textos às propriedades sociais dos eventos discursivos nos quais se realizam; (2) multifuncional, para averiguar as mudanças nas práticas discursivas que contribuem para mudar as crenças e os conhecimentos, as relações e identidades sociais e (3) a histórica, para discutir a estruturação ou os processos articulatórios na construção de textos e na constituição, em longo prazo, de ordens de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p. 27) Em todas essas abordagens do discurso, textualmente orientadas, buscam-se caracterizar processos sociocognitivos em perspectivas históricas; identificar políticas e ideologias na prática cotidiana dos sujeitos sociais; verificar os resultados e os efeitos dos discursos sobre as estruturas sociais, pois através do contato com textos marcados por desigualdade de poder, os sujeitos linguísticos/ sociais são treinados a assumir certas posições de poder nos textos que produzem e consomem. (KRESS 1989, p. 449) A transdisciplinaridade consiste num pensamento organizador que ultrapassa as próprias disciplinas em colaboração. Em 2014, Virgínia Colares denomina de hermenêutica endoprocessual a interpretação que consiste em dar conta da produção de sentidos no funcionamento da linguagem em uso durante a atividade social de prolatar decisões judiciais. Como a Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ) constitui perspectiva teórica e metodológica aberta ao tratamento das diversas práticas que compõem a vida social, o desafio dessa hermenêutica endoprocessual é dar conta de teorias e métodos interpretativos dos dois domínios de conhecimento em contato, Direito e Linguagem, de um modo transdisciplinar. Neste estudo aborda-se a linguagem na justiça, uma vez que o objeto de estudo (corpus) é um dado autêntico coletado de repositório de jurisprudência oficial de Tribunal Pátrio (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT) e escolhido por sua repercussão no cenário jurídico nacional. O acórdão fora dividido em fragmentos, tendo suas linhas numeradas e seu inteiro teor transcrito, sendo a ele aplicadas as categorias de análise a partir do referencial teórico abordado.

115 Maurilo Sobral 115 Antes, porém, de adentar na análise do acórdão buscar-se-á na revisão da literatura especializada sustentação teórica para a legitimação da violência que emerge do texto. 2. Quando a legitimação da violência torna a vítima culpada por ter sido violentada O crescimento da violência (ADORNO, 2015, p.267) nas relações intersociais não é só perceptível e sentido no âmbito interno da sociedade, mas atinge diretamente sua relação com o estado, no sentido de cobrar políticas públicas que visam: prevenir, controlar e reduzir focos de violência. O aumento da violência em suas múltiplas facetas se tornou um dos grandes problemas sociais e pontos críticos das políticas públicas atuais, resultando no enrijecimento das legislações criminais e a utilização prioritária do sistema penal como instrumento de controle, não sendo diferente nos casos de violência doméstica. A sociedade brasileira se mostra, ao longo de séculos como uma sociedade claramente patriarcal (BUSTAMENTE; MOURA, 2009, p.159), estruturada sob uma perspectiva machista, onde a figura do homem, através de uma análise de gênero, direciona a reprodução, em suas inúmeras formas, de atos diretos e indiretos de violência contra a mulher. Ressalta-se, entretanto, que o próprio estado mantém legítima a reprodução da violência em inúmeros âmbitos, principalmente através de dispositivos legais, seja através da atuação de suas instituições como o Judiciário, e a polícia, seja por meio de medidas que direta ou indiretamente reproduzem e permitem inúmeras violações contra corpos individuais, ou grupos específicos, conforme assegura Sérgio Adorno (2002, p. 274): Do mesmo modo que outros agrupamentos políticos, o Estado é uma empresa de dominação de uns sobre outros por meio do recurso à violência ou à ameaça do seu emprego. No entanto, trata-se de uma violência legítima, porque autorizada pelo direito. É isto que faz com que lhe seja possível diferenciar força coatora do estado do puro e simples recurso à violência para impor a vontade uns sobre outros. (grifos nossos) O estado como agente reprodutor de interesses de dominação, se utiliza de instrumentos institucionalizados que legitimam tais perspectivas. Sendo assim, o que se classifica como força coatora em momento algum deixa de ser uma manifestação de violência, mesmo que institucionalizada. Nesse sentido, as legislações e seus respectivos dispositivos legais assumem a posição de um poderoso instrumento de disciplina, justificativas e controle, através da reprodução de interesses e perspectivas culturais dominantes.

116 116 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha Ademais, em um cenário onde a mídia e demais agentes políticos assumem um posicionamento estratégico no sentido de tornar superficial o debate e o impacto da violência e a própria mobilização da população, incrustada por um alarde midiático estereotipado, aceleram a aprovação de políticas inócuas que produzem consequências extremamente desastrosas, principalmente nos meios de controle de violência que carregam estruturas históricas e culturais permeadas nas relações sociais vigentes. Nesse sentido, não foi diferente com a legislação instituída para coibir a violência doméstica contra a mulher, a Lei Maria da Penha (Lei nº /06) onde o estado no lugar de dar voz aquela mulher violentada, acaba exercendo meios de silencia-la, conforme segue: A prioridade da ação Estatal não consiste na contemplação dos sentimentos da vítima ou dos efeitos da prática delitiva sobre sua vida, mas na persecução penal daquele que praticou um ato criminoso. Após a expropriação do conflito pelo Estado, portanto, o suposto agressor não tem que dar satisfações à ofendida, mas deve prestar contas ao próprio Estado, detentor da ação penal. As vítimas, no sistema penal, portanto, são ignoradas; seus depoimentos são reduzidos a termo e, para os oficiais, tudo que importa ao reportálos são as circunstâncias relatadas que fazem o fato subsumir à norma. Os documentos oficiais assemelham-se a formulários com uma narrativa monótona, impessoal e sem variações que leva a completa redução da complexidade dos conflitos. (grifos nossos) (MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 495) Percebe-se que a referida legislação se apoia em um modus operandi que não permite uma visão ampla do problema, de modo que não consegue abarcar a complexidade e as construções sociais existentes. Sendo assim, em que pese a intenção de empoderamento da mulher, a respectiva lei a silencia, e o interesse do estado na condenação ou absolvição do réu se torna prioridade em detrimento de qualquer anseio e contexto de violência ao qual ela está inserida, passando a mulher a assumir um papel secundário no processo (MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 492). O estado, ao assumir o papel de protagonista na ação, exerce inúmeras vezes uma posição que não contempla os interesses da vítima da violência. Inclusive, vindo a provocar uma atuação do Judiciário que venha legitimar a violência sofrida pela mulher, por reproduzir um discurso marcado pelo machismo da sociedade atual, como no caso analisado no presente trabalho.

117 Maurilo Sobral 117 Ademais, o sistema carcerário como reposta preventiva e repressiva à violência no âmbito doméstico, além de não satisfazer aos anseios pleiteados ao longo de décadas de luta e militância pelas mulheres, assume uma perspectiva falha de segurança jurídica e de instrumento eficaz de diminuição da violência contra a mulher, nesse sentido expõe Marília Montenegro (2010, p.940): Segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica. Além dos instrumentos legais, conforme expõe Foucault existe uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia, e toda uma rede de instituições de vigilância e correção (2003, p. 11). Segundo o autor, esse complexo de redes institucionais assume a função de corrigir indivíduos em potência e subordina esse indivíduo à construções advindas das relações de poder. Em torno dessa rede reprodutora de controle e disciplina, o judiciário e suas práticas se situam como ferramentas indispensáveis da sociedade para a solução de conflitos dentro das estruturas sociais vigentes. Dessa forma, reproduzem direta e indiretamente construções sociais que manifestam uma carga cultural histórica e de solidificação de interesses, conforme preconiza Foucault (2003, p.11): As práticas judiciárias maneia pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história- me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas.

118 118 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha Nesse sentido, conforme expõe Bourdieu, as estruturas de dominação são produtos de construções solidificadas ao longo de processos históricos, onde carregam o trabalho incessante de reprodução (BOURDIEU, 2012, p.46) da violência física e simbólica, através do homem e demais agentes específicos, como instituições, famílias, igreja, escola, estado. Ora, no caso analisado, é perceptível violência simbólica contida do discurso do Judiciário, inclusive, como justificativa para a absolvição do réu, ao entender que o soco dirigido pelo réu e que veio a causar lesões no rosto da vítima não se caracterizava como uma conduta violenta, por ter a vítima, inicialmente, direcionado um tapa contra o réu, dando causa à briga, conforme exposto em trecho do julgado abaixo: [...] Mas isso não significa que o homem, quando agredido fisicamente pela mulher, deva apanhar sem reagir. No caso, se o réu não reagisse à primeira bofetada na cara, certamente levaria a segunda, a terceira e por aí afora. O meio utilizado pelo réu foi necessário para repelir a injusta agressão. E a meu ver, não houve a desproporcionalidade sustentada pela douta Procuradoria de Justiça em seu ilustrado parecer. O réu levou um tapa, reagiu com um soco, evidentemente mais forte. Se tivesse reagido com outro tapa, com a mesma força ou mais leve do que o recebido, a agressão não cessaria, e ambos continuariam trocando tapas até que um dos dois, em determinado momento, desferisse golpe mais violento. [...] (Apelação Criminal nº APR, Dezembro 2010.) Sob uma perspectiva da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2013, p. 132) fica explícito nas entrelinhas do discurso do relator que a vítima se torna culpada da sua própria violência sofrida, por ter direcionado um tapa contra seu agressor. Entende-se que de acordo com o exposto o tapa desferido pela vítima seria considerada uma atitude que não correspondesse com sua condição de mulher dentro das estruturas sociais atuais. Uma atitude que a coloca fora das expectativas sociais impostas a ela como vítima, na condição de submissa. Nesse sentido, a partir de uma perspectiva Foucaultiana, o que se observa é um direcionamento do controle não mais sobre os corpos diretamente, mas exercer um poder coercitivo constantemente intenso sobre os movimentos e posturas, classificado por Foucault (2013), de corpo ativo, conforme segue: Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que

119 Maurilo Sobral 119 realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as disciplinas. [...] Diferentes da escravidão, pois não se fundamenta numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos e utilidade pelo menos igualmente grandes. (p.133) Dessa forma, fica claro o exercício da disciplina como produção das relações de poder (FOUCAULT, 2013, p. 165). Relações legitimadas e institucionalizadas através da atuação do Judiciário, que dotado de uma rede de dispositivos reproduzem meios de coerção incisivos sobre o individuo. Ou seja, mecanismos disciplinares assumem um papel de atuação efetiva sobre os corpos, mesmo que sem precisar toca-los, impondo sobre as consequências de um processo de dominação. A força simbólica escamoteada pelo discurso do relator no julgado analisado reproduz um sistema de violência direcionado à vítima, especificamente à sua representação como mulher ao ponto de coloca-la como merecedora da agressão. Tal coação, no entendimento de Bourdieu só é possível a partir do exercício direto da força simbólica contra aquele individuo, onde tais mecanismos só assumem uma postura eficaz porque se apoiam em predisposições que funcionam como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos (BOURDIEU, 2012, p. 50). Ou seja, a eficácia dessa violência simbólica contra a mulher, só é possível porque já se encontra incorporada nas estruturas sociais vigentes, até porque a forma como as mulheres percebem o fenômeno da violência de gênero e dos crimes sexuais, por exemplo, tem um impacto direto em seu comportamento social. (FIGUEIREDO, 2014, p. 148) Ademais, o Judiciário legitima como necessário para a solução da briga, o ato violento direcionado à vítima que resultou em lesões em seu rosto. O voto do relator, o qual foi acompanhado pelos demais julgadores (todas mulheres!), enfatiza a agressão desferida pelo réu como atitude necessária e ponderada contra quem havia dado início as agressões físicas, nesse sentido: [...] Um único soco, portanto, foi a medida certa para fazer cessar a agressão, não havendo que se falar em excesso. Este só ocorreria se o réu continuasse a desferir outros golpes, o que efetivamente não aconteceu, pois a briga terminou ali. E na audiência em juízo, o casal já estava reconciliado.

120 120 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha (Apelação Criminal nº APR, Dezembro 2010) Observa-se que tal análise gera interpretações extremamente perigosas, principalmente a título de precedentes para demais casos de violência doméstica. O judiciário reproduz, de forma extremamente hostil, uma postura de legitimação da violência contra a mulher. Nesse sentido expõe Bourdieu: Ao tomar simbólico em um de seus sentidos mais correntes, supõe-se, por vezes, que enfatizar a violência simbólica é minimizar o papel da violência física e (fazer) esquecer que há mulheres espancadas, violentadas, exploradas, ou, o que é ainda pior, tentar desculpar os homens por essa forma de violência. (2012, p. 46) O soco desferido pelo homem contra mulher carrega o peso de uma carga androcêntrica (BOURDIEU, 2012, p. 69) solidificada ao longo do processo histórico e legitimado e reproduzido pelo judiciário. Observa-se que o julgador não considera, sequer a possibilidade da vítima ter reagido a um processo de violência ao qual possivelmente estava submetida, mesmo ela tendo afirmado que havia dado início a agressão física. A carga do simbolismo hostil atribuída pelo judiciário se junta ao peso do golpe desferido pelo agressor, onde o relator justificou tal agressão como elemento necessário para a solução do conflito. Tal justificativa atribui aquele soco desferido pelo réu contra sua companheira, o peso da honra, onde não só se encontra a honra do agressor, mas de todo machismo presente nas relações e estruturas sociais da sociedade, conforme segue: Este investimento primordial nos jogos sociais (illusio), que torna o homem verdadeiramente homem senso de honra, virilidade, manliness, ou, como dizem os cabilas, cabilidade {thakbaylith), é o princípio indiscutido de todos os deveres para consigo mesmo, o motor ou móvel de tudo que ele se deve, isto é, que deve cumprir para estar agindo corretamente consigo mesmo, para permanecer digno, a seus próprios olhos, de uma certa idéia de homem. É, de fato, na relação entre um habitus construído segundo a divisão fundamental do reto e do curvo, do aprumado e do deitado, do forte e do fraco, em suma, do masculino e do feminino, e um espaço social organizado segundo essa divisão, que se engendram, como igualmente urgentes, coisas a serem feitas,

121 Maurilo Sobral 121 os investimentos em que se empenham os homens e as virtudes, todas de abstenção e abstinência, das mulheres. (grifos nossos) (BOURDIEU, 2012, p ) A prática de atos de violência, segundo Bourdieu (2012, p.61-62) sustenta um processo de justificativa e de identidade do agressor, tanto sob uma perspectiva individual, quanto como um processo de autoafirmação, quanto a partir da influência de uma perspectiva coletiva, regida pela ideia de habitus como forma de legitimar sua posição de homem no espaço social. Dessa forma, é perceptível como a atuação das instituições estatais, precisamente o Judiciário, reproduz mecanismos de legitimação da violência disciplinar presente nas estruturas sociais. A violência direcionada contra a mulher de forma física e direta, assim como a reprodução do controle de simbolismos violentos se tornam meios coercitivos de produção de danos extremamente intensos no âmbito da violência doméstica. Sendo assim, as consequências de tal legitimação é a inserção da mulher em um processo constante de exclusão e submissão. Impede-se ressaltar que foge ao interesse do presente trabalho questionar a absolvição ou condenação do réu. Ademais, já foram expostas as consequências e a ineficácia da instrumentalização do sistema carcerário, assim como a aproximação do sistema penal como forma de redução e controle da violência contra mulher. Outrossim, diante do caráter míope da execução da ação, onde é negligenciado o poder de voz da mulher, a colocando como mera participante no processo, quando na verdade deveria assumir uma posição protagonista onde deveria ser levado em consideração seus anseios e necessidades (MEDEIROS;MELLO, 2014, p.490). Entretanto, se questionam os argumentos e as vias utilizadas pelo relator para justificar a absolvição do réu. Ora, em que pese ter feito referência na decisão a situação de reconciliação vivida pela vítima e o réu, tal fato em momento algum foi usado como um dos fatores que viesse justificar a absolvição, o que mostra o descaso da atuação do julgador com os anseios e interesse da vítima, ressaltando apenas o interesse do estado em decidir sobre quem deve ou não responder pela violência, e consequentemente sobre quem deve ou não assumir a postura de vítima. Ademais, as justificativas utilizadas reproduzem um processo histórico de submissão imposto contra a mulher, inclusive legitimando atos de violência como respostas efetivas para a solução de conflitos no âmbito doméstico, conforme exposto acima. Além de colocar a vítima como causadora da sua própria violência, por ter desferido um tapa contra o réu. Dessa forma, por meio da produção de uma violência simbólica o estado direciona uma rede de mecanismos de controle e disciplina que carrega as estruturas de submissão, inclusive aceito, muitas vezes, por outras mulheres, como no

122 122 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha presente caso em que as demais desembargadoras que acompanharam o voto do relator. Carmem Caldas-Coulthard (2007, p. 232) destaca o uso da linguagem como arma a serviço dos detentores do poder para a perpetuação da submissão da mulher: A questão da linguagem e suas implicações políticas têm influenciado escritoras, filósofas e teóricas sociais através da história intelectual da civilização ocidental. Algumas analistas de discurso postulam que a linguagem é uma arma usada pelos poderosos para oprimir suas e seus subordinadas/os. Nesse sentido, se faz cada vez mais necessário a desconstrução de estruturas e instrumentos que tratem de forma banal danos de ordem física e estrutural extremamente violentos à mulher. 3. Do resumo do caso segundo o acórdão No relatório do acórdão, fragmento 01 adiante transcrito, segundo o método aplicado, tem-se retratado um caso em que um homem agrediu fisicamente sua companheira, na residência do casal, causando-lhe lesões que foram consubstanciadas em laudo. A defesa fundamenta seu recurso em dois argumentos (linhas 08 e 09), o primeiro de que o autor do fato teria agido em legítima defesa e o segundo que o casal teria se reconciliado. Tanto o Ministério Público quanto a Procuradoria de Justiça pugnaram pelo desprovimento do recurso de apelação, com a consequente manutenção da sentença que condenou o autor do fato nas penas previstas no artigo 129, 9º, do Código Penal, e ainda no artigo 5º, inciso I e artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº /06, a uma pena de 03 (três) meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime aberto (linhas 02 e 03). 1. R E L A T Ó R I O 1. E. A. R. apela da sentença que o condenou como incurso nas penas do artigo 129, 9º, do Código 2. Penal, c/c artigo 5º, inciso I e artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº /06, a uma pena de (três) meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime aberto. 4. Consta da denúncia que, no dia 27 de março de 2010, por volta das 02h00, em sua residência, o 5. denunciado de forma livre e consciente, mediante emprego de força física, agrediu sua 6. companheira S. R. V., causando-lhe as lesões descritas no laudo acostado às fls. 15/ A Defesa pleiteia a absolvição, aos argumentos de que agiu acobertado pela excludente da legítima 8. defesa e de que, após os fatos, reconciliou-se com a vítima (fls. 88/97). 9. O Ministério Público, em contrarrazões, pugna pelo não provimento do recurso (fl. 109/111). 10. A douta Procuradoria de Justiça oficia pelo conhecimento do recurso e o seu desprovimento (fl /125).

123 Maurilo Sobral Este o relatório. Fragmento 01 Realizando a análise dos dispositivos legais contidos no fragmento, verifica- -se que o art. 129 do Código Penal brasileiro versa sobre lesão corporal, cuja pena máxima é aumentada (em relação ao caput) em virtude da circunstância de ter sido praticada em âmbito doméstico conforme seu parágrafo nono. Já o artigo 5º, inciso I e o artigo 7º, incisos I e II, ambos da Lei nº /06 (Lei Maria da Penha), versam sobre a violência doméstica e contra a mulher, todos adiante transcritos: Art Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº , de 2004) 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº , de 2006) Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº , de 2006) Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

124 124 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; Feitas essas considerações, de modo que se tenha em mente o fato ocorrido e subsunção normativa consoante os elementos do processo, passa-se a análise a partir do referencial teórico adotado. 4. Análise do julgado segundo o Arcabouço Analítico No presente estudo o julgado é analisado segundo o modelo Arcabouço Analítico proposto por Chouliaraki e Fairclough (Apud OTTONI, 2007), no qual se inicia a análise situando-se o problema. Para os autores, o problema é algo que se situa numa reflexão sobre a prática social, no caso, a reforma pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) (Fragmento 02) de uma sentença que havia condenado um homem por agressão física à sua companheira, sob os seguintes fundamentos: o primeiro que um homem agredido tem direito de reagir (linha 27); o segundo que o homem teria agido em legítima defesa (linha 30) ao socar a mulher em reação a um tapa que lhe fora desferido na cara (linha 28), vez que esta reação teria sido imediata e proporcional (linha 23). 14. Órgão 1ª Turma Criminal 15. Processo N. Apelação Criminal APR 16. Apelante(s) E. A. R. 17. Apelado(s) M. P. D. F. E T. 18. Relator Desembargador JESUÍNO RISSATO 19. Acórdão Nº E M E N T A 22. PENAL E PROCESSUAL PENAL. LEI MARIA DA PENHA. LESÕES CORPORAIS. AGRESSÕES 23. FÍSICAS RECÍPROCAS. INICIATIVA DA VÍTIMA. RETORSÃO IMEDIATA E PROPORCIONAL. 24. LEGÍTIMA DEFESA CONFIGURADA. SENTENÇA REFORMADA. 1. A Lei Maria da Penha, que 25. veio em boa hora, foi um grande avanço no sentido de conferir proteção às mulheres, vítimas de

125 Maurilo Sobral violência por parte dos homens com que mantêm convivência em ambiente doméstico e familiar. 27. Isso não significa que o homem, quando agredido pela mulher, não possa reagir. 2. Comprovado, 28. nos autos, ter sido a varoa quem dera início à contenda, desferindo uma bofetada na cara do réu, 29. tendo este retorquido com um único soco, o suficiente para fazer cessar a agressão, resta 30. configurada a legítima defesa, de molde a excluir a ilicitude da conduta. 3. Recurso provido, para 31. absolver o acusado. Fragmento 02 O discurso que emerge da superfície textual da ementa do julgado constrói uma realidade, cuja compreensão plena do contexto fático apenas se verificará com a análise completa do acórdão (voto), quando na linha 62 o relator fecha o raciocínio afirmando que na audiência em juízo, o casal já estava reconciliado. Neste sentido, é possível indagar acerca do fundamento implícito, pois seria crível que de posse de prova cabal da agressão, conforme o laudo (linha 07, Fragmento 01) e estando o casal em pé de guerra quando da audiência em juízo, iria o relator construir seu voto no sentido de absolver o réu? Noutra ótica, não se estaria aceitando a violência contra a mulher como algo natural, vez que o casal se reconciliou e um soco (de um homem) contra um tapa (de uma mulher) é tido pelo acórdão como algo proporcional? Nas palavras de Débora Figueiredo (2004, p.63): Entretanto, é importante não esquecer que a construção destes casos como tragédias isoladas elimina suas implicações sociais e culturais, isto é, o fato de que tais casos refletem e reforçam um sistema social e jurídico que aceita e naturaliza a violência contra as mulheres. Esta forma de produção do direito, na verdade, nada mais é do que uma estratégia discursiva, como ensina Virgínia Colares (2003, p.45): Assim, a produção de discursos implica, necessariamente, a produção de sentidos que decorrem de procedimentos estratégicos na interação, pois a compreensão é uma operaçãono-mundo, e não um estado mental ou uma experiência específica. Assim, a decisão judicial serve a um propósito, seja ele consciente ou inconsciente do prolator da decisão (magistrado/desembargador), qual seja, a atribuição de um sentido específico para o caso concreto levado à julgamento pela Corte. A Corte produz uma fala autorizada, a qual, por sua vez, não é considerada arbitrária, pois ela é conforme o direito posto, válido e vigente, reflexo de um processo democrático natural, assim:

126 126 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha [...] ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas, <<naturais>>. (2010, p. 114) Desta feita, se o direito constrói (e realiza mudanças) (n)a realidade social através do controle da produção e do consumo do discurso jurídico, designando as falas autorizadas, em verdade ele é instrumento a serviço do poder. É um instrumento a serviço da ideologia na visão de Thompson, significando as: [...] maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas. (1995, p.79) Assim, o normal, o natural, o regular nada mais é do que a aceitação tácita dada através deste processo de reificação, na estratégia típica de construção simbólica de naturalização (THOMPSON, 1995, p.81), afirmando Edgar Morin que basta, portanto, que os homens sejam considerados coisas para que se tornem manipuláveis à mercê, submetidos à ditadura racionalizada moderna que encontra seu apogeu no campo de concentração (2008, p.163 grifos no original). A reificação é um dos cinco modos gerais, não exaustivos, de operação da ideologia segundo Thompson, são elas: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação (1995, p.81). Para o presente estudo tem aplicação a legitimação e a reificação, tendo em vista a campo de aplicação do mesmo, qual seja, decisões judiciais. A legitimação tem aplicação porque as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas como legítimas e é utilizada como forma de persuasão de um determinado público. Esse modo é operado estrategicamente através da típica de construção simbólica racionalização, onde há o apelo à legalidade das regras dadas onde as relações de dominação são apontadas como legítimas. Já a reificação, operada através da nominalização/passivização, possui aplicação porque há a concentração da atenção em certos temas em prejuízo de outros, com apagamento de atores e ações, além da naturalização, onde o normal, o natural,

127 Maurilo Sobral 127 o regular nada mais é do que a aceitação tácita de uma construção simbólica operada através desse processo discursivo (RAMALHO; REZENDE, 2011, p ; THOMPSON, 1995, p. 81). O desvelamento do ocorrido dá-se de modo nítido quando se analisa a conjuntura, outra fase do método arcabouço analítico, composta pelos seguintes elementos (extraídos das linhas do Fragmento 03): 1. Casal ingere bebida alcoólica; 2. Ao voltar para casa, discutem no caminho; 3. Mulher agredida verbalmente por derrubar suas chaves; 4. Mulher desfere tapa no rosto homem; 5. Homem reage com um soco no rosto da mulher, lesionando-a. Analisando os obstáculos na superação do problema temos os seguintes sujeitos: Juiz(a), Promotor(a), Homem, Mulher, Desembargador Relator, Procurador(a) de Justiça, demais desembargadores(as), advogados(as), a sociedade. Contudo, apenas um deles tem o poder, naquele momento da sessão de julgamento do recurso de apelo, de realizar uma estratégia discursiva poderosa: o desembargador relator. É ele quem produzirá o relatório do feito e emitirá sua opinião (voto), enfatizando ou não dados do processo, ou até mesmo, omitindo-os. Neste sentido é possível comprovar a hipótese de Thompson: As pessoas situadas dentro de contextos socialmente estruturados têm, em virtude de sua localização, diferentes quantidades e diferentes graus de acesso a recursos disponíveis. A localização social das pessoas e as qualificações associadas a essas posições, num campo social ou numa instituição, fornecem a esses indivíduos diferentes graus de poder, entendido este nível como uma capacidade conferida a eles socialmente ou institucionalmente, que dá poder a alguns indivíduos para tomar decisões, conseguir objetivos e realizar seus interesses (1995. p ). Ao exercer o seu poder, segue o desembargador relator um procedimento peculiar, que Foucault chama de ritual, acrescentando que esse define todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso que não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos (2009. p. 39).

128 128 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha Através da análise crítica do discurso é possível identificar as operações realizadas, através das pistas deixadas na superfície do texto, indo além do ritual e do próprio texto. Analisando a pragmática (análise da prática da qual o discurso é um momento) encontramos: o ponto de vista do Desembargador Relator que é seguido unanimemente por seus pares (linhas do Fragmento 04), onde o mesmo, logo após considerar que deve o recurso ser apreciado (linha 34 do Fragmento 03), conclui pela absolvição do homem (linha 35 do Fragmento 03), passando a fundamentar a sua decisão na confissão da vítima, supostamente contida em seu depoimento (linhas do Fragmento 03). Destaque-se, por oportuno, que da tomada de depoimento exsurge um texto retextualizado e que sofrera fortíssima influência do juiz(a) que conduziu a audiência, como já constado pela professora Virgínia Colares em sua dissertação de mestrado (1992), bem como por outros estudos específicos no Direito Penal, realizado por Ashikawa A análise do confronto entre os textos transcritos e os textos orais aponta para a confirmação da existência da manipulação no discurso jurídico penal, obtida principalmente, pela retextualização. (ASHIKAWA, 2011). Já nas linhas do Fragmento 03, utiliza o Desembargador Relator a técnica de ancoragem (aproximação/ distanciamento), ao iniciar a enunciação com elogios a Lei Maria da Penha. Mas, quando se imagina que sua conclusão é pela aplicação da Lei que acabara de elogiar, o raciocínio é direcionado para o caminho inverso, asseverando nas linhas que não é por causa da Lei que o homem deve apanhar sem reagir. Ora, a contradição é clara, se a Lei é boa e incide na espécie, vez que a conduta é típica (agressão doméstica), seria caso de aplicação da mesma e não de absolvição, a não ser que estivessem presentes os elementos legais. A construção e o encadeamento da argumentação que segue nas linhas do Fragmento 03 é meramente hipotética (exercício retórico) e não tem base nos fatos, sendo feito em cima de suposições (os negritos não constam do original): se o réu não reagisse à primeira bofetada na cara (linha 52); certamente levaria a segunda, a terceira e por aí afora (linha 53). Ora, e se o réu segurasse a mão da vítima? E se não tivesse desferido o soco e ido embora? E se pedisse desculpas pelos xingamentos recentemente proferidos? Outrossim, usa os modalizadores necessário e injusta (linha 54) para num primeiro momento valorizar positivamente a ação do agressor (soco que parou a briga) e num segundo momento denegrir a ação da vítima (tapa que iniciou a agressão).

129 Maurilo Sobral 129 Da leitura do voto percebe-se que estas palavras são carregadas de sentido advindo do senso comum e são fundamentais para a construção da decisão. Neste sentido, buscou-se encontrar o significado das mesmas em estado de dicionário e confrontá-las como a acepção contextual. justamente (justo): exatamente; no momento preciso; na devida quantidade ou proporção. (HOUAISS, 2001, p. 1696). necessário: absolutamente preciso; que tem que ser; essencial, indispensável; que não se pode evitar; imprescindível, inevitável, forçoso; que deve ser cumprido; obrigatório, do ponto de vista moral. (HOUAISS, 2001, p. 2002). É plausível que um soco é absolutamente preciso ou indispensável para encerrar uma discussão? Como exercício retórico vamos reconstruir a frase contida na linha 54: O meio utilizado pelo réu foi necessário para repelir a injusta agressão., alterando as expressões pelos atos praticados e os adjetivos por sinônimos. Eis a alteração proposta, quanto às expressões e atos: onde está grafado o meio utilizado pelo réu, substitui-se pelo ato por ele praticado soco no rosto. Já o adjetivo necessário será substituído por indispensável, e injusta agressão por desproporcional tapa. Assim ficaria reconstruída a frase: o soco na cara foi indispensável para repelir o desproporcional tapa. Outros vocábulos e expressões poderiam ainda ser analisados, mas para o fim proposto ao presente estudo acredita-se que seja suficiente, o exercício feito acima. Parte-se agora para as linhas 62-64, onde, imagina-se, está a chave que abre a porta para o desvelamento do fundamento implícito da decisão. Na linha 62 o enunciador afirma que a briga terminou ali e que o casal já estava reconciliado, e linha seguinte que a ação do apelante foi abraçada pela excludente penal. Nada mais bonito que uma briga finda, um casal reconciliado e um ponto final na demanda. Se não é o que parece é porque estes pesquisadores talvez não tenham lido direito: uma narrativa conducente a um final feliz que não poderia terminar com uma condenação, mas sim com uma absolvição. Para o fim a que se propõe a narrativa é perfeita: pois a analise foi feita devidamente (linha 35), concluindo-se que o apelante tem razão (linha 35), pois a vítima confessou que iniciou a agressão física (linha 41). A Lei Maria da Penha foi um grande avanço (linha 49), mas o homem não deve apanhar

130 130 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha sem reagir (linha 52), logo, se reage a um tapa na cara com um único soco (linha 60), age em legítima defesa (linha 63). Porque atentar para os detalhes e dar ênfase ao laudo (linha 07 do Fragmento 01) no seu voto? Talvez a briga tenha parado por aí para o apelante que foi embora, mas a vítima foi à delegacia de polícia, registrou a ocorrência e foi submetida a exame de corpo delito, afinal existe nos autos um laudo descritivo das lesões. Responde-se: porque a briga terminou e o casal já estava reconciliado (linha 62). Eis o real fundamento da decisão. A manutenção da condenação do apelante iria, em verdade, trazer uma consequência socialmente indesejada, pois a vítima perdoou o ofensor e reconciliou-se com ele. A questão social fora maior que a jurídica, mas o desembargador não poderia externar tal fundamento porque as questões de política criminal não competem ao desembargador, mas sim a aplicação de Lei, a justiça criminal no caso concreto. Nas linhas externa o desembargador relator fundamento explícito acerca de sua decisão, asseverando que houve, no caso, agressões recíprocas (linha 65), utilizando nas linhas do argumento de autoridade de um precedente anterior. Contudo, cai por terra o argumento de autoridade por falta de coerência ou similitude fática, ao constar no precedente a ausência de prova segura (linha 72), condição fática que no caso em análise se observou, através do laudo (linha 07 do Fragmento 01). Desta feita, o que prevaleceu foi o aspecto arbitrário da decisão, no sentido de poder. Nas palavras de Dinamarco (2005, p. 100), ao tratar do tema jurisdição e poder: A idéia de poder, que está ao centro da visão moderna do direito processual, constitui assim fator de aproximação do processo à política, entendida esta como o processo de escolhas axiológicas e fixação dos destinos do Estado. [...] Em sua acepção mais ampla e necessariamente vaga, poder é a capacidade de produzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas. (2005, p ) - itálicos no original.

131 Maurilo Sobral 131 Assim, em que pese estar a decisão revestida do manto da formalidade e da imparcialidade, já que a neutralidade inexiste no agir humano, a fixação do sentido da lei foi feita arbitrariamente pelo magistrado, num caso típico de ativismo judicial, isso porque, sobretudo, mas não apenas, no que diz respeito aos tribunais superiores, e num sentido bem literal, é o juiz quem decide o que a lei significa. (ADEODATO, 2009, p negrito no original). Ilustrando este poder dizer e a força dos textos produzidos pelo aparato estatal, Malcolm Coulthard (2014) afirma com base em sua própria experiência que já fora instado a comparecer como perito para que o judiciário pudesse rever [...] condenações errôneas baseado em uma análise detalhada de traços lexicais e gramaticais nos textos. Ou seja, a análise textual é instrumento consistente para desvelar conteúdos que não aparecem na superfície do texto, notadamente quando realizado por peritos. O fragmento 03 contém o voto do desembargador relator, adiante transcrito: 32. V O T O S 33. O Senhor Desembargador JESUÍNO RISSATO - Relator 34. Conheço do recurso, eis que satisfeitos os seus requisitos de admissibilidade. 35. No mérito, após analisar devidamente a questão, a conclusão é de que assiste razão ao apelante. 36. Segundo consta dos autos, na noite do fato réu e vitima tinham ido a um bar, no Edifício Rádio 37. Center, e no regresso para casa, por volta das 2h, iniciaram uma discussão, com troca de 38. acusações e agressões verbais. Já na porta da residência, a discussão evoluiu para a agressão 39. física, por iniciativa da vítima, que desferiu um tapa na cara do réu, e este retorquiu de imediato, 40. desferindo um soco na cara da vítima. E a briga parou por aí. 41. A própria vítima confessa, em juízo, que partiu dela a primeira bofetada (fls. 61), verbis: Que o casal bebeu no dia dos fatos e nós discutimos no caminho para casa, tanto no carro como 44. no elevador; que na porta da residência minha chave caiu no chão e o acusado me xingou de 45. vários nomes, com eu também já tinha xingado ele naquela discussão; aí eu virei um tapa no réu, 46. acho que o acertei no rosto. Que o réu reagiu e já entrou no soco em meu rosto, causando lesões; 47. que eu também machuquei o pé, mas não como, acho que foi no sofá; que o acusado saiu em 48. seguida (...). 49. A Lei Maria da Penha, que veio em boa hora, representou um grande avanço na proteção às 50. mulheres, vítimas de agressões por parte de homens com quem convivem em ambiente de 51. relações domésticas. Mas isso não significa que o homem, quando agredido fisicamente pela 52. mulher, deva apanhar sem reagir. No caso, se o réu não reagisse à primeira bofetada na cara, 53. certamente levaria a segunda, a terceira e por aí afora. 54. O meio utilizado pelo réu foi necessário para repelir a injusta agressão. E a meu ver, não houve a 55. desproporcionalidade sustentada pela douta Procuradoria de Justiça em seu ilustrado parecer. O 56. réu levou um tapa, reagiu com um soco, evidentemente mais forte. Se tivesse reagido com outro 57. tapa, com a mesma força ou mais leve do que o recebido, a agressão não cessaria, e ambos 58. continuariam trocando tapas até que um dos dois, em determinado momento, desferisse golpe 59. mais violento. 60. Um único soco, portanto, foi a medida certa para fazer cessar a agressão, não havendo que se falar 61. em excesso. Este só ocorreria se o réu continuasse a desferir outros golpes, o que efetivamente 62. não aconteceu, pois a briga terminou ali. E na audiência em juízo, o casal já estava reconciliado. 63. Dessa forma, assiste razão ao apelante, visto que sua ação foi abraçada pela excludente de 64. ilicitude. 65. Registre-se que, em casos de agressões físicas recíprocas, quando há dúvidas sobre quem teria

132 132 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha 66. dado inicio à contenda, a jurisprudência é no sentido de que se deve absolver. Com muito mais 67. razão, então, nas hipóteses como a dos autos, onde não resta qualquer dúvida de que foi a 68. suposta vítima quem deu início às agressões. 69. Confira-se, sobre o tema, a seguinte decisão, in verbis: 70. APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LEI MARIA DA PENHA. 71. COMPANHEIRO QUE AGRIDE A ESPOSA DURANTE UMA DISCUSSÃO. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO 72. POR LEGÍTIMA DEFESA. AGRESSÕES RECÍPROCAS. CONTRADIÇÃO NAS 73. VERSÕES DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE PROVA SEGURA. TESE DE LEGÍTIMA DEFESA 74. ACOLHIDA. ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPROVIMENTO. 1. Em 75. crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, a palavra da vítima assume especial relevância e 76. autoriza a condenação, mas se vier corroborada por outros indícios idôneos e não padeça de 77. contradição e dúvida. 2. Se a versão prestada pela vítima na delegacia encontra-se em contradição 78. com a que declarou em juízo, quando admitiu a ocorrência de agressões recíprocas, gerando 79. dúvida sobre quem teria iniciado as agressões, é de rigor acolher a dirimente da legítima defesa e 80. absolver o réu, com base no benefício da dúvida. 3. Recurso conhecido e não provido, mantida a 81. sentença que absolveu o apelado dos crimes previstos nos artigos 147, caput, e 129, 9º, do 82. Código Penal.( APR, Relator ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma 83. Criminal, julgado em 18/06/2010, DJ 02/07/2010 p. 150). 84. Em face do exposto, DOU PROVIMENTO ao apelo, para ABSOLVER o apelante da imputação que 85. lhe é feita, fazendo-o com fulcro no art. 386, inciso VI, do CPP. 86. É como voto. Fragmento 03 Neste último fragmento da decisão (Fragmento 04), adiante transcrito, consta-se apenas que os demais desembargadores, sem maiores digressões, concordam plenamente com o desembargador relator, sendo a decisão unânime, com a peculiaridade de que os outros dois componentes da turma são mulheres (linhas 86 e 88). 87. A Senhora Desembargadora LEILA ARLANCH - Vogal 88. Com o Relator. 89. A Senhora Desembargadora SANDRA DE SANTIS - Vogal 90. Com o Relator. 91. D E C I S Ã O 92. PROVER. UNÂNIME. Fragmento 04 Complementando o raciocínio anteriormente exposto no tocante a política criminal, em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS, na Apelação Crime, Quarta Câmara Criminal, Nº , Des. Marcelo Bandeira Pereira, Comarca de Triunfo, Ministério Público como Apelante, Patrícia Rodrigues de Freitas como Apelado, julgado em 25 de novembro de 2010, por força de visão legalista da justiça criminal, de vítima uma mulher agredida passou a ser ré, tendo em vista que no curso do processo negou a existência do fato originariamente declarado a autoridade policial. Eis trecho do perspicaz voto condutor que manteve a absolvição, mas por razões diversas, adentrando no fato social:

133 Maurilo Sobral 133 No primeiro momento, a apelada sustentou a acusação contra ex-companheiro. Depois, em juízo, renunciou ao direito de representar, no termo próprio tendo constado que ela disse que as agressões que noticiaram não tinham acontecido. Nestes autos, interrogada, reafirmou as acusações iniciais. Então, se tem razão o Ministério Público quando afirma que as palavras da denunciada não merecem crédito, não vejo como, na espécie, com os elementos de que se dispõe, estabelecer que mentiu quando ao ex-marido atribuiu as agressões. Por que, de fato, não poderia ter mentido quando e isso é muito comum em relações da espécie buscou eximilo, em juízo, pelo reatamento das relações? Em sentido diverso, saliento, existe apenas o depoimento, naturalmente suspeito, do ex-companheiro, de quem, por óbvio, não se poderia esperar a admissão da prática dos crimes. Diante desses comemorativos, tenho que a absolvição se sustenta pela dúvida, daí por que mantenho a solução sentencial, apenas que com alteração do fundamento absolutório. (grifos nossos) Nesta esteira de pensamento, não há como deixar de concordar com a professora Marília Montenegro (2010, p. 157) quando esta assevera: O direito penal ignora por completo a violência estrutural e as suas causas, pois o seu discurso é simplesmente punitivo, procurando apenas atribuir culpa a alguém, seja ao homem que bateu na boa mãe de família, ou a própria mulher, que por não ter sido tão boa assim mereceu apanhar. Termina, portanto, estigmatizando os sujeitos envolvidos, oferecendo falsas soluções, e não satisfazendo a vítima, que, muita vezes, pode deixar a Justiça com o rótulo de que gosta de apanhar. Dessa decisão do TJRS infere-se que o promotor de justiça, no afã de cumprir o seu mister, como senhor da ação penal, dirigiu seus olhos para uma

134 134 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha mulher que acionou a máquina estatal, o aparato policial e o Poder Judiciário e mentiu, cometendo uma denunciação caluniosa. Foi, assim, incapaz de enxergar a mulher que ama o marido e que não queria (ou não podia) vê-lo cumprindo pena. O promotor queria pegar o culpado. O inimigo que violou a norma penal. Para aquele ator social que não está cônscio de seu papel, aquela é apenas mais uma mulher que gosta de apanhar. Contudo, voltando à análise do julgado do TJDFT alguns comentários finais são relevantes no tocante a fundamentação implícita que julga-se ter desvelado e suas consequências para a conformação da jurisprudência em casos análogos e legitimação da violência simbólica. Este julgado, partindo de um respeitado Tribunal, tem a possibilidade de influenciar outros, no sentido em que poderá ser usado como argumento de autoridade para a perpetuação de uma prática que deveria a Lei Maria da Penha coibir. O que se observou foi que o Tribunal absolveu um agressor externando na ementa que existiram agressões recíprocas e que a resposta imediata (de um soco lesionador à um tapa), fora capaz de gerar uma excludente (legítima defesa), construção esta, no mínimo, perigosa para a atribuição de sentido que se espera daquilo que constitui o núcleo deôntico da Lei. Esta construção é atributiva de sentido da norma do caso concreto, onde numa turma composta por maioria de mulheres (duas mulheres e um homem), operou-se a legitimação de uma violência contra a mulher-vítima. Vale lembrar que o sentido é o produto de um jogo de forças que subjazem à determinada atividade humana (COLARES, 2010, p.329), no caso a atividade judicial, ao conhecer um recurso de apelação e dar-lhe provimento atribuindo sentido a norma sem explicitar o motivo real do convencimento. Ao omitir o verdadeiro motivo de seu convencimento (reconciliação do casal, fundamento metajurídico), ao invés de contribuir com a justiça social e demonstrar que a política criminal não é a saída para os problemas sociais, o acórdão acabou criando uma excludente para um fato corriqueiro, qual seja, agressões mútuas no âmbito doméstico, onde o homem agride a mulher com mais violência, dada as suas características físicas, que a questão de gênero, justamente, tenta dar um tratamento diferenciado. Neste sentido, é esclarecedora a lição de Marília Montenegro (2010,p.148): A violência doméstica contra a mulher tratase de um conflito de gênero, portanto não se pode deixar de analisar esse conflito como uma relação de poder, entre o gênero masculino, representado socialmente como forte, e o

135 Maurilo Sobral 135 gênero feminino, representado socialmente como o fraco. Assim, não atribuir este sentido à norma, contextualizando o fato social, e ainda, com a prática social corriqueira (infelizmente) de nossa sociedade, é ferir de morte a própria norma, legitimando a violência. Por fim, transcreve-se, e coteja-se, a ementa de julgado do Tribunal de Justiça do Mato Grosso TJMT, onde é repudiado o fundamento de absolvição criminal pelo fato de ter o casal conciliado: TJMT - SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL - APELAÇÃO Nº / CLASSE CNJ COMARCA DE ALTO GARÇAS - APELANTE: JOSÉ CARLOS DE ALMEIDA - APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO - Número do Protocolo: / Data de Julgamento: Relator DES. MANOEL ORNELLAS DE ALMEIDA Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL - LESÃO CORPORAL - LEI MARIA DA PENHA - RECONCILIAÇÃO DO CASAL - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - CONJUNTO PROBATÓRIO SEGURO - REDUÇÃO DA PENA-BASE - PRETENSÃO INSUSTENTÁVEL - CIRCUNSTÂNCIAS DESFAVORÁVEIS - EXACERBAÇÃO DAS HORAS FIXADAS - RECURSO EM PARTE PROVIDO. É impossível a absolvição por crime de lesão corporal praticado pelo cônjuge contra o outro (Lei Maria da Penha) somente pelo fato de ter havido reconciliação posterior do casal. É escorreita a pena aplicada com valorização das circunstâncias judiciais, desfavoráveis ao agente; no entanto a conversão para prestar serviço à comunidade não pode romper os limites da sanção substituída. Como se vê, em caso análogo, considerou outro Tribunal Pátrio impossível a absolvição em face da reconciliação do casal. Neste aspecto, infere-se ter sido possível que não externasse em seu voto condutor o desembargador relator este fundamento justamente por não encontrar ressonância na jurisprudência pátria, buscando o critério da proporcionalidade da reação do agressor em face da atitude da vítima, construindo a absolvição por legítima defesa e agressão recíproca após iniciativa da vítima. 6. À guisa de conclusão A primeira ilação que pode ser feita é a de que existe forte possibilidade da decisão objeto do presente estudo ser usada como argumento de autoridade

136 136 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha para a perpetuação de uma prática que deveria a Lei Maria da Penha coibir, influenciando outras decisões. Constatou-se que o Tribunal em questão absolveu um agressor externando na ementa que existiram agressões recíprocas e que a resposta imediata (de um soco lesionador a um tapa), fora capaz de gerar uma excludente (legítima defesa), construção esta, no mínimo, perigosa para a atribuição de sentido que se espera daquilo que constitui o núcleo deôntico da Lei. Constata-se que houve omissão do verdadeiro motivo, qual seja, a reconciliação do casal um fundamento metajurídico e, ao omiti-lo, ao invés de contribuir com a justiça social e demonstrar que a política criminal não é a saída para os problemas sociais, o acórdão acabou criando uma excludente para um fato corriqueiro, qual seja, agressões mútuas no âmbito doméstico, onde o homem agride a mulher com mais violência, dada as suas características físicas, que a questão de gênero, justamente, tenta dar um tratamento diferenciado. Não atribuir este sentido à norma, com a devida contextualização do fato social, e ainda, com a prática social corriqueira (infelizmente) de nossa sociedade, tem como consequência ferir-se de morte a própria norma, legitimando-se a violência. A aprovação e aplicação da Lei Maria da Penha (Lei nº /06) no caso concreto é resultado de uma política pública que restou inócua, produzindo consequência desastrosa, pois apesar da legislação ter sido instituída para coibir a violência doméstica contra a mulher, a voz daquela mulher violentada no caso concreto foi silenciada. Assim, diante da complexidade do caso (do ponto de vista sócio jurídico) os desembargadores não conseguiram atingir a intenção legal de empoderamento da mulher, silenciando-a, posto que o interesse do estado restringe-se a condenação ou absolvição do réu. No caso, ocorreu a absolvição do réu em face do fundamento implícito contido na reconciliação do casal. Ademais, o Judiciário ao assim agir assume o seu papel de protagonista na ação numa posição que não contempla os interesses vítima da violência, legitimando a violência sofrida pela mulher, tendo em vista que apesar ter feito referência na decisão a situação de reconciliação vivida pela vítima e o réu, tal fato em momento algum foi usado como razão jurídica decisória para a absolvição. Constata-se que o próprio estado-juiz manteve e legitimou a violência sofrida pela vítima, por meio da produção de uma violência simbólica direcionada numa rede de mecanismos de controle e disciplina que carrega as estruturas de submissão, inclusive aceito, muitas vezes, por outras mulheres, como no presente caso em que as demais desembargadoras que acompanharam o voto do relator.

137 Maurilo Sobral 137 Nesse sentido, se faz cada vez mais necessário a desconstrução de estruturas e instrumentos que tratem de forma banal danos de ordem física e estrutural extremamente violentos à mulher. Referências ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva, ASHIKAWA, Águeda Bueno Nascimento; COELHO, Sueli Maria. O tecnicismo e a retextualização como instrumentos de manipulação no discurso jurídico penal. Disponível em < lla/aqueda/artigo_aqueda.pdf>. Acesso em ALVES, Virgínia Colares Soares Figueirêdo. A decisão interpretativa da fala em depoimentos judiciais. Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. CAC. Letras e Linguística, ALVES, Virgínia Colares Soares Figueirêdo. Inquirição na justiça: estratégias Iingüístico-discursivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, BOURDIEU, Pierre, A dominação masculina, 11ª ed, Rio de Janeiro, BUSTAMANTE, Regina; MOURA, José [org.]. Violência na História, Rio de Janeiro, BRASIL. Decreto-Lei n , de 07 de dezembro de Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 30 dez BRASIL. Lei n , de 07 de agosto de Diário oficial [da] república federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 08 ago CALDAS-COULTHARD, Carmen Rosa. Caro Colega: Exclusão Lingüística e Invisibilidade. In Discurso & Sociedad, Vol 1(2) 2007, Disponível em: Acesso em: 05 jun CHOULIARAKI, L. Media discourse and the public sphere. D.E.L.T.A. 21 (especial). São Paulo, EDUC, p , CHOULIARAKI, L. & FAIRCLOUGH, N. Apud OTTONI, Maria Aparecida Resende. Nos caminhos da análise de discurso crítica: um editorial jornalístico. Letras & Letras, Uberlândia 23 (1) , jan./jun

138 138 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha COLARES, Virgínia. Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ): o caso Genelva e a (im)procedência da mudança de nome. ReVEL, vol. 12, n. 23, [ Direito, produção de sentidos e o regime de liberdade condicional. In COLARES, Virgínia (org). Linguagem e Direito. Recife: Ed. Universitária da UFPE, p COULTHARD, Malcolm. Linguística Forense: uma entrevista com Malcolm Coulthard. ReVEL, vol. 12, n. 23, Tradução João Gabriel Rodrigues Marques Padilha. [ Disponível em files/593be207a9e9c9c1b800c704ab855cdb.pdf. Acesso em: 05 jun DIJK, Teun A. van. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros Editores, FIGUEIREDO, Débora. Violência sexual e controle legal: uma análise crítica de três extratos de sentenças em caso de violência contra a mulher. In Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 4, n.esp, p , FIGUEIREDO, Débora C. Discurso, gênero e violência. In COULTHARD, Malcolm; SOUSA, Rui (Editores). Language and Law / Linguagem e Direito. Vol. 1(1), 2014, p Disponível em: ficheiros/12673.pdf. Acesso em: 05 jun FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, 2008 (reimpressão).. Discurso, mudança e hegemonia. In: PEDRO, E.R. (org.). Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, p , Discourse, social theory, and social research: the discourse of welfare reform. Journal of Sociolinguistics, 4(2), p , Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, Language and globalization. London: Routledge, 2006.

139 Maurilo Sobral 139 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, Michel. A verdade e as formas jurídicas, 3ª ed, Rio de Janeiro, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão, 41ªed., Rio de Janeiro, HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, KRESS, G. Linguistic processes in sociocultural practice. Victoria: Australia: Deakin University, MEDEIROS Carolina; MELLO Marília. Entre a renúncia e a intervenção penal: Uma análise da Ação Penal no Crime de Violência Doméstica Contra a Mulher In: CONPEDI; UFSC. (Org.). DIREITO PENAL, PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO: XXIII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI: (Re) Pensando o Direito: Desafios para a Construção de novos paradigmas.. 1ed.Florianópolis: CONPEDI, 2014, v., p MELLO. Marilia Montenegro Pessoa de. Da mulher honesta à lei com nome de mulher: o lugar do feminismo na legislação penal brasileira. In Videre, Dourados, MS, ano 2, n. 3, p , jan./jun Marília Montenegro Pessoa de. A Lei Maria da penha e a força simbólica da nova criminalização da violência doméstica contra a mulher. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 2010b, Fortaleza. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, p PEDRO, Emília Ribeiro (Org). Análise crítica do discurso. Lisboa: Editorial Caminho, MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso (para a crítica): o texto como material de pesquisa. Campinas: Pontes Editores, THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, WODAK, R. Disorders of discourse. New York: Longman, 1996.

140 140 Absolvição e legitimação da violência: uma análise crítica do discurso jurídico em caso enquadrado na Lei Maria da Penha WODAK, R. De qué trata el análisis crítico del discurso (ACD). Resumen de su historia, sus conceptos fundamentales y sus desarrollos. In: WODAK, R.; MEYER, M. (orgs.) Métodos de Análisis Crítico del Discurso. Barcelona: Gedisa, p , 2003.

141 6 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado 1 1. Introdução Vinicius de Negreiros Calado Universidade Católica de Pernambuco A ACD possui um leque amplo de categorias descritivas e metodológicas (PEDRO, 1997, p.33) pelo que se elegeu como base e marco teórico central Norman Fairclough para quem discurso é linguagem falada ou escrita, compreendendo-o como um modo de ação sobre o mundo e sobre os outros, uma prática e não apenas uma representação do mundo que se encontra numa relação dialética entre a prática social e a estrutura social e que é moldado e socialmente constituído. Dito de um modo mais simples: discurso é linguagem como prática social (FAIRCLOUGH, 2008, p.91). Para Fairclough a concepção tridimensional do discurso: É uma tentativa de reunir três tradições analíticas, cada uma das quais é indispensável na análise de discurso. Essas são a tradição de análise textual e linguística detalhada na Linguística, a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas sociais e a tradição interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum partilhados. (2008, p.100) 1. Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada em CALADO, Vinicius de Negreiros. Recurso não conhecido e apreciação de mérito: uma análise crítica do discurso de acórdão do Superior Tribunal de Justiça STJ. In: Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídicas II.1 ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014, v.1, p

142 142 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado Nesse sentido, para o autor análise textual e linguística perfaz uma descrição e a análise da prática discursiva e da prática social uma interpretação (2008, p.101), sendo certo que na prática discursiva importa analisar os processos de produção, distribuição e consumo textual, pois no tocante a produção nem sempre é fácil identificar o produtor textual porque na complexidade do mundo contemporâneo, por vezes, aquele que figura como autor não o único responsável pelo texto. Já o consumo pode ser individual ou coletivo, dependendo significativamente dos contextos sociais onde são consumidos, dos modos de interpretação disponíveis e do processamento dos textos (2008, p ). A dimensão sociocognitiva para Fairclough tem nítida relevância na interiorização do processamento pelos consumidores do texto, posto que os processos de produção e interpretação são restringidos pelos recursos disponíveis aos membros e pela natureza da prática social, asseverando Fairclough que devem ser fortemente exploradas as restrições, principalmente a natureza das práticas sociais (2008, p. 109). A força de um texto ou de parte dele vem de seu componente acional, que é a ação que se realiza (atos de fala), como por exemplo, julgo procedente, declaro nula a cláusula contratual (2008, p.111). Nesse sentido, o contexto funciona como um fator importante na redução de ambivalências textuais, sendo a posição sequencial no texto uma forma de preditor de força, ajudando a explicar a carga e o peso daquela determinada palavra naquela situação, posto que fora daquele contexto, possivelmente, a interpretação não seria aquela (2008, p.112). A intertextualidade é uma das maiores preocupações de Norman Fairclough na obra multireferida, considerando ele que esta é a propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, cuja perspectiva intertextual denota a historicidade dos textos, classificando a intertextualidade em manifesta e constitutiva (também chamada de interdiscursividade), concebendo-a como um foco principal na análise do discurso, (2008, p. 114 e 135) inclusive deste trabalho, dada a marcante característica intertextual do acórdão analisado. O presente trabalho aborda algumas das categorias de análise propostas por Norman Fairclough, entrelaçando sua metodologia com a análise dos modos de operação da ideologia proposta por Thompson, de modo a analisar criticamente os julgados do Superior Tribunal de Justiça - STJ que compõem o corpus da pesquisa. Para a exata compreensão da teoria social crítica de Thompson é preciso apresentar o seu conceito de ideologia, vez que essa palavra é polissêmica e passou por inúmeras modificações ao longo do tempo (1995, p ): [...] proponho conceitualizar ideologia em termos das maneiras como o sentido,

143 Vinicius de Negreiros Calado 143 mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer, querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas (1995, p.78-79). Fixado o conceito, Thompson propõe cinco modos gerais, não exaustivos, de operação da ideologia, quais sejam, legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação. Para o presente estudo tem aplicação a legitimação e a reificação, tendo em vista a campo de aplicação do mesmo, qual seja, decisões judiciais. A legitimação tem aplicação porque as relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas como legítimas e é utilizada como forma de persuasão de um determinado público. Esse modo é operado estrategicamente através da típica de construção simbólica racionalização, onde há o apelo à legalidade das regras dadas onde as relações de dominação são apontadas como legítimas. Já a reificação, operada através da nominalização/passivização, possui aplicação porque há a concentração da atenção em certos temas em prejuízo de outros, com apagamento de atores e ações, além da naturalização, onde o normal, o natural, o regular nada mais é do que a aceitação tácita de uma construção simbólica operada através desse processo discursivo (RAMALHO; REZENDE, 2011, p ; THOMPSON, 1995, p. 81). Essas estratégias de legitimação e naturalização operadas pela ideologia dominante do próprio Direito não passaram incólumes à dogmática jurídica, afirmando Paulo Lôbo com sustentação no pensamento de Luiz Alberto Warat: Pode-se ainda assinalar que a dogmática jurídica exerce, ela própria, uma função ideológica, já que cumpre importantes tarefas de socialização (homogeniza valores sociais e jurídicos), de silenciamento do papel social e histórico do direito, de proteção (cria uma cosmo-visão do mundo social e do direito) e de legitimação axiológica, ao apresentar, como ética e socialmente necessários, os deveres jurídicos. (LÔBO, 1983, p. 28) Assim, o presente estudo parte desse mesmo pressuposto, qual seja, de que a dogmática jurídica é ideologicamente estruturada para criar, insti-

144 144 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado tuir, manter e reproduzir relações de dominação, através de um processo contínuo que se realiza discursivamente no cotidiano, como algo legítimo e natural. O estudo de caso em questão busca demonstrar como se opera esse exercício de poder. Assim, no presente estudo, partir de Norman Fairclough aborda-se as seguintes categorias: intertextualidade e interdiscursividade. E segundo os modos de operação da ideologia em Thompson, aborda-se a legitimação e a reificação. Análises discursivas contextualizadas com saberes específicos requerem pesquisadores capazes de apoderar-se do arcabouço analítico-metodológico da ACD e aplicá-lo em seu campo, sendo certa a influência de sua formação discursiva, inexistindo, pois neutralidade, haja vista que cada pesquisador analisa a partir do seu ponto de vista particular. Teun A. van Dijk afirma que A Análise Crítica do Discurso é (ACD) um tipo de investigação analítica discursiva que estudava principalmente o modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados, reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político (DIJK, 2008, p.113 e 131). Para o autor a ACD é uma pesquisa multidisciplinar cujos detalhes ainda estão em construção e, nesse sentido, menciona a importância da integração de várias abordagens para que se atinja esse desiderato, no que Virgínia Colares já havia percebido esse fato ao asseverar: Como se vê, linguistas e profissionais do direito constróem seus objetos de estudo sob perspectivas teóricas e assunções diversas. As condições de uso da linguagem abrangem múltiplos aspectos, simultâneos e sucessivos, no contexto institucional da justiça, criando um novo objeto, devendo extrapolar a mera análise linguística para construir um objeto de estudo de natureza interdisciplinar: os usos da linguagem regidos pelos princípios jurídicos. (ALVES, 2003, p. 89) 2. Análise crítica do discurso aplicada à decisões judiciais A importância de se realizar um maior desenvolvimento da ACD em domínios e instituições específicas, como é o caso da Análise Crítica do Discurso Jurídico ACDJ é reconhecida por linguistas e juristas. Aliás, Ricardo Lorenzetti (1998, p ) assinala que o Direito como linguagem é sus-

145 Vinicius de Negreiros Calado 145 cetível de uma análise sintática (conexão dos signos entre si), semântica (conexão do signo com o sentido) ou pragmática (que examina o contexto situacional em que o signo é utilizado), afirmando que a relação texto-contexto é perceptível no movimento de estudos críticos. Ao tratar do caráter problemático do significado das palavras e das proposições linguísticas Pietro Perlingieri assevera que as palavras assumem no tempo significados mesmo qualitativamente diversos, segundo a cultura e a sensibilidade do destinatário (2002, p. 73), concluindo que [...] a sua leitura será sempre influenciada pelo conhecimento do universo normativo (2002, p. 74). Nesse sentido o texto, o contexto e o conhecimento jurídico do intérprete não podem ser olvidados numa análise crítica de uma decisão judicial, sob pena de extrema redução de sua complexidade. O texto jurídico situado no contexto de uma decisão judicial exerce um poder dizer e conta com uma força própria dos textos produzidos pelo aparato estatal. Este tipo de texto faz parte do objeto de pesquisa do professor Malcolm Coulthard (2014), o qual afirma com base em sua própria experiência que já fora instado a comparecer como perito para que o judiciário pudesse rever [...] condenações errôneas baseado em uma análise detalhada de traços lexicais e gramaticais nos textos. No presente estudo aborda-se o texto, o contexto, e a prática social desenvolvida pelo STJ que fixa seu entendimento em sede de Recurso Especial cujo mérito não fora efetivamente enfrentado no acórdão. A ACDJ parte do arcabouço teórico metodológico linguístico-discursivo, mas a ele não se limita, visando construir um aparato próprio interdisciplinar jurídico-discursivo, minimizando desse modo as lacunas apontadas por Teun A. van Dijk (2008, p.131). Assim, trabalhar com ACDJ exige, antes de mais nada, a contextualização do evento autêntico a ser abordado, a partir da formação jurídica da comunidade de intérpretes. Foucault assinala que o discurso é poder que se quer apoderar e não simplesmente o local onde as lutas são travadas, pelo que quando um indivíduo se apropria de um discurso através de uma formação discursiva, na verdade ele está se apropriando do próprio poder. Assim, o advogado ao conhecer as regras e o funcionamento da corte tem efetivamente um poder, pois não se permite que qualquer pessoa tenha acesso, sendo ele ao mesmo tempo submetido ao poder e às regras/condições de funcionamento da corte (2009. p. 10 e 36). O que Bourdieu chama de encenação paradigmática da luta simbólica denomina Foucault de ritual, acrescentando que este define todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso que não podem ser

146 146 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos (2009. p. 39). O discurso jurídico, como discurso legítimo, transforma em coisa existente aquilo que diz (aquilo que a fala autorizada enuncia). Ou seja, de fato, opera-se a reificação através de um ato performático, v.g. cria-se uma lei que define uma data como feriado: está criado o feriado; decide-se judicialmente que João é pai de Carla: ele o é mesmo que não seja de fato (como ocorria no passado antes do DNA ou nos casos que há a negativa do fornecimento do material genético), entre outros. Nas palavras de Bourdieu: [...] em suma, o princípio de di-visão legítima do mundo social. Este acto de direito que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem força de lei é um acto de conhecimento, o qual, por estar firmado, como todo o poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo que enuncia (a auctoritas, como lembra Benveniste, é a capacidade de produzir que cabe em partilha ao auctor). (2010, p.114) A fala autorizada não é considerada arbitrária, pois ela é conforme o direito posto, válido e vigente, reflexo de um processo democrático natural, assim: [...] ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas, <<naturais>>. (2010, p. 114) Desta feita, se o direito constrói (e realiza mudanças) (n)a realidade social através do controle da produção e do consumo do discurso jurídico, designando as falas autorizadas, em verdade ele é instrumento a serviço do poder. É um instrumento a serviço da ideologia na visão de Thompson, significando as: [...] maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação: estabelecer querendo significar que o sentido pode criar ativamente e instituir relações de dominação; sustentar, querendo significar que o sentido pode servir para manter e reproduzir relações de dominação através de

147 Vinicius de Negreiros Calado 147 um contínuo processo de produção e recepção de formas simbólicas. (1995, p.79) Assim, o normal, o natural, o regular nada mais é do que a aceitação tácita dada através deste processo de reificação, na estratégia típica de construção simbólica de naturalização (THOMSON, 1995, p.81), afirmando Edgar Morin que basta, portanto, que os homens sejam considerados coisas para que se tornem manipuláveis à mercê, submetidos à ditadura racionalizada moderna que encontra seu apogeu no campo de concentração (2008, p.163). Esse processo de construção do discurso jurídico pelas instâncias judiciais superiores é aceito naturalmente, como fala autorizada, buscando o presente estudo demonstrar adiante que nem sempre a produção do conteúdo do discurso jurídico que será consumido pela comunidade de intérpretes tem correlação direita com o objeto que deveria estar efetivamente apreciado no julgado. E, no particular, esta construção é atributiva de sentido da norma do caso concreto, pois o sentido é o produto de um jogo de forças que subjazem à determinada atividade humana (COLARES, 2010, p.329), no caso a atividade judicial, ao não conhecer um recurso e externar, ao mesmo tempo, um posicionamento da Corte, como se demonstrará adiante. 3. O caso objeto de estudo e sua análise segundo o aparato da ACD O presente estudo de versa sobre um recurso especial apreciado pela 3ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ, em decisão unânime, que não foi conhecido e está assim ementado: RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - CIRURGIA DE VASECTOMIA - SUPOSTO ERRO MÉDICO - RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA - OBRIGAÇÃO DE MEIO - PRECEDENTES - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE IMPRUDÊNCIA NA CONDUTA DO PROFISSIONAL - CUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO - ENTENDIMENTO OBTIDO DA ANÁLISE DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO - REEXAME DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - ÓBICE DO ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA/STJ - RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. I - A relação entre médico e paciente é contratual, e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio, e não de resultado. II - Em razão disso, no caso da ineficácia porventura decorrente da ação do médico, imprescindível se apresenta a demonstração de culpa do profissional, sendo descabida

148 148 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado presumi-la à guisa de responsabilidade objetiva; III - Estando comprovado perante as instâncias ordinárias o cumprimento do dever de informação ao paciente e a ausência de negligência na conduta do profissional, a revisão de tal entendimento implicaria reexame do material fático-probatório, providência inadmissível nesta instância extraordinária (Enunciado n. 7/STJ); IV - Recurso especial não conhecido. (REsp /RS, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/02/2009, DJe 24/04/2009) Antes de adentrar na análise é preciso esclarecer o que quer dizer Recurso Especial não conhecido. Segundo Alexandre Câmara: O julgamento dos recursos divide-se em duas fases, denominadas juízo de admissibilidade e juízo de mérito. Na primeira delas, preliminar (no sentido estrito do termo, significando que a decisão aqui proferida pode impedir que se passe ao juízo de mérito), verifica-se a presença dos requisitos de admissibilidade do recurso. Sendo positivo este juízo, ou seja, admitido o recurso, passa-se, de imediato, ao juízo de mérito, fase do julgamento em que se vai examinar a procedência ou não da pretensão manifestada no recurso. (2013, p. 66) Aplicando o raciocínio anteriormente exposto, pode-se afirmar que o recurso especial não fora conhecido, logo a decisão é impeditiva do exame do mérito, o qual se caracteriza como a fase seguinte, sucedânea do juízo de admissibilidade. O julgado objeto do Recurso Especial não foi conhecido (não passou pelo juízo de admissibilidade), segundo o relator, por demandar reexame fático-probatório e, segundo a revisora, porque houve incompatibilidade dos dissídios apontados, tendo sido este o único fundamento do recurso. Apesar da divergência (que não consta da ementa) o REsp não foi conhecido por unanimidade. Chama atenção o fato de a ementa estabelecer três posicionamentos, mesmo não tendo o recurso sido conhecido, fato esse que fundamenta primordialmente o estudo.

149 Vinicius de Negreiros Calado 149 Quanto aos fatos originários que ensejaram a interposição do REsp, verifica-se que a ação foi ajuizada por um paciente contra um médico alegando erro médico em decorrência de cirurgia de vasectomia, pelo fato do mesmo ter sido pai após dez anos da data da cirurgia. Na primeira instância a ação foi julgada improcedente e mantida a decisão em segundo grau. Como o REsp não foi conhecido, a decisão foi mantida. Ou seja, prevaleceu a decisão originária do magistrado singular. Uma peculiaridade fática é que o acórdão de origem, mantido pelo STJ, admitiu a prova testemunhal e indireta do dever de informar do médico, nos seguintes termos: com base na confiança depositada no réu decorrente de ser médico da família e com base nas declarações de outros pacientes que também realizaram o mesmo procedimento cirúrgico, conclui-se que não pode ser imputado ao réu a responsabilidade civil, pois não houve inobservância do dever de informar. Passe-se adiante a análise do acórdão segundo o marco teórico, utilizando-se o modelo criado por Colares (2008) onde as linhas são todas numeradas da primeira a última lauda e fragmentadas as passagens de modo a possibilitar a referência e análise. 50. RECURSO ESPECIAL Nº RS (2008/ ) RELATOR : MINISTRO MASSAMI UYEDA 53. RECORRENTE : JOAO CARLOS PICOLO 54. ADVOGADO : ALTAIR RECH RAMOS E OUTRO(S) 55. RECORRIDO : LENIO CARLOS DAGNOLUZZO TREGNAGO 56. ADVOGADO : MÁRIO MIGUEL DA ROSA MURARO E OUTRO(S) RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Relator): Cuida-se de recurso especial interposto por JOÃO CARLOS 63. PICOLO com fundamento no art. 105, III, c, da Constituição Federal de 1988, em 64. que se alega a existência de dissídio jurisprudencial Os elementos dos autos dão conta de que o ora recorrente JOÃO 67. CARLOS PICOLO ajuizou ação de indenização por danos

150 150 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado morais e materiais em 68. face do recorrido LÊNIO CARLOS DAGNOLUZZO TREGNAGO, por conta de 69. suposto erro médico decorrente de cirurgia ineficaz de vasectomia, alegando que, 70. embora tivesse sido informado pelo médico de que o procedimento seria irreversível 71. e definitivo -o que fez com que o recorrente e sua esposa deixassem de utilizar-se 72. de métodos contraceptivos -, ele tornou-se pai após aproximadamente 10 (dez) 73. anos da realização da cirurgia. Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente 74. (fls. 276/284) Interposto recurso de apelação, o e. Tribunal de Justiça do Estado 77. do Rio Grande do Sul negou-lhe provimento, conforme assim ementado: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE 80. INDENIZAÇÃO. CIRURGIA DE VASECTOMIA. GRAVIDEZ 81. POSTERIOR NÃO PLANEJADA. IMPERÍCIA MÉDICA NÃO 82. COMPROVADA. Não estando comprovada nos autos a imperícia do 83. réu quando da realização da cirurgia de vasectomia no autor, 84. inviável a sua responsabilização pela não planejada gravidez da 85. esposa do recorrente, mormente por que a falha no resultado de tal 86. procedimento é uma possibilidade admitida pela doutrina médica, 87. em razão da recanalização espontânea dos ductos deferentes, até 88. mesmo anos depois do método cirúrgico, conforme esclarecido no 89. laudo pericial. Dever de informar devidamente observado pelo réu.

151 Vinicius de Negreiros Calado Erro na conduta médica do recorrido não demonstrado, ônus que 91. competia ao autor. Pressupostos da responsabilidade civil subjetiva 92. ausentes. Sentença de improcedência mantida por seus próprios e 93. jurídicos fundamentos. APELAÇÃO IMPROVIDA (fl. 331). Fragmento 02 No fragmento 02 do Caso encontramos intertextualidade manifesta nas linhas 79-93, tendo em vista que o ministro relator invoca e transcreve a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS. Já entre as linhas encontramos a intertextualidade constitutiva quando o ministro explicita o ocorrido, segundo informações contidas nos autos. Destaque-se que na linha 89 o TJRS explicita que fora o dever de informar devidamente observado pelo réu. 94. Busca o recorrente a reforma do r. decisum, sustentando, em 95. síntese, a existência de dissídio na jurisprudência acerca da qualificação do 96. procedimento de cirurgia de vasectomia como obrigação de meio ou de resultado. 97. Aduz, que, tratando-se de obrigação de resultado, o erro médico resultante da 98. ineficácia do procedimento da vasectomia prova-se pela simples capacidade 99. generandi, estando esta incontroversa nos autos (fls. 347/356) É o relatório. Fragmento 03 No fragmento 03 do Caso constata-se a existência da intertextualidade constitutiva entre as linhas 94-99, quando o ministro explicita o conteúdo do Recurso Especial - REsp. A eventual existência de contrarrazões nos autos não é sequer considerada pelo ministro relator, já a revisora assinala sua existência sem mencionar o conteúdo (linha 299 do fragmento 12) Ainda sobre a questão, a prova testemunhal indicada

152 152 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado pelo réu 155. comprova que para os demais pacientes foram prestadas as 156. devidas informações ao procedimento da vasectomia, o que implica 157. considerar que em relação ao autor não se justifica acreditar em 158. ressalvas ou exceções (...) Assim, com base na confiança depositada no réu decorrente de ser 163. médico da família e com base nas declarações de outros pacientes 164. que também realizaram o mesmo procedimento cirúrgico, conclui-se 165. que não pode ser imputado ao réu a responsabilidade civil, pois não 166. houve inobservância do dever de informar Por fim, a responsabilidade do réu também inexiste porque não 169. demonstrado por meio de provas seguras de que sua conduta, ao 170. realizar a cirurgia, foi culposa. A alegada imperícia sustentada pelo 171. autor não foi comprovada (...) enfim, não restou demonstrado nos 172. autos que o proceder do médico réu foi em desacordo com as 173. técnicas conhecidas na literatura médica Não apontada especificamente e não comprovada de forma segura 176. uma conduta culposa por parte do réu, não há que se falar em 177. responsabilidade civil, mormente porque salientado em diversas

153 Vinicius de Negreiros Calado passagens da fundamentação que a falha no resultado do 179. procedimento é uma possibilidade admitida pela doutrina médica (...) A par desta compreensão, ante a ausência de erro na conduta 184. médica do réu, inviável atribuir-lhe a responsabilidade pela gravidez 185. não planejada do autor, ocorrida muitos anos depois do 186. procedimento, e, por conseguinte, o reconhecimento da obrigação 187. de indenizar (fls. 341/342). Fragmento 06 No fragmento 06 o relator realiza intertextualidade manifesta, transcrevendo passagens do acórdão recorrido, destacando-se que nas linhas e , o TJRS admitiu a prova testemunhal e indireta do dever de informar do médico, nos seguintes termos: a prova testemunhal indicada pelo réu comprova que para os demais pacientes foram prestadas as devidas informações ao procedimento da vasectomia, o que implica considerar que em relação ao autor não se justifica acreditar em ressalvas ou exceções e com base na confiança depositada no réu decorrente de ser médico da família e com base nas declarações de outros pacientes que também realizaram o mesmo procedimento cirúrgico, conclui-se que não pode ser imputado ao réu a responsabilidade civil, pois não houve inobservância do dever de informar Bem de ver, na espécie, que o entendimento assim esposado pelo 189. Tribunal de origem baseou-se na análise do conjunto probatório carreado aos autos Rever tal entendimento, obviamente, demandaria revolvimento dessas provas, o 191. que é inviável em sede de recurso especial, a teor do disposto no Enunciado n da Súmula/STJ Assim sendo, não se conhece do recurso especial.

154 154 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado É o voto MINISTRO MASSAMI UYEDA Relator Fragmento 07 A conclusão a que se infere da análise textual é que o relator concorda com a tese da responsabilidade subjetiva ( Bem de ver linha 188), adotando-a como razão de decidir, reconhecendo de modo explícito (conforme consta da ementa) a inexistência de responsabilidade do médico ao realizar a cirurgia e cumprindo seu dever de informar ao paciente. Outrossim, ao realizar tal ato e ainda assim não conhecer o recurso proposto, na verdade, o relator fez questão de externar o seu posicionamento no caso concreto, ainda que do ponto de vista prático o recurso não tenha passado pelos pressupostos de admissibilidade para o seu conhecimento, por ser necessário o reexame fático-probatório, segundo o entendimento do ministro relator. Destaque-se que foram consignados três posicionamentos na ementa do acórdão: a relação contratual entre médico e paciente, encerrando obrigação de meio, em regra necessidade de prova da culpa médica nos autos se o procedimento cirúrgico for ineficaz; ausência de negligência do médico que cumpriu seu dever de informar Recurso especial: interposto com fulcro na alínea c do permissivo 297. constitucional (fls. 347/356) alegando divergência da jurisprudência de outros Tribunais Prévio juízo de admissibilidade: após a apresentação de contra-razões, o 300. Tribunal de origem admitiu o recurso especial (fls. 428/428vº), por considerar 301. preenchidos os requisitos genéricos e específicos Voto do relator: não conhece do recurso, sob o argumento de que o 304. acolhimento da tese do recorrente exigiria o revolvimento do substrato fático-probatório

155 Vinicius de Negreiros Calado dos autos, inviável em sede de especial, a teor do disposto na Súmula nº 07 do STJ Revisados os fatos, decido. Fragmento 12 Neste acórdão há um voto vista, sendo o fragmento 12 um recorte do voto vista da Ministra Nancy Andrighi, cuja análise é feita conjuntamente com o fragmento 17, transcrito abaixo Com relação aos acórdãos alçados a paradigma pelo recorrente, cumpre 373. notar que a hipótese fática neles delineada não se subsume perfeitamente ao particular, 374. tendo em vista que, em ambos os julgados, o procedimento cirúrgico foi inexitoso desde 375. o início Aliás, a incompatibilidade dos dissídios evidencia justamente a distinção 378. estabelecida linhas acima, entre o êxito da cirurgia e o resultado final almejado pelo 379. paciente Realmente, no acórdão do TJ/MG consta que o autor não se tornou infértil 382. após o procedimento médico-cirúrgico (fls. 397), enquanto o acórdão do TJ/RJ ressalta 383. que a cirurgia com o fito de tornar o primeiro Autor estéril (...) foi tentada duas vezes 384. sem sucesso (fls. 406). Na espécie, ao contrário, concluiu-se que o procedimento 385. realizado foi bem sucedido por um longo tempo, e que a gravidez somente ocorreu em 386. razão da falha decorrente da recanalização tardia (fls. 281) Deve-se, portanto, afastar a admissibilidade do recurso especial com base

156 156 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado 389. na alínea c do permissivo constitucional Forte em tais razões, acompanho na íntegra o voto do i. Min. Relator, e não 392. conheço do recurso especial. Fragmento 17 A ministra revisora explicita nas linhas e (fragmento 17) que afasta a admissibilidade do recurso com base na alínea c, justamente porque fundamentou o recorrente a sua peça na existência de dissídio jurisprudencial, não tendo colacionado paradigmas pertinentes. Ou seja, o único fundamento invocado pelo recorrente fora a divergência da jurisprudência de outros Tribunais (linha 297, fragmento 12), tendo a relatora afastado a admissibilidade recursal porque não teria sido comprovada a divergência, já que fora caracterizada a falta de similitude entre os fatos contidos nos autos e os fatos contidos nos acórdãos divergentes (chamados de paradigma). Contudo, quando a ministra revisora efetivamente decide (ato de fala acompanho ) nas linhas (fragmento 17) afirma acompanhar na íntegra o voto do relator, quando na realidade não conhece do Recurso Especial por fundamento diverso, posto que o relator não o conheceu por considerar que seria necessário o reexame fático-probatório (que esbarraria na súmula 7) enquanto a revisora não conheceu do recurso por incompatibilidade dos dissídios (linha 377 do fragmento 17), chegando a afirmar que o fazia Forte em tais razões (linha 391 do fragmento 17). É de se destacar ainda que o entendimento da revisora não constou da ementa. 4. Conclusões A análise crítica do discurso ACD tendo como marco teórico Norman Fairclough, apoiada ainda nas construções de John B. Thompson pode ser aplicada a discursos jurídicos. O estudo de caso de acórdão do Superior Tribunal de Justiça - STJ foi realizado com o levantamento de seus elementos textuais e contextuais. Buscou-se demonstrar a existência de uma prática discursiva em que o exercício de poder pelo tribunal superior exorbita o caso concreto, tendo em vista a existência de fixação de três posicionamentos na ementa do acórdão que aprecia o Recurso Especial - REsp objeto do estudo.

157 Vinicius de Negreiros Calado 157 Constatou-se que mérito do recurso não fora apreciado formalmente pelo tribunal, pois do ponto de vista técnico o recurso não passou requisitos de admissibilidade para o seu conhecimento. Contudo, ao ser a ementa construída pelo STJ pouco relevância foi dada a sua principal característica, qual seja, o não conhecimento e os motivos que levaram ao não conhecimento, sendo destacada na ementa a posição do tribunal sobre a matéria (mérito recursal) com a fixação de três posicionamentos de mérito sobre a questão. Outrossim, o recurso especial não passou pelo juízo de admissibilidade, segundo o relator, por demandar reexame fático-probatório e, segundo a revisora, porque houve incompatibilidade dos dissídios apontados, tendo sido este último o único fundamento do recurso. No entanto, esta divergência de relevo do ponto de vista jurídico-processual não consta da ementa, tendo ao final sido a decisão unânime. Conclui-se que o STJ, por sua Terceira Turma, ao apreciar o caso concreto, verificando a existência de uma oportunidade para externar a comunidade jurídica a sua interpretação do direito acerca dos fatos ali delineados (mérito) assim o fez, mesmo diante de uma situação em que, do ponto de vista formal, o seu posicionamento não tenha qualquer efeito prático, tendo em vista que a decisão de origem (questionada no julgado) fora mantida em todos os seus termos porque o Recurso Especial não fora sequer conhecido. Noutras palavras, utilizou-se de seu espaço de poder-dizer o direito no caso concreto para externar o seu entendimento e, desse modo, exercer a sua influência nas instâncias inferiores e na comunidade jurídica em geral. Referências ALVES, Virgínia Colares Soares Figueirêdo. Inquirição na Justiça: estratégias Iinguístico-discursivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, BOURDIEU. Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil: volume 2. São Paulo: Atlas, COLARES, Virgínia ; JARDIM, N. ; PEDROSA, B. ; BARROS, L. ; SIMPLÍCIO, K. Buracos do Recife: estudo de uma decisão judicial. Revista Latinoamericana de Estudios del Discurso, v. 8, p , COLARES, Virgínia. Direito, produção de sentidos e o regime de liberdade condicional. In COLARES, Virgínia (org). Linguagem e Direito. Recife: Ed. Universitária da UFPE, p

158 158 Análise crítica do discurso jurídico: desvelando o poder dizer em recurso sem mérito apreciado COULTHARD, Malcolm. Linguística Forense: uma entrevista com Malcolm Coulthard. ReVEL, vol. 12, n. 23, Tradução João Gabriel Rodrigues Marques Padilha. [ Disponível em files/593be207a9e9c9c1b800c704ab855cdb.pdf. Acesso em: 05 jun DIJK, Teun A. van. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, 2008 (reimpressão). FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, LÔBO, Paulo Luiz Neto. Do contrato no Estado Social: crise e transformações. Maceió: EDUFAL, LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, PEDRO, Emília Ribeiro. Análise crítica do discurso: aspectos teóricos, metodológicos e analíticos. In PEDRO, Emília Ribeiro (Org). Análise Crítica do Discurso. Lisboa: Editorial Caminho, PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso (para a crítica): o texto como material de pesquisa. Campinas: Pontes Editores, THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

159 Vinicius de Negreiros Calado 159

160 7 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha 1. Introdução Lúcia Freitas Universidade Estadual de Goiás Meu objetivo, aqui, será explorar, por uma análise crítica aplicada a textos próprios do sistema penal, de que maneira um problema social como a violência nas relações de gênero é tratado no sistema judiciário. Esse objetivo é acessado a partir de um corpus 1 formado por 25 processos penais de ameaça e lesão corporal, enquadrados na Lei Maria da Penha, nos quais vítimas e agressores tinham relações de parentesco, sendo a maioria casais. Esses processos representam uma parte do montante total de 68 demandas de violência doméstica contra a mulher, registradas entre os anos de 2007 e 2008 no Cartório do Crime da cidade de Jaraguá, interior de Goiás. Essa cidade é tomada como campo específico da pesquisa em virtude de minha atuação como professora e pesquisadora na Universidade Estadual de Goiás, Unidade de Jaraguá, onde o projeto original foi proposto. Paralelamente, essa escolha visa preencher uma lacuna no que se refere às cidades do interior em geral, uma vez que a maioria das pesquisas sobre violência de gênero realizadas no Brasil nas últimas décadas (Almeida, 2001; Azevedo, 1985; Fausto, 1984; Gregori, 1993; Grossi e Werba, 2001) retratam o universo de grandes centros e capitais, tendo sido as pequenas cidades e suas respectivas instituições pouco contempladas. Nessa direção, a cidade de Jaraguá, especificamente, é tomada como ponto referencial de outras localidades semelhantes, espalhadas pelo interior do país, cuja herança cultural, a exemplo desta, guarda marcas da atuação recente de 1. O presente artigo é resultado parcial da pesquisa coordenada pela autora intitulada Violência contra a mulher em uma cidade do interior de Goiás: silêncio e invisibilidade?, financiada pelo Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA nº. 57/2008 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) 160

161 Lúcia Freitas 161 grupos oligárquicos extremamente autoritários que promoveram, de forma prolongada, o favorecimento de vários tipos de violência. As análises que serão aqui apresentadas incidem sobre os processos de continuidade ou ruptura com valores tradicionais que permeiam as concepções sobre gênero e violência dentro do judiciário. O foco, portanto, recai no discurso desse sistema responsável pelo exercício de poder regulador sobre as práticas de violência em geral. Antes, porém, de apresentar a seção de análise, elaboro duas seções preliminares: na primeira, apresento o recorte teórico, dentro dos estudos linguísticos, pelas vias da Análise de Discurso Crítica, que apoia análises discursivas textualmente orientadas; na segunda, abordo como a categoria de gênero tem sido elaborada dentro do Direito e na Lei Maria da Penha. 2. O viés teórico para uma análise crítica da linguagem jurídica A investida de linguistas sobre o campo social tornou-se possível a partir de uma concepção de linguagem que, ao invés de priorizar categorias formais, busca um deslocamento para o uso efetivo da língua em sociedade e das exigências reais e imediatas de seus usuários. Nessa perspectiva, o discurso é considerado o pólo capaz de integrar conhecimento lingüístico, cognitivo e social, junto com as condições nas quais seus falantes interagem. Compreende-se que no âmbito do discurso é operável tanto o nível lingüístico quanto o extralingüístico, pois nele encontra-se o liame que liga as significações de um texto às suas condições sócio-históricas (Brandão, 1991). A proposta, aqui expressa, de estudar a violência nas relações conjugais através de uma abordagem linguística aplicada a registros do sistema penal viabiliza-se, portanto, pelo viés discursivo. Não obstante, como os estudos de discurso formam um campo muito amplo, a forte relação entre a linguagem jurídica e poder demanda uma abordagem específica que possa captar uma visão crítica do discurso legal. Nesse sentido, o referencial teórico-metodógico desta pesquisa sustenta-se na Análise de Discurso Crítica, doravante ADC (Fairclough, 2003; Van Leeuwen, 2008). Essa forma de pesquisa social crítica propõe-se a estudar a linguagem como prática social, observando o papel do contexto e as relações entre linguagem, poder, dominação, discriminação e controle. Tal proposta permite unir a análise textual à tradição macrossociológica de análise da prática social, que se refere às estruturas sociais, assim como à tradição microssociológica, interpretativa, concebendo a prática social como atividade em que as pessoas se engajam. A vertente proposta por Fairclough (2003) envolve basicamente um enfoque da gramática na disposição do texto, associando-a ao sentido sócio-histórico desse texto e a uma abordagem crítica das práticas sociais em que ele se insere. O estudo concomitante desses três eixos procura lançar luz sobre as razões prováveis de certas escolhas na estrutura lingüística (vocabulário, gramática, estruturas textuais), bem como desvendar a que interesses essas formas linguísticas servem.

162 162 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha Nesse sentido, a aplicação de uma abordagem analítica como a ADC sobre textos legais é oportuna à tentativa de revelar possíveis parcialidades escondidas sob a alegada objetividade do discurso jurídico. Tendo em vista a importância do sistema jurídico na vida das cidadãs e cidadãos, devido ao seu poder de decidir sobre questões patrimoniais e até sobre a liberdade das pessoas, é bastante relevante realizar uma análise mais detida das práticas sociais desempenhadas por meio da linguagem jurídica. Conforme alerta Figueiredo (2004), no discurso legal, como em outros discursos que ilustram um sistema social calcado na assimetria entre os gêneros, a noção de que a lei sempre promove direitos individuais e sociais é uma questão complexa. Uma vez que o sistema jurídico e as decisões judiciais tendem a refletir e construir relações assimétricas de poder entre seus operadores e membros de grupos com menos status social, é temerária uma visão desse sistema como veículo imparcial do bem social. Considerando que os agentes sociais não são agentes livres, são socialmente constrangidos, seus textos acabam expondo relações ideológicas que os permeiam. É justamente a essas relações que as seções analíticas se dedicam mais a diante. 3. O paradigma de gênero no Direito e a Lei Maria da Penha A expressão violência de gênero tem-se sobreposto ao termo tradicional violência contra a mulher. Tal mudança ocorre, fundamentalmente, com a introdução da categoria de gênero (Scott, 1986) no campo de investigações, consolidando uma abordagem focada na participação de homens e mulheres nas relações violentas, considerando os papeis que ambos assumem na sua produção e legitimação. Tal conceito tem sido utilizado nas ciências sociais em função de propor uma visão mais aprofundada das relações entre os sexos, captando a criação inteiramente social das ideias sobre os papeis próprios dos homens, das mulheres e de outras identidades sexuais. Nesse sentido, a noção de gênero rejeita explicações biológicas, como as que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior (Santos e Izumino, 2005). Assim, importa que se estude sob esse conceito, como a construção social tanto da feminilidade quanto da masculinidade se conecta ao fenômeno da violência. Essa categoria tem fundamentado debates internacionais e nacionais sobre questões humanitárias, de modo que a violência contra a mulher é situada nas discussões sobre Direitos Humanos e não apenas como um problema doméstico e familiar. Na Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela OEA em 1994), por exemplo, ficou definido que a violência contra a mulher é qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. A pressão dos movimentos internacionais fez com que tanto o paradigma de gênero quando o dos Direitos

163 Lúcia Freitas 163 Humanos fosse incorporado no Brasil, implicando mudanças que resultam na promulgação de novas leis, como é o caso da Lei de 2006, conhecida como 2 Lei Maria da Penha. Embora essa lei se articule diretamente em torno de questões de gênero, Monteiro (2003) observa que o tema é recente dentro no Direito, que historicamente o tratou no âmbito das relações de família, com base em uma radical diferença de funções entre o homem e a mulher que, antes mesmo de serem normatizadas, já se encontravam, de longa data, codificadas na cultura luso-brasileira. O autor ainda denuncia que esses papeis foram direcionados pelo modelo burguês de família, ao qual os codificadores e doutrinadores concedem sanção legal em detrimento da extrema variedade de práticas sociais relativamente à família no Brasil. Nesse sentido, o Direito, ao repartir estatutos e sancionar papéis, reproduz o jogo das estratificações sociais e, embora o faça em constante referência ao princípio da igualdade, recusa-se a reconhecer as reais desigualdades entre os sexos. Assim, o discurso jurídico esconde uma ideologia sexista que, em última instância, acaba por redobrar juridicamente a força normativa sociológica dos fenômenos sociais. O estudo de Campos (2004) destaca que a não incorporação do paradigma de gênero no trato à violência contra a mulher no judiciário resulta na sua banalização, que por sua vez se reflete no arquivamento massivo das demandas, reprivatizando o conflito, com a devolução do poder ao agressor. A autora se baseia no tratamento dado a essa violência antes da promulgação da Lei Maria da Penha, quando as lesões corporais e ameaças, que são os tipos de manifestação mais comuns do problema (Teixeira, Pinto e Moraes, 2011), eram reguladas pela Lei no 9.099, de 26 de setembro de A mesma tratava casos de violência contra a mulher de forma igual a qualquer briga, como as de bar, entre homens ou entre vizinhos. Em substituição à pena era muito comum a aplicação de medidas despenalizadoras previstas pela lei, como a suspensão condicional do processo e o pagamento de multa, como cesta básica e outras formas de prestação pecuniária. Tais procedimentos visavam a uma maior agilização e facilitação do acesso à justiça a certos casos de ameaça e lesão corporal, procurando evitar o início de processos penais que poderiam culminar com a imposição de 2. Essa lei é assim denominada em homenagem à biofarmacêutica cearense, Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima dos tiros que lhe dera o marido pelas costas, simulando um assalto, e anos depois, tentou eletrocutá-la. Na época da primeira agressão, tinha 38 anos, três filhas e ficou paraplégica. Após muita luta pela punição do agressor e enfrentando enorme resistência da justiça brasileira, com a ajuda de organizações internacionais, Maria da Penha conseguiu denunciar o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pela negligência do Estado Brasileiro ao tratar casos de violência doméstica. Tornou-se figura emblemática da causa de mulheres vítimas de violência de seus parceiros e deu nome à Lei, que enfatiza a gravidade do problema e procura dar mais rigor jurídico ao seu tratamento.

164 164 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha uma sanção ao agente de um crime tido como de menor potencial ofensivo. Segundo Campos (2004), o que determina esse potencial é a centralidade da pessoa na proteção jurídico-penal, assim, as lesões corporais, por exemplo,são consideradas menos ofensivas ao bem jurídico vida que o homicídio,devendo, portanto, ser tratadas com menos rigor que este e de forma mais simplificada. Na interpretação da Lei n /95, lesão corporal e ameaça eram crimes de importância diminuída. Opondo-se a essa minimização da gravidade de ações em que um agressor põe em risco a saúde de sua família, protegido pela privacidade do lar, o art. 41 da Lei Maria da Penha (11.340/06) determinou o afastamento da Lei anterior, a fim de tratar com mais rigor delitos praticados em situação de violência contra a mulher. Dentro desse novo contexto, insta saber em que medida as decisões da Justiça satisfazem os paradigmas de gênero e de Direitos Humanos que a lei prioriza. Nas seções analíticas, vou tratar essas questões de forma mais detida. 4. Valores tradicionais sobre conjugalidade: conservadorismo Ao me debruçar sobre os autos que compõem o corpus da pesquisa pude perceber como a violência na conjugalidade se liga a um contexto ainda muito impregnado pelos valores da cultura patriarcal, em que discursos genderizados de direitos e de deveres determinam, conforme definiu Neves (2007), condições menorizantes às mulheres. Os valores de conjugalidade acionados nos gêneros boletim de ocorrência, denúncia, termos de representação etc., são depreendidos direta ou indiretamente em diversos campos destes, pois a maioria deles dedica um espaço do documento ao registro, ainda que sucinto, da condição de conjugalidade dos casais, como pode ser visto nos recortes seguintes: 1. Segundo relato da vítima XXXX, a mesma mantém um relacionamento com XXXXX há cerca de mais de seis anos e que desse relacionamento amoroso, tiveram duas filhas. XXXXXX, de 05 anos de idade e XXXXXXX, de 02 anos e meio. (Trechos retirados do Boletim de ocorrência do processo ). 2. Segundo a fonte em evidência, o denunciado e a vítima são casados, e dessa relação frutificou um filho. (...) Ressoa, ainda dos autos, que por diversas vezes a vítima foi ameaçada e agredida pelo denunciado, além de ter dito que era uma vagabunda, piranha, puta, ordinária, sem vergonha, tudo porque não aceitava a separação do casal. (Trechos retirados da Denúncia do processo )

165 Lúcia Freitas Segundo a fonte em evidência, o denunciado e a vítima são unidos estavelmente há aproximadamente 15 (quinze) anos e dessa relação frutificaram dois filhos. (...) Ressoa, ainda dos autos, que por diversas vezes durante a vida em comum, a vítima foi ameaçada pelo denunciado, pois este afirmou que se ela o deixasse, a mataria, tudo isso motivado pelo ciúme exagerado que sentia. (Trechos retirados da Denúncia do processo ) 4. Apurou-se que a vítima é casada com o denunciado há aproximadamente vinte e um anos e, dessa união, nasceram três filhos. Ocorre, porém, que, há aproximadamente dez anos, o denunciado começou a modificar seu comportamento, passando a ficar agressivo com a vítima e seus filhos, proferindo ameaças contra eles frequentemente. (Trechos retirados da Denúncia do processo ) 5. Ressoa dos autos, que o denunciado e a vítima são unidos estavelmente há um ano, tendo frutificado dessa relação um filho. (...) É certo, ainda, que o denunciado é acostumado intentar agressões verbais contra a vítima, ofendendo-lhe a dignidade, bem como a de sua família. (Trechos retirados da Denúncia do processo ) 6. Segundo a fonte em evidência, o denunciado e a vítima são casados há aproximadamente 03 (três) anos e dessa relação frutificou um filho. (...) Ressoa ainda dos autos, que o relacionamento do casal já não estava agradável, situação que culminou com várias discussões, separações e reconciliações. Na última reconciliação, o denunciado, afirmou que iria matar a vítima se fosse deixado por ela mais uma vez dizendo ainda que ela estaria se insinuando para outros homens, tudo isso em razão do ciúme exagerado que sentia. (Trechos retirados da Denúncia do processo ) Observa-se nesses extratos, todos relativos às condições conjugais entre vítimas e agressores, uma representação embasada na união de um casal heterossexual, em uma dimensão afetiva associada ao amor, principalmente no contexto familiar. Toda essa representação discursiva é feita através de estruturas textuais típicas do Direito, expressas em um léxico próprio dos discursos conservadores ( dessa relação frutificou ) e em sequências formais ( segundo fonte em evidência, ressoa dos autos ), cujo efeito é um distanciamento do operador do direito da realidade que ele tece. Esses recursos evidenciam que a razão jurídica é conservadora e distanciada das práticas sociais.

166 166 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha Ao longo das últimas décadas, profundas alterações ocorreram nos modelos de família. Se, até meados do século XX, predominavam famílias cujo chefe era o marido e pai, cresce a cada dia famílias chefiadas por mulheres ou compostas por casais do mesmo sexo, com diferentes arranjos, o que aponta para as mudanças que dizem respeito, principalmente, aos valores antes hegemônicos que caracterizavam essa instituição. O casamento formal, a virgindade, a não aceitação do divórcio integravam um conjunto de valores que, até recentemente, acreditava-se deveriam ser respeitados por todos. O rompimento com esses valores causava, na maioria das vezes, ações desencadeadas pela própria sociedade que visavam segregar os indivíduos que ousavam desafiar as normas. Para isso, um meio muito utilizado eram os rótulos com termos carregados de preconceitos, como teúda e manteúda, amasiada, etc. Curiosamente, um desses rótulos é muito comum na linguagem jurídica e aparece em alguns autos, como nos recortes a seguir: 7. Consoante se infere da denúncia, no dia 15 de setembro de 2007, por volta das 22h, o denunciando, na Rua 07 próximo ao bar da XXXXXX, na Vila Colombo, nesta cidade, teria ofendido a integridade física de sua ex amásia, XXXXXXX. (Trechos retirados da Defesa prévia do acusado no processo: ) 8. QUE é amasiado e tem um filho e sua amásia está esperando o segundo, que tem o segundo ano primário, que nunca esteve internado para tratamento de doenças mentais, que ingere bebidas alcóolicas, não utilizando substâncias entorpecentes; QUE o interrogando afirma a esta autoridade policial que na sexta-feira ele e sua amásia separaram-se, tendo sua amásia pedido que o mesmo saísse de casa, pois não estavam mais vivendo em harmonia (Trechos retirados do Termo de Declarações do acusado em Auto de prisão em flagrante do processo: ) Contradizendo a própria lei, que reconhece a união estável como uma forma de casamento, o termo amásia permanece na linguagem dos processos e continua a rotular as mulheres insubmissas que não seguiram o velho modelo de organização familiar. Por ser empregado predominantemente no feminino, uma vez que não encontrei nenhum registro no masculino, o termo ainda demonstra a maior carga de preconceito sobre a mulher que burla as normas tradicionais do casamento. Para Campos (2003), o que move a lógica jurídica é um ideal impregnado de valores tradicionais sobre o matrimônio e a família, que se orientam para a preservação do casamento. Segundo o autor, essa lógica permanece inalterada há muito tempo e, até o advento da Lei Maria da Penha, era operada pelo arquivamento massivo dos processos provocado pela renúncia

167 Lúcia Freitas 167 das vítimas. Argumenta-se que, ao adotarem essa postura, alguns magistrados promovem uma aplicação assimétrica do direito às mulheres, ocultando modos desiguais de distribuição social de poder. Algumas evidências sobre a presença do ideal conservador em relação ao casamento e sobre o modo assimétrico de aplicação de poder são identificadas neste Termo de retratação, em que foram subtraídos apenas o cabeçalho e os dados da qualificação, estando os campos principais expostos a seguir: 8. Vem a presença de Vossa Excelência, na presente Ação Penal de nº , dizer que RENUNCIO ao direito de queixa em desfavor de XXXXXXXXXX, vez que, somente fui à Delegacia de Polícia porque estava nervosa e cansada de ver o esposo chegando em casa bêbado e sem trabalhar. Contudo, atualmente, o mesmo passou por um tratamento de dependência química e alcoólica, passando a conviver comigo e com nossa família de uma maneira harmônica, sem desentendimentos, sendo que, inclusive, livrou-se das bebidas e das drogas. Dessa forma, não tenho qualquer interesse na continuação do feito. Por ser verdadeiras as declarações acima mencionadas e por estar de acordo em RETRATAR-ME é que firmo o presente. (Trecho retirado do Termo de Retratação do processo: ) Neste texto, o discurso da preservação do casamento e da família é articulado de forma bastante artificial, por uma estratégia de legitimação que Thompson (1995, p. 89) classifica de narrativização. Essa operação linguístico-ideológica cria a sensação de que no presente algo é eterno e aceitável a partir de um acontecimento passado. Ela pode ser recuperada na sequência textual do segundo parágrafo, iniciado pela conjunção adversativa, contudo, aí alocada para contrapor a cena do passado em que a mulher estava nervosa e cansada de ver o esposo chegando em casa bêbado e sem trabalhar. Em seguida, vem o advérbio de tempo, atualmente, realçando o tempo presente e anulando o passado nefasto que se quer esquecer. A anulação é engendrada pela narrativa da reabilitação do marido com um tratamento de dependência química e alcoólica, história inverossímil no contexto jaraguense, onde não há serviços de saúde dessa natureza. No final, a exemplo dos contos literários tradicionais, em que o bem vence o mal, o marido livra-se das bebidas e das drogas, possibilitando, inclusive, o desfecho feliz, com a convivência conjugal e familiar harmônica, sem desentendimentos. Na Justiça, retratações são exigidas em casos de difamação e calúnia. Nesse sentido, o Termo de retratação, funcionalmente, opera uma confis-

168 168 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha são de culpa das mulheres, que assumem agir sob descontrole emocional ou irresponsavelmente. É o que se observa no exemplo dado: a vítima confessa que fez uma acusação errônea ou falsa e vem a público para se desculpar e anular a declaração anterior. Em síntese, o que o gênero faz concretamente é registrar o arrependimento das vítimas, seu perdão aos agressores e, mais indiretamente, seu próprio pedido de perdão pelos constrangimentos resultantes da abertura dos processos. Executadas nesses moldes, as retratações atendem tanto aos critérios burocráticos próprios do sistema judiciário, quanto a ideais conservadores da cultura patriarcal. Tudo orquestrado por arranjos linguisticos que operam uma duvidosa distribuição de poder. 5. Os papéis de gênero no discurso do judiciário: cultura patriarcal e a distribuição desigual de poder Segundo Monteiro (2003), o Direito reproduz e reforça o jogo das estratificações sociais já estabelecidas. No caso das hierarquias de gênero, por exemplo, o autor afirma que antes mesmo de serem normatizadas no Direito, já se encontravam, de longa data, codificadas na cultura luso-brasileira, de nítidos contornos patriarcais. Ao enfatizar a família na representação de conjugalidade como uma espécie de pilar da sociedade, o discurso jurídico revela os papéis de pai, marido, mãe, esposa, filho e filha que essa instituição adota, bem como os comportamentos e expectativas socialmente impostas e a eles subjacentes. Especificamente sobre a figura do pai, Monteiro (2003) comenta que, após a derrota deste sujeito como pólo governante da instituição familiar tradicional hegemônica, os homens vão se erigir em um novo arranjo, baseado em uma relação constitutiva entre masculinidade, autoridade e violência, na qual impõem seu domínio sobre as mulheres, mostrando a elas o seu respectivo lugar na sociedade. Vê-se nos trechos inicialmente destacados (1 a 6) como os elementos masculinidade, autoridade e violência, citados Monteiro (2003), combinam- -se para exprimir os papéis masculinos na conjugalidade aí representada. Ressalta, naqueles textos, o poder dominador do homem sobre sua companheira e filhos, cujo exercício permite tanto o abuso dos meios verbais (ameaças, gritos, ofensas, desmoralizações e xingamentos), como a brutalidade física por chutes, tapas, murros e outras violências, quando as primeiras não são suficientes. São atos de quem toma para si o papel de comando da relação e assume também como de seu direito o controle e a coerção irrestrita sobre seus subordinados. Conforme analisa Bourdieu (1999, p. 20), embora a estrutura patriarcal/falocêntrica seja extremamente arbitrária e injusta, a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. Ainda completa o autor: o simbolismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e motivado e assim percebido como quase natural (Ibid.). O próximo recorte, retirado

169 Lúcia Freitas 169 de um Pedido de Reconsideração em que um Promotor apela ao Juiz para não conceder suspensão do processo ao réu e fazer valer os princípios da Lei Maria da Penha, demonstra que mesmo quando dirigido à defesa de interesses da mulher, o discurso jurídico deixa transparecer as marcas de seu conservadorismo: 9. Em segundo lugar, insta aduzir que a disposição contida no art. 41 da Lei n /06 é resultado de uma ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar. É cediço que a história da mulher é caracterizada pela dominação patriarcal, sendo que a dominação exercida no espaço doméstico sempre foi uma das modalidades mais incisivas de exercício de poder sobre o sexo frágil, de modo que somente quem não quer, não enxerga a legitimidade de tal ação afirmativa que, nada obstante formalmente aparentar ofensa ao princípio da igualdade de gênero, em essência busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros, nada tendo, deste modo, de inconstitucional. Outras tantas ações afirmativas têm sido resultado de políticas públicas contemporâneas e, em que pesem algumas delas envoltas em polêmicas, não recebem a pecha de inconstitucionalidade. Citem-se as quotas para negros e estudantes pobres nas universidades, as quotas para deficientes em concursos públicos, as quotas para mulheres nas eleições etc. (Trecho retirado do gênero Pedido de Reconsideração do processo: ) Aqui, fica exposto o tradicionalismo no termo sexo frágil, mostrando que mesmo quando a autoridade pretende seguir um viés menos conservador, como neste caso em que o promotor quer fazer valer a Lei Maria da Penha, seu apego aos valores tradicionais fica latente. O termo mostra que ele próprio não assumiu em profundidade as concepções que consideram a mulher como sujeito de sua história e acaba se contrapondo ao próprio discurso feminista ao qual tenta inicialmente aliar-se. Do ponto de vista dos valores é possível perceber como persiste por parte das instituições em geral e do judiciário em particular representações acerca da mulher como ser frágil e doce, concepções que se contrapõem aos dados empíricos, os quais mostram mulheres também violentas 3. O próximo recorte, que traz um trecho da Defesa Prévia de um caso em que o homem agrediu sua mulher após esta tê-lo ameaçado com um pedaço de pau, mostra que, mesmo quando a mulher age com violência, a 3. Nesse sentido, pesquisas (Almeida, 2001; Soihet, 1997) têm exibido a insubmissão das mulheres das camadas populares sob diferentes formas, desde o final do século XIX até os tempos atuais. O movimento do cangaço, por exemplo, realizado no sertão nordestino durante as décadas de 1920 e 1930, rompeu com uma cultura secular, posto que, com a entrada da mulher para o cangaço, tornou-se emblemático seu envolvimento no mundo da violência.

170 170 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha ênfase não recai propriamente nesse perfil. No caso em questão foi realçado o fato de a mulher ter traído o acusado, conforme se observa no recorte: 10. Excelência, cumpre esclarecer que o acusado, jamais agrediu a vitima. O que realmente ocorreu foi que, depois do denunciado ter tomado conhecimento de que fora traído pela vitima, o casal se separou, sendo que aquele, ao tentar a reconciliação, já buscada por esta, foi humilhado, em dado momento da conversa, com palavras, sendo que ambos começaram a se agredir, ocasião em que a vitima pegou um pedaço de pau para bater no acusado e este, com o intuito de se defender, a empurrou. A vítima, descontrolada, voltou a agredir o acusado com o pedaço de madeira, momento em que o mesmo colocou sua bicicleta entre eles, empurrando-a contra a vitima para mais uma vez se defender. Ora, não se pode chamar de lesões o resultado provocado pelo desentendimento entre os acusados, sendo ainda importante observar que, com relação à vitima, seu próprio descontrole causou-lhe tais resultados, que diga-se de passagem, são insignificantes. Desta feita, requer a desclassificação do delito para a contravenção de vias de fato. Assim, mesmo que, apenas para feito de discussão, se admita o resultado de lesões corporais, não há que se falar em crime, vez que resta claro que o acusado agiu em legitima defesa não só de sua honra, mas também de sua própria integridade física, atuando, pois ao abrigo de uma excludente de antijuridicidade. Ademais, em se tratando de lesões mínimas como ocorre no presente caso, o reconhecimento do principio da insignificância, com exclusão da tipicidade, é medida que se impõe. Ante todo exposto, é a presente para rebater todos os termos da denúncia e, consequentemente, requer a desclassificação do delito para contravenção de vias de fato. Caso Vossa Excelência entenda de forma diversa, desde já requer seja reconhecido o principio da insignificância, já que foram levíssimas as lesões provocadas, ou, em ultima hipótese que seja o acusado absolvido com base na excludente prevista no artigo 23, II do Código Penal. Para comprovação de suas alegações arrola as testemunhas cujo rol segue abaixo. (Trecho retirado da Defesa Prévia do processo: ) Essa versão dos acontecimentos deixa clara a herança machista que, no Brasil, ultrapassa os muros das casas de famílias e invade instituições como

171 Lúcia Freitas 171 o sistema judiciário. A hegemonia dessa concepção pode ser observada no decorrer de todo o texto. O advogado refere-se à honra do homem, que supostamente teria sido atingida pelo comportamento da mulher, o que poderia, então, explicar ou até mesmo justificar atitudes violentas. O autor do texto recorre ao argumento da legítima defesa da honra, algo que já foi amplamente discutido, questionado e praticamente condenado por anacronismo, mas que ainda continua vivo e, surpreendentemente, mantém-se em pleno funcionamento, conforme se revela neste exemplo e é detalhado no estudo de Pimentel, Belloque e Pandjiarjian (2006). Segundo o trabalho dessas pesquisadoras, a doutrina jurídica, de forma consensual, entende que todo e qualquer bem jurídico pode ser defendido legitimamente, incluindo-se a honra. Embora não haja consenso em relação ao uso desta figura nos casos em que o homicídio ou a agressão são praticados para defender suposta honra por parte do cônjuge traído. Como são raros os casos em que a mulher faz uso de tal alegação, a figura da legítima defesa da honra funciona como tese jurídica que visa tornar impune a prática de maridos, irmãos, pais ou ex-companheiros e namorados que matam ou agridem suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres e namoradas. Entretanto, frisam as autoras, no entender de grande parte da doutrina e jurisprudência, não há honra conjugal ou da família a ser protegida, na medida em que a honra é atributo próprio e personalíssimo, referente a um indivíduo e não a dois ou mais indivíduos. A pesquisa das autoras colheu dados significativos sobre o tema em todas as regiões do país, constatando que, ainda hoje, não é pacífica a jurisprudência sobre o tema, de modo que a tese da legítima defesa da honra continua a ser invocada, havendo inclusive acórdãos que, embora em menor número, admitem-na com sucesso. Conclui-se, portanto, que legítima defesa da honra não é um anacronismo, ao contrário, é uma tese ainda constantemente acionada como recurso de legitimação para a defesa da violência masculina contra suas mulheres, mostrando que em pleno século XXI permanecem atuantes no plano do discurso jurídico valores que dominaram a sociedade nos séculos passados. Certos valores conservadores nem sempre são declarados de forma aberta, pois na atualidade ferem as noções do politicamente correto e podem comprometer a imagem de quem os profere. Mas eles estão presentes, ainda que muitas vezes de forma sutil, nos autos que movem o sistema processual. A sentença de um Termo de audiência, que dispomos a seguir, flagra uma concepção do masculino em moldes bem discutíveis: 11. O juíz proferiu a seguinte decisão: O fato narrado na denúncia, em tese, configura crime, preenchendo a acusatória os requisitos legais. Recebo a denúncia. Em seguida, o representante do Ministério Público verificou que o denunciado preenche os requisitos para obtenção do

172 172 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha beneficio da suspensão condicional do processo, previsto no artigo 89 da Lei nº 9.009/95. Desta forma foi formulada a proposta de suspensão condicional do processo ao acusado pelo prazo de 02 (dois) anos, mediante as seguintes condições: I Não ausentar da Comarca, sem previa autorização desde Juízo por mais de 15 dias; II Apresentar-se a esse juízo, mensalmente, para justificar e informar suas atividades. III Não frequentar bares, boates, prostíbulos e casas de jogos. IV Informar novo endereço, antecipadamente a este juízo, em caso de mudança. Como condição especifica: Não se aproximar da ofendida. O denunciado e seu advogado aceitaram as condições da proposta. DESPACHO: aguarde-se o cumprimento. Certifique. NADA MAIS, E, para constar, lavrei este termo que vai devidamente assinado. (Termo de audiência do processo: ) Observa-se que, neste auto, a Justiça faz uma proibição explícita ao réu de frequentar bares, prostíbulos e casas de jogos. Como bem argumenta Fairclough (2001), o que é dito em um texto é sempre dito em contraposição ao que não é dito, mas tido como garantido, apontando para o consensual, para as normalizações e aceitação. Nesse sentido, há implícito nessa sentença uma pressuposição de que essas práticas proibidas são atividades próprias do universo masculino. Todas elas apelam para a liberdade de comportamento e para o papel sexual ativo do homem, que neste caso está sendo cerceado, enquanto perdurarem os efeitos da suspensão do processo sobre o qual o réu responde pela agressão contra a ex-mulher. Essas proibições que cerceiam a liberdade masculina, especialmente a sexual, parecem funcionar como uma espécie de punição ao acusado para compensar o fato de a Justiça ter-lhe concedido o benefício de suspensão do processo. Ficam, portanto, muito evidentes nas análises os valores e prerrogativas culturais que definem os tradicionais papéis do gênero dentro da polaridade masculino e feminino, que reservam os atributos de liberdade, poder, dominação, força, violência e superioridade, em relação aos primeiros, e submissão, passividade, fraqueza e inferioridade, em relação aos últimos. A ofensa concreta ao ideal igualitário se expressa tanto nos enredos das histórias reconstituídas na pesquisa, em que é nítida uma imensa desproporção de forças entre homens e mulheres, com o prejuízo destas, vítimas reais de toda sorte de imposições, arbitrariedades e agressões de seus parceiros, quanto na atitude condescendente do judiciário, a essas mesmas desproporções. 6. Considerações finais O que se sobressai nas análises dos diferentes autos processuais do corpus é a evidência de que o viés dos estudos de gênero e os ideais dos Direitos

173 Lúcia Freitas 173 Humanos estão longe de amparar as decisões judiciais, norteadas por um apego aos trâmites processuais já estabelecidos e ritualizados. Como diria Bourdieu (2006), o habitus jurídico privilegia o formalismo do direito em detrimento da justiça social, de modo que as categorias de pensamento dos juristas acabam funcionando como instrumento de manutenção e distribuição desigual de poder social. A efetivação plena da Lei Maria da Penha, por conseguinte, é impedida tanto pela burocracia do habitus jurídico como por ideias conservadores da cultura patriarcal que o constituem. Entre essas ideias, depreende-se uma dimensão machista, ainda que de forma velada, que só não adquire contornos mais declarados em vista da patrulha do politicamente correto. O aumento do número de mulheres que recorrem à justiça contra a violência dos companheiros e parentes sinaliza uma proporcional conscientização destas sobre sua igualdade de direitos com os homens. Contudo, no plano jurídico, a mesma dimensão conservadora e distanciada que se vê nos gêneros penais se reflete nas respostas que o sistema dá às mulheres nas ações por elas movidas. Eximindo os acusados de qualquer punição, ou imputando-lhes proibições de frequentar bares, bordeis e casa de jogos, como nas sentenças de suspensão, o Judiciário reforça a manutenção dos papéis tradicionais de gênero, baseados na cultura patriarcal e machista, atribuindo-lhes força normativa. Essa forma de agir acaba desqualificando as mulheres, submetendo-as a retratações humilhantes, que as convertem em verdadeiras rés dos crimes nos quais são vítimas. Nesse quadro, o discurso jurídico alinha-se de várias formas ao domínio tradicional patriarcal, redobrando juridicamente a força normativa deste, com vínculos bastante imprecisos com o ideal igualitário que, supostamente, deveria garantir. Sem propor qualquer pena alternativa efetiva, com vistas à reeducação dos agressores, conforme declarou a ativista do direito das mulheres, a promotora Luiza Eluf, em entrevista à revista Isto é, o Judiciário, fica numa posição de lavar as mãos para ver o que vai acontecer. Referências ALMEIDA R. O. Mulheres que matam: universo imaginário do crime no feminino. Rio de Janeiro: Relume Dumará, ARAÚJO M. F. E MATTIOLI O. C. (Orgs.) Gênero e violência. São Paulo: Arte e Ciência, AZEVEDO, M. A. Mulheres espancadas: A violência denunciada, São Paulo, Cortez, BOURDIEU, P. A dominação masculina. (Tradução Maria Helena Kuhner). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

174 174 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha BOURDIEU, P. O poder simbólico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas: Unicamp CAMPOS, C. H Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico. Revista Estudos Feministas, Florianópolis: UFSC, v. 11, n. 1, p CHAUÍ, M. Participando do debate sobre mulher e violência. In: et.al. Perspectivas antropológicas da mulher. Nº 4. Rio de Janeiro: Zahar, p FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse. New York: Routledge, Discurso e mudança social. Brasília: UNB, FAUSTO, B. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo ( ), São Paulo, Brasiliense, FIGUEIREDO, D. C. Violência sexual e controle legal: uma análise crítica de três extratos de sentenças em caso de violência contra a mulher. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 4, n.esp, p Disponível em: < art%203.pdf>. Acesso em: Set. de GREGORI, M. F. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, GROSSI P. K. ; WERBA G. C. (Orgs), Violências e gênero: coisas que a gente não gostaria de saber, Porto Alegre: EDIPUCRS, IZUMINO, W. P. Justiça e violência contra a mulher. 2ª ed. São Paulo: Annablume, MINAYO, M. C. S. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, MONTEIRO, G. T. M. Construção jurídica de gênero. O processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora do Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, MOZDZENSKI, L. P. Análise crítica do discurso jurídico: uma proposta de investigação. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru / Asces Vol.42 Nº 1 Jan - Jun/2010, p

175 Lúcia Freitas 175 NEVES, A. S. A. As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor: a caminho do amor confluente ou o retorno ao mito do amor romântico?. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, dez Disponível em: &lng=pt&nrm=iso. Acesso em: Dez PIMENTEL, S.; PANDJIARJIAN, V.; BELLOQUE, J. Legítima Defesa da Honra Ilegítima impunidade de assassinos. Um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. In: CORRÊA, M.; SOUZA, E. R. Vida em família: uma perspectiva comparativa sobre crimes de honra. Campinas: UNICAMP, p SAFFIOTI, H. I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, SANTOS, C. M. ; IZUMINO, W. P. Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil. Revista E.I.A.L. Estudios interdisciplinarios de América Latina y El Caribe. Universidade de Tel Aviv, Disponível em: < Direitos%20Humanos/Viol%EAncia%20de%20G%EAnero.pdf> Acesso em: Set. de SCOTT, J. W. Gender: A useful category of historical analysis. The American Historical Review. Vol 91, n. 5, Dez. 1986, p Disponível em:

176 176 Valores tradicionais sobre gênero em processos da Lei Maria da Penha

177 8 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica Luis Cláudio Aguiar Gonçalves Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia Maria da Conceição Fonseca-Silva Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico 1. Introdução Este trabalho é parte do resultado da pesquisa, inserida no âmbito dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso GPADis, cadastrado no CNPq e autorizado pela UESB, e que originou a dissertação intitulada Memória e Interpretação: Constitucionalidade e Eficácia da Lei da Ficha Limpa no STF, vinculada ao projeto temático do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Uesb, intitulado Mídia, Memória Discursiva, Efeitos de Sentidos e Corrupção Política no Brasil, que objetiva investigar, de um lado, o funcionamento discursivo e os efeitos de sentido dos escândalos espetacularizados que geraram tensões, disputas e acirramento das relações entre o campo da política e o campo da comunicação; e, de outro lado, o funcionamento de cenas validadas, ou seja, instaladas na memória discursiva e mobilizadas na espetacularização da corrupção política no Brasil em revistas de informação. Neste trabalho, partimos da hipótese de que a jurisprudência dos tribunais se constitui como um espaço de memória e de que os precedentes jurisprudenciais funcionam como lugares de memória discursiva para discutirmos o papel que a memória e a língua exercem nos processos her- 177

178 178 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica menêuticos de compreensão de normas e teses jurídicas. Para alcançar tal objetivo, analisamos construções interpretativas que, ligadas ao controle da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e ao exame de sua eficácia para as Eleições 2010, foram desenvolvidas e propostas pelos intérpretes do Supremo Tribunal Federal (STF), durante a apreciação dos recursos extraordinários interpostos por Joaquim Roriz (RE ), Jader Barbalho (RE ) e Leonídio Bouças (RE ), contra decisões da Justiça Eleitoral, que indeferiram seus pedidos de registro de candidatura, sob a alegação de que incidiria na espécie algumas das novas causas de inelegibilidade introduzida pela LC nº 135/2010, a Lei da Ficha Limpa, à LC nº 64/1990, denominada Lei das Inelegibilidades. Contra as sentenças e/ou acórdãos que davam ou negavam provimento às ações de impugnação aos pedidos de registro de candidatura, foram interpostos recursos perante o próprio órgão prolator das decisões e/ou em tribunal hierarquicamente superior juízes de primeira instância e/ou Tribunais Regionais Eleitorais (TRT s) e, posteriormente, junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), quando foram interpostos recursos ordinários ou especiais. Nos três casos selecionados para análise, como visto, as ações de impugnação chegaram até o Supremo Tribunal Federal, por meio de recursos extraordinários. No Pretório Excelso, que possui função de Tribunal Constitucional, a hermenêutica desenvolvida pelos ministros centrou-se, basicamente, em torno da compreensão das normas veiculadas pelo art. 14, 9º, e pelo art. 16, da Constituição Federal de Selecionamos os recursos extraordinários interpostos por Joaquim Domingos Roriz, então candidato ao cargo de Governador do Distrito Federal, por Jader Fontenelle Barbalho, candidato ao cargo de Senador da República pelo Estado do Pará, e por Leonídio Henrique Correa Bouças, candidato ao cargo de Deputado Estadual de Minas Gerais, em virtude de terem sido os únicos recursos apreciados e julgados pelo Plenário do Supremo. No primeiro caso, o de Joaquim Roriz, entendeu por bem a Corte suspender o julgamento, devido ao adiantado da hora. Já, no segundo, tendo em vista o empate advindo na votação, em decorrência da vacância surgida na composição plenária do Supremo com a aposentadoria do Ministro Eros Grau, aplicou-se, analogicamente, o art. 205, parágrafo único, inciso II, do Regimento Interno do STF, mantendo-se hígido o acórdão do Tribunal Superior Eleitoral, que indeferiu o registro da candidatura de Jader Barbalho. Foi somente como a apreciação e julgamento do recurso interposto por Leonídio Henrique Correa Bouças, já com a presença do Ministro Luiz Fux, nomeado pela Presidente Dilma Rousseff, que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por seis votos a cinco, que a Lei da Ficha Limpa não seria aplicada às Eleições 2010, em respeito ao Princípio da Anualidade Eleitoral, previsto no art. 16, da Constituição Federal de A partir do julgamento desse recurso, ficaram autorizados os ministros relatores dos recursos extraordinários sobrestados a decidirem de forma monocrática, dispensando-se a

179 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 179 apreciação do Plenário da Corte. Vistos sobre esse prisma, os três recursos extraordinários selecionados para análise constituem o itinerário percorrido pelo Supremo Tribunal Federal para a definição da ineficácia da Lei da Ficha Limpa para as Eleições Sobre a Lei da Ficha Limpa No dia 04 de junho de 2010, foi editado o diploma normativo que ficou conhecido como Lei da Ficha Limpa, a LC nº 135/2010. Publicado no dia 07 do mesmo mês e ano, o referido diploma originou-se de um projeto de lei de inciativa popular, que contou com o auxílio de diversos entes da sociedade civil organizada, tal como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral movimento que estimulou e defendeu, no Congresso Nacional, a aprovação do projeto de lei que deu origem à norma bem como com a participação de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em sua ementa, a LC nº 135/2010 indica a natureza jurídica de suas normas, dispondo: Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. A Lei da Ficha Limpa foi editada, desse modo, com o objetivo de inovar a ordenamento jurídico, complementando o sistema infraconstitucional de inelegibilidades, que, inaugurado com a publicação da LC nº 64/1990, tinha sido requestado pelo 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, citado in verbis: Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e dos prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. A LC nº 135/2010, atendendo assim ao comando da norma do 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, veio criar novas hipóteses de inelegibilidade que, visando proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandado (CF/88, art. 14, 9º), considerassem a vida pregres-

180 180 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica sa do candidato. Para tanto, a LC nº 135/2010 alterou a redação das alíneas c a h, do inciso I, do artigo 1º, da LC nº 64/1990, incluindo, ao mesmo tempo, as alíneas j, k, l, m, n, o, p e q as novas hipóteses de inelegibilidade e os parágrafos 4º e 5º. Alterou, ainda, a redação do artigo 15, incluindo um parágrafo único, e o art. 22, dando nova redação ao seu inciso XIV, revogando o XV e incluindo o inciso XVI. Por fim, incluiu os artigos 26-A, 26-B e 26-C no corpo normativo da mesma LC nº 64/1990. Após a publicação do diploma inovador, e sua posterior vigência, passou-se a se discutir, nos mundos político e jurídico, se as novas causas de inelegibilidade, introduzidas na LC nº 64/1990, seriam aplicáveis já às eleições de 2010, tendo em vista o Princípio da Anualidade, insculpido no art. 16, da Magna Carta, que diz in verbis: a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Em síntese, a discussão que se instaurou a esse respeito poderia ser reduzida a duas questões básicas: i) a de saber se as novas causas de inelegibilidade, trazidas pela Lei da Ficha Limpa, teriam o condão de alterar o processo eleitoral; e ii) sendo afirmativa a resposta a esse primeiro ponto, se seria juridicamente admissível aplicá-la de imediato às candidaturas das Eleições Nesse cenário, duas teses se firmaram: a do Tribunal Superior Eleitoral, primeiro órgão judicial a se manifestar sobre o tema, por meio da resposta dada às Consultas nº e nº , entendendo que a LC nº 135/2010, diploma modificador da LC nº 64/1990, não estaria abrangida pela redação do art. 16, da Constituição Federal de 1988; e a outra, que acabou por prevalecer no Supremo Tribunal Federal, quando, no julgamento do recurso extraordinário interposto por Leonídio Henrique Correa Bouças, ficou assentado o entendimento de que a Lei da Ficha Limpa, ao modificar as condições de elegibilidade, interferiu no processo eleitoral e, por isso, não poderia ser aplicada às eleições de Antes de os ministros do Supremo decidirem que não teria a debatida lei eficácia para as Eleições 2010, muito se discutiu, contudo, no Plenário da Corte, onde surgiram várias construções interpretativas como as que tinham como objeto o conteúdo semântico da expressão processo eleitoral (art. 16, da CF/1988) ou a definição de vida pregressa (art. 14, 9º, da CF/1988) e onde tantas outras teses jurídicas foram erigidas, ora em defesa do que foi chamado pelo Ministro Gilmar Mendes de segurança jurídica do cidadão-candidato, tema retomado pelo Ministro Luis Fux como Princípio da Confiança Legítima; ora em amparo à proteção da moralidade na administração pública, reiteradamente proclamada pelo Ministro Ayres Britto. Os dois primeiros ministros defenderam a não aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010 e segundo foi defensor da tese contrária.

181 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves As noções de memória discursiva, posição-sujeito e lugar de memória discursiva e o caráter opaco da língua Para a compreensão do objeto, mobilizamos pressupostos teóricos da Análise de Discurso de Linha Francesa (AD) 1, notadamente as noções de posição-sujeito e memória discursiva, trabalhadas por Pêcheux ([1975] 2009, [1983a] 1999), respectivamente, em Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio e em O Papel da Memória, e as discussões que o referido autor realiza em torno da opacidade da língua e da equivocidade dos enunciados, em Discurso: Estrutura ou Acontecimento (PÊCHEUX, [1983b] 1997). Do mesmo modo, adotamos a noção de lugar de memória discursiva, que foi cunhada por Fonseca-Silva (2007), em Mídia e Lugares de Memória Discursiva. A noção de memória discursiva foi cunhada por Courtine (1981), autor que opera um deslocamento do conceito foucaultiano de domínio de memória (Foucault [1969] 1997). Esse conceito operacional, no sentido do teórico da Análise de Discurso, diz respeito, nas palavras de Fonseca-Silva (2007, p. 23), à existência histórica do enunciado, ou seja, supõe o enunciado inscrito na história. Os enunciados, em cuja formação se constitui o saber próprio de uma formação discursiva, são tomados no tempo longo de uma memória, e as formulações, no tempo curto da atualidade de uma enunciação. Nessa perspectiva, a memória irrompe na atualidade do acontecimento. E o efeito de uma memória discursiva na atualidade de um acontecimento se dá na relação entre interdiscurso e intradiscurso. Pêcheux ([1983a] 1997, [1983b] 1999), por sua vez, retoma a noção de memória discursiva para fazê-la funcionar no âmbito dos trabalhos e discussões teóricas da Análise de Discurso. Nesse sentido, o filósofo francês propôs discutir, no texto O discurso, estrutura ou acontecimento (PÊ- CHEUX, [1983a] 1997), a partir da descrição do acontecimento discursivo a eleição de François Mitterrand à Presidência da França fato ocorrido às 20 horas do dia 10 de maio de 1981, o acontecimento, no ponto de 1. Escola fundada pelo filósofo francês Michel Pêcheux, no final dos anos sessenta, caracterizada por Orlandi (1996) como uma disciplina de entremeio, uma vez que coloca em relação pressupostos teóricos da Psicanálise Freudiana relida por Lacan (o sujeito do inconsciente), do Materialismo Histórico Marxista relido por Althusser (o sujeito da ideologia) e da Linguística Saussuriana relida pelo próprio Pêcheux (o sujeito do discurso), e que tem sido chamada de Escola Francesa de Análise de Discurso ou Pêcheuxtiana (doravante denominada AD).

182 182 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica encontro de uma atualidade e uma memória (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 17). Segundo o autor, logo após as primeiras notícias televisivas que anunciaram François Mitterrand como vencedor, as primeiras reações dos responsáveis políticos dos dois campos começaram a ser anunciadas, assim como os comentários dos especialistas de politicologia. Uns e outros começaram a fazer trabalhar o acontecimento (o fato novo, as cifras, as primeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca e que já começa a reorganizar (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 19). O autor vai inserindo, desse modo, aos poucos na discussão, ao analisar essa (re)construção da memória evocada e as montagens e arranjos léxico-discursivos produzidos pelos comentadores do acontecimento discursivo, a questão da língua e de sua opacidade nos deslizes de sentido. De acordo com Pêcheux ([1983a] 1997, p.50), o objeto da Análise de Discurso é, precisamente, explicitar e descrever relações associativas implícitas: montagens, arranjos sócio-históricos de constelações de enunciados. Mas, para isso, conforme o filósofo, a primeira exigência consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Uma descrição, nessa perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de interpretar. Essa concepção da descrição supõe ao contrário o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua [...]. (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 50). Para realizar tal reconhecimento, segundo autor, é necessário por em causa o primado da proposição lógica e os limites impostos à análise como análise de sentença ou de frase, isto é, deslocar, desse modo, a pesquisa linguística da obsessão da ambiguidade (entendida como lógica do ou... ou ) para abordar o próprio da língua através do papel do equívoco, da elipse, da falta, etc... (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 51). O que obriga a pesquisa linguística a se construir procedimentos [...] capazes de abordar explicitamente o fato linguístico do equívoco como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 51). Para Pêcheux ([1983a] 1997, p. 53), toda descrição quer se trate da descrição de objetos ou de acontecimentos ou de um arranjo discursivo- -textual [...] está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua. Isso é, todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, de deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. É nesse espaço, onde todo enunciado, toda sequência de

183 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 183 enunciados é [...] linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação, que a Análise de Discurso se propõe a trabalhar. Os objetos discursivos, por seu turno, tomados sempre em redes de memória, são, para Pêcheux ([1983a] 1997, p. 55), objetos a propósito dos quais ninguém pode estar seguro de saber do que se fala. Isso porque, não sendo produtos de uma aprendizagem por interação/comunicação, esses objetos implicam sempre atos de interpretação. Nesse sentido, conforme Pêcheux [1983a] (1997, p. 57), a posição de trabalho evocada em referência à Análise de Discurso supõe que, por meio de descrições regulares de montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados. Em Papel da memória, a memória aparece como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida, como afirma Pêcheux [1983b] (1999, p. 51), em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os implícitos, (quer dizer, mais tecnicamente, os préconstruídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível [...]. Ainda no que se refere ao papel da memória questão central em torno da qual Pêcheux ([1983b] 1999, p. 56) constrói o seu texto a certeza que fica, segundo o autor, é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos. Podemos dizer, assim, que a memória discursiva é algo que já está lá: uma estruturação de fatos de discurso que se apresentam enquanto inscrições materiais dessa mesma memória. Ela é um já-dito que permite que um dado objeto de discurso seja movimentado novamente, isto é, que esse objeto seja redito, contraditado, (re)significado pelos enunciadores das posições-sujeito que nela estão inseridas... um espaço do dizível e do indizível, onde o ato de enunciar pressupõe o de interpretar.

184 184 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica Também em Análise de Discurso, quando se fala em sujeito, o mesmo é tomado como posição. Daí a definição de sujeito como posição-sujeito: afetado, em seu funcionamento social, pela língua e pela ideologia (a relação com a História), o sujeito é também descentrado, em seu funcionamento psíquico, pelo inconsciente (a relação com o dizer do outro). Tem-se assim um sujeito que, não sendo o da ordem do empírico (o sujeito pragmático), é definido pela AD como um modo de subjetivação, um lugar de assujeitamento, de modos de pensar e de falar sobre determinado(s) objeto(s), que pressupõe atos de interpretação e que pode ser ocupado por qualquer indivíduo que com ele se identifique. Neste sentido, a ideologia é pensada como a relação do sujeito (sujeito ideológico/sujeito do inconsciente/sujeito do discurso) com a língua e com a própria história na produção de sentidos (ORLANDI, 2009). Em Por uma análise automática do discurso e em Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, Pêcheux ([1969] 2010, [1975] 2009) relaciona o sujeito à ideologia, reconhecendo o caráter ideológico de que ele é revestido. Com essa perspectiva, cunha a noção de forma-sujeito (PÊCHEUX, [1975] 2009), que, sendo historicamente determinada, organiza e regula, segundo o autor, o que pode e o que deve ser dito a partir das diferentes posições-sujeito que formam uma formação discursiva (FD). É por meio da forma-sujeito que o sujeito do discurso se inscreve em uma determinada FD, e uma posição-sujeito é uma maneira específica de o sujeito da enunciação se relacionar com o sujeito do saber (a forma-sujeito). Fonseca-Silva (2007), por seu turno, opera, em Mídia e Lugares de Memória Discursiva deslocamentos dos conceitos de lugar de memória (HALBWACHS, 1925, [1950] 2006; NORA, [1984] 1993), domínios de memória (FOUCAULT, [1969] 1997) e memória discursiva (COURTI- NE, 1981), para pensar as mídias como lugares de memória discursiva na sociedade contemporânea. Seguindo os postulados da autora, propomos discutir, no primeiro tópico de nossas análises, precedentes jurisprudenciais como lugares de memória discursiva. Para tanto, analisamos os precedentes que foram citados, no Plenário e na Tribuna do Supremo Tribunal Federal, durante os julgamentos dos recursos extraordinários selecionados. Os precedentes jurisprudenciais, tais como os anúncios publicitários, como lugares de memória discursiva, funcionam também como espaços de interpretação. E no gesto de interpretação e, portanto, de construção/ re-construção de memória discursiva, ocorre estabilização/desestabilização de sentido(s) [...] (FONSECA-SILVA, 2007, p. 25). Nessa perspectiva, a memória sendo um efeito na atualidade dos precedentes jurisprudenciais ao fazer com que os sentidos neles presentes circulem, repitam-se, permaneçam, sejam esquecidos, transformados ou atualizados, tem como implicação o de fato de que esses textos, quando citados, momento em que são novamente afetados pela memória, provocam a emergência de certos conflitos, polêmicas, contra-discursos etc.

185 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves Análise e discussão do corpus O corpus da pesquisa é constituído de excertos retirados de construções interpretativas que, propostas em votos de ministros da Corte, em sustentações orais de advogados de recorrentes e de recorridos e em pareceres emitidos pelo Procurador-Geral da República, abordavam os possíveis vícios de inconstitucionalidade que estariam a invalidar a Lei da Ficha Limpa e a aplicação ou não do referido diploma às Eleições Para o exame dessas materialidades, adotamos como método de análise o paradigma indiciário, modelo epistemológico surgido no final do século XIX, no âmbito das ciências humanas, e que foi explicitado por Ginzburg ([1986] 1991, p. 177), para quem, a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indícios que permitem decifrá-la. São precisamente esses sinais, esses indícios da realidade material da língua, no caso deste trabalho, da não transparência e da equivocidade linguísticas as quais permitem que os intérpretes jurídicos reorganizem os precedentes jurisprudenciais, reestruturando os espaços de memória que seus enunciados evocam que nos possibilitam observar o funcionamento discursivo das exegeses desenvolvidas na Tribuna e no Plenário do STF. 5. Os precedentes jurisprudenciais como lugares de memória discursiva Não raro nos depararmos com casos sub judice em que um mesmo precedente jurisprudencial é utilizado para fundamentar teses jurídicas que se opõem diametralmente. O que é possível graças ao jogo interpretativo, por meio do qual são reforçados certos aspectos do julgado, enquanto outros são apagados. Ou seja, os precedentes jurisprudenciais, ao serem utilizados como critérios hermenêuticos para a compreensão de normas ou questões jurídicas, eles próprios passam por processos de interpretação, a partir dos quais se seleciona o que deverá ser citado, bem como a própria inteligência que deverá ser dada às partes ou elementos citados. Na maioria das vezes, essa construção de um novo sentido para o julgado que se cita como precedente ocorre de tal forma que se consegue até mesmo fundamentar teses jurídicas totalmente contrárias àquelas adotadas quando do julgamento apontado. Esse processo pode ainda ser mais complexo: os julgados, antes mesmo de se tornarem precedentes, isto é, quando ainda estão sendo apreciados e discutidos, formam-se sempre a partir de exegeses, que, sendo jul-

186 186 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica gadas como as mais corretas ou acertadas, implicam a negação de outras igualmente defensáveis, mas que foram consideradas como sendo viciadas ou equivocadas. Posteriormente, quando passam a figurar como precedentes jurisprudenciais, esses julgados tornam-se novamente objeto de interpretação por parte do exegeta, que pode inclusive, como foi dito, modificar o sentido que lhes foi dado originalmente. Nos julgamentos dos recursos extraordinários de Joaquim Roriz, Jader Barbalho e Leonídio Bouças, fora justamente esse processo que observamos funcionando nas exegeses levadas a efeito pelos intérpretes, na Tribuna e no Plenário do Supremo. No julgamento do recurso extraordinário de Joaquim Roriz, por exemplo, após a apresentação do relatório do processo pelo Ministro Ayres Britto, fora aberta pelo Ministro Presidente do Tribunal, Cezar Peluso, oportunidade para que os patronos das partes envolvidas pudessem oferecer as suas sustentações orais. O primeiro a falar foi Pedro Gordilho, advogado do então recorrente. Em sua exposição, o causídico trouxe, como fundamentação para a tese de que novas causas de inelegibilidade interferem no processo eleitoral e que, portanto, estão submetidas à limitação imposta pelo Princípio da Anterioridade, dois precedentes: o RE , em que se discutiu, à luz do art. 16, da Constituição, a imediata aplicação da LC 64/90 às eleições de 1990; e a ADI ação direta que versou sobre a eficácia da EC nº 52/2006, também, em face do art. 16, da Constituição. Com relação ao RE , o advogado Pedro Gordilho defendeu, ao interpretar passagem do acórdão prolatado por ocasião daquele julgamento in verbis: cuidando-se de diploma, exigido pelo art. 14, 9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, à sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 -, e apoiando na frase intercalada em sublinhado, que o Princípio da Anualidade Eleitoral só não teria sido aplicado, naquela oportunidade, para suspender a eficácia da LC nº 64/90, porque seria essa uma lei complementar requerida e autorizada pela própria Constituição. A Lei da Ficha Limpa, ao contrário, sendo proveniente apenas da vontade do legislador complementar, estaria alcançada pela incidência do art. 16, da Constituição Federal de Verifica-se, portanto, que o trabalho desempenhado pelo intérprete, ao utilizar o julgado constituído no RE como precedente jurisprudencial e, consequentemente, como critério interpretativo, envolveu não só a citação do acórdão, tendo sido necessário ainda, para que o intérprete garantisse o atingimento do resultado esperado, que era o de convencer os ministros do Supremo quanto à correição do entendimento por ele esposado, que fosse feita uma releitura do precedente citado, de modo que ele confirmasse o que o intérprete havia proposto como solução para o caso presente. Esse gesto de interpretação pelo qual o exegeta reconstrói o lugar de memória discursiva precedente, produzindo deslizamentos de sentido no conteúdo da decisão pretérita, é possível graças à equivocidade própria à ordem linguística.

187 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 187 Já no caso da utilização do julgamento da ADI como precedente jurisprudencial, o advogado contentou-se apenas em narrar o resultado a que chegaram os ministros do Supremo naquela ocasião, não mencionou assim as matérias jurídicas discutidas e/ou os fundamentos da decisão. Vejamos trecho de sua sustentação oral: Excerto nº 01 No julgamento da ADI 3685, o Egrégio Tribunal voltou, esse Egrégio Plenário voltou a enfrentar o tema e decide que a inovação trazida no art. 1º, da EC 52/2006, somente seja aplicada após decorrido um ano da data da sua vigência. Aí está, Eminentes Ministros, Eminentes Ministras, na visão impecável deste Egrégio Tribunal, deste Egrégio Plenário, o art. 16 veda a aplicação imediata de casos novos de inelegibilidade, até mesmo através de emenda constitucional, e aqui estamos diante de apenas uma lei complementar. O fato é que o art. 1º, da EC nº 52/2006, que deu nova redação ao art. 17, da Constituição Federal de 1988, não cuida de novos casos de inelegibilidade, tal como fez parecer, em sua exposição, o patrono de Joaquim Roriz. Na realidade, a EC nº 52/2006 cuidou da chamada verticalização das coligações, nada tendo a ver com matéria de elegibilidade. O intérprete, no entanto, reconfigura o julgado de tal forma que o faz parecer, de fato, um precedente aplicável ao caso ora em apreço. Por seu turno, o causídico Eládio Barbosa Carneio, patrono da recorrente Coligação Esperança Renovada, também citou, em sua sustentação oral, a ADI como sendo um precedente jurisprudencial aplicável ao julgamento do recurso de Joaquim Roriz. Além disso, suscitou violação por parte do acórdão recorrido a outro julgado do Supremo, constituído na ADPF 144, em que a Associação dos Magistrados Brasileiros buscava a auto aplicabilidade do 9º, do art. 14, da Constituição Federal de Todavia, da mesma forma que a ADI 3.685, esse julgado também não discutiu matérias de inelegibilidade. Por meio dele, o Supremo decidiu, interpretando o sentido da expressão vida pregressa, contida na norma do 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, que essa seria uma norma de eficácia limitada e que, portanto, somente a edição da lei complementar mencionada em seu texto poderia aperfeiçoar a sua eficácia. André Henriques Maimoni, por sua vez, terceiro advogado a falar da Tribuna do Supremo, como patrono das partes recorridas, adotou o mesmo itinerário hermenêutico seguido por seus antecessores, utilizando, mais uma vez, como precedente jurisprudencial o RE Só que, nesse caso, o julgado se prestou, exatamente, para solidificar a tese contrária, qual seja, a de que inelegibilidade não constitui matéria de processo eleitoral, não estando, portanto, inserida no âmbito de incidência do Princípio da Anualidade. Perlustremos, a seguir, trecho da sustentação oral do advogado:

188 188 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica Excerto nº 02 A LC 135 não padece de problemas de constitucionalidade e de aplicabilidade imediata. Isso porque, primeiro, ela não trata de processo eleitoral. Ela trata de questão de direito material eleitoral, que é a inelegibilidade. O STF resolveu, na ADI 3542 e também no RE , que foram citados aqui... diferentemente do que foi dito, o motivo determinante dessas ações e recursos foi de que a inelegibilidade não é matéria de processo eleitoral, mas possui índole material constitucional. No excerto, o patrono dos recorridos, assumindo também a função de reinterpretar o julgado constituído no RE , busca demonstrar a inexatidão das interpretações e alegações feitas pelos dois intérpretes anteriores, ao mesmo tempo em que reestrutura o precedente jurisprudencial a partir de suas próprias proposições e defesas, procurando mostrar assim a conformidade que existe entre aquele e estas. É justamente, nesta perspectiva, de um espaço simbólico de significação que se oferece sempre ao rearranjo de seus elementos linguísticos e à reconfiguração de seus sentidos e significados, que tomamos os precedentes jurisprudenciais como lugares de memória discursiva. Em outra passagem de sua sustentação oral, o patrono dos recorridos passa a confrontar cada um dos julgados trazidos à colação pelos recorrentes, buscando demonstrar a impossibilidade de considerá-los como precedentes jurisprudenciais aplicáveis ao caso ora em julgamento. Segundo o exegeta: Excerto nº 03 Todos os excertos de julgados anotados pelo recorrente, todos eles são imprestáveis ao caso. As ações e julgados colecionados possuem entendimento ou motivo determinante diverso da tese defendida aqui. O entendimento dos tribunais pátrios, inclusive, do STF, sempre foi o de que matéria de inelegibilidade não é de processo eleitoral. Daí, não se aplicando o art. 16, da Constituição. O STF - agora, eu vou citar os casos que foram mencionados, aqui, pela defesa - o STF, ao julgar a ADI 3685, trazida pelo recorrente como paradigma, decidiu acerca do fim da verticalização e não acerca de inelegibilidade. Teve como objeto essa ADI o art. 2º, da EC 52, que trata do regime de coligações do art. 17, da Constituição Federal. Portanto, matéria de processo eleitoral. O RE e a ADI 3741, citadas aqui, tratavam da propaganda, financiamento e prestação de contas das despesas de campanhas eleitorais. Também, o STF, nesses casos, resolveu que a matéria de elegibilidade não deve observar o disposto no art. 16, da Constituição Federal. No RE supramencionado, se rejeitou a arguição de inconstitucionalidade do art. 27, da LC 64, e não conheceu do

189 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 189 recurso. E, na ADI, negou provimento à ação. A ADI 4307, também tratada aqui, tratava da EC 58, que alterou a composição das câmaras municipais brasileiras, quando já tinham sido eleitos os vereadores. Matéria absolutamente diversa e não aplicável como paradigma ao caso. Quanto ao julgamento da ADPF 144, os critérios avaliados, naquela oportunidade, foram subjetivos, de interpretação do 9º, do art. 14, da Constituição. No caso presente, existe a lei complementar e ela traz critérios objetivos. O que faz do presente caso totalmente diverso da ADPF 144. Esse processo de significação e ressignificação dos precedentes levado a efeito pelos aplicadores do direito até aqui, pelos advogados das partes -, mostra que, tal como afirmado por Fonseca-Silva (2007), os lugares de memória discursiva são, outrossim, lugares/espaços de interpretação, onde, pelo gesto de construção/reconstrução da memória discursiva, sentidos são repetidos, contraditados, esquecidos, mantidos, transformados etc. De seu assento, o Procurador-Geral da República Roberto Gurgel, opinando pelo desprovimento do recurso extraordinário, bem como defendendo a imediata aplicação da Lei da Ficha Limpa às Eleições 2010, também lançou mão, em seu parecer, de precedentes jurisprudenciais como método de exegese e como forma corroborar suas teses interpretativas. Vejamos o excerto nº 04, no qual é possível verificar a ocorrência de tal gesto hermenêutico: Excerto nº 04 Destaca-se que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 354, bem como no Recurso Extraordinário , a Corte examinou o tema, assentando a inaplicabilidade deste princípio, a vigência, eficácia imediata da Lei das Inelegibilidades, rejeitando a arguição de inconstitucionalidade daquela LC 64/90. Naquela oportunidade, o Ministro Neri da Silveira observa, em trecho do seu voto: na linha do que já referi anteriormente, penso que a matéria relativa à inelegibilidade não se compreende no âmbito do art. 16, da Constituição. E mais adiante: compreendo, pois, que a matéria nunca perdeu a natureza constitucional. E, por isso mesmo, quando se cuida de inelegibilidade, o assunto é de índole constitucional e não se comporta, a meu ver, no simples âmbito do processo eleitoral, enquanto este se compõe de procedimentos que visam à realização das diferentes fases do pleito eleitoral. No parecer do órgão ministerial, tal como ocorreu nas falas dos exegetas advogados, o julgado constituído no RE é, novamente, apresentado como um precedente jurisprudencial capaz de demonstrar o entendimento que o Supremo Tribunal Federal vinha esboçando acerca da matéria e as-

190 190 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica sim de apresentar uma solução válida para a questão da eficácia da Lei da Ficha Limpa, nas Eleições O que chama a atenção é que, nas duas primeiras interpretações do julgado, segundo os exegetas, o Supremo teria decidido que matéria de elegibilidade se submeteria ao comando do art. 16, da Constituição, e pelas duas últimas, a Corte teria firmado, justamente, o entendimento contrário. Destarte, as análises demonstram que, circulando pelas sustentações orais feitas pelos advogados na Tribuna e figurando do parecer dado pela Procuradoria-Geral da República, o referido precedente, o RE , tomado como objeto de discurso e sendo interpretado a partir diferentes posições-sujeito, assumiu sentidos que ora se conformavam com o que defendia a defesa dos recorrentes, ora com as teses exegéticas propostas pelo patrono dos recorridos. Esse gesto de interpretação, por meio do qual os exegetas produzem esse efeito de deslizamento de sentidos, é possível graças ao fato de que os julgados, ao se tornarem precedentes jurisprudenciais, constituem-se como lugares de memória discursiva, isto é, como espaços de circulação, repetição e atualização de sentidos. No espaço de memória discursiva assim evocado, é possível identificar ainda certos imaginários que, construídos a partir da apropriação de um real fragmentado e disperso, estão no âmago do que é dito e pensado pelos intérpretes dos casos Joaquim Roriz, Jader Barbalho e Leonídio Bouças. São precisamente esses imaginários, dispersos nas falas dos exegetas da Tribuna e do Plenário do STF e constituintes do espaço de memória discursiva que é evocado/reorganizado, que vemos ganhar corpo nos enunciados interpretativos: i) o papel do Poder Judiciário no combate à corrupção na administração pública; ii) a valorização dos políticos e a importância fundamental, no Estado Democrático de Direito, da atividade política; iii) segurança jurídica e confiança legítima do cidadão-candidato como princípios norteadores do exercício do poder legisferante do Estado etc. 6. Moralidade Administrativa versus Segurança Jurídica A análise dos excertos selecionados indica ainda que, dispersos nas várias formulações/teses interpretativas propostas, discutidas e/ou contestadas, encontram postos dois valores jurídicos que são, a todo o momento, retomados, esquecidos, reforçados ou enfraquecidos: moralidade administrativa e segurança jurídica. Na memória discursiva, em que se situam esses ditos e não ditos, identificamos, outrossim, funcionando um imaginário político-jurídico constituído a partir da interpretação não só de textos da Lei, como também de fatos, acontecimentos e condutas humanas, que se referem à situação vivenciada, nos últimos tempos, pela política pátria. É precisamente nesse imaginário que ganha corpo uma das maiores preocupações atuais do Estado brasileiro: combater a corrupção política.

191 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 191 Moralidade Administrativa não foi, contudo, o primeiro valor jurídico a ser ressaltado na Tribuna do Supremo Tribunal Federal. Isso porque, nos julgamentos dos recursos extraordinários, as sustentações orais são iniciadas pelos advogados dos recorrentes e, nos casos Joaquim Roriz, Jader Barbalho e Leonídio Bouças, o que se pleiteava era justamente a não aplicação da Lei da Ficha Limpa às Eleições Desse modo, o tema inaugural do pronunciamento do advogado Eládio Barbosa Carneiro, patrono da Coligação Esperança Renovada, não poderia ser outro que o discutido no excerto a seguir: Excerto nº 05 Estamos, aqui, para fazer a defesa da candidatura de Joaquim Domingo Roriz, mas, muito além disso, estamos, aqui, defendendo a soberania do voto. Estamos defendendo o Estado Democrático de Direito, que tem como pilar básica, mestra, a segurança jurídica (CARNEIRO, Eládio Barbosa) (grifo nosso). No espaço de memória discursiva, em que se insere a formulação acima e o qual ela evoca, identificamos um imaginário em que segurança jurídica se confunde com o próprio Estado Democrático de Direito. Consequentemente, defender a segurança jurídica é defender o Estado Democrático de Direito, o que equivale a dizer que o Brasil estará sendo defendido, já que ele adota como regime político a democracia. Na formulação, verifica-se assim que o efeito de memória provocado pela emergência desse imaginário na atualidade do acontecimento discursivo (enunciado) fortalece os argumentos levantados pela defesa do recorrente, haja vista que soberania e democracia são valores consagrados constitucionalmente pelo ordenamento jurídico brasileiro, funcionando a intercalada muito além disso, na passagem sublinhada, como intensificador para o que se afirma no excerto. Os axiomas probidade administrativa e moralidade para o exercício do mandato (art. 14, 9º, da CF/1988) surgiram, por seu turno, nas falas do advogado André Henriques Maimoni, patrono do recorrido PSOL, e no parecer do Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. Os excertos abaixo foram retirados dos referidos pronunciamentos: Excerto nº 06 O PSOL entende que o país, o Brasil, tem buscado a moralização das eleições desde o início da República. Nesse longo e penoso processo, dois entes têm tido particular significação nessa implementação das melhorias da democracia: o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. O [rompimento] institucional com práticas nefastas e que não legitimam os pleitos sempre foi a razão propulsora da melhoria das eleições e do processo civilizatório, de cidadania, que o Brasil tem passado. [...] o Poder Judiciário foi protagonista sempre da implementação,

192 192 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica da proteção à probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato, considerando-se sempre a vida pregressa dos candidatos e normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou do abuso de poder no exercício de função, cargo ou emprego na administração pública. A LC 135 e a sua imediata aplicação representam a justa intervenção do Estado de fazer imediatamente prevalecer os interesses públicos e amplamente coletivos da moralidade, probidade, impessoalidade, moralidade nas eleições, assim, melhorando a representação coletiva no país (MAIMONI, André Henrique) (grifo nosso). Excerto nº 07 A LC 135, principalmente, para a hipótese da alínea k, é totalmente conforme o art. 14, 9º, da Constituição. Na verdade, ele dá eficácia a esse 9º e aplicabilidade a ele. Nesse aspecto, o STF já tem pacificado, em seus julgados, que se deve preferir, dentre a gama de interpretações, a norma constitucional que confira maior efetividade à Constituição Federal. A LC 135, além de absoluta regularidade quanto aos aspectos formais do processo legislativo que a construiu, ela não é casuística, também, porque não deturpa os interesses e princípios que norteiam a matéria de inelegibilidades. A lei, na verdade, implementa e prospecta a proteção da moralidade e a probidade. Ela faz, exatamente, como ordena o art. 14, 9º, da Constituição. Ela respeita o interesse público e considera a vida pregressa do candidato, como um dos requisitos para participar do pleito. (MAIMONI, André Henrique) (sublinhamos e negritamos). Excerto nº 08 Dizia e repetia, reiteradamente, Afonso Arinos, que a descrença, o descrédito da sociedade no político, o menosprezo da atividade política, qualquer que fosse a causa, ainda que aparentemente razoável a justificativa, constituía sempre grande risco à democracia e à República. E, por isso mesmo, era imprescindível tudo fazer para evitar tal desvalorização, tal menosprezo. Nas últimas décadas, como é notório, a frequência tristemente enorme de um variado festival de improbidades e de outras mazelas envolvendo o chamado mundo político fez com que a sociedade, em grande parte, se desencantasse dos políticos e da própria política. A valorização dos políticos e a óbvia importância fundamental, no Estado Democrático de Direito, da atividade política constituem precisamente o pano de fundo do feito, agora, submetido à apreciação dessa Corte Suprema. (GURGEL, Roberto) (grifo nosso).

193 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 193 No acontecimento discursivo dos excetos 06, 07 e 08, apesar da dispersão temática das formulações, encontramos marcada uma única posição-sujeito em que a Lei da Ficha Limpa aparece sempre associada à necessidade de moralização do Poder Público e da própria política. No espaço de memória discursiva, identificamos ainda a existência de um imaginário, a partir do qual a Lei e o Poder Judiciário aparecem como os mais eficazes combatentes à corrupção no Poder Público. A primeira, selecionando previamente os políticos mais probos, os candidatos mais honestos, com a previsão das condições de elegibilidade, das causas de inelegibilidade, e o segundo, garantindo que essa triagem prévia seja observada. Nos excertos 06 e 07, a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e a sua imediata aplicação são defendidas pelo enunciador como formas de se conferir maior efetividade à própria Constituição. Assim, as novas hipóteses de inelegibilidade previstas pela LC nº 135/2010, por considerarem a vida pregressa do candidato, tal como ordenado pelo 9º, do art. 14, da CF/1988, prospectariam os interesses difusos e amplamente coletivos da probidade e da moralidade administrativas. No excerto 07, por exemplo, o emprego da palavra absoluta para qualificar a regularidade da Lei da Ficha Limpa quanto aos aspectos formais do processo legislativo, tem como efeito reforçar as alegadas constitucionalidade e legitimidade da lei complementar em questão. Já nas últimas quatro linhas sublinhadas no excerto 08, não é mais com a proteção da segurança jurídica, tal como afirmado no excerto 05, que se defende o Estado Democrático de Direito. Nesse regime político, conforme a formulação do representante do Ministério Público Eleitoral, expressa no excerto 08, o mais importante é combater a corrupção e a improbidade administrativa, valorizando-se, dessa forma, a política e os próprios políticos. Questão que aparece, também, como a principal preocupação do Ministro Ayres Britto, relator do RE de Joaquim Roriz, a cujo julgamento se refere o parecer emitido pelo Procurador-Geral da República, do qual foi extraído o excerto nº 08. Abaixo, nos excertos nº 09 e nº 10, vemos esboçada essa inquietação do ministro relator no que respeita à valorização da política: Excerto nº 09 Política é a mais imprescindível das atividades humanas. Urgindo, no entanto, criar instituições e institutos, como o da inelegibilidade, que tornem os políticos dignos da política, ou que salvem a política dos políticos, dos políticos avessos aos princípios da probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato e da não incidência do abuso do poder político ou econômico (BRITTO, Ayres) (grifo nosso).

194 194 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica Excerto nº 10 Valores como o da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato, uma vez concretizado por lei de expressa requisição constitucional, não comportam procrastinação ou quarentena. Como é que se pode exigir que uma lei, protetora da probidade, só entre em vigor, no ano subsequente, daqui a cinco meses, a dez meses, a doze meses? Sabido que a probidade administrativa é o principal conteúdo do princípio da moralidade administrativa de que trata o art. 37, da Constituição. Kelsen dizia, Ministro Lewandowski, Kelsen dizia que há um modo fácil de se aferir a validade ou da valiosidade de uma norma jurídica, basta saber como é que o Direito reage a violação dessa norma. Pois bem, como é que a Constituição reage a violação da probidade administrativa? Dizendo que os atos de improbidade administrativa importarão a perda do cargo, a inabilitação para ;a função pública, o ressarcimento ao erário, a indisponibilidade dos bens, sem prejuízo da ação penal cabível. Então, como é que se pode exigir que uma lei explícita, de caráter complementar, de expressa requisição constitucional, só entre em vigor a partir de tal data? A probidade pode esperar? O cumprimento da probidade, o cumprimento da moralidade pode esperar um dia que seja? Pode ser de prejuízo irreparável para o ordenamento jurídico e para a coletividade por inteiro. Por definição, aplicam-se desde logo ao cotidiano das instituições e da cidadania esses valores -, porque a transigência com eles, condescender com eles, interpretá-los de modo frouxo, leniente, para não dizer cúmplice, é de molde a acarretar os mais graves e irreparáveis prejuízos à saúde republicana do país e até mesmo à auto estima de toda uma coletividade, aqui e alhures. Daí a fala constitucional para que se considere a vida pregressa do candidato como elemento de sua própria condição de elegibilidade (BRITTO, Ayres) (grifo nosso). Do espaço de memória discursiva evocado pelos enunciados do hermeneuta o qual ele (re)organiza, pois o (re)interpreta surge, sendo retomada por esses mesmos enunciados, a problemática do combate a corrupção. No excerto n º 09, por exemplo, em que a política é identificada como a mais imprescindível das atividades humanas, trata o intérprete da necessidade de se criar institutos que a protegessem, adjetivando-os, através de orações substantivas adjetivas restritivas, como aqueles que tornariam os políticos dignos da política ou que salvariam a política dos políticos (linhas 2 e 3). O exegeta aponta ainda os políticos dos quais a política deveria ser salva: os políticos avessos aos princípios da probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato e da não incidência do abuso do poder político ou econômico (linhas 3 a 6), isto é, os políticos corruptos.

195 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 195 No excerto nº 10, além da voz autorizada do jusfilósofo Hans Kelsen e da citação da Constituição Federal de 1988, que funcionam legitimando os enunciados a que elas se referem, surte também efeito de sustentação, em relação ao que é dito pelo intérprete, a intercalada protetora da probidade, formulação que adjetiva a LC nº 135/2010 (linha 4). O mesmo efeito é produzido pelas frases interrogativas das linhas 14 a 18, com as quais o intérprete procura demonstrar a urgência de moralização do espaço público, e pela frase explicativa das linhas 21 a 25, na qual saúde republicana do país e autoestima de toda uma coletividade aparecem como paráfrases dos valores probidade e moralidade administrativas. Já no julgamento do RE de Leonídio Bouças, o seu relator, o Ministro Gilmar Mendes, centrando o seu voto na análise do conteúdo normativo do art. 16, da Constituição Federal de 1988, e, portanto, adotando itinerário hermenêutico diverso do desenvolvido pelos relatores dos outros dois recursos extraordinários, os Ministros Ayres Britto (RE ) e Joaquim Barbosa (RE ), que focaram suas discussões na defesa da probidade e da moralidade administrativas, fazendo a exegese da norma do 9º, do art. 14, da Constituição Federal de 1988, o Ministro Gilmar Mendes defendeu a proteção do processo eleitoral e a garantia da igualdade de participação entre os candidatos, consectários, de acordo com o intérprete, da Segurança Jurídica. O excerto a seguir foi extraído de seu voto: Excerto nº 11 De fato, não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações, no sistema eleitoral, que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. O princípio da igualdade entre os partidos políticos é fundamental para a adequada atuação dessas instituições no complexo processo democrático. Impõe-se, por isso, uma neutralidade do Estado em face das instituições partidárias, exigência essa que se revela tão importante quanto difícil de ser implementada. A importância do princípio da igualdade está em que, sem a sua observância, não haverá possibilidade de estabelecer-se uma concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política, o que acabará por comprometer a essência do próprio processo democrático. [...] o princípio da igualdade de chances entre os partidos políticos abrange todo o processo de concorrência entre os partidos, não estando, por isso, adstrito a um segmento específico. É fundamental, portanto, que a legislação que disciplina o sistema eleitoral, a atividade dos partidos políticos e dos candidatos, o seu

196 196 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica financiamento, o acesso aos meios de comunicação, o uso de propaganda governamental, dentre outras, não negligencie a ideia de igualdade de chances, sob pena de a concorrência entre agremiações se tornar algo ficcional, com grave comprometimento do próprio processo democrático. Portanto, a cláusula do art. 16, que é uma expressão específica, especial de segurança jurídica, aqui, funciona, também, como um instrumento básico da igualdade de chances, evitando, exatamente, essas mudanças calculadas, esse jogo probabilístico que se faz na relação entre maioria e minoria. (MENDES, Gilmar) (grifos nossos). O espaço de memória discursiva invocado, agora, é outro. Neste, temos uma posição-sujeito para a qual não são os princípios da probidade e da moralidade administrativas que constituem o cerne do modelo democrático, mas os princípios da igualdade de chances e da proteção do processo eleitoral, consubstanciados no art. 16, da Constituição Federal de 1988 (linhas 6 a 8 e 22 a 23). Nesse sentido, identificamos, no excerto nº 11, alguns elementos linguísticos que funcionam dando sustentação e/ou legitimidade ao que é dito pelo intérprete do Plenário do Supremo. Em primeiro lugar, temos concorrência livre e equilibrada (oração subordinada substantiva objetiva direta, sublinhada nas linhas 12 e 13), que funciona como paráfrase para processo eleitoral ; e, depois, expressão específica, especial de segurança jurídica (linha 24) e instrumento básico da igualdade de chances (linha 25), parafraseando ambos o Princípio da Anualidade Eleitoral. As análises e discussões realizadas neste tópico nos permitem afirmar que, associada a essa disputa teórico-conceitual ocorrida entre os defensores da imediata aplicação da Lei da Ficha Limpa às Eleições 2010, apontada como instrumento moralizador da política e dos próprios políticos, e entre aqueles que postularam em favor do Princípio da Anualidade Eleitoral (art. 16, da CF/1988), como corolário do valor segurança jurídica, teve lugar um jogo de construção/reconstrução de espaços de memória discursiva, em que se inserem posições-sujeito que retomam como objeto de discurso a definição do próprio Estado Democrático de Direito e as bases que o fundamentariam. Quanto aos argumentos que embasaram as posições adotadas pelos exegetas de um lado, o Princípio da Probidade e da Moralidade Administrativas e, do outro, o Princípio da Segurança Jurídica podemos dizer que não houve a negação de nenhum desses princípios por parte dos intérpretes. Em suas exegeses, o que observamos foi que os ministros centravam-se em uma ou outra norma da Constituição Federal de 1988 no 9º, do art. 14, ou no art. 16 ou em um ou outro princípio, que, segundo entendiam, sustentavam as suas respectivas posições a respeito da questão da aplicação da Lei da Ficha Limpa às Eleições Sopesados, dessa forma, nas exegeses então realizadas, nenhum desses princípios teve a sua importância menosprezada, o que ocorreu foi que, ao defenderem a segurança jurídica

197 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 197 ou a moralidade administrativa, os intérpretes do Supremo enunciaram a partir de posições-sujeito diferentes. 7. Considerações finais As análises demonstraram que a jurisprudência da Corte exerce função preponderante em todas exegeses que são desenvolvidas pelos membros do Supremo Tribunal Federal ou por aqueles que sustentam teses jurídicas em sua Tribuna. Raramente, encontra-se uma interpretação normativa ou a análise de alguma questão jurídica que não aponte sequer um precedente jurisprudencial como paradigma aplicável à norma ou ao caso em apreço. Nesse sentido, tal como discutimos no tópico Os precedentes jurisprudenciais como lugares de memória discursiva, os julgados pretéritos da Corte funcionam como espaço de memória sobre os quais são exercidos gestos de interpretação que acabam por reorganizá-los. Como afirma Pêcheux [1983a] (1997), os espaços de memória, como lugares de interpretação, ao serem invocados por enunciados discursivos, além de retomados, são também reestruturados/(re)interpretados no exato momento de sua evocação. Verificamos, igualmente, que, nos espaços de memória evocados pelos enunciados discursivos, funcionam posições-sujeito que retomam, como objeto de discurso, questões políticas, jurídicas e sociais, tais como a necessidade de se recuperar a dignidade da política e dos próprios políticos; a urgente moralização do Poder Público; a obrigatoriedade de se conferir segurança aos cidadãos-candidatos; os valores fundantes do Estado Democrático de Direito e seu próprio conceito. Neste último ponto em particular, pudemos identificar duas posições-sujeito: para uma, embasariam, fundamentalmente, o nosso ordenamento jurídico constitucional e o Estado Democrático de Direito os valores da probidade e moralidade administrativa; para a outra, os valores de maior envergadura, em uma nação jurídico-democrática, seriam as garantidas da segurança jurídica e da proteção da confiança, que impediriam comportamentos inesperados por parte do Estado. É possível afirmar assim, conforme o referencial teórico-metodológico adotado, que a opacidade da língua e a memória exercem papel preponderante nos gestos de leitura, interpretação e ressignificação dos precedentes jurisprudenciais e das exegeses normativas, uma vez que a memória é a condição do legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, [1983b] 1999, p. 51), e o real da língua aponta para o papel do equívoco, da elipse, da falta, etc... (PÊCHEUX, [1983a] 1997, p. 51), na produção/circulação de sentidos. Referências BRASIL. Constituição: da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de Texto consolidado até a Emenda Constitucional nº 68, de 21 de dezembro de Brasília, DF: Senado Federal, Secretaria Especial

198 198 Direito e interpretação: o papel da memória e da opacidade da língua na hermenêutica jurídica de Editoração e Publicações, Subsecretaria de Edições Técnicas, Disponível em: < CON1988_ /index.shtm>. Acesso em : 23/02/2012. BRASIL. Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de Estabelece, de acordo com o art. 14, 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 21 de maio de Disponível em: < gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp64.htm>. Acesso em: 16/02/2012. BRASIL. Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 7 de junho de Disponível em: < LEIS/LCP/Lcp135.htm>. Acesso em: 16/02/2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº Recorrentes: Coligação Esperança Renovada e Joaquim Domingos Roriz. Recorridos: Antônio Carlos de Andrade e PSOL, Júlio Pinheiro Cardia e Ministério Público Eleitoral. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, 22 e 23 de setembro de BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº Recorrente: Jader Fontenelle Barbalho. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, DF, 27 de outubro de BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº Recorrente: Leonídio Henrique Correa Bouças. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Relator: Gilmar Mendes. Brasília, 23 de março de COURTINE, J-J. Analyse du Discours Politique (Le Discours Communiste Adressé Aux Chrétiens). Langages. Paris, Larousse, n. 114, p. 5-12, FONSECA-SILVA, M. da C. Mídia e Lugares de Memória Discursiva. In: Mídia e Rede de Memória. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2007, p FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Brasileira de Luiz Felipe Baeta Neves. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Edição Original: 1969.

199 Luis Cláudio Aguiar Gonçalves 199 GINZBURG, C. Sinais. Raízes de um Paradigma Indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais. Morfologia e História. Tradução de Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p Título original: Mitti, emblemi, spie: morfologia e storia, HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, Edição original: Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Alcan, NORA, P. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10, p. 7-28, dez Edição original: ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, Análise do Discurso: princípios & procedimentos. São Paulo: Pontes, PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). Tradução de Bethânia Mariani [et al]. In: GADET, F e HAK, T (Org.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, p Edição original: Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, Edição original: Papel da Memória. In: Papel da Memória. Organização: Pierre Achard et al. Campinas: Pontes, 1999, p Edição original: 1983a.. O discurso, estrutura ou acontecimento. Tradução: Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, Edição original: 1983b.

200 Parte III PROCESSO JUDICIAL & LINGUAGEM

201 9 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas Ana Virgínia Cartaxo Alves, Caroline Alves Montenegro e Juliana de Brito Giovanetti Pontes 1. Introdução Universidade Católica de Pernambuco O conceito de sociedade vem se transmudando ao longo do tempo, e, a partir da Modernidade, os centros tradicionais de orientação da conduta humana deixaram de ser as únicas possibilidades de referência, fazendo com que cada homem passasse a ser seu próprio elemento norteador. Esse processo de descentramento culminou com o individualismo e a racionalidade, já que cada indivíduo se orienta conforme sua própria vontade, pautado unicamente em sua razão. Tudo isso fez com que a conotação de sociedade não se coadunasse como a união de pessoas com projetos comuns, mesmas crenças, culturas e valores. Ao contrário, o tecido social passou a apresentar duas características primordiais: a complexidade e o pluralismo. Esses novos elementos caracterizadores da sociedade representaram uma mudança drástica na forma com que as pessoas se relacionam entre si, pois a complexidade representa a existência de uma miríade de possibilidades e uma enorme contingência e, por conseguinte, a insegurança; já o pluralismo, importa na coabitação de infinitos projetos de vida distintos em um mesmo espaço social e político. Com essas novas características, a vida em sociedade não pode mais restar ligada por um centro referencial comum, em que todos os indivíduos são conduzidos por meio do consenso. Na verdade, o estado marcado pelo pluralismo e pela complexidade corre um grande risco de se fragmentar, em 201

202 202 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas virtude de intolerância com a diferença, ou de das constantes tentativas de grupo subjugar os demais, privilegiando seus interesses. Nessa conjuntura, percebe-se que a democracia fundada na regra majoritária perdeu seu sentido, já que a sociedade contemporânea, complexa e pluralista, não permite um governo da maioria que ignore os pleitos dos demais grupos. Em outras palavras, essa virada social exige uma democracia que prime pela participação de todos e cada um dos membros da sociedade, por mais minoritária que seja sua posição. Assim, a legitimidade dos atos estatais encontra um novo lugar na possibilidade de efetiva participação igualitária de todos os grupos no processo de tomada de decisões públicas, de modo que nenhum elemento social seja descartado, e que se busque uma solução racional, pautada sempre no diálogo entre os distintos interesses. Noutro aspecto, é importante destacar que o Poder Judiciário passou a apresentar um novo papel: o de garantidor dos direitos fundamentais, protegendo, principalmente, as minorias. Noutros termos, o Judiciário, para assegurar a legitimidade democrática dos atos públicos, deve fixar o limite de atuação dos outros poderes, para que suas decisões sejam fruto da construção do povo somada à autoridade pública. Assim, as próprias decisões do Judiciário, para serem consideradas legítimas, devem se embasar nesse modelo participativo, que prime pelo diálogo entre todos os valores distintos como forma de edificar uma decisão racional. No entanto, não obstante essas novas exigências de um Estado Democrático de Direito, percebe-se que o Poder Judiciário, mormente o Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade das leis, pode estar ignorando tais demandas. É que a referida corte tende a adotar uma postura de guardiã dos valores da sociedade, na medida em que algumas de suas decisões são tomadas com base em certos valores dados como prioritários, numa espécie de consenso artificial. Ademais, verifica-se que, talvez, a Corte Maior brasileira esteja agindo contrariamente às exigências de uma democracia mais participativa, ao passo que privilegia o uso do controle abstrato de constitucionalidade, que não permite a participação direta dos litigantes na tomada das decisões. Dessa forma, o presente trabalho busca realizar uma breve análise dessa conjuntura, perquirindo se jurisdição constitucional brasileira, em especial o controle de constitucionalidade das leis realizado pelo Supremo Tribunal Federal, está atendendo aos novos anseios democráticos de uma sociedade complexa e pluralista.

203 Ana Virgínia Cartaxo Alves Pluralismo e complexidade das sociedades contemporâneas O advento da modernidade importou num processo de dissolução progressiva dos centros de referência para a atuação do homem. É que o homem moderno, pouco a pouco, foi superando seus núcleos de orientação, em um movimento centrífugo. Verificou-se, então, que cada novo movimento marcante da idade moderna impulsionou o redimensionamento dos centros de orientação tradicionais dos grupos de indivíduos, como por exemplo, a Revolução Científica e a Reforma Protestante. Neste diapasão, como os centros de orientação tradicionais deixaram de existir, a solução encontrada pela modernidade foi converter cada indivíduo em centro orientador da sua própria conduta (GALUPPO, 2001, p. 343). Observou-se que o indivíduo assumiu papel central na modernidade, consistindo o referencial último para si mesmo, e, com isso, dar-se o nascimento de uma multiplicidade de centros de referência, já que cada indivíduo passa a ser considerado seu próprio centro de orientação. Esse movimento centrífugo dos centros orientalizantes, que culminou emergência do indivíduo como próprio referencial de conduta, coincidiu com o processo de racionalização. É que essas mudanças nos centros tradicionais de orientação terminaram por ocasionar grandes incertezas à sociedade moderna, pois as verdades até então disseminadas pelos grandes referenciais passaram a ser questionadas, à medida que o processo de descentralização se expandia. Todo esse processo implicou um novo medo no homem moderno: a insegurança. Como não havia mais uma orientação uniforme e uma única verdade a ser seguida, o indivíduo, convertido no seu próprio modelo, ficou perdido sem uma bússola que o orientasse, já que habitava num mundo permeado por dúvidas. Na busca de uma solução para enfrentar esse medo, dando cabo a tantas incertezas, o ser humano encontra uma resposta: a racionalidade. O pensamento racional, introduzido por Descartes, propõe-se a acabar definitivamente com o medo do incerto, dando origem a um ideal de ciência pautado na certeza e segurança matemáticas. A razão, destarte, passou a ser entendida como solução absoluta para se encontrar a verdade única da ciência, estabilizando os medos do homem cartesiano. Então, nesses moldes, pode-se perceber que, na modernidade, viveu- -se uma transição vertiginosa que estabeleceu a guinada do indivíduo como centro de referência para sua atuação, essa, por sua vez, deveria ser marcada por uma concepção racional dos elementos a sua volta. Assim, surge o entendimento que apenas a razão contida em cada ser humano seria capaz de decidir o que seria bom e devido para sua vida e, com isso, consolida-se um modelo social em que não se pode mais determinar o que é melhor para

204 204 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas o outro a partir de uma visão puramente externa, mas somente o indivíduo, senhor do seu próprio destino, detém a capacidade e legitimidade de ter a última palavra a respeito de sua própria vida. Nessa esteira, pode-se afirmar que o conceito atual de sociedade não mais se enquadraria numa concepção de um todo homogêneo orientado por um único centro de referência, ao contrário, após todo o processo de descentramento dos antigos núcleos de referência e com o apogeu do individualismo racional vividos na modernidade, as características fundamentais das sociedades democráticas contemporâneas passaram a ser a complexidade e o pluralismo. Num primeiro momento, será trabalhado o que se entende por sociedade complexa. Com efeito, a adjetivação da sociedade contemporânea em complexa implica, numa concepção da teoria dos sistemas luhmanniana, na ideia de multiplicidade de escolhas, ou seja, nessa acepção, a complexidade se refere a uma presença permanente de mais possibilidades (alternativas) do que as suscetíveis de ser atualizadas (LUHMANN, 1987, apud, NEVES, 2001, p. 332). Seguindo tal entendimento, Marcelo Neves (2001, p. 332) explica que a sociedade moderna seria supercomplexa na medida em que as alternativas possíveis de condutas, comunicações, relações e fatos sociais são muito maiores do que aquelas que se podem realizar efetivamente em uma situação concreta. Para Luhmann, o conceito sistêmico de complexidade pressupõe um entendimento básico, válido para todos os sistemas, o da diferenciação entre meio e sistema a partir da complexidade. É que o meio do sistema sempre seria mais complexo do que o próprio sistema e, destarte, aquele oferece mais possibilidades do que o sistema pode aceitar, processar ou legitimar (LUHMANN, 2009, p. 184). Na visão sistêmica, complexidade implica em contingência, ou seja, em razão dessas múltiplas possibilidades, é impossível prever todos os fatores que podem ou não ser operacionalizados. Nesse raciocínio, sempre haverá elementos incalculáveis, de modo que as pessoas devem estar preparadas para as consequências de um elemento surpresa se concretizar (LUHMANN, 2009). Noutro aspecto, essa complexidade e a contingência dela derivada importam na necessidade de seleção. É que, em virtude das múltiplas relações capazes de serem formadas pelos elementos integrantes do sistema, este deve ser capaz de selecionar a forma como deve relacionar tais elementos. A complexidade é, portanto, a necessidade de manter uma relação apenas seletiva entre os elementos (LUHMANN, 2009, p. 185).

205 Ana Virgínia Cartaxo Alves 205 É importante consignar o alerta de Marcelo Neves, ao aduzir que essa necessária seletividade exige que os mecanismos de seleção que não excluam nenhuma das possibilidades. Além disso, afirma que esses mecanismos seletivos têm a finalidade de transformar complexidade desestruturada em complexidade estruturada, sem desconhecer, portanto, a heterogeneidade de valores, interesses e discursos, assim como a pluralidade de sistemas existentes na sociedade (NEVES, 2001, p. 332 e 333). Assim sendo, a teoria dos sistemas propõe não o fim dessa complexidade, mas a estruturação da mesma com respeito às concepções individuais, que tendem a ser sempre diferentes e, talvez, nunca possam ser compatibilizadas por meio de um consenso. Desta forma, transpondo a teoria dos sistemas para o sistema social, percebe-se que a sociedade contemporânea é supercomplexa na medida em que existem cada vez mais possibilidades de escolhas e de maneiras pelas quais as relações sociais podem ser estabelecidas, nos moldes de uma verdadeira análise combinatória. Então, pode-se afirmar que, no momento em que homem se tornou o núcleo referencial de sua própria conduta, ele começou a se deparar com uma miríade de possibilidades e, como consequência, as relações sociais se tornaram cada vez mais complexas e imprevisíveis, obrigando o indivíduo a estar preparado para lidar com fatores surpresas que eventualmente podem ocorrer e as prováveis frustrações que tais riscos podem ensejar. Outro traço fundamental das sociedades contemporâneas é o que se convencionou denominar pluralismo. Como a própria nomenclatura sugere, o pluralismo pode ser compreendido como a coexistência de uma variedade de elementos diferentes em um mesmo espaço. Contudo, para o presente trabalho, compreende-se o pluralismo numa concepção político- -social, aqui conceituado como uma multiplicidade de valores, interesses, crenças religiosas, grupos étnicos, compromissos morais, formas culturais e concepções sobre a vida digna compartilhando um mesmo espaço social e político. É interessante notar que o pluralismo é marcado pela heterogeneidade, vez que, desde a dissolução dos centros tradicionais de orientação, o ser humano assumiu o papel do próprio referencial de conduta e, por conseguinte, numa sociedade complexa de múltiplas possibilidades, não pode se falar em uma igualdade de concepções individuais; o que ocorre, no máximo, é a congregação de pessoas em grupos que comportem valores, características ou objetivos semelhantes. De acordo com Bobbio (1995), a concepção de uma sociedade pluralista (e também complexa) engloba três características: a sua formação por meio de esferas particulares relativamente autônomas, a opção de organizar essas sociedades através de um sistema político que viabilize que os vários

206 206 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas grupos e camadas sociais participem, seja de forma direta ou indireta, na formação da vontade coletiva e, por fim, que esse modelo social seria uma antítese de toda e qualquer forma de despotismo. A partir dessas características, percebe-se que o pluralismo representa dois riscos extremos para a convivência em sociedade. O primeiro perigo é justamente o excesso de descentramento gerar um processo de desagregação social irreversível. A desagregação radical e irreversível da sociedade representa um risco real advindo do pluralismo, posto que uma sociedade excessivamente individualista já que cada indivíduo ou cada grupo perseguiria o seu próprio ideal de vida poderia perder totalmente sua coesão e, por conseguinte, a vida em sociedade correria um grande perigo de se desintegrar por completo. Outro grande risco que o pluralismo representa para a sociedade contemporânea é a possibilidade de um núcleo descentralizado de poder tornar-se hegemônico, impondo seu projeto de vida aos demais grupos. O perigo de um determinado grupo despontar como poder autoritário surge a partir do momento em que a convivência da heterogeneidade num espaço político cada vez mais descentralizado enseje na possibilidade da propagação de orgulhos étnicos e na manifestação da supremacia de uma raça, cultura ou ideologia, nascidos da falta de tolerância ou do não reconhecimento pacífico do outro (TEIXEIRA, 2006). Esse risco de um dissenso extremo, acarretando numa fragmentação radical que impossibilite a compatibilização de projetos coletivos ou no perigo da instalação de um poder despótico totalmente intolerante e insensível às diferenças, representa um dos grandes problemas a serem enfrentados por uma sociedade cada vez mais plural e complexa. Cumpre frisar que tais problemas podem se tornar ainda mais agudos num momento de crise, como o que se atravessa, quando há uma tendência à fragilização da sociedade, ante a ampliação das dificuldades econômicas e sociais, com propensão a tornar os grupos mais intolerantes, em razão do medo e da insegurança. É oportuno ressaltar que o dissenso é a marca do pluralismo, pois é o traço fundamental da diversidade de valores, pensamentos e interesses que permeiam os núcleos descentralizados da sociedade. Por conseguinte, num pretenso Estado Democrático de Direito, só há o que se falar numa sociedade pluralista, como prevista no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, se houver verdadeiramente um espaço para as diferenças e o dissenso entre os cidadãos. Nessa esteira, a despeito das diferenças marcantes que cada vez mais se exasperam na medida em que aumentam as possibilidades e a consequente complexidade social, verifica-se que não se pode reproduzir um modelo de consenso absoluto ou, até mesmo, artificial, imposto por único centro de poder.

207 Ana Virgínia Cartaxo Alves 207 No entanto, não se pode abrigar um modelo estatal pautado na mera coabitação de projetos de vida distintos em um mesmo espaço político-social, mas, talvez, a resposta para esses problemas esteja na possibilidade do reconhecimento de igual importância de todas as aspirações, inclusive dos grupos minoritários. E, além disso, da criação de mecanismos que permitam uma posição dialógica entre as mais distintas visões de mundo, com a finalidade de estabelecer condições básicas para que todos os grupos possam participar da vida política e concretizar, de alguma forma, os seus interesses. 3. Os novos contornos da democracia Conceituar democracia não é uma tarefa fácil, ademais, não faz parte do cerne do presente trabalho delongar-se nessa esfera da Ciência Política. No entanto, não se pode se eximir de delimitar o que se compreende, aqui, por democracia para, então, tentar-se discutir acerca da pretensa legitimidade democrática Judiciário brasileiro em sede de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Tradicionalmente, atribui-se à democracia a insígnia de governo do povo, conforme a origem grega do vocábulo. Entretanto, não se pode afirmar que a concepção atual de democracia é a mesma da Grécia Antiga, cujas características principais eram a unidade, solidariedade e participação; não podendo esquecer que a cidadania, à época, era um conceito altamente restritivo, porque poucos participavam da vida pública, excluindo-se mulheres, escravos e estrangeiros (HELD, 1987). De lá para cá a noção de estado mudou de maneira radical e, hoje, como já aduzido, vive-se em um tecido social permeado pelos problemas da complexidade e do pluralismo. Como já afirmado, a sociedade contemporânea é marcada por uma miríade de possibilidade e pela convivência dos mais diversos projetos de vida, aspirações e crenças, dando lugar a variados grupos separados de modo virtual, o que implica dizer que a noção de um poder emanado de um povo não mais se agrega a acepções de unicidade ou de um governo exercido de maneira totalmente direta pelos cidadãos. Dessa maneira, a atual configuração da democracia não pode desconsiderar as referidas características que marcam grande parte dos estados hodiernos, inclusive a sociedade brasileira; logo, deve-se encontrar maneiras de compatibilizar os atos estatais com as atuais exigência democráticas. Nesse sentido, o conceito majoritário de democracia não é mais suficiente para atender todas as exigências dessa nova configuração estatal, pois, em sociedades pluralistas, a fragmentação social não mais permite a necessária flexibilidade exigida pela regra majoritária, na medida em que os grupos minoritários poderiam quedar-se preteridos das decisões políticas.

208 208 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas Assim, a prevalência do princípio majoritário poderia tornar-se não apenas antidemocrática, como algo pernicioso. É que, ao serem reiteradamente repelidas do poder, as minorias, por não terem seus argumentos ouvidos e seus anseios concretizados, tendem a se sentir discriminadas, deixando de prestar lealdade ao regime, o que, por sua vez, pode culminar com uma ruptura do Estado (LIJPHART, 1989). Destarte, a democracia, no atual contexto, deve apresentar possibilidades reais de participação de todos, sob pena das minorias serem descartadas da vida pública. No entanto, é salutar esclarecer que o que se entende aqui por consenso não se coaduna com a ideia de consenso impositivo, em que não seja ofertada possibilidade de desacordo. Busca-se, de modo inverso, a possibilidade de dissenso, de pluralidade, estimulando o diálogo entre os mais diversos grupos, com visões e crenças e desejos distintos, para que, a partir da comunicação e respeito recíproco, encontrem-se soluções para compatibilizar as diferenças. E, só assim, pode-se falar em democracia, compreendendo-se que o todo é o que importa, a soma da maioria e da minoria, e não apenas o que pensa a parte majoritária. Ademais, é importante destacar que, no seio de uma sociedade pluralista e complexa, não se pode mais falar em homogeneidade de culturas; na verdade, cresce exponencialmente a multiplicidade de formas culturais, grupos étnicos, crenças religiosas e concepções de vida. Nas palavras de Schnapper (apud TEIXEIRA, 2006, p. 330), toda nação democrática é, por definição, multicultural. É que, afirma o referido autor, as nações foram edificadas a partir de várias etnias preexistentes e, mesmo que a nação transcenda as etnias, estas permanecem existindo, fazendo com que uma multiplicidade de identidades culturais, histórias, ideológicas e religiosas convivam num mesmo espaço político. Para Habermas (2002), as sociedades multiculturais somente poderão manter sua coesão através de uma cultura política que assegure a coexistência pacífica de cidadãos provenientes de vários ambientes culturais, mas não apenas isso. No seu entendimento, a cultura política inclusivista deve, além de garantir os direitos liberais e os direitos políticos à participação, também permitir que os cidadãos possam ter seus direitos eficazmente valorizados sob a forma de segurança nacional e do reconhecimento recíproco de formas culturais distintas. Além disso, Habermas (2002) aponta para um grave problema que pode surgir nas sociedades pluralistas, e com o grau mais elevado, nas sociedades multiculturais: a questão do que denomina minorias inatas. Isso ocorre quando, mesmo em estados democráticos, uma cultura majoritária detém o poder político de decisão e forçadamente impõe às minorias sua

209 Ana Virgínia Cartaxo Alves 209 cultura e acepções de vida, de modo da impossibilitar a efetiva igualdade de direito aos cidadãos de origem cultural distinta. Essa situação denota verdadeiro risco para as sociedades contemporâneas, eis que, como as normas jurídicas são permeadas por valorações éticas, isso faz com que os textos legais, de conteúdo universal, sejam interpretados de modo distinto a cada caso, com base na cultura historicamente predominante. Desta forma, os valores da cultura majoritária que exerce o poder político são os que vão prevalecer na interpretação jurídica; logo, o discurso ético-político varia conforme se alterne a maioria que ocupe o cargo decisório, como destaca Habermas (2002, p. 166), nem sempre há novos argumentos, mas sim, novas maiorias. Isto representa um verdadeiro risco para a democracia contemporânea, haja visto que a maioria dominante tende a subjugar a minoria, impondo-lhe seus valores. Assim, um estado que não esteja fundado numa política de participação igualitária e no diálogo entre os participantes do jogo político, torna-se um espaço antidemocrático, em que os grupos minoritários ficam a mercê das regras da maioria. É importante ressaltar que aqui não se defende o que Marcelo Neves (2001, p. 341) denomina de multiculturalismo extremo, ou seja, exagero na proteção da diversidade dos valores e etnias, fazendo com que qualquer limite à identidade de um grupo étnico ou cultural seja prontamente rechaçado, mesmo que esse excesso de proteção implique num risco para formação estatal. Na verdade, busca-se um modelo de estado que promova espaço para efetiva participação de todos os grupos culturais e, mesmo que estejam todos virtualmente separados, possam encontrar denominadores comuns que possibilitem uma convivência harmônica, com sensibilidade para as diferentes opiniões. Há, portanto, necessidade de se viabilizar um método de comunicação entre os diferentes. Nesse sentido, verifica-se que não se pode falar em manutenção de uma sociedade multicultural sem o recurso a um princípio universalista que permita a comunicação entre os indivíduos e os grupos social e culturalmente diferentes (TOURAINE, 1997apud NEVES, 2001, p. 341). Um dos mecanismos que podem ser utilizados para garantir um diálogo entre as diferenças, assegurando-se, em contrapartida, um respeito pelos traços distintivos, é a cidadania. É que a cidadania tem o potencial de permitir a convivência entre as diferenças, vez que possibilita a separação entre o âmbito público, em que os indivíduos são iguais enquanto cidadãos, e o âmbito privado, em que cada pessoa pode expressar seu modo único de conceber o mundo (TEIXEIRA, 2006, p. 329).

210 210 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas Assim, para evitar a desagregação de uma sociedade mais pluralista e complexa, deve-se buscar mecanismos, como a cidadania, que, apesar de permitir a individualidade e a liberdade das concepções isoladas sobre vida boa, possibilitem esta concentração de poder nas mãos do estado, para que esse possa congregar os diversos grupos em prol dos seus interesses comuns. Desta forma, nas sociedades pluralistas e complexas, o discurso que pregar um governo de maioria, do consenso absoluto, deve ser prontamente descartado, pois o consenso total não é mais possível, se é que foi um dia. Noutros termos, ouvir somente as partes majoritárias não condiz com o conceito hodierno de democracia, ao contrário, é uma compreensão perniciosa. 4. Legitimidade democrática do judiciário no controle de constitucionalidade de leis dob uma perspectiva procedimentalista A partir da análise dos novos contornos da democracia em um estado marcado pelo pluralismo e a complexidade, como o Brasil, percebe-se há uma crise de legitimidade do modelo ainda pautado na regra majoritária e, por conseguinte, o declínio de uma democracia puramente representativa. É que o modelo de representação política hoje não atende aos anseios da sociedade brasileira, tendo em vista que os políticos, não raramente, são eleitos para representar interesses específicos de determinados grupos, o que favorece uma subordinação do Estado em face da Economia. Essa conjuntura é uma realidade no Brasil, vide os esquemas fraudulentos envolvendo representantes públicos que diuturnamente são descobertos. Outrossim, não se pode deixar de mencionar a crise partidária em que o Brasil está imerso, eis que a variedade cada vez maior de partidos políticos não permite que o cidadão consiga diferenciar suas ideologias e projetos políticos, o que reproduz aos eleitores um sentimento de homogeneidade dos programas partidários (SOUZA CRUZ, 2004). A crise de representatividade do Poder Legislativo não é um acontecimento recente. A mitigação de suas atividades restou evidenciada através lentidão de suas competências e a perda de sua prioridade na elaboração das normas. A necessidade de adequação das normas às exigências das sociedades, cada vez mais complexas, à globalização e à variedade de fontes jurídicas foram elementos que favoreceram a referida crise. O direito positivado passou a não mais satisfazer as demandas sociais que se tornaram constantes; como resultado, a produção normativa do Poder Legislativo decaiu, fazendo com que o direito legislado apresentasse reduzida utilização e passasse a ser fundamentado em uma pluralidade de fontes. Em relação aos efeitos da crise da pós-modernidade no Estado Democrático de Direito, duas motivações podem ser elencadas: a primeira diz respeito às economias capitalistas, que criaram grande complexidade social, conduzindo às crises de interesses entre os grupos sociais; a partir desse

211 Ana Virgínia Cartaxo Alves 211 fato, o Estado passou a implementar políticas públicas visando satisfazer de forma específica as expectativas do povo. A segunda motivação refere-se à inflação legislativa. É que, para adaptar o sistema jurídico à evolução da sociedade, novos instrumentos são produzidos para se adequarem aos fatos sem que sejam contraditórios com as mais variadas esferas sociais. Nessa esteira, observa-se um aumento constante do distanciamento entre os anseios do povo e seus representantes, principalmente porque a heterogeneidade dos projetos individuais não permite um tipo de democracia que despreze a opinião da minoria, o que implica repensar esse modelo atual, priorizando o debate e a participação de todos os grupos na tomada de decisões políticas através de uma democracia participativa. É relevante frisar que priorizar a democracia participativa não significa um retorno à ágora grega, pois, como já visto, a complexidade e o pluralismo das relações sociais impedem uma participação totalmente direita do povo. Na verdade, o que se verifica é a necessidade de uma participação mais ativa dos cidadãos, que pode ser dar através de mecanismos já albergados no ordenamento jurídico brasileiro, como o referendo e o plebiscito, mas que os mesmos sejam mais frequentes e que se fomente um real debate. Cumpre destacar, ainda, que a consulta direta, por si mesma, não é a solução para todos os problemas, não obstante possa parecer o meio mais democraticamente legítimo. É que o resultado pode ser diverso do esperado, na medida em que os meios de comunicação e a interferência do poderio financeiro podem, não só na atuação do representante, como também no exercício direito de participação, manipular a decisão pública, desvirtuando o instituto da democracia (SANTOS, 2011). Deste modo, deve-se buscar um método intermediário de exercício da democracia, que conjugue esses dois modelos de forma mais equinânime e que, consequentemente, permita uma melhor operalização do debate e efetiva participação de todos os grupos, para que, então, possa se falar de uma legitimação democrática. Em um pretenso Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário cumpre um papel essencial, na medida em que cabe a ele assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais políticos aos cidadãos e, com isso, garantir a participação igualitária de todos no processo de debate e de tomada de decisões políticas, conforme se exige a nova dimensão da democracia. Seguindo esse raciocínio, para que o Judiciário atue legitimamente em favor da democracia, ele deve garantir a proteção dos direitos fundamentais individuais, limitando, portanto, a atuação dos poderes públicos com o objetivo de assegurar a soberania popular.

212 212 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas Para atingir essa meta, o Judiciário deve pautar suas decisões num método racional, que permita ao cidadão e, principalmente às partes, a deliberação e o exame da fundamentação de todas e cada uma das decisões judiciais. Tal intuito parte do pressuposto que todo ato estatal, não somente as tomadas de decisão do Judiciário, deve restar fundamentado racionalmente, sob pena de ferir a formação do Estado Democrático de Direito, como exigido de modo expresso pelo texto constitucional, em seu art. 93, IX (SOUZA CRUZ, 2004). Nesse aspecto, os novos contornos da democracia demandam, como já explanado, uma atuação mais direta e igualitária de todos os setores sociais, e, em sede de prestação jurisdicional, seja constitucional ou infraconstitucional, essa exigência não é diferente. Logo, o processo decisional por parte do Judiciário não pode ser concebido como um momento individual do magistrado, mas uma construção racional, formada do debate e das argumentações de cada litigante, somando-se à deliberação do Poder Público. Para que isso seja possível, é indispensável uma postura mais ativa dos cidadãos nesse processo de edificação do direito. E é justamente daí de onde advém a legitimidade democrática, vez que somente quando os indivíduos efetivamente participam dessa construção, como povo ativo (MÜLLER, 1998), e não somente como destinatário do ato público, é que a decisão pode ser considerada democrática. Corroborando esse pensamento, Gisele Cittadino aduz que: Uma cidadania ativa não pode, portanto, supor a ausência de uma vinculação normativa entre Estado de Direito e democracia. Ao contrário, quando os cidadãos vêem a si próprios não apenas como os destinatários, mas também como os autores do seu direito, ele se reconhecem como membros livres e iguais de uma comunidade jurídica. Daí a estreita conexão entre a plena autonomia do cidadão, tanto pública quanto privada, e a legitimidade do direito (CITTADINO, 2004, p. 109) Deste modo, a legitimidade do Poder Judiciário apenas pode ser alcançada através da garantia de uma abertura ao diálogo, com vistas a construir uma racionalidade a partir da argumentação e contra-argumentação das partes, integrantes dos mais diversos grupos que habitam o tecido social, e, com isso, construir uma decisão conjunta entre litigantes e o juiz, na condição de representante do Estado. Faz-se mister ressaltar que a questão da legitimidade do Judiciário brasileiro torna-se ainda mais delicada no que se refere ao controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. É que o controle de constitucionalidade

213 Ana Virgínia Cartaxo Alves 213 é voltado para a proteção dos direitos fundamentais, mediante a defesa de um procedimento democraticamente legítimo, fundado na participação racional de todo o povo na formação do ato público; e, com isso, compatibilizar os interesses conflitantes dos variados grupos que compõe a sociedade, sem excluir qualquer componente social, por mais minoritária que seja sua posição. Assim, constata-se que, em sede de controle de constitucionalidade, o Poder Judiciário vai desempenhar uma função essencialmente contramajoritária, já que impõe limites às maiorias parlamentares e ao Executivo como forma de se garantir a vontade do Poder Constituinte originário, protegendo a aplicabilidade e efetividade dos direitos fundamentais. Logo, é indispensável o exame de como vem se concretizando o controle jurisdicional de constitucionalidade para se avaliar se há ou não efetiva legitimação dos atos judiciais e, por conseguinte, aferir se estão sendo atendidas as exigências de uma democracia mais participativa (SOUZA CRUZ, 2004). Esta avaliação sobre a legitimidade democrática do Judiciário, principalmente no controle de constitucionalidade das leis, vem ganhando relevo nos últimos tempos, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal está trilhando um caminho mais ativo, muitas vezes se voltando para a concretização de um projeto social, pautado em um modelo que tenta reproduzira Jurisprudência de Valores do Direito Alemão. No entanto, essa tendência do Supremo Tribunal Federal em adotar uma postura mais criativa, a partir da escolha de valores preferenciais, e de um processo de verticalização na tomada de decisões afastando-se de procedimentos que permitam uma postura dialogal entre o Poder Público e as partes vai de encontro às atuais exigências democráticas. É que, na medida em que se adota uma hermenêutica constitucional pautada em valores, abre-se um grande espaço para que a decisão constitucional seja ilegítima, pois os valores escolhidos como prioritários vão se alternando, na medida em que se alterne a maioria que ocupa os cargos públicos; sem mencionar que a complexidade e o pluralismo que cada vez mais se agudizam no seio social, impedem que haja uma homogeneidade de preceitos teleológicos aceitos como válidos por todos os grupos da sociedade. Nessa esteira, a própria função do controle de constitucionalidade de proteção dos direitos fundamentais, especialmente, de tutela dos interesses minoritários, perde seu sentido. É que, como a atuação do magistrado será orientada por um rol de valores preferenciais, ignorando-se a força vinculante dos direitos constitucionalmente assegurados pelo constituinte originário, a minoria será preterida, pois não terá participação no debate e, com isso, seus valores poderão ser prontamente rechaçados, em prol do valores adotados pelo juiz no momento da prolação de decisão.

214 214 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas Tal posicionamento se coaduna com o que defende Marcelo Cattoni de Oliveira, que defende: Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito. E tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Judiciário definir o que poder ser discutido e expresso como digno desses valores, pois só haveria democracia, desse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham de um modo comunitarista os mesmos supostos axiológicos, os mesmos interesses, uma mesma concepção de vida e de mundo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2005, p. 3). Assim sendo, não se pode permitir que o Judiciário seja considerado o guardião de valores da sociedade, pois como é que se pode determinar um escalonamento de valores em uma sociedade pluralista, formada por indivíduos com crenças, anseios e culturas distintas? Ao contrário, o modelo social atual, com toda a complexidade e diferença possíveis, não abriga, como demonstrado, uma reunião dos grupos em prol de um consenso sobre os valores que deveriam reger seus direitos. Noutros termos, o caminho a ser trilhado em busca da legitimidade democrática não está num consenso imposto, seja pelo Chefe de Executivo, seja pelas maiorias parlamentárias, os conchaves econômicos ou pelo juiz. Assim, a legitimidade dos atos públicos encontra seu lugar no dissenso, na pluralidade, na possibilidade de divergir. Em outras palavras, somente por meio do diálogo entre todos os valores heterogêneos é que se pode obter uma solução pautada na racionalidade. Nesse sentido, o Judiciário brasileiro, em sede de controle de constitucionalidade das leis, não pode continuar nesse processo de distanciamento vertical da opinião dos particulares, com o uso recorrente de mecanismos que priorizam o controle concentrado de constitucionalidade das leis, por parte do Supremo Tribunal Federal, em detrimento do controle difuso. O controle difuso de constitucionalidade das leis, de acordo com a vertente procedimentalista, seria a via que melhor asseguraria as exigências de uma democracia mais participativa (SOUZA CRUZ, 2004, p. 22), já que possibilitaria a maior participação das partes na tomada de decisões, diferentemente do que ocorre em sede da via concentrada, em que as decisões são orientadas por um processo objetivo, fechado ao diálogo e concentrado

215 Ana Virgínia Cartaxo Alves 215 nas mãos do Supremo Tribunal Federal, que vem se comportando como se fosse o supremo guardião dos valores da sociedade brasileira. Desta maneira, a posição defendida pela corrente procedimentalista, como forma de conferir legitimidade às decisões do Judiciário em sede de controle de constitucionalidade das leis, é a adoção de uma hermenêutica constitucional fundada na Teoria Discursiva do Direito. É que, para essa teoria, uma das formas de se alcançar a efetividade jurídica em uma sociedade democrática consiste em possibilitar um ambiente profícuo para um maior envolvimento da população em assuntos políticos. Para Habermas, idealizador da Teoria Discursiva do Direito, uma crescente participação da população em assuntos políticos em um Estado democrático era indispensável, por isso, ele defende a representação através de associações de classes, sindicatos, organizações de determinadas pessoas em prol de determinados assuntos específicos, como formas representativas da democracia participativa/ ativa da população.(habermas, 2002) Habermas, que é considerado um construtivista, acredita na possibilidade do consenso, formado por seres pensantes capazes de cumprir um acordo formado racionalmente. Ele propõe sua teoria da racionalidade argumentativa no contexto europeu, justificado pelo fato das pessoas não aceitarem o retorno ao estado das coisas antes da II Guerra Mundial do século passado. (Saavedra, 2006). Deste modo, Habermas, a partir de sua teoria comunicativa, pretende provocar um diálogo, com o escopo de se afastar da teoria realista, que não acreditava nas possibilidades de mudanças, mas sim em um estado de desconfiança de Hobbes, em que o homem é o lobo do próprio homem. A teoria habermasiana é considerada participativa e busca uma ampla interação entre as pessoas.(saavedra, 2006). A teoria da interpretação construtivista, por sua vez, confere primazia ao discurso, que pode ser absorvido através da linguagem. A linguagem é reconhecida como uma construção, portanto, refere-se aquela que cada povo dar de si próprio para compor os seus valores, a sua história. Por isso, o lema do construtivismo é considerar que o mundo é construído de uma determinada maneira, mas pode ser alterado, assim, há a possibilidade de um novo mundo. (Menelick et al, 2011) Nessa esteira, a Teoria Discursiva do Direito, desenvolvida por Jürgen Habermas, adota a concepção de que o sentido da norma somente poderá ser delimitado mediante um discurso de aplicação em que seja ofertada a possibilidade das partes, através de uma deliberação acerca das pretensões de validade concretamente envolvidas no caso concreto, perceberem-se não apenas como as destinatárias da norma, mas também as autoras da mesma

216 216 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas e, nesta condição, podem concordar racionalmente com a aplicação de sanções, inclusive contra elas mesmo (GALUPPO, 2001). Neste diapasão, percebe-se que o julgador não pode decidir isoladamente, mas deve considerar todos os argumentos utilizados pelas partes de maneira igualitária, de modo que os litigantes sejam tidos como coautores da norma originada da sentença. Assim, somente quando advinda desta construção conjunta e racional é que a decisão será considerada legítima. Por isso que os seguidores brasileiros dessa corrente procedimentalista, fundada na comunicação racional, posicionam-se de modo contrário ao controle concentrado de constitucionalidade das leis, vez que esse processo objetivo não possibilita a participação dos litigantes na formação do juízo do magistrado, que decidirá com base em seus próprios valores, ignorando a pluralidade de valores que permeia a sociedade atual. Neste sentido, é elucidativo o argumento de Menelick Carvalho Netto, que defende que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, a legitimidade das decisões judiciais devem restar pautadas numa racionalidade discursiva conforme as novas demandas da democracia, que somente será alcançada a partir da participação efetiva dos litigantes. Assim, a tomada de decisão deve ser edificada tanto com base nas normas positivas, quanto da análise fatos concretos, conforme passagem abaixo: (...) das decisões judiciais deve-se requerer que apresentem um nível de racionalidade discursiva compatível com o atual conceito processual de cidadania, com o conceito de Härbele da comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Ou para dizer em outros termos, ao nosso Poder Judiciário, em geral, e ao Supremo Tribunal Federal, em particular, compete assumir a guarda da Constituição de modo adensificar o princípio da moralidade constitucionalmente acolhido que, no âmbito da prestação jurisdicional, encontra tradução na satisfação da exigência segundo a qual a decisão tomada possa ser considerada consistentemente fundamentada tanto à luz do direito vigente quando dos fatos específicos do caso concreto em questão, de modo a assegurar a um só tempo a certeza do direito e a correção, a justiça, da decisão tomada (CARVALHO NETTO, 1998, p. 250). Destarte, pode-se concluir que legitimidade democrática do Judiciário, numa sociedade marcada pelo pluralismo e a complexidade, resta fundada na racionalidade discursiva das decisões judiciais, apenas obtida quando

217 Ana Virgínia Cartaxo Alves 217 os cidadãos têm seus direitos fundamentais políticos assegurados e podem participar equinanemente de todo o processo de tomada de decisão, não somente como receptores da norma, mas como efetivos criadores da mesma em perfeita união com a autoridade pública, na condição de Estado-juiz. 5. Conclusões Com base em todas as considerações realizadas no presente trabalho, pode- -se chegar a algumas conclusões. Primeiramente, verificou-se que a sociedade brasileira contemporânea se encontra marcada por duas características que podem acarretar diversos problemas: a complexidade e o pluralismo. O excesso de possibilidades e a contingência, oriundos da complexidade, somado a heterogeneidade de concepções, crenças e valores, advinda do pluralismo, fez com que a concepção de estado se modificasse radicalmente, não possibilitando a reunião uniforme de todos os projetos de vida dos cidadãos. A partir da análise dessa nova dimensão de sociedade, observou-se que a regra de ouro da democracia grega, o governo da maioria, não mais se coaduna com o pluralismo e a complexidade, demandando, portanto, um novo modelo de democracia. Então, constatou-se que o modelo pautado na representatividade entrou em declínio, ante o alargamento do fosso entre os anseios dos eleitores e de seus representantes. Com isso, percebeu-se que essa nova sociedade demandava um projeto de democracia mais participativo, que assegure procedimentos que permitam uma maior participação do cidadão e que garanta também a proteção da minoria, para que essa expresse seus interesses e valores de maneira igualitária. Portanto, a legitimidade democrática não mais se encontra no desejo da maioria, mas na possibilidade de participação de todos e cada um no processo de tomada de decisões públicas. Esse redimensionamento da democracia afetou diretamente o Poder Judiciário, em especial, no tocante ao controle de constitucionalidade das leis, já que cumpre a ele a tutela dos direitos fundamentais, principalmente, os da minoria. Com isso, cabe ao Judiciário limitar a atuação dos Poderes Públicos, de forma a garantir uma participação equilibrada de todo o povo, com as suas mais variadas concepções, no processo de tomada de decisões políticas. Nesta medida, o ponto chave da pesquisa realizada foi delimitar se o Judiciário brasileiro, precipuamente, em sede de controle de constitucionalidade de leis, está atuando de modo legítimo, em que pese as constantes investidas do Supremo Tribunal Federal em aproximar-se do modelo de ponderação de valores alemão.

218 218 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas É que, não obstante as atuais exigências de uma democracia mais participativa, o Supremo Tribunal Federal insiste em priorizar um controle abstrato de constitucionalidade, impedindo a participação dos litigantes no processo de construção da decisão judicial, e decidindo com base em determinados valores por eles elencados, em manifesto desrespeito aos demais valores que permeiam uma sociedade composta por todos os credos, culturas, valores e interesses. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal se atribuiu o papel de guardião dos valores da sociedade brasileira, como se pudesse escolher, dentre tantos outros preceitos valorativos, quais são os que devem guiar suas decisões, criando-se em laboratório um consenso artificial. Deste modo, defendeu-se que essa forma de tomada de decisões empregada pela Corte Suprema não atende aos novos contornos da democracia e da sociedade. Assim, fora proposto outro modelo baseado na Teoria Discursiva do Direito, idealizada por Habermas, que defende que a legitimidade do Judiciário na possibilidade de construção conjunta e racional das decisões jurídicas, a partir do diálogo entre as partes, somada à atuação do Estado. Destarte, conclui-se que há uma verdadeira crise de legitimidade do Judiciário brasileiro em sede de controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, que somente poderá ser revertida quando forem adotados mecanismos que favoreçam uma maior participação de todas as esferas do povo na tomada de decisões, rechaçando-se esse modelo que busca cercear a divergência advinda do pluralismo, em prol de um conceito superado de consensualidade em torno de certos valores. Referências BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise: pluralismo, democracia, socialismo, comunismo, terceira via e terceira força. 4 ed. Brasília: UnB, CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: Notícia do direito brasileiro. Nova série, nº 6. Brasília: Ed. UnB, 2º semestre de et al. Os Direitos Fundamentais e a (In)Certeza do Direito A produtividade das tensões principiológicas e a Superação do Sistema de Regras. Belo Horizonte: Forum, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A teoria discursiva no debate constitucional brasileiro: para além de uma pretensa dicotomia entre um ideal transcendental da constituição e uma cruel e intransponível

219 Ana Virgínia Cartaxo Alves 219 realidade político-social. Disponível em: < br> Acesso em: 04 jun CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, ativismo judiciário e democracia. In: Alceu, v.5, n. 9, p. 105 a 113. jul./dez CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, GALLUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica constitucional e pluralismo. In: SAMPAIO,José Adércio Leite e CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (orgs.). Hermenêutica e jurisdição constitucional: estudos em homenagem ao Professor José Alfredo de Oliveira Baracho.Belo Horizonte: Del Rey, 2008 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, HELD, David. Modelos de democracia. Belo horizonte, Paideia, LIJPHART, Arend. As democracias contemporâneas. Gradiva: Lisboa, LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. 2ª ed. Vozes: Petrópolis, MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, NEVES, Marcelo. Justiça e diferença numa sociedade global complexa. In: SOUZA, Jessé (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001 SAAVEDRA, Giovani Agostini. Jurisdição e Democracia Uma análise a partir das teorias de Jürgen Habermas, Robert Alexy, Ronald Dworkin e Niklas Luhmann. Porto Alegre: Livraria do Advogado, SALDANHA, Nelson. O Estado Moderno e a separação de poderes. 2ª Ed. São Paulo, Quartier Latin, SANTOS, Gustavo Ferreira. Neoconstitucionalismo, poder judiciário e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, TEIXEIRA, João Paulo Allain. Pluralismo político e integração social: entre consenso e dissenso. In: SEVERO NETO, Manuel (org.). Direito, cidadania e processo. V. 3.Recife: FASA, 2006

220 220 A legitimidade do judiciário no controle de constitucionalidade das sociedades complexas e pluralistas

221 10 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. Artur Stamford da Silva e Julia Rodrigues Tabosa 1. Introdução Universidade Federal de Pernambuco Em uma era em que o conhecimento tornou-se um dos bens mais almejados pela sociedade, a proteção à propriedade intelectual é assunto da maior importância. Quando se fala em invenção, essa tão almejada proteção é alcançada através de um instituto adotado quase que mundialmente: a patente. Esta pode ser definida como o direito de exclusividade outorgado pelos Estados à pessoa, seja ela física ou jurídica, sobre a exploração de uma inovação tecnológica por um período determinado de tempo. No Brasil, as patentes de invenção desfrutam de um prazo de 20 anos de exclusividade. A patente representa a possibilidade de levar uma invenção ao conhecimento da sociedade, sem que seu inventor esteja completamente desprotegido em relação a imitações não autorizadas. Ao mesmo tempo em que a patente representa uma recompensa aos esforços do inventor e aos altos custos que, geralmente, envolvem o processo criativo, também incentiva o desenvolvimento de novas invenções. Quando se trata de fármacos, essa fórmula parece se encaixar perfeitamente. A sociedade desfruta de remédios que a auxiliam no aumento da qualidade de vida e os inventores, ou melhor, os laboratórios farmacêuticos, são recompensados pelos alegados altos investimentos no desenvolvimento de novas drogas. Pelo menos é isso o que os grandes laboratórios farmacêuticos tentam passar para o público consumidor. Entretanto, essa conclusão não parece de todo correta quando se aborda um tema bastante polêmico nas comunidades médica e farmacêutica: os 221

222 222 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. medicamentos me too. Eles também são conhecidos por remédios me better, follow on, copycats, dentre outras expressões. No Brasil, eles podem ser chamados de medicamentos de imitação. Em uma definição introdutória, esses medicamentos constituem, basicamente, versões similares para não falar praticamente idênticas - a outros medicamentos que lhes precederam e, geralmente, são lançados quando as patentes destes últimos estão prestes a expirar coincidentemente ou não. Então, ao invés de recompensar os laboratórios farmacêuticos por colocarem no mercado verdadeiras inovações que contribuam para o desenvolvimento da saúde, o público consumidor recompensa esse segmento da indústria pagando altos valores por remédios que possuem efeitos terapêuticos idênticos ou praticamente idênticos a remédios que já estavam no mercado! Pergunta-se: será que esse tipo de medicamento mereceria a proteção patentearia? Seriam os medicamentos me too apenas uma forma de perpetuar o monopólio dos laboratórios farmacêuticos sobre a exploração de medicamentos cujas patentes já expiraram? A concessão de patentes a esse tipo de remédios não seria, ao arrepio da finalidade do próprio instituto da patente, um desincentivo ao desenvolvimento de novos - no sentido real da palavra - remédios? Essas e outras questões serão analisadas no presente artigo, com um estudo dos medicamentos me too à luz das disposições de Direito relativas à propriedade industrial. Para tanto, tomaremos como exemplo principal um medicamento bastante conhecido da população e, ao mesmo tempo, um dos maiores exemplos quando se fala em medicamentos de imitação: o Nexium, sucessor do antigo Prilosec, ou, como é conhecido popularmente, a pílula roxa. Antes, entretanto, faz-se necessária uma explanação acerca dos requisitos essenciais para a concessão de uma patente em geral, bem como das peculiaridades quando se trata de patentes farmacêuticas. 2. Patentes farmacêuticas Apesar da grande importância do setor farmacêutico para a sociedade atual, cada vez mais desenvolvida quando o assunto é o prolongamento da vida humana através de intervenções externas tais como o uso de drogas terapêuticas, até algum tempo, não havia uniformidade no trato da proteção à propriedade intelectual nessa área. Em 1988, a organização World Intellectual Property WIPO fez um levantamento dos países que, à época, não reconheciam proteção patentearia a fármacos. Segundo o levantamento, cerca de quarenta e oito países, em sua maioria aqueles em desenvolvimento, não forneciam esse tipo de

223 Artur Stamford da Silva 223 proteção. Em razão da conivência em relação a cópias de remédios já existentes, esses países em desenvolvimento passaram a ser conhecidos como piratas, expressão difundida pelas companhias internacionais (NOGUÉS, 2002, p ). Com o desenvolvimento cada vez maior e mais qualificado dos fármacos, tamanha divergência de tratamento em cada Estado foi se verificando prejudicial aos interesses dos países desenvolvidos, principais responsáveis pelas inovações disponibilizadas no mercado nesse setor. Estando em jogo investimentos e, principalmente, lucros de alta monta das indústrias farmacêuticas, a ausência de uma proteção internacional mais forte era severamente criticada. Com o advento do Acordo TRIPS (sigla do inglês: Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) de 1994, do qual o Brasil faz parte, as patentes deste país e de tantos outros signatários passaram a ser concedidas a toda e qualquer invenção desde que estas contemplem os requisitos novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Dessa forma, restaram incluídos como objeto de patentes os produtos e processos farmacêuticos. É o que dispõe o art. 27 do referido acordo: Matéria Patenteável 1. Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 4 do Artigo 65, no parágrafo 8 do Artigo 70 e no parágrafo 3 deste Artigo, as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto a seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente. (grifou-se) 5 Para os fins deste Artigo, os termos passo inventivo e passível de aplicação industrial podem ser caracterizados por um Membro como sinônimos aos termos não-óbvio e utilizável. O acordo foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de Posteriormente, em 1996, essa proteção consolidou-se no Brasil com a aprovação da Lei nº 9.279/96, que regulamentou os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial e,

224 224 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. além de estabelecer como sendo patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, fez expressa menção, em mais de um artigo, à proteção patentearia aos fármacos. Todavia, antes de ser concedida a carta patente a um medicamento no Brasil, além dos três requisitos já previstos no Acordo TRIPS e na Lei nº 9.279/96, faz-se necessário também que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária ANVISA, dê sua anuência prévia à concessão. Essa exigência foi introduzida pela Lei nº /2001. Ei-la: Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. Portanto, para que uma patente seja concedida a um produto ou processo farmacêutico faz-se indispensável que a ANVISA dê sua anuência. Essa função assumida pela agência reguladora brasileira assemelha-se à de um famoso órgão norte-americano: o Food and Drugs Administration FDA, com a ressalva de que, nos Estados Unidos, a atuação da FDA é posterior à própria concessão da patente. Nesse país, em primeiro lugar, o medicamento deve conseguir oficialmente a patente, para, posteriormente, com a realização de estudos clínicos sobre ele, que comprovem a eficácia da droga e a ausência de riscos à sociedade, obter a aprovação da FDA para que o medicamento seja comercializado. Pois bem. O depósito de um pedido de patente é feito em cada Estado em que se pretende ver reconhecida essa proteção. Em virtude de acordos e tratados internacionais celebrados entre os Estados, a amplitude do depósito de um pedido de patente pode ultrapassar o limite nacional. É o exemplo do Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes PCT, de 1970, segundo o qual um cidadão de país signatário desse tratado pode depositar o pedido a nível internacional ao invés de em cada um dos países em que pretende ver reconhecida patente. No Brasil, o órgão que avalia se esses pedidos de concessão enquadram-se nos parâmetros da patenteabilidade é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial INPI. Como já mencionado, para que uma invenção seja considerada merecedora de uma patente devem estar configuradas a novidade e a atividade inventiva, bem como a possibilidade de sua aplicação industrial. A novidade. Uma invenção é considerada nova quando o público ainda não tomou conhecimento de sua existência, não sendo aquela divulgada de qualquer forma, seja escrita ou falada. Em outras palavras, a novidade está presente se a invenção examinada não possui precedentes, se experts

225 Artur Stamford da Silva 225 não são capazes, pelos conhecimentos que possuem, de descrever o funcionamento de um objeto, o primeiro a fazê-lo será considerado o seu inventor (ULHOA, 2009, p. 150). A Lei nº 9.279/96, ao tratar da definição desse requisito, lançou mão do conceito de estado da técnica. Para aquela, uma invenção é considerada nova quando não está presente no estado da técnica ou conjunto de informações disponíveis ao público em data anterior à do depósito do pedido de uma patente. In verbis: Art. 11. A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica. 1º O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior, ressalvado o disposto nos arts. 12, 16 e 17. O Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes PCT de 1970 dispõe sobre a novidade e o estado da técnica de maneira semelhante: Artigo 33 Exame preliminar internacional 2) Para os fins do exame preliminar internacional, a invenção cuja protecção é solicitada é considerada como nova desde que não exista anterioridade no estado da técnica tal como é definido no Regulamento de Execução. Existem exceções à regra, contidas no art. 12, da Lei nº 9.279/96, segundo as quais um invento não entra para o estado da técnica mesmo tendo sido divulgado. Dentre elas, pode-se mencionar a situação de um inventor que divulga seu próprio invento em, por exemplo, congressos, artigos, etc.. Nesse caso, o inventor dispõe de um período de graça de doze meses para fazer o pedido de concessão de patente perante o INPI. A atividade inventiva. Para ser patenteável, uma invenção não pode decorrer de forma óbvia, evidente, para um técnico ou especialista na matéria não necessariamente um expert ou alguém com conhecimentos acima do normal no assunto. Ou seja, não possui atividade inventiva aquela criação que poderia ter sido deduzida por quaisquer outros técnicos ou especia-

226 226 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. listas no assunto, uma criação que não exigiu grandes esforços intelectuais de seus responsáveis. Sobre o requisito, a Lei n 9.279/96 assim dispõe: Art. 13. A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica. Por exemplo, não é passível de ser patenteada uma invenção decorrente de mera justaposição, montagem de processos e produtos já conhecidos ou de simples mudança de forma, dimensões. A não ser que, quando examinada pelo seu todo, obtenha-se um efeito técnico diferencial, não previsível. Seguindo esse entendimento, quando dois objetos possuem disposições diferentes, mas apresentam as mesmas condições de aplicação ou o mesmo uso prático, pode-se dizer que o objeto mais recente não possui ato inventivo. Isso, pelo fato de ter sido realizado de forma óbvia, em relação ao primeiro (BLASI, 2010, p. 204). A aplicação industrial. Uma invenção tem aplicabilidade industrial quando é suscetível de fabricação ou uso industrial, independentemente do tipo de indústria a que se refere. Estão excluídas desse conceito, as invenções inúteis ou aquelas que, em decorrência da ausência de conhecimentos suficientes no estado da técnica para materializá-la, não seja passível de aplicação. Concluindo pela configuração dos requisitos supramencionados, o INPI deferirá o pedido de concessão de patente, publicando-o na Revista da Propriedade Industrial RPI. A partir daí, o INPI aguardará por 60 dias pelo pagamento e comprovação da retribuição devida, correspondente à expedição da Carta-Patente. No tocante aos produtos e processos farmacêuticos, entretanto, a Lei nº 9.279/96 impõe outra exigência, que será tratada no próximo tópico: a prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. 3. Art. 229 C: a prévia anuência da ANVISA Desde a inclusão, pela Lei nº /2001, do art. 229-C à Lei de Propriedade Industrial, que dispõe sobre a necessidade de prévia anuência da ANVISA para a concessão de patente a um produto ou processo farmacêutico, muito se discutiu sobre a constitucionalidade e a abrangência dessa disposição.

227 Artur Stamford da Silva 227 Dentre os argumentos contrários à nova exigência, está o de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária estaria assumindo funções que foram legadas ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, em uma espécie de segundo exame dos requisitos legais da novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, quando deveria limitar-se a sua competência legal, ou seja, examinar se os fármacos representam riscos à saúde pública. Contrário à atuação da ANVISA, foi proposto o Projeto de Lei nº 3.709/2008, que visa restringir a anuência da ANVISA às chamadas patentes pipeline. Em 16 de maio de 2012, foi determinado que a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio CDEIC realizasse Audiência Pública para discutir o projeto, a qual, em meados de agosto de 2012, ainda não ocorreu. Em 16 de outubro de 2009, através do Parecer nº 210/PGF/AE/2009, a Procuradoria-Geral Federal concluiu não ser atribuição da ANVISA, em sua análise de anuência prévia, analisar também os critérios novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Para a PGF, essa seria uma atribuição seria própria do INPI. Desse modo, em sua anuência prévia, a ANVISA deve atuar nos limites de sua competência, ou seja, com o escopo de impedir a produção e a comercialização de produtos e serviços potencialmente nocivos à saúde humana. Não conformada com o teor do parecer, a ANVISA aviou pedido de reconsideração. O Advogado-Geral da União, ministro Luís Inácio Lucena Adams, então, aprovou parecer que reforçou o Parecer nº 210/PGF/AE/2009, confirmando as competências da ANVISA e do INPI, cabendo ao instituto a análise do cumprimento dos requisitos legais de patenteabilidade e, à agência reguladora, a avaliação da segurança e eficácia do medicamento. Mais recentemente, através da Portaria do MS/MDIC/AGU nº 2.584/2011, foi instituído um Grupo de Trabalho Interministerial com o fim de analisar e sugerir o estabelecimento de critérios, mecanismos, procedimentos e obrigações para articulação entre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial no tocante ao cumprimento do disposto no art. 229-C, além de sugerir os possíveis instrumentos formais para a sua execução. O GTI foi composto por representantes do Ministério da Saúde (MS), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), da Advocacia-Geral da União (AGU), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), e do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), e coordenado pelo Ministério da Saúde. Em 19 de janeiro de 2012, foi publicado o Relatório de análise e sugestão de critérios, mecanismos, procedimentos, obrigações e possíveis instrumentos formais para articulação entre a ANVISA e o INPI, segundo o qual caberia àquela, de acordo com sua capacitação técnico-científica e com

228 228 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. base em critérios pertinentes e relevantes à anuência prévia, avaliar o impacto do produto ou processo farmacêutico à luz da saúde pública e com foco nos princípios que norteiam a organização do Sistema Único de Saúde no Brasil. Com o escopo de evitar, mais uma vez, a ocorrência de conflitos quando da não anuência prévia de um medicamento pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o Grupo de Trabalho Interministerial elaborou esclarecedor fluxograma da análise dos pedidos de patente, na qual restaram bem ordenadas as atuações das duas autarquias. Ei-lo: Figura 1: Fluxo de Análise para Pedidos de Patentes, envolvendo Anuência Prévia, de Produtos e Processos Farmacêuticos. 4. O que são os medicamentos me too? Essa denominação pode ser desconhecida para os leigos, mas, para os profissionais e pesquisadores envolvidos com a saúde, ela é bastante difundida e envolve uma ferrenha polêmica entre aqueles a favor e contra esse tipo de remédios. Medicamentos me too, ou, medicamentos de imitação 1, são aqueles que possuem qualidades terapêuticas idênticas ou semelhantes às 1. Os me too não devem ser confundidos com os genéricos ou os similares. Ainda que estes possam ser considerados cópias, eles apenas são comercializados após a decadência da patente do medicamento de referência. Nem medicamentos genéricos nem similares dispõem, como os me too, de uma nova proteção patentearia. Segundo a Lei nº 9.787/99: XX Medicamento Similar aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, do medicamento de referência registrado

229 Artur Stamford da Silva 229 de algum outro que já está no mercado, ou seja, a um medicamento que já foi beneficiado por uma patente. Observe-se que, apesar de possuírem os mesmos efeitos, para que esse medicamento consiga uma nova patente, é preciso que a molécula seja diferente da do remédio que lhe precedeu. Partindo dessa ideia, pode haver dois caminhos para se chegar a um medicamento me too: a modificação de uma molécula que compõe um remédio já existente ou a criação de uma molécula totalmente nova. Ambos os caminhos, entretanto, devem incorrer em medicamentos com qualidades terapêuticas idênticas ou semelhantes às de medicamentos passados. Nas palavras de Vikash Kumar e Balvinder Singh, do Shri Baba Mastnath Institute of Pharmaceutical Sciences & Research: Uma droga que seja estruturalmente muito similar a drogas já conhecidas, apenas com diferenças mínimas, é chamada de Metoo drugs. Vários exemplos podem ilustrar esse fenômeno: propranolol foi seguido do atenolol, do metoprolol, do esmolol, do labetalol, do timolol, do carvedilol, etc; o cimetidine foi seguido do fmotidine, do nizatidine e outros; sumatriptan foi seguido do narratriptan, do almotriptan, do rizatriptan, do zolmitriptan,etc; losartan foi seguido do candesartan, do valsartan, do telmisartan, etc. 2 Se, normalmente, discute-se bastante que níveis de inovação e de ganhos em qualidades terapêuticas envolvem esses medicamentos, uma coisa é certa: os medicamentos me too já dominam o setor farmacêutico em relação aos medicamentos breakthrough, ou, medicamentos de referência, aqueles que são os primeiros de sua linha. no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca; XXI Medicamento Genérico medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI; XXII Medicamento de Referência produto inovador registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária e comercializado no País, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto ao órgão federal competente, por ocasião do registro. 2. KUMAR, Vikash. SINGH, Balvinder. Me-too drugs A Tiny Revolutionize. Disponível em: < Acesso em: 9 junho, 2008.

230 230 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. Para se ter uma ideia, entre 1975 e 1985, 508 drogas foram lançadas no mercado mundial. Dessas, estima-se que 398 não representariam verdadeiras inovações e apenas 35 estavam dotadas de nova estrutura e de maior eficiência terapêutica (BARRAL, apud BARROS, 2004, p. 29.). Tomando como base a aprovação de medicamentos da Food and Drug Administration entre 1998 e 2002, das 415 novas drogas aprovadas, somente 14% consistiam, realmente, em inovação. Nove por cento delas, por sua vez, eram drogas antigas que, modificadas de alguma forma, para a FDA, consistiram em aperfeiçoamento significativo. Os outros 77% não passaram de medicamentos de imitação, classificados como de mesmo nível de medicamentos já disponíveis no mercado para o tratamento de idêntica condição (ANGELL, 2010, p. 92). Com o passar dos anos, a criação de medicamentos completamente inovadores está cada vez mais rara, fato este que se agrava quando somado ao término eminente da exclusividade na exploração de medicamentos mais antigos. Nesse contexto, a indústria farmacêutica encontrou nas drogas me too um meio de estenderem o seu monopólio de exploração. Mas os me too não são apenas uma forma de prorrogar indiretamente as patentes de laboratórios que já detinham essa exclusividade. Esses medicamentos também fazem parte de prática bastante difundida pelos laboratórios concorrentes ao laboratório responsável pelo medicamento de referência, especialmente quando este se trata de uma droga campeã de vendas. Normalmente, algum tempo depois do lançamento de um remédio de referência, uma onda de medicamentos de imitação entra no mercado. Eles só precisam ser suficientemente diferentes em sua composição, e não em seus efeitos terapêuticos, para gerar o direito a uma patente. Nesses casos, há quase que um ciclo de vida que se repete após o início da comercialização de um medicamento de referência. Num primeiro momento, o laboratório que lançou este desfruta de um completo monopólio, uma vez que não existem outras drogas que se assemelhem àquele. Esse período finda quando são patenteadas versões adicionais da droga, os medicamentos me too. Quando, finalmente, a patente do remédio de referência se extingue e a fórmula deste pode ser reproduzida livremente, entram em cena os medicamentos genéricos 3. Em 2004, a ANVISA, autarquia a qual cabe avaliar os pedidos de patente no tocante à segurança e à eficácia, expôs seu posicionamento em relação aos remédios considerados me too, nos seguintes termos: 3. CHADHA, ALKA. BLOMQVIST, AKE. Patent races, me-too drugs and generics: a developing-world perspective. Disponível em: < wp0513.pdf>. Acesso em: 14 agosto, 2012.

231 Artur Stamford da Silva 231 Para esclarecer ao setor regulado, a membros da academia e a seus próprios consultores ad hoc sobre os seus critérios de avaliação para registro de medicamentos novos considerados como me-toos, a Anvisa, por meio da Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos (GEPEC), divulga o seguinte posicionamento, o qual se respalda, em parte, em parecer da Câmara Técnica de Medicamentos (CATEME), seu órgão consultivo: Não há consenso sobre o que seja um medicamento me-too, muito embora esta denominação seja de uso comum na literatura internacional, e diversos artigos sobre o tema possam ser encontrados utilizando-se este termo como palavra-chave em pesquisas em bancos de dados como o Medline. Neste contexto, entende-se como me-too um medicamento que embora seja apresentado como inovador não acrescenta nenhum benefício claro, no que diz respeito aos seus perfis de eficácia e segurança, em relação a outros medicamentos já registrados. Por esta definição não são, portanto, considerados como me-toos os medicamentos genéricos ou similares. Existem correntes que defendem que medicamentos classificáveis como me-toos não devam ser registrados, tendo em vista que nada acrescentariam ao que já é disponível no mercado e teriam a desvantagem de não possuir o mesmo acúmulo de evidência de sua segurança. Por esse raciocínio, esses produtos apenas contribuiriam para um inchaço desnecessário do mercado. A Anvisa, porém, diverge desta visão, por considerar difícil, ou mesmo impossível, classificar um medicamento como me-too no momento de seu registro, já que alguns atributos que permitiriam que se fizesse essa qualificação só podem ser verificados depois da comercialização e utilização em larga escala do produto. Entre esses atributos podem ser citados a ocorrência ou não de eventos adversos raros, a identificação de subgrupos de indivíduos que potencialmente se beneficiariam do novo medicamento de forma diferenciada e a descoberta de novas

232 232 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. indicações terapêuticas para esse medicamento em particular. Para a Agência, a dificuldade de se classificar um produto como me-too no momento de seu registro impossibilita o estabelecimento de regras que regulem o registro de medicamentos sob tal ótica. Além disso, a legislação brasileira vigente não subsidia o indeferimento de pedidos de registro de medicamentos por este argumento. Por esses motivos, a Anvisa não faz restrição a analisar pedidos de registro de medicamentos que, preliminarmente, pareçam ser me-toos e nem respalda o indeferimento de tais pedidos por este motivo. Gerência de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos 4 Não é tão simples. Para que um medicamento passe a ser comercializado, faz-se necessário o registro perante a ANVISA. E, para tanto, exige-se que sejam feitos testes tanto de qualidade quanto eficácia, bem como sejam apontados os principais riscos para a saúde por meio dos efeitos colaterais nocivos inerentes às drogas. O registro de um medicamento envolve diversas fases de testes. Primeiramente, após o teste de uma nova molécula in vitro, há a fase pré-clínica, na qual as novas em princípio moléculas são testadas em animais. Posteriormente, inicia-se a fase clínica, procedendo-se aos testes em seres humanos, o que engloba cerca de três subfases que devem acontecer de forma sucessiva. Na primeira, a molécula é testada em até 100 pessoas, com o fim de estabelecer uma evolução preliminar da segurança e do perfil farmacocinético daquela. Na segunda, os testes são realizados em até 200 pessoas, tendo como um dos seus objetivos avaliar a eficácia terapêutica e a confirmação da segurança do novo medicamento. Já na terceira, a molécula deve ser testada em, no mínimo, 800 pessoas e tem como objetivo determinar o resultado do risco/benefício a curto e longo prazos das formulações do princípio ativo e, de maneira geral, o valor terapêutico relativo. 4. ANVISA. Posicionamento da Anvisa quanto ao registro de medicamentos novos considerados como me-toos. Disponível em: < wps/content/anvisa+portal/anvisa/inicio/medicamentos/assunto+de+interesse/ Medicamentos+novos/Posicionamento+da+Anvisa+quanto+ao+registro+de+medicam entos+novos+considerados+como+me-toos>. Acesso em: 13 agosto, 2012.

233 Artur Stamford da Silva 233 O que acontece é que, nesses testes clínicos, muitas vezes determina-se a eficácia dos futuros medicamentos em comparação unicamente a placebos e não a remédios já existentes no mercado, o que, de fato, impede que se tenha dados comparativos de qualidade para analisar estes últimos em relação os me too. Tais considerações levam, inevitavelmente, a uma questão: se os me too não envolvem padrões de inovação ou benefícios terapêuticos superiores aos produtos em que se basearam por que eles são receitados? Um dos motivos para o sucesso desses remédios pode ser resumida num simples ditado popular: a propaganda é a alma do negócio. Somente em 2003, estima-se que a indústria farmacêutica tenha gasto cerca de U$25.3 bilhões em propaganda de remédios 5. Esse número pode parecer grande, mas é um preço quase que ínfimo a se pagar quando comparado ao faturamento de U$503 bilhões do mercado farmacêutico em Para impulsionar as vendas dos medicamentos me too, os laboratórios farmacêuticos investem pesadamente nos setores de marketing e propaganda. Esses remédios são, em sua maioria, patenteados e vendidos ao grande público como uma conquista revolucionária para a medicina e o setor farmacêutico. Divulgados como grandes inovações, os remédios me too acabam por conquistar o mercado consumidor, ignorante da existência de outros remédios que produzem, basicamente, os mesmos efeitos que os me too e, ao mesmo tempo, menos onerosos que estes. 5. Do Prilosec ao Nexium O Nexium é um medicamento da propriedade do laboratório farmacêutico inglês, o AztraZeneca. Coincidentemente ou não, o Nexium foi lançado em 2001 nos EUA, quando a patente do Prilosec, a famosa pílula roxa, também pertencente ao AztraZeneca, estava próxima de expirar (em abril de 2001). O que mais, além do laboratório farmacêutico, esses dois possuem em comum? Ambos são medicamentos do tipo inibidor de bombas de prótons destinados a combater a azia gastrintestinal e possuem praticamente os mesmos efeitos terapêuticos. Ambos possuem em sua fórmula a forma ativa 5. SPECTOR, Rosanne. Me-too drugs. Sometimes they re just the same old, same old. Disponível em: < Acesso em: 15 maio, IMS HEALTH. Total unaudited and audited global pharmaceutical market, Disponível em: < Press%20Room/Top-Line%20Market%20Data%20&%20Trends/2011%20Top-line%20 Market%20Data/Global_Pharma _Market_ by_spending_ pdf>. Acesso em: 14 agosto, 2012.

234 234 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. da molécula do omeprazol. Em outras palavras, o Nexium é o medicamento me too que sucedeu o Prilosec, perpetuando para o AstraZeneca o imenso faturamento alcançado deste último cerca de 6,1 bilhão de dólares tanto em 2000 quanto 2001 (OHLY, 2008, p. 6) 7. Anos antes de a patente do Prilosec expirar, o AstraZeneca deu início a estudos com o intuito de encontrar uma saída para esse acontecimento inevitável. Mas essa saída não seria criar um remédio inovador. Com o mercado consumidor tão grande e de lucros certos como era o do Prilosec, o que o AstraZeneca queria era um novo medicamento para assumir a posição da pílula roxa como um dos seus produtos mais vendidos. E essa solução foi encontrada no Nexium, ou melhor, no meio-prilosec. Para explicar como se deu esse estratagema do AstraZeneca, antes faz-se necessário deter-se em aspectos mais específicos da Química. Algumas moléculas são chamadas de enantiômero por constituírem a imagem no espelho de outra molécula. Idênticas em suas fórmulas estruturais os mesmos átomos, na mesma ordem, submetidos às mesmas ligações químicas - mas que não se sobrepõem uma à outra. A mistura dessas moléculas é denominada de mistura racêmica. Pois bem. O Prilosec é composto da mistura racêmica da substância chamada omeprazol, sendo que um desses enantiômeros possui uma forma ativa e, o outro, inativa, inerte. Já o Nexium é composto apenas do enantiômero de forma ativa do Prilosec, chamado de esomeprazol (ANGELL, 2004, p. 94). Ou seja, o que o AstraZeneca fez foi, simplesmente, separar a mistura racêmica. Inexiste nesse remédio a novidade ou mesmo a atividade inventiva, exigidas no Acordo TRIPs e na legislação brasileira. Entretanto, ao invés de ser indeferido o pedido em razão da ausência de inovação, a modificação na molécula do Prilosec foi considerada suficientemente diferente pelo FDA para que o Nexium obtivesse uma patente e pelo INPI, visto que ambos os medicamentos aqui mencionados são comercializados no Brasil. Tudo isso em evidente dissonância com os requisitos estabelecidos em lei para a concessão de uma patente de inovação. Mas, mesmo conseguindo a patente, o AstraZeneca precisaria ainda conseguir a aprovação da FDA para a comercialização do Nexium como um medicamento, precisando esse laboratório demonstrar um aumento, ainda que mínimo, dessa droga em relação a sua antecessora. Nesse sentido, foram realizados cerca de quatro estudos, promovidos financeiramente pelo próprio AstraZeneca. Neles foram comparadas as do- 7. OHLY, Christopher. Omeprazole is over - or nearly so. Disponível em: <www. schiffhardin.com>. Acesso em: 8 agosto, 2012.

235 Artur Stamford da Silva 235 sagens de 20mg de Prilosec contra 40 mg do futuro Nexium 8 - disparidade essa que pode ter viciado esses testes. Dois desses estudos demonstraram que 40 mg de Nexium apresentavam uma taxa de cura melhor que 20 mg de Prilosec. Mas, surpreendentemente, mesmo com dosagens mais elevadas, nos outros dois estudos, o Nexium não se provou melhor! Coincidentemente, apenas os dois estudos a favor do Nexium foram publicados 9. Num outro estudo, porém, esses dois medicamentos foram comparados em dosagens iguais. Nas primeiras quatro semanas, não foi encontrada qualquer diferença, mas, após oito semanas, o Nexium apresentou uma taxa de cura de 90% contra 87% do Prilosec. Isso mesmo, a superioridade de apenas 3% foi suficiente para que o Nexium passasse a ser comercializado 10. Com uma superioridade pequena como essa, o que levariam médicos a receitar o Nexium em detrimento do Prilosec sendo este mais barato para o paciente e com taxas de cura semelhantes às daquele? O investimento pesado na campanha publicitária do Nexium - envolvendo uma avalanche de anúncios, distribuição de amostras grátis a médicos, descontos para administradoras de planos de tratamento e hospitais e, principalmente, preço inicial do Nexium estrategicamente inferior ao do Prilosec - é uma das razões (ANGELL, 2010, p. 94). Segundo o IMS Health, estima-se que o AstraZeneca gastou cerca de 478 milhões de dólares na promoção do Nexium no ano de seu lançamento, em Fato é que, em pouco tempo, o Prilosec pareceu cair no esquecimento ao mesmo tempo em que o Nexium ascendia às suas custas como alegadamente - um medicamento completamente inovador, quando, na verdade, é apenas um desdobramento daquele outro. Mas o Nexium é só mais um dos medicamentos representantes da estratégia da indústria farmacêutica para conseguir mais alguns anos de proteção patentearia de um mesmo medicamento, estratégia essa difundida entre os laboratórios farmacêuticos num geral, não só o AstraZeneca. 8. A disparidade nas dosagens se deu em razão de o AstraZeneca pretender aprovar o Nexium para combater a esofagite erosiva, condição para a qual o Prilosec tinha uma dosagem de 20 mg. 9. HARRIS, Gardiner. Prilosec s Maker Switches Users To Nexium, Thwarting Generics. Disponível em: < Acessado em: 8 agosto, Idem. 11. SWIDEY, Neil. The Costly Case of the Purple Pill. Disponível em: < comcast.net/~neilswidey/pill.htm>. Acessado em: 9 agosto, 2012.

236 236 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. Assim como o Nexium, existem muitos outros medicamentos me too. Alguns exemplos são o Clarinex, da Schering-Plough, medicamento antialérgico que substituiu o Claritin quando a patente deste expirou em 2002; as estatinas, destinadas a combater o aumento do colesterol, que possuem no mercado o Mevacor, da Merck, o Lipitor, da Pfizer, o Pravacol, da Bristol-Myers Squibb, o Lescol, da Novartis e, mais recentemente, o Crestor, da AstraZeneca; o Prozac, da Eli Lilly, inibidor seletivo de receptação de serotonina - ISRS (antidepressivos), que possui como competidores me too o Paxil, da GlaxoSmithKline, o Zoloft, da Pfizer, o Celexa e o Lexapro, ambos da Forest Laboratories; entre outros. Os medicamentos me too passaram a inundar o mercado nas últimas décadas. E por que seria diferente? Afinal, se os laboratórios farmacêuticos podem assegurar seus altíssimos lucros, em um mercado consumidor já consolidado e seguro, operando apenas a transferência dos pacientes de um medicamente para outro quase idêntico, por que optariam pelo caminho mais difícil e dispendioso o desenvolvimento de drogas realmente inovadoras? Poder-se-ia alegar, em benefício dos medicamentos me too representam a possibilidade de ampliação do conhecimento das mais variadas qualidades terapêuticas de determinada molécula. Mas, da forma como os laboratórios farmacêuticos vêm lidando com os medicamentos me too, percebe-se que há uma nítida tendência dessas grandes empresas de investirem nesse setor com a finalidade única de perpetuar seus lucros através da proteção patentearia de medicamentos-desdobramento de outros, esquecendo o objetivo maior desse setor: a saúde. Referências ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Record, ANVISA. Considerações e definições para Pesquisa Clínica. Disponível em: < Acesso em: 13 agosto, ANVISA. Posicionamento da Anvisa quanto ao registro de medicamentos novos considerados como me-toos. Disponível em: < Medicamentos/Assunto+de+Interesse/Medicamentos+novos/Posicioname nto+da+anvisa+quanto+ao+registro+de+medicamentos+novos+consi derados+como+me-toos>. Acesso em: 13 agosto, 2012.

237 Artur Stamford da Silva 237 BLASI, Gabriel Di. A propriedade industrial. Os sistemas de marcas, patentes, desenhos industriais e transferência de tecnologia. Rio de Janeiro: Editora Forense, BARROS, José Augusto Cabral de. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses da saúde? Brasília: UNESCO, BRASIL. Decreto nº 1.355/94. Disponível em: < Acesso em: 9 agosto, BRASIL. Lei nº 9.279/96. Disponível em: < Acesso em: 8 junho, BRASIL. Lei nº 9.787/99. Disponível em: < Acesso em: 9 agosto, BRASIL. Lei nº /2001. Disponível em < Acesso em: 1 agosto, CHADHA, ALKA. BLOMQVIST, AKE. Patent races, me-too drugs and generics: a developing-world perspective. Disponível em: < Acesso em: 14 agosto, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, HARRIS, Gardiner. Prilosec s Maker Switches Users To Nexium, Thwarting Generics. Disponível em: < SB djm.html>. Acesso em: 8 agosto, KONFIDERA, José. A tutela do consumidor na sociedade do risco: o caso dos medicamentos. Disponível em: < media/ /erivelton%20jose%20konfidera.pdf>. Acesso em: 7 agosto, KUMAR, Vikash. SINGH, Balvinder. Me-too drugs A Tiny Revolutionize. Disponível em: < Acesso em: 9 junho, IMS HEALTH. Total unaudited and audited global pharmaceutical market, Disponível em: < ims/global/content/ Corporate/Press%20Room/TopLine%20Market%20 Data%20&%20Trends/2011%20Top-line%20Market%20Data/Global_ Pharma_Market_by_Spending_ pdf >. Acesso em: 14 agosto, 2012.

238 238 Concessão de patentes aos medicamentos me too: análise crítica da perpetuação do monopólio da exploração de fármacos pelas indústrias farmacêuticas. NOGUÉS, Julio. Unequal Exchange: Developing Countries in the International Trade Negotiations. In: Murphy Institute Conference on The Political Economy of Policy Reform in honor of J. Michael Finger, p. 13, abril de OHLY, Christopher. Omeprazole is over - or nearly so. Disponível em: < Acesso em: 8 agosto, PEREIRA, Ana Cristina Paulo. A proteção Patentária Interna e Internacional: Implicações do Acordo TRIPS/OMC na Ordem Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 11, SPECTOR, Rosanne. Me-too drugs. Sometimes they re just the same old, same old. Disponível em: < drugs-metoo.html>. Acesso em: 15 maio, SWIDEY, Neil. The Costly Case of the Purple Pill. Disponível em: < Acessado em: 9 agosto, Tratado de Cooperação em matéria de Patentes. Disponível em: < Acesso em: 14 agosto, Relatório de análise e sugestão de critérios, mecanismos, procedimentos, obrigações e possíveis instrumentos formais para articulação entre a Anvisa e o Inpi com vistas à execução do art. 229-c da lei nº 9.279/1996. Disponível em: < br/wps/wcm/connect/eb6ee3804b f39baf8fded4db/relatrio_gti_ Anuencia_Previa_Verso_Final.pdf?MOD=AJPERES>. Acesso em: 14 agosto, 2012.

239 11 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF Deyvid Braga Ferreira e Lívya Ramos Sales Mendes de Barros 1. Introdução Faculdade Raimundo Marinho O direito é a ciência da palavra. Palavra essa, que no decorrer da história atenderá aos anseios de um grupo seleto, detentor do poder político, e que necessita/precisa de regramentos para que possa não só desenvolver-se economicamente, mas socialmente. Essa forma de controle normativo nasce da necessidade da classe politicamente dominante de planificar, de definir, de pautar as formas de conduta que seriam socialmente aceitáveis em determinado momento histórico, refletindo e refratando a sua forma de dominação. Esse cenário de criação normativa, falando especificamente no Brasil, será expresso de forma singular pela nossa carta política fundamental (constituição). A eleição dessa norma, segue a teoria da hierarquização normativa, que determina que a constituição será a lei maior da nação, sendo todas as outras leis dela decorrente. Com isso, cria-se um maior prestígio para o que está contido nessa lei (constituição), do que nas outras, de modo que todo ordenamento jurídico seja balizado por tal norma, onde o seleto grupo dominante que patrocina os representantes da nação terá um maior controle sobre o que é interessante ou não para manutenção de seu projeto de sociabilidade. Isso, essa forma de controle, irá perpassar todos os momentos constitucionais brasileiros, cada qual sendo subserviente a classe politicamente dominante e detentora do comando estatal. Nesses momentos, eleger-se- -á a valoração que cada direito ofertado aos brasileiros terá. 239

240 240 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF Entretanto, é necessário que tal lex mater tenha um guardião, de preferência um colegiado de guardiões, que visem protegê-la de quaisquer intempéries capazes de abalar não só sua estrutura, mas a credibilidade que lhe dá sustentação. Esse guardião será o STF, nosso tribunal constitucional. Como fora dito alhures, diante das relações sociais de interação entre os seres humanos, as pautas de condutas sociais serão paulatinamente postas a prova não só a seus destinatários mediatos (a sociedade de uma forma geral), mas a quem essa legislação atende diretamente (classes mais abastadas). Para isso, questionam-se os órgãos integrantes do poder judiciário, como se a subir por uma escada, até o cume de sua elevação, desaguar de forma peticionária no STF. Lá, ao ser apreciada, os fatos da vida, foram transformados em um conjunto de palavras (petição), que serão submetidas a adequação ou não de seu Guardião Supremo (STF). Buscando desvelar como os julgados significam, é essencial possuirmos uma metodologia que compreenda a língua além de um fenômeno estanque, homogeneizado. É por isso que a Análise do Discurso é um caminho para a compreensão desta questão. Ela (a AD) não elege a língua, a gramática, ou qualquer enunciação monológica isolada ou quaisquer atos psicofisiológico de reprodução. Ela elege o discurso. E o discurso, nada mais é que uma pratica da linguagem, onde a palavra está em movimento, fazendo sentido, filiando-se e fazendo filiar-se a outros discursos e buscando inserir o homem no contexto sócio histórico de produção e reprodução de sua própria vida, como sujeito ativo e/ ou passivo de/ em uma comunidade. Mas para que conseguisse tal intento, a AD precisou romper com pesquisas, trilhas teóricas e a própria epistemologia vigentes até então. Vejamos nossa delimitação, com os pontos de sincronia. 2. A Súmula Vinculante nº11 do STF 2.1 A análise do discurso de vertente francesa A Análise do Discurso, fundada por M. Pêcheux apoia-se na perspectiva marxista, adotando como conceitos centrais sujeito, historia e ideologia. É sua filiação ao materialismo histórico e dialético que oferecerá uma possibilidade de ruptura epistemológica com o atual quadro vigente das análises da língua, tributárias de Saussure. Essa teoria científica (o materialismo histórico) advoga que a evolução do ser humano não pode ser entendida desvinculando-se da economia da história. Ou seja, o estudo das sociedades, em cada momento histórico (escravismo, feudalismo e capitalismo), deve ser atrelado ao estudo da situação econômica dada. Para nós, o discurso é a língua posta em funcionamento por sujeitos inscritos em uma sociedade estratificada por classes sociais, onde este se utiliza de um conjunto de signos e significações que estão a sua disposição, para mantença e reprodução de sua vida em sociedade. É nesse sentido,

241 Deyvid Braga Ferreira 241 que conforme fora demonstrado em Pêcheux, haverá uma tridimensionalidade epistemológica nas regiões de confluência: o sujeito, a historia e a ideologia (Língua, História e Ideologia). O discurso será efetivado pela historia na qual se produziu, que se utilizou da linguagem para ser externado, onde a ideologia é o caminho de sua constituição/ materialização, que possui o poder de (re) significar o já dito é instituir uma nova memória discursiva, uma vez que não é concebível sua neutralidade ou pureza 1. É nesse sentido que não existe um novo (o discurso inédito ). Todo discurso é constituído sob a base de outros já existentes, sendo atravessado por outros que já existiram ou que virão a ser externados. Para que possamos adentrar em nosso objeto de análise, a Súmula Vinculante nº 11, precisaremos desenvolver uma das categorias da Análise de Discurso, que será a ideologia e as formações ideológicas. 2.2 Ideologia e formações ideológicas Iremos agora, delimitar nosso campo teórico-metodológico quanto ao conceito de Ideologia e Formações Ideológicas. Para Bakhtin (2006), em cada época, e, por ventura em cada grupo social constituído, ali existirão em seu repertório discursivo formas de comunicação que terão fundamentos não só sociais, mas, ideológicos. Assumimos a tese de que o discurso é tridimensional, compreendendo em suas regiões: o sujeito, a história e a ideologia. Agora, para entendermos como essas categorias se relacionam no discurso, é interessante compreendermos dentro da perspectiva teórica da AD, o que é ideologia e o que são formações ideológicas, com base nos estudos de seu fundador, M. Pêcheux. É assente que desde o seu nascimento, a significação de Ideologia tem passado por diferentes prismas teóricos, passíveis de variadas formas interpretativas 2, que tanto podem remeter o leitor a uma perspectiva gnosiológica (Althusser), quanto a uma perspectiva ontológica (Marx e Lukács). A questão do conhecimento tem recebido diferentes formas de recepção e preocupações ao longo do tempo. Somente com os empiristas e racionalistas é que haverá relevância nas pesquisas de cunho filosófico. Por conhecimento, deve ser entendida a ação compreendida quando um ser (sujeito que busca conhecer) domina um objeto (o objeto do conhecimen- 1. Pureza aqui é sinônimo de inocência. Pois a partir do momento que o discurso é externado, seu autor o faz de um lugar social para os ouvintes de outro lugar social, com base em suas próprias ideologias e convicções, fazendo censuras a sua externalização (ponderar sob o que pode ser dito e o que não pode ser dito). 2. Para maior aprofundamento, ver: Abbagnano, 2007

242 242 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF to). É assente a indissociabilidade ente o sujeito e o objeto, sendo que seus papeis podem ser díspares, conforme a posição filosófica que se adote. Por isso é importante demarcarmos nossa filiação teórica acerca desta temática. Ao falarmos de Gnosiologia e Ontologia, precisamos demarcar nosso entendimento acerca desses conceitos. A perspectiva teórica da gnosiologia (do grego gnosis, conhecimento, e logos, teoria, ciência), nos mostra que a validade de qualquer conhecimento, está intrinsecamente relacionada em razão do sujeito que o recebe (o conhecimento). Já a perspectiva teórica da ontologia (do grego onto, ser, e logos, teoria, ciência) nos mostra que é a forma como este conhecimento é assimilado pelo ser, o seu destino e o implicamento de toda historicização deste conhecimento e como tal conhecimento é passado no curso da existência humana, que se mostra importante. O termo Ideologia teve como criador Destut de Tracy, com sua obra Elements de Idéologie 3, datada de Seu conceito foi proposto para designar a análise das sensações e das ideias, com isto, buscou-se analisar a faculdade de pensar, subsistindo tal instituto como fundamento de todas as ciências. Elabora-se uma ciência voltada a gênese das ideias, tratando-as como fenômenos naturais capazes de exprimir o relacionamento do meio em que se vive com o corpo humano. Embora considere importante conhecer todas as diferentes acepções do termo, não nos ocuparemos disso nesse trabalho. Iniciaremos com a perspectiva assumida por Pêcheux, em seus diversos ensaios frente à tentativa de materializar um conceito de ideologia que lhe desse suporte para a cisão com a linguística e propiciasse instrumentos científicos para a criação de uma ciência autônoma, a Análise do Discurso. Apropria-se inicialmente, dos conhecimentos de seu iniciador no Laboratório de Pesquisas da Universidade de Paris VIII Louis Althusser. Althusser 4, na sua obra Aparelhos ideológicos de Estado, no capítulo onde fala da reprodução da força de trabalho 5, busca traçar um perfil de como se concebe a sua produção e a reprodução (da força de trabalho). Ela (a força de trabalho) será reproduzida através da contraprestação fornecida pelo empregador ao empregado, pela venda/ exploração de sua força de trabalho (salário), que será seu meio material de reprodução. É bem verdade que o salário é uma parcela ínfima paga a força de trabalho pelos seus gastos, para que este se reconstitua consumindo (educação, capacitação, alimentos, roupas, moradia...). Entretanto, afirma Althusser, (2003) 3. Elementos de Ideologia. 4. Em seus estudos intitulados: Aparelhos Ideológicos de Estado. 5. Para um maior aprofundamento, sugiro: NETTO, José Paulo& BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo, Editora Cortez.

243 Deyvid Braga Ferreira 243 Não basta assegurar à força de trabalho as condições materiais de sua reprodução para que se reproduza como força de trabalho. Dissemos que a força de trabalho disponível deve ser competente, isto é, apta a ser utilizada no sistema complexo de produção. O desenvolvimento das forças produtivas num dado momento determina que a força de trabalho deva ser (diversamente) qualificada e, então, reproduzida como tal. Diversamente, conforme as exigências da divisão socialtécnica do trabalho, nos seus diferentes cargos e empregos (p. 57). Essa qualificação dar-se-á de forma diferente ao quadro dos idos mais antigos. Antes se aprendia os ofícios e suas qualificações no próprio lócus de exploração. Hoje em dia, aprende-se na escola, as regras que assegurem a submissão à ideologia dominante ou o domínio de sua prática, de modo que os agentes da divisão do trabalho saibam exatamente seu local de trabalho (de comando ou de comandado) e de como se expressar e ser entendido. Isto se deve ao fato de que, segundo o referido autor, A reprodução da força de trabalho não exige somente uma reprodução de sua qualificação, mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua submissão às normas vigentes, isto é, uma reprodução da submissão dos operários a ideologia dominante por parte dos operários e uma reprodução da capacidade de perfeito domínio da ideologia dominante por parte dos agentes da exploração e repressão, de modo a que eles assegurem também, pela palavra, o predomínio da classe dominante (p. 58). É neste sentido que se deve atrelar a reprodução da força de trabalho, não só ao conceito de Estado entendido por Althusser. O Estado, conforme tratado pela teoria marxista 6, será uma engenho repressivo, capaz de manutenir a classe dominante no poder (grandes senhores de terra do século XIX e a burguesia), submetendo a classe dominada a exploração capitalista, com o fito de obter lucros cada vez maiores. É preciso, para que tal objetivo seja colimado, que o Estado disponha de mecanismos, de aparelhos para que seu curral exploratório mantenha-se sob o seu cabresto. Tais mecanismos são o Aparelho Repressivo do Estado 6. Opus citat, p. 62.

244 244 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF (ARE 7 ) e o Aparelho Ideológico do Estado (AIE 8 ). Assim, a distinção que ficaria mais evidente é que o ARE tem seu papel nodal no uso da coação, enquanto que o AIE tem seu funcionamento vinculado à ideologia. Diz Althusser (2003), O aparelho (repressivo) do estado funciona predominantemente através da repressão (inclusive física) e secundariamente através da ideologia. (Não existe aparelho unicamente repressivo). Exemplos: o Exército e a polícia funcionam também através de ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os valores por eles propostos. Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos Ideológicos do Estado funcionam principalmente através da ideologia e secundariamente através da repressão, seja ela bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica. (Não existe aparelho puramente ideológico). Desta forma, a escola, as igrejas moldam por métodos próprios [...] não apenas seus funcionários, mas suas ovelhas (p.70) Dito isto, poderemos perceber que os ARE s possuem a função precípua de garantir através da coação 9 (física ou ideológica) a manutenção da ordem exploratória vigente, garantindo a continuidade política da força dominante onde o proletário subserve aos ditames da classe política elitizada vigente. Com os AIE será diferente, pois enquanto os ARE detêm uma organização centralizada, dirigido pelos representantes das classes dominantes, os AIE possuem uma organização múltipla, distinta, autônoma, que expressam os antagonismos entre a burguesia e o proletariado e forma mais gritante, com o escopo de reproduzir e legitimar as relações de subserviência entre exploradores e explorados, submetendo os indivíduos a ideologia predominante no Estado. 7. São exemplos de Aparelhos Repressivos de Estado: o Governo, a Administração, o Exercito, a Polícia, os Tribunais, as Prisões São exemplos de Aparelhos Ideológicos do Estado: Religião (diferentes igrejas), Escola, Família, Jurídico, Político, Sindical, de Informação (imprensa), Cultural Por coação, entenda-se a possibilidade ou não do uso da coerção, da força. Esta (a força) pode ser de forma velada (ideológica a simples presença da força policial ou do Exército já iria inibir qualquer atuação contrária ao regime) ou não (uso propriamente dito da força física, da repressão...).

245 Deyvid Braga Ferreira 245 Para entendermos de que forma a ideologia atua no projeto de manutenção das classes dominantes e dominadas, devemos compreender, a partir das duas teses de Althusser formuladas sob o funcionamento e a estrutura da ideologia, como tais relações se efetivam. Em sua primeira tese, afirma que: A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência 10.É nesse sentido, (Idem) que se observa Não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os homens se apresentam na ideologia, o que é nelas representado é, antes de mais nada, a sua relação com as condições reais de existência. É esta relação que está no centro de todas as representações ideológicas, e portanto imaginárias do mundo real. É nesta relação que está à causa que deve dar conta da imaginária da representação ideológica do mundo real (Althusser, 2003, p. 87). Importante assinalar que quando o referido autor fala em imaginárias, não se quer com isto buscar algo abstrato, díspar da realidade, mas a forma pela qual o ser humano se faz representar em suas relações com a realidade visível, por meio de imagens. Essas imagens são as que o indivíduo produz de si mesmo frente às condições existências postas. Por exemplo: o certo e o errado, o bem e o mal... Em sua segunda tese, afirma que: A ideologia tem uma existência material 11. O palco onde essa existência atuará, será nos Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Imaginemos um cristão. Mas não uma simples pessoa que apregoa o nome de Deus. Imagine uma pessoa professe aos quatro cantos seu amor pelo Deus descrito no Pentateuco hebraico. Sua crença provem da representação ideológica que a ideologia perfaz dos fatos ligados à existência espiritual, bem como suas ideias enquanto sujeito possuidor de consciência, onde suas crenças manifestam-se como as ideias da ideologia com a qual se identifica, definindo seu comportamento materialmente visível. 10. Opus citat, p Opus citat, p. 88. O indivíduo em questão se conduz de tal ou qual maneira, adota tal ou qual comportamento prático, e, o que é mais, participa de certas práticas regulamentadas que são as do aparelho ideológico do qual depende as ideias que ele livremente escolheu, com plena consciência, enquanto sujeito. Se ele crê em Deus,, ele vai a Igreja assistir a

246 246 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF missa, ele se ajoelha, reza, faz penitencia, se confessa... (Althusser, 2003, p. 90). Após tais explanações, Althusser formula a sua tese central sobre a estrutura e o funcionamento da ideologia: A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos 12. A categoria sujeito é constitutiva de toda a ideologia, mas ao mesmo tempo, e imediatamente, acrescentamos que a categoria de sujeito não é constitutiva de toda ideologia, uma vez que toda ideologia tem por função (é o que a define) constituir indivíduos concretos em sujeitos. É nesse jogo de dupla constituição que se localiza o funcionamento de toda a ideologia, não sendo a ideologia mais do que o seu funcionamento nas formas materiais de existência deste mesmo funcionamento (Althusser, 2003, p. 93). É com base nesta teoria, que Althusser afirma ser possível, por intermédio do mecanismo da interpelação, a ideologia transformar os indivíduos em sujeitos, conduzindo-os a sua auto sujeição, A ideologia age ou funciona de tal forma que ela recruta sujeitos dentre os indivíduos (ela recruta a todos) ou transforma os indivíduos em sujeito (ela transforma a todos) através desta operação muito precisa que chamamos de interpelação, que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação [...] cotidiana (2003, p. 96). Como vimos, para Althusser todas as ações do sujeito são determinadas pelo seu assujeitamento, que é total. Para nos, a questão do assujeitamento total defendido por Althusser deve-se ao fato de que ele comunga de uma visão gnosiológica do ser, própria do neopositivismo e do irracionalismo pós-moderno, que hiperdimensiona o sujeito mesmo quando busca negá-lo (Costa & Vasconcelos, 2011, p. 01). Mas como se sustentar um assujeitamento total, em uma sociedade estratificada por classes sociais, onde a dicotomia burguesia x proletariado, reina? Em nosso entendimento, o assujeitamento é um fator parcial e nunca total. Encontramos respaldo para nossa posição em Lukács que analisa o fenômeno da ideologia sob o fundamento ontológico-prático. Segundo Vaisman (1989) 12. Opus citat, p. 93.

247 Deyvid Braga Ferreira 247 Falar de ideologia em termos ontológicopráticos, significa analisar esse fenômeno essencialmente pela função social que desempenha, ou seja, enquanto veículo de conscientização e prévia- ideação da prática social dos homens (p. 19) Essa concepção de ideologia, segundo Cavalcante (2007, p. 40), apoia-se na noção de homem como um ser que reage às demandas postas pela realidade objetiva, um ser que dá respostas a necessidades determinadas. É Lukács (1978, p. 5) quem afirma: O homem torna-se um ser que dá respostas, precisamente na medida em que paralelamente ao desenvolvimento social em pro porção crescente ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los. O indivíduo faz sim, escolhas, mediante as possibilidades que lhe são postas. Numa hipótese mais simples, podemos compreender que sempre diante das condições postas o indivíduo, sempre poderá optar por sim ou não, frente às diferentes formas específicas de ideologia que lhe são veladas. Essas formas ideológicas específicas são denominadas de Formações Ideológicas (FI). Segundo Haroche (1971, p. 102, apud Cavalcante 2007, p. 42) As formações ideológicas são, pois, expressão da estrutura ideológica de uma formação social que põem em jogo práticas associadas às relações e classe. Trata-se de realidades contraditórias, na medida em que em uma conjuntura dada, as relações antagônicas de classe possibilitam o confronto de posições políticas e ideológicas que não são atos individuais, mas que se organizam em formações conservando entre elas as relações antagônicas de aliança e de dominação. É por esse motivo, que, numa dada formação ideológica, pode-se encontrar o confronto de ideias, posições, alianças ou, simplesmente, a subserviência de uma ideologia a outra dentro da FI, demonstrando uma sujeição/ dominação. É nessa perspectiva, que diferentes FI, mesmo que demonstrem antagonismo entre si, podem falar de questões como cidadania, patriotismo, segurança pública, atribuindo-lhes sentidos diferentes. O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe em si mesmo, (...) mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no

248 248 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF processo sócio histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir, essa tese, dizendo: as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que a empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referencia (...) as formações ideológicas (...) nas quais estas posições se inscrevem (Pêcheux, 1995, p. 160). Cada Formação Ideológica contém, como um de seus componentes, uma ou várias Formações Discursivas. 3. Análise da materialidade sígnica Assim como todas as profissões possuem seus instrumentos peculiares, os agentes de segurança pública terão os seus, que a saber são: algema, arma de fogo e colete de proteção balística. Uma algema é uma forma de contenção contra possíveis agressões, a si própria ou a terceiros, a que a polícia recorre toda vez que precisa conduzir alguém sob sua guarda. Enquanto se conduziam as classes menos abastadas, não havia problema algum, até que as algemas foram usadas para conduzir pessoas importantes, da classe dominante - um ex-governador de um estado influente em nossa economia, um banqueiro e um grande investidor. Imediatamente após esse fato, em 13/ 08/ 2008,o Supremo Tribunal Federal edita a Súmula Vinculante nº 11. Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Uma Súmula Vinculante é uma decisão que vem sendo tomada de forma reiterada pelo tribunal, ao ponto de que todos os julgados que forem símiles, devem ser enquadrados em tal documento normativo, que terá força erga omnes vinculando a decisão dos outros tribunais, magistrados e administração pública. É obrigação de qualquer policial (Civil, Militar ou Federal), diante do caso concreto, posicionar-se de maneira crítica, ética, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais.

249 Deyvid Braga Ferreira 249 O que se depreende dessa súmula, é um total tolhimento do juízo discricionário na utilização ou não das algemas na condução dos suspeitos, pois há expressa determinação de quando e de que forma se pode utilizar tais instrumentos, ameaçando-o de punição: justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere. Por que essa súmula foi publicada somente após policiais, no exercício de suas funções, terem algemado pessoas influentes? Com esse ato, fica implícito que a atitude dos policiais não foi ética nem responsável. Está implícito também que na sua posição crítica, ética e responsável ele deve entender que os índices avaliativos responsável e construtiva delimitam as condições em que o posicionamento crítico deverá ocorrer. O que seria, pois, posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva? Segundo Cavalcante (2007,p. 127), Depende da posição política e social do sujeito que age e de quem julga esse agir. Na perspectiva da Formação Ideológica capitalista, colocar-se contrário ao ideário político do mercado é ser irresponsável, e, consequentemente, não construtor da ordem e do progresso do país. Assim, as classes abastadas não devem ser tratadas da mesma forma que as pessoas desprovidas de recursos. Entendemos ser pertinente, aqui, o que dizem Marx & Engels ( 2006, p. 46). A moderna sociedade burguesa, surgida das ruinas da sociedade feudal, não eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de lutas em lugar das antigas. É assente que lhe resta, apenas o diálogo como forma principal de mediação de conflito e tomada de decisões, pois conhece e valoriza a diversidade social brasileira. Complementando as orientações de ação do agente de segurança, indica-se o instrumento que o sujeito deverá usar em situações de conflito. Ora, como diz Cavalcante (2007, p. 127), O diálogo caracteriza-se por troca, alternância de opiniões entre interlocutores, enquanto a ação de mediar, significa intermediar, encontrar um meio termo, fazer

250 250 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF acordo, buscar soluções na base do diálogo e nunca do confronto. Isso corrobora os trabalhos de Marx e de Engels, que mesmo sendo delineados a mais de um século, nunca foram tão atuais. Nessa mesma linha de raciocínio, poderemos citar uma Portaria Interministerial do Ministério da Justiça, datada de 31/12/2010, que sob a égide de estabelecer diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, assim se posiciona: Diretriz de nº 08. Todo agente de segurança pública que, em razão da sua função, possa vir a se envolver em situações de uso da força, deverá portar no mínimo 2 (dois) instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção necessários à atuação específica, independentemente de portar ou não arma de fogo (grifo nosso). A violência em nosso país é crônica, sendo uma das missões dos agentes públicos da segurança seu combate. Mas existem peculiaridades que somente no trabalho policial são encontradas. Imagine um policial num confronto armado, dentro de um complexo de favelas tais como as do Rio de Janeiro, onde o confronto bélico possui armas de uso exclusivo/ proibido/ privativo das Forças Armadas 13 e que as polícias não possuem. Um exemplo são as armas de calibre.50 (12,7 x 99) mm em poder de integrantes de organizações criminosas. Para que o leitor possa ter uma noção deste poderio bélico, imagine que um disparo de arma neste calibre, atravessa um carro forte das empresas de transporte de valores, com a mesma facilidade que você rasgaria uma folha de papel. É nesse sentido que podemos afirmar cada vez mais, os conflitos inerentes à luta de classes e os antagonismos sociais que hoje se apresentam no Brasil. De um lado as elites historicamente postas no comando da máquina pública, servindo-se, não só dos AIE, mas principalmente dos agentes de segurança inscritos no interior dos ARE para implementar seu projeto de sociabilidade. É importante constatar a atualidade das reflexões de Marx & Engels (2006, p.46) quando assim se expressam, A nossa época, [...], caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade inteira vai dividindo-se em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente opostas entre si: burguesia e proletariado. 13. De acordo com o decreto federal nº 3665 de 2000, mais conhecido como R 105.

251 Deyvid Braga Ferreira 251 Com isso, resta claro que as formações ideológica contidas na Súmula possuem o objetivo de dissimular os conflitos de classe próprios do capitalismo, pois apesar de aparente cristalinos em concepção, tal sequencia mostra- -se atravessada pela formação ideológicas do capital. 4. Conclusão Nossa sociedade, desde a sua colonização pelos portugueses, apresentou basicamente a miscigenação de três raças: o índio, o negro e o europeu. No norte e nordeste houve a prevalência de colonização dos negros e indígenas, enquanto que no sul e sudeste houve a prevalência dos europeus. Desde o final da ditadura militar e inicio da democracia em nosso país, por volta do começo da década de oitenta do século passado, com a liberdade de imprensa, tomamos conhecimento, de forma mais nítida, dos graves contrastes e disparidades de emprego e renda que assolam o nosso povo, sem contar com a exacerbada concentração de renda nas mãos de poucos, e na disparidade dos baixos rendimentos que são ofertados para tantos. Mais uma vez, valemo-nos de Marx &Engels (2007, p.80) Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma base mais extensa do que a da classe que até então dominava, mas, por outro lado, a contraposição entre a nova classe dominante e a não-dominante se agrava e se aprofunda cada vez mais. Todo este quadro, que perdura de nosso descobrimento e vai até os dias atuais (ou seja, mais de cinco séculos), contribuiu para cada dia, aprofundar as relações de desigualdades sociais, provocando exponencialmente o aumento no número de miseráveis que, sem opção, lançavam-se a práticas de crimes, como única forma de se manter. Tudo isto regado à ideologia neoliberal, que galopantemente aparecia na mídia para informar a população brasileira que o setor público inchado, sucateado, deteriorado... seria o responsável direto por este quadro. A solução era propor um enxugamento da máquina estatal, de forma que ela fosse ágil como a iniciativa privada. Passados quase 30 anos da implementação de tais políticas, o povo ainda espera pelo milagre, vendido de forma financiada pela iniciativa privada aos contribuintes, mas ainda não quitado, colocando-se aí, conforme Marx & Engelsz (2007, p.48) no lugar da exploração mascarada por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração [de forma] aberta, despudorada, direta e árida. A burguesia rasgou o véu do comovente sentimentalismo que envolvia as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias

252 252 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF Entretanto, eis que agora vem a lume uma nova esperança. Com a sumula vinculante nº 11 do STF, fica desprotegida não só a sociedade, mas os próprios policiais que temem tentar cumprir seu dever, e para isso, terem de algemar o infrator. Ou seja, a força policial, que não é detentora dos meios de produção, não possui qualquer gerência dos recursos públicos, não pode fomentar políticas de distribuição da riqueza gerada no país, deverá perceber-se como transformador da realidade social e histórica, tendo o poder de contribuir para a melhoria da qualidade de vida social, institucional e individual. Diante desse novo quadro, fica implícito que se a criminalidade não diminui, é responsabilidade dos agentes policiais; não do Estado. Retira-se com isso toda responsabilidade do poder estatal e silencia-se que ele, o Estado neoliberal é o grande responsável pelo aumento da criminalidade, pelas razões já expostas. Para Marx & Angels (2007), será a linguagem a forma de se obter o relacionamento entre os homens, na busca pela necessidade (incompleta) de intercâmbio entre os de sua espécie, sendo, portanto, um produto social. A responsabilidade de mudança é deslocada totalmente de seu ator principal, que é o governo, para um ator secundário, a força policial, que é mais visível é possível de ser encontrada pela sociedade. É mais fácil falar com um policial, do que com um chefe do executivo (municipal, estadual ou federal). Por deter o monopólio das mudanças, será o Estado e não o policial, pois não possui ingerência de mando alguma sobre a aplicação das verbas e dos programas de fomento sociais, o detentor legítimo do monopólio de ator das mudanças sociais em nosso País. Isso ocorre porque toda e qualquer mudança atitudinal em escala nacional, vê-se diretamente subordinada à política e seu relacionamento com o Estado. Nisso, fica assente os desígnios de Marx & Engels (2006), quando falam que o objetivo da classe dominante será o de garantir que o poder permaneça com a classe politicamente dominante, a fim de perpetuar seu projeto de sociabilidade. Cremos que demostramos os comprometimento ideológicos da Súmula, ao tempo em que concluímos com a seguinte questão: que sociedade, qual projeto de sociabilidade saiu vencedor com essa decisão? Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução de Walter José Evangelista. 9 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.

253 Deyvid Braga Ferreira 253 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª Edição. Tradução de Michel Lahud et all. São Paulo: HUCITEC, CAVALCANTE, Maria do Socorro Aguiar de. Qualidade e cidadania nas reformas da educação brasileira: O simulacro de um discurso modernizador. Maceió: EDUFAL, Situando a análise do discurso. In: FLORENCIO, Ana Maria Gama et all. Análise do discurso: Fundamentos e práticas. Maceió: EDUFAL, COSTA, Frederico Jorge Ferreira & VASCONCELOS, Susana Jimenez. A natureza ontológica do pensamento de Marx. IV Conferencia Internacional La obra de Carlos Marx y los desafíos del siglo XXI. Disponível em: em 17 de outubro de VAISMAN, Éster. A ideologia e sua determinação ontológica. São Paulo: Revista Ensaios, nº 17/18, LUKÁCS, George. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. São Paulo: Revista temas de Ciências Humanas, História e consciência de classes: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia Alemã. São Paulo: Editora Martin Claret, MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Editora Martin Claret, MARX, Karl. Manuscritos econômico - filosóficos. São Paulo: Editora Martin Claret, MÉSZÁROS, Istévan. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, ORLANDI, ENI P. (Org). Gestos de leitura da história no discurso. Tradução de Bethânia S.C. Mariani. São Paulo: UNICAMP, Análise do discurso: Princípios e procedimentos. 6ª Edição. Rio de janeiro: Pontes, 2005.

254 254 Ideologia e formações ideológicas de dominação e subserviência: um estudo da sumula vinculante nº 11 do STF. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 4ª Edição. São Paulo: UNICAMP, PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni P. Orlandi et all. 2ª Edição. São Paulo: UNICAMP, Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi et all. 2ª Edição. São Paulo: UNICAMP, Remontemos de Foucault a Espinosa. Tradução de Maria do Rosário Gregolim Texto mimeo.

255 12 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica Bruno Lemos Hinrichsen, Idalina Cecília Fonseca da Cunha, João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e Pedro Spíndola Bezerra Alves Universidade Católica de Pernambuco 1. Introdução: a crença na dogmática enquanto produto da atividade científica racional A dogmática é construída de premissas ordenadas que pretendem delimitar determinada ciência à amplitude de seus conteúdos. Ao estudá-la, logo se busca os elementos primaciais, os dogmas que guiarão quaisquer observações ou questionamentos estes, por seu turno, devem sempre observar os dogmas. Para que determinada ciência consolide as premissas fundamentais que regerão o seu sistema, deve haver um processo de justificação destes pilares dogmáticos. No caso específico da ciência jurídica, a validade de suas premissas advém da noção da legitimidade legal-racional (FARIA, 1978), que estabelece a relação de dominação-sujeição com base na crença de que os postulados jurídicos (leis e jurisprudência) são formulados racionalmente por métodos científicos precisos e imparciais. Os dogmas tornam-se pontos de partida inquestionáveis (pois já deve sempre haver o consenso de que são legítimos e verdadeiros; supõem-se axiomáticos) para que o sistema possa funcionar. Dogmática, portanto, é a crença na veracidade das premissas da ciência: sustenta a petição de princípio de um discurso, e, por isto, é difícil, inclusive, a sua retaliação temporal. 255

256 256 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica A dogmática é vista habitualmente como simples produto da 1 atividade científica racional, ou seja, [produto] de premissas escolhidas por uma metodologia que buscaria a racionalidade como critério desta escolha. O problema que aqui se coloca é que a noção de racionalidade, para o direito, está extremamente relacionada, atualmente, à ideia de argumentação, do uso da linguagem, do discurso. Isto implica considerar que as premissas escolhidas não são as únicas possíveis, sendo a dogmática, portanto, produto de uma 2 atividade científica que se pretende a mais racional. Nesta senda, outros problemas se apresentam: como fruto de premissas escolhidas por critérios considerados argumentativamente mais lógicos, seria a dogmática (a) resultado da busca pela razão na ciência do direito ou seria (b) instrumento que se vale da ideia de racionalidade para impor escolhas? Neste segundo caso, quem ou o que se utilizaria da dogmática para tal fim e de que modo? A crença na dogmática como produto de uma atividade científica racional que teria por escopo apenas delimitar a ciência do direito não parece, porém, confirmar-se nas vicissitudes da práxis, pois a produção legiferante e jurisprudencial por vezes tornam evidente que a motivação por traz da decisão escolhida não foi guiada por fundamentos científicos racionais. 2. Formação da ciência dogmática jurídica atual e a reviravolta linguística A civilização ocidental, no que concerne ao direito, herdou em demasia as bases do direito romano, o qual possuía leis escritas, sendo o senado romano uma referência histórica bastante comum na literatura. Lá já havia a noção de um direito ideal, natural, que limitaria o direito posto (PERELMAN, 2004); bem como a [noção] de verdades autoevidentes, a guiar a todas as pessoas em um mesmo sentido devido ao senso inato de justiça por ela apresentado. No período do absolutismo, por exemplo, o discurso era a legitimidade régia concedida pelo divino: a ideia do direito natural era utilizada para legitimar a autoridade do soberano, que editaria leis e teria ingerência em sua aplicação. Houve uma mudança paradigmática, cujo estopim (aparente) fora a Revolução Francesa de 1789, na qual o abandono do modelo do Pater est potentia, se dá pelo desenvolvimento da crença no scientia est potentia 3, fazendo da lei um símbolo da justiça por meio da impessoalidade do saber. A função do judiciário era subsumir a lei ao caso concreto, evitando o arbítrio e a insegurança. 1. Notar o artigo definido como referência ao universal. 2. Observe-se, assim como na nota anterior, o uso do artigo: indefinido para o relativo. 3. Do latim, o pai é poder e saber é poder.

257 Bruno Lemos Hinrichsen 257 O juiz, assim, deveria motivar suas decisões lógica e matematicamente (PERELMAN, 2004), com base na lei, sem a total discricionariedade do antigo regime. Aí estão as bases da Escola da Exegese: o início do novo império da força de lei (DERRIDA, 2010, p. 21). No entanto, o formalismo da lei, deflagrando-a insuficiente, não resolvia casos mais difíceis atualmente chamados hard cases (LYONS, 1993, p ) nos países da Common Law 4. Na França, a título exemplificatório, foi criado o Tribunal de Cassação Francês (Cour de Cassation), para julgar estes casos (PERELMAN, 2004). Em 1880 surge, também, no cenário a Escola Funcional e Sociológica não obstante o ideal racionalista ainda seja mantido. Nesta escola a interpretação do meio social era imprescindível para a aplicação da lei ao caso concreto, vez que a letra fria da lei não podia ser imediatamente aplicada (tome-se como exemplo os hard cases). Arranjou-se um pretexto para uma reavaliação de todos os pressupostos jurídicos, ao fim da Segunda Guerra Mundial; fazendo das velhas tensões ornamentos indesejados. É importante frisar que o positivismo enquanto sistema destituído de valorações foi rechaçado. Já neste momento, a teoria da norma hipotética fundamental (Grundnorm), cuja função é atribuir legitimidade ao sistema jurídico através da confirmação formal de um pressuposto lógico, um axioma de validade (KELSEN, 1986), seria utilizada pelos constitucionalistas modernos (em uma evidente desvirtuação, vez que a norma fundamental não se identifica com a constituição jurídica na teoria kelseniana). Segundo eles, é a partir da Carta Magna que acontece a hierarquização; e ela, como arcabouço valorativo, determinaria a escolha por um paradigma predominantemente principiológico no direito. Mas, no fim das contas, o que todo este empenho da formação da dogmática pretendeu foi, como dissera Hegel (2005, p. 39) ter no direito uma manifestação do absoluto como um modelo representativo perfeito: O direito não pode ser considerado de outra forma, senão como a ideia. Todas as ciências filosóficas fazem parte de um todo maior. A filosofia tem por objeto o universal, o absoluto. O direito é uma parte da manifestação desse absoluto, da ideia divina De acordo com David (2002), duas são as grandes famílias jurídicas atuais: a Common Law e a Romano-Germânica. Esta compreende os países de tradição civilista, ao passo que aquela os países da antiga Commonwealth, isto é, os de origem anglo-saxônica e suas colônias. 5. No original: Das Recht kann nicht anders aufgefaßt werden als die Idee. Alle philosophischen Wissenschaften sind Teile eines großen Ganzen. Die Philosophie hat zu ihrem Gegenstand das Universale, das Absolute. Das Recht ist eine Seite der Manifestation dieses Absoluten, der göttlichen Idee.

258 258 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica A chamada reviravolta linguística 6 teve início ainda no século XIX e simbolizou a quebra da filosofia da consciência pela filosofia da linguagem. A primeira colocaria a linguagem como instrumento precário para retratar a verdade. Enquanto na segunda a linguagem representaria o único recurso que se possui para construir o mundo. Na reviravolta lingüística, ou giro linguístico, passou-se a entender a linguagem não como instrumento precário, mas sim como tudo que o ser humano possui. Não há o que se dizer além da linguagem, a questão é se a linguagem diz ou não o mundo, isto é, opera-se um modelo do duplo e do espelho ou, ao contrário, do uso e dos jogos de linguagem os alicerces teológico-metafísicos são então descartados. Esta mudança de paradigma na filosofia estendeu-se para as demais áreas do conhecimento e experimentou dois momentos, em geral identificados com as teorias de Wittgenstein (2008), cujas obras Tractatus logico- -philosophicus e Investigações filosóficas foram, respectivamente, marcos definidores dos momentos experimentados pelo novo paradigma. No primeiro momento, identificado como neopositivismo (STRECK, 2011), o Círculo de Viena, baseando-se na teoria desenvolvida no Tractatus, acreditava que a linguagem poderia dizer o mundo e que pela racionalidade haveria como chegar a conceitos unívocos, contribuindo à exatidão das ciências. Cada palavra conteria apenas um sentido. Apresentavam-se teorias da semiologia de F. C. von Savigny, com a escola histórica do direito, e da semiótica de Peirce, que representaram um grande avanço na ideia de sistema de signos linguísticos e suas relações com o sujeito e os objetos (PEIRCE, 2003). Wittgenstein (2008), nas Investigações filosóficas, desenvolveu a teoria dos jogos de linguagem, vendo tudo como dependente do contexto. Nesta fase, ele abandona o ideal de universalização de conceitos unívocos, condições ideais de fala que eliminariam a equivocidade da linguagem na ciência. A questão é: a linguagem cria o mundo a partir do contexto particular das situações de fala. Não existe mundo além da linguagem (KAUFMANN, 2009). O próprio Wittgenstein (2008, p. 272) pode dar testemunho de sua teoria: E o essencial é vermos que, ao ouvirmos a palavra, nos pode ocorrer o mesmo objecto e, no entanto, a sua aplicação ser uma outra. E tem então o mesmo sentido em ambas as vezes? Julgo que diremos que não. O mais interessante é que o que se chama de o segundo Wittgenstein veio em auxílio, correção, ao primeiro. Todas as teorias atuais do direito estão inseridas neste novo paradigma da filosofia, onde o sujeito não conheceria o objeto diretamente, mas apenas 6. Para maior aprofundamento conferir Manfredo Araújo de Oliveira (2006).

259 Bruno Lemos Hinrichsen 259 através de um signo que o representaria e seria determinado em seu sentido apenas a partir de um dado contexto, uma dada circunstância Os esforços para preservação da racionalidade na ciência jurídica e a crítica dos céticos Hodiernamente, os ordenamentos jurídicos já constituídos pelo ideal principiológico do neoconstitucionalismo, como dito anteriormente buscam não apenas fundamentos sólidos do ponto de vista técnico-procedimental, mas também teorias que consolidem a crença de que o conteúdo das decisões é escolhido por meio de critérios imparciais e, sobretudo, lógico-racionais. Neste sentido, surge a teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy (1978) fruto da filosofia da linguagem, após a reviravolta linguística a qual propõe, em síntese, que decisões racionais podem ser alcançadas por meio de regras dirigidas à argumentação jurídica. Com isto, a argumentação utilizada para o direito (em sua criação e aplicação) será a mais racional possível, eliminando-se qualquer elemento motivacional, salvo o de alcançar a razão pelas regras postas. Esta teoria decorre da necessidade do Estado buscar consolidar democraticamente suas decisões (políticas e jurídicas). Isto implica que deve haver consenso democrático e, frise-se, racional. Para isto, o discurso deve ser justificado através de regras de uma teoria da argumentação propriamente jurídica, para que haja a validação das premissas adotadas (ALEXY, 1978). Distingue-se, a este ponto, dois aspectos complementares do discurso jurídico racional, quais sejam, o formal (procedimental) e o material (conteúdo). Daí a importância da ressalva de que esta teoria considera o ponto de vista formal, isto é, a partir da ótica procedimental do discurso; da argumentação desenvolvida observando-se as regras procedimentais do discurso. O ponto de vista material diz respeito ao conteúdo ético das decisões escolhidas, servindo inclusive de premissa para o procedimento. Ignorar este conteúdo material é voltar ao ideal positivista, ao tempo que deixá-lo na completa abstração é voltar ao jusnaturalismo. Portanto, na ótica analisada os valores (conteúdo ético-moral) devem ser objetivados através também de regras racionais (ALEXY, 2011). Corrobora-se, na verdade, com o esforço de validar racionalmente as decisões sob os aspectos material e formal (que devem ser complementares). A finalidade, então, é legitimar a escolha de um discurso x ou y quando, e apenas quando, este seguir as regras da razão. Admite-se que vários 7. Wittgenstein (2008, p. 283) escreve: [ ] mas aquilo que nos dá o direito de, num caso destes, dizer que ele compreende, que ele sabe continuar a sucessão, são as circunstâncias debaixo das quais ele teve uma tal vivência.

260 260 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica são os resultados possíveis seguindo-se estas regras, todavia, quanto mais se utiliza esta lógica, mais próxima de uma racionalidade universal (determinativa do consenso) fica a decisão. A principal crítica a este modelo é que o discurso pretende fundamentar argumentos, no entanto, ele próprio encontra sua possibilidade fundamentada pelos argumentos que propõe validar esta circularidade acaba com o seu arcabouço lógico. Além disso, cada discurso abre um leque dialético de possibilidades argumentativas, sendo impossível alcançar o ideal da racionalidade universal. A postura cética, acompanhada por correntes como o realismo, pragmatismo, nova retórica, procura deixar de lado o ideal de uma razão universal, válida para todos em todos os lugares. O postulado central é: não é possível alcançar a univocidade (a verdade, o resultado correto), já que tudo depende do contexto e dos argumentos escolhidos; inclusive, e por trás disso, dos interesses e da persuasão, como se demonstrará mais a frente. Para Richard Posner (2009), da escola economic analysis of Law (análise econômica do direito), a melhor forma de entender os fatos, a vivência social, é analisar dados econômicos da sociedade. Estes dados correspondem não apenas à seara financeira, mas ao nível de satisfação dos indivíduos pelas decisões escolhidas e suas repercussões. Tem-se uma filosofia utilitarista. De qualquer maneira, assim como as demais correntes céticas, critica-se a ideia de verdade universal e racionalmente alcançável. 4. Teoria hermenêutica do direito: uma proposta que vai além da técnica interpretativa Após o giro linguístico, as propostas de superar os problemas da criação e aplicação do direito muito o associaram com a hermenêutica filosófica 8, para a criação de uma hermenêutica jurídica. Esta foi de certo modo banalizada, utilizada como técnica de interpretação apenas, com vistas a alcançar a vontade da norma (STRECK, 2011). No entanto, hermenêutica não se resume à interpretação, não é mera técnica, mas sim uma verdadeira teoria do direito. A hermenêutica deve ser enxergada como a observação de todo o fenômeno jurídico, isto implica em atribuir a ela a tarefa de compreendê-lo antes de interpretá-lo. Existe, pois, na teoria hermenêutica do direito, a noção da pré-compreensão, pois há uma interpretação prévia que gera uma compreensão primeira a ser novamente interpretada (LACOMBE, 2003). Esta interpretação prévia dá-se muito também pela historicidade dos sujeitos envolvidos no processo interpretativo. E é à dialeticidade deste processo de interpretar a parte pelo todo tendo o todo previamente sido inter- 8. É interessante conferir Hans-Georg Gadamer (2007) e Martin Heidegger (2009).

261 Bruno Lemos Hinrichsen 261 pretado pela parte que se chama círculo hermenêutico. Este todo pressuposto e condicionador do direito, nesta teoria, seria a ordem. O direito seria um composto de ordem e hermenêutica (SALDANHA, 2003). Então, hermenêutica não é mera técnica de interpretação e aplicação do direito. É uma forma de olhar o direito. A hermenêutica é conceito que não existe se não houver o de ordem, ao tempo em que é também condição (pressuposto) para esta. Do ponto de vista da lógica formal isto é um paradoxo. No entanto, tal oximoro 9 (ὀξύμωρον) pode ser desmistificado pela teoria de Saldanha, o qual considera que ser e pensar se confundem no existir, então a hermenêutica pressupõe a ordem ao tempo em que também a constitui. Para entender a ordem (e o direito) seria preciso ter antes uma pré- -compreensão dela, ainda que seja uma noção gerada para promover a ideia de uma estabilidade estatal. Mas esta ideia, determinada principalmente pela historicidade, para ser útil na prática, deve ser somada à própria hermenêutica, que a pressupõe. Entender a ordem sem a hermenêutica e o direito sem este conjunto é dizer que o ser (ordem) é sem o pensar (hermenêutica). No entanto, o ser e o pensar, como dito alhures, estariam amalgamados no existir. 5. A dogmática como limite outorgado pela vontade de verdade e o dirscurso tomado por verdadeiro A dogmática vem sendo entendida como um sistema e todos os elementos deste são regidos pelos seus dogmas. Mas algumas circunstâncias fáticas ou teóricas que o sistema deve encarar exigem respostas que os seus elementos não resolvem, surgiriam antinomias produzidas no seio do próprio sistema. O papel da filosofia do direito, assim sendo matéria da filosofia, cujo objeto é analisar questões atinentes ao direito, busca razão em seus métodos e não nos jurídicos, seria transcender o sistema (dogmática) e seus elementos, procurando externamente as soluções para circunstâncias surgidas diante da dogmática (onde esta não é capaz de, satisfatoriamente, enquadrar seus dogmas) (KAUFMANN, 2002). A filosofia buscaria entender o todo, mas o filósofo precisa de um ponto de partida particular, no caso, um problema da ciência do direito. Entretanto, quando os filósofos do direito propõem entender o todo através do ponto particular (determinado elemento do sistema) da dogmática, eles permanecem fatalmente nos dogmas do sistema, propondo uma alteração que modulará os argumentos e abrangerá novas hipóteses, mas que sempre estarão dentro da vontade de verdade (FOUCAULT, 2010). O objetivo é, então, apenas corrigir o sistema e não sair dele. E será que é possível restaurar 9. Oximoro também é conhecido pelo termo paradoxo.

262 262 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica um objeto apenas através dele próprio? Só se fosse um sistema vivo, o que não é bem o caso (BETALANFFY, 2009). Essa atitude é esperada, uma vez que a dogmática é responsável pela integridade e credibilidade de uma ciência. E é possível que uma ciência que altera seu paradigma constantemente indique problemas epistemológicos grave 10. No entanto, crises de paradigma, embora não sejam recorrentes, também não são raras na ciência. Para Boaventura de Souza Santos (1989), existem dois tipos de crises epistemológicas nas ciências: as crises de crescimento e as de degenerescência. O primeiro tipo de crise corresponde a questões que surgem para a ciência e exigem que esta aprofunde seus postulados, inclua elementos no sistema, torne-o ainda mais complexo, podendo gerar, inclusive, uma nova ciência autônoma que terá por objeto resolver a crise de crescimento. Isto é positivo, pois demonstra que existem alternativas e que a ciência ainda é válida e útil. Entretanto, existem também crises de degenerescência, de corrupção, de falência da essência dos dogmas de determinada ciência. Quando esta crise ocorre, o paradigma deve ser alterado, pois não há mais como sustentar o atual. Isto demonstra a relatividade e os ciclos por que passa o conhecimento científico, sempre evoluindo e reconstruindo as bases de suas dogmáticas. Então, os dogmas da ciência jurídica são da forma que são em virtude de convenções humanas, discursos bem sucedidos e políticas implementadas. O método utilizado fora escolhido por convenção e continuará sendo até que outra coisa se convencione, em virtude de uma crise. Assim, sem pretender adentrar com profundidade nas discussões que cercam a epistemologia, o que se pretende dizer, em certa medida, é que, porquanto seja desejada a ordem (isto é, o direito como ele se configura), deve haver uma metodologia, uma dogmática. Deve-se guardar, inobstante, que a dogmática não é uma e única, mas é sempre e cada vez, escolhida para difundir o discurso de verdade; este que tolhe e exclui outros discursos, em função de uma preservação sistêmica de seus paradigmas, cujos dogmas impedirão o surgimento de outras verdades, até que uma crise se configure e faça necessária a reestruturação do próprio discurso, isto é, da verdade que ele carrega. 10. De acordo com Kuhn (1996, p. 10), o paradigma nas ciências não quer dizer uniformidade, mas normatização (ciência normal). Ademais, um paradigma já comporta no seu seio o seu próprio fim, pois se fosse explicação total do mundo ao invés de paradigma, não seria necessária qualquer ciência. A mudança nas estruturas do método ou do paradigma, entretanto, é contingente. Já para Popper (2008, p. 41), a ciência deve tentar falsear a sua teoria a todo o momento, pois toda ela [a teoria] é provisória. Quanto mais a teoria resistir, mas ela valerá. O que ocorre na dogmática, e mesmo nas ciências naturais, não é jamais a proposta de Popper, mas a de Kuhn; tenta-se confirmar o paradigma.

263 Bruno Lemos Hinrichsen Poder e sistema A modernidade guarda, ainda hoje, um resquício de cartesianismo em sua compreensão geral de si própria. Não há modernidade sem o cogito ergo sum 11 de Descartes (2009, p. 64), assim como não há direito sem ordem. Mas por que falar aqui nos princípios cartesianos do ser? Simples: pretende-se demonstrar como o paradigma da res cogitans (coisa pensante) ainda é tomado em primazia em relação à res extensa (coisa extensa) isto inclusive no direito e de duas formas. Hesíodo (2007, p ) afirma que mesmo do caos (χάος) pode vir a harmonia, a ordem (κόσμος); e que é impossível haver direito sem ordem isto já foi passado e repassado, entretanto ainda não se explicou o porquê disto. Pois bem, o motivo essencial diz respeito ao fato de a palavra grega κόσμος designar tanto ordem quanto harmonia, ou melhor, sistema harmonioso. Daí, se o direito diz-se um sistema, logo ele pressupõe a ideia de ordem. E sim, o direito reforça, a todo o momento, o seu caráter sistêmico. Acontece que, não fossem as leis escritas, os livros de doutrina, as decisões judiciais, dentre outras tantas funções e ferramentas judiciais, o direito seria tão só conceito. Nesta medida, é linguagem e poder-se-ia dizê-lo quer através do modelo da representação quer do uso e dos jogos de linguagem como todas as demais coisas (WITTGENSTEIN, 2008). Como sistema e linguagem que é, ele não pode deixar de criar um (seu) mundo jurídico; mundo ficto e convencionado. Assim, volta-se à questão da primazia da res cogitans. São duas as formas: (a) o modelo de abstração o faz ser uma coisa pensada por um sujeito pensante, cujas expectativas são de formar um sistema de pensamento racional em torno dela e, assim, poder conjecturar sobre suas raízes ontológico-metafísicas e sua relação com a verdade e o universal; (b) o modelo do uso histórico-contextual da linguagem faz com que seja necessário criar um modelo abstrato/abstraível no qual seja possível fomentar a perpetuação de um comportamento x desejado. O primeiro modelo é facilmente enquadrado dentro da tradição cartesiana da representação. É somente necessária a identidade no conceito e a diferença específica para poder organizar todas as coisas em grupos e subgrupos de coisas pensadas e existentes na medida em que se as pensa. 11. Tradicionalmente traduzido como penso, logo existo, o cogito ergo sum, quer dizer, na realidade penso, logo sou, como se nota da edição em francês (suis) e, mesmo, da palavra latina sum, cujo sentido inicial e primordial é ser. Observe-se (DESCARTES, 2009, p. 64): Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je suis, était si ferme et si assurée, que toutes les plus extravagantes suppositions des sceptiques n étaient pas capables de l ébranler, je jugeai que je pouvais la recevoir, sans scrupule, pour le premier principe de la philosophie, que je cherchais. Em tradução livre: E notando que esta verdade: eu penso, logo eu sou, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava.

264 264 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica O segundo, por outro lado, volta-se como uma simulação. Não mais existe o real, donde as coisas podem ser representadas em pensamento, mas um hiper-real, ou virtual (BAUDRILLARD, 1991). Este virtual, porém, é ainda uma res cogitans e nada mais pode ser. 12 Assim, o sistema jurídico simula, isto é, pretende ter o que não tem, quer dizer, realidade (BAUDRILLARD, 1991, p. 13): seriam estas as fases sucessivas da imagem: [...] ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro. A relação é simples, o sistema não é real, ele pretende-se como tal, mas nessa empreitada, ele assume o lugar do que simula e torna-se o modelo por excelência. Não há mais vida, por exemplo, mas regulação jurídica e tão somente morta de seres corpóreos e sociais. Isto é uma questão de discurso. O discurso toma o palco do acontecimento aleatório e faz-se em primazia, faz-se continuado (FOUCAULT, 2010, p. 8). Mas afinal, o que é esse sistema? De acordo com a teoria de Bertalanffy (2009, p. 240), o sistema é uma acepção de mundo como organização quer dizer, o sistema, ao passo em que é um mundo organizacional, é, em consequência, ordem. Por isso que o direito é um sistema. Mas, pressupondo que haja diferenças profundas entre os sistemas das ciências naturais e o da ciência social, Bertalanffy define (2009, p. 251): a ciência social tem de tratar com seres humanos no universo da cultura criado por eles. O universo cultural é essencialmente um universo simbólico. Luhmann (1984) aprofunda esta noção em suas obras, principalmente ao afirmar continuamente que os sistemas sociais são sistemas de comunicação 13. Observe-se: dizer que um universo é simbólico é afirmá-lo como referenciado por sinais, os quais, por sua vez, se reportam à compreensão e interpretação daquilo que simbolizam e isto, para Heidegger (2009, p ) é o ser-aí como poder-ser que já é. Ainda em Luhmann (1984, p. 191), o problema da comunicação está ligado ao da complexidade do sistema. Ao limitar sua linguagem, o sistema faz com que haja uma redução da complexidade em relação ao ambiente Afirma Baudrillard (1991, p. 8): É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real. [...] Algo desapareceu: a diferença soberana de um para o outro, que constituía o encanto da abstração. [...] O real é produzido a partir de células miniaturizadas, de matrizs e de memórias, de modelos de comando e pode ser reproduzido um número indefinido de vezes a partir daí. [...] É apenas operacional. Na verdade, já não é o real, pois já não está envolto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera. 13. Para aprofundar a noção da teoria dos sistemas, ver, também, Luhmann em das Recht der Gesellshaft (1993) e Luhmann em die Gesellschaft der Gesellschaft (1997). 14. Afirma Luhmann (1991, p. 191): Geht man von der Möglichkeit einer Theorie selbstreferentieller Systeme und von Komplexitätsproblemen aus, spricht viel dafür, das Einschränkungsverhältnis einfach umzukehren. Sozialität ist kein besonderer Fall von Handlung, sondern Handlung wird in sozialen Systemen über Kommunikation

265 Bruno Lemos Hinrichsen 265 E isto ocorre no sentido de que deve haver vários sistemas e subsistemas. Sempre em prol da hiper-especialização dos sistemas. Aumenta-se a complexidade, na medida em que se especializa e se cria um novo grupamento, mas, ao mesmo tempo, diminui-se a complexidade linguística interna. A isto se dá o nome de autopoiese que significa, por sua vez, produção de si próprio. O sistema produz e reproduz a si próprio, em algo muito semelhante à ideia de Baudrillard (1991), logo acima comentada. Ele faz com que a sua patologia seja provocada por elementos psicossomáticos não permite que haja nada, embora haja alguma coisa, e este algo exista como virtualidade. Isso permite a criação de um sistema burocraticamente organizado, já que todos os campos devem ser reduzidos a sistemas limitados por sua linguagem específica em dado momento histórico. E a burocracia aparece justamente para dividir e subdividir tarefas, para alocar e ordenar em operações menores, para agrupar e hierarquizar, para, enfim, aumentar e diminuir a complexidade em algo que parece um paradoxo. Kafka (2010) retrata com uma perfeição absurda as idas e vindas do modelo burocrático: cada um exerce sua função como se nada mais houvesse que não ela. Isto dá unidade ao discurso. Isto o permite forte para perdurar no tempo, sem modificação do paradigma; é o desejo do eterno. A burocracia, como maquinaria discursiva do sistema permite a formação de corpos dóceis: de militantes do sistema. Algo como a figura dos Agentes em Matrix (1999): sujeitos manipuláveis. Sobre isto, afirma Foucault (2009, p. 132): O Homem-máquina 15 de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Além disto, para completar o conceito de corpo-dócil, ao qual estão atrelados disciplina e dominação-sujeição, é interessante observar o que fala Foucault und Attribution konstituiert als eine Reduktion der Komplexität, als unerläßliche Selbstsimplifikation des Systems. Em tradução livre: Se se assume a possibilidade de uma teoria dos sistemas autorreferenciais e dos problemas da complexidade, há uma forte evidência de que a razão de restrição simplesmente inverta. Sociabilidade não é um caso especial de ação, mas a ação é constituída em sistemas sociais de comunicação e atribuição como uma redução de complexidade, como uma indispensável auto-simplificação do sistema. 15. O Homem-Máquina é um livro escrito por Julien Offray de la Mettrie.

266 266 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica (2009, p. 133): Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as disciplinas. No fim das contas, ele está indicando um problema que a maior parte (senão, toda ela) nunca comenta: há, no direito, um discurso que perpassa e permite a docilidade dos corpos; discurso que se faz através das disciplinas, do poder disciplinar, cuja técnica é a dominação. Pode-se, agora, passar adiante; à análise das relações entre poder e linguagem propriamente ditas, no que se chama vontade de verdade e produção do discurso. Nisto, exatamente, que Foucault aborda constantemente em sua obra. 7. Poder e linguagem O quadro geral já foi traçado: há um sistema jurídico, o qual exerce seu poder por uma base discursiva, fazendo valer como real as suas membranas hiper-reais, quer dizer, o virtual (como res cogitans subvertido pela carência do real, que não mais necessita de máscara e consolo). Isto implica dizer, assim como se fez e pretende-se aprofundar, que o sistema passa a valer como vida, vez que esta não mais existe propriamente. Acontece algo parecido nas redes sociais, a vida passa a ser a do avatar, não mais a de quem lhe empresta forma que, por mais estranho que pareça, passa a não mais ser. Este é o deserto do real anunciado por Baudrillard (1991). De acordo com Freud (1996, p. 384): Os sonhos se valem desse simbolismo para a representação disfarçada de seus pensamentos latentes. Aliás, muitos dos símbolos são, habitualmente ou quase habitualmente, empregados para expressar a mesma coisa. Não obstante, a plasticidade peculiar do material psíquico [nos sonhos] nunca deva ser esquecida. 16 E é aí que fica patente, não mais latente, que a sociedade é constituída de sonhos, ela é o próprio sonho da ordem. Mas, como sonho, não é real, é simulada: pretende ser o que não é! Simula uma simulação. Por quê? Observe-se com cautela: a partir do momento em que se predica a palavra direito de Estado (formando Estado de Direito ) e tem-se que este é constituído por um povo (sociedade) dentro de um território, nada mais se está fazendo do que alicerçando o mapa e os peões ante o real. O Estado é uma simulação porque o direito é uma simulação! O ordenamento jurídico é apenas um aparato discursivo ele é, sempre, linguagem. Mas, neste seu sentido primordial como discurso de poder (FOU- 16. O Homem-Máquina é um livro escrito por Julien Offray de la Mettrie.

267 Bruno Lemos Hinrichsen 267 CAULT, 1999, p. 28), ele opera o enfraquecimento linguístico na rigidez de seus fundamentos, dos arquétipos, de toda esta dogmática. Se o homem é sempre linguagem, isto é, esta é uma sua configuração ontológica (HEI- DEGGER, 2010, p. 07), logo não é possível que o homem não seja poder, certo? Daí, também não é possível que ele não seja direito, correto? Mas há um porém fundamental, nisto: o direito, enquanto regramento pode até ser uma categoria ontológica (não há como escapar), mas é notável que não passa de um símbolo, a tornar latente algo por trás de tudo o mais, ou seja, a vontade de verdade, enquanto vontade de poder (FOUCAULT, 2010). E, na dogmática jurídica, o procedimento é muito simples: ocorre um laço de comentários de comentários de textos inaugurais (por sua vez, já e desde um momento incompreensível, também comentários) que já não mais são conhecidos. Foucault (2010, p. 27) explica a condição dos comentários: [...] o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito. A repetição indefinida dos comentários é trabalhada do interior pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu horizonte não há, talvez, nada além do que já havia em seu ponto de partida, a simples recitação. 17 O importante é notar que o comentário é aquele que faz repetir com tom de novo e redescoberto o idêntico e o mesmo, nas caras simuladas da representação. Ele passa a ser o principal e, ao mesmo tempo, reforça a vontade de verdade sempre presente, do discurso continuado. Agora, entretanto, deve-se falar um pouco mais acerca da continuação do discurso e de sua relação com o poder. Durante a aula de 14 de janeiro de 1976 ministrada no Collège de France, Foucault aborda o que ele chama de a analítica do poder. Ali, logo no começo da aula, ele elabora uma inversão da verdade filosófica, quan- 17. [...] le commentaire n a pour rôle, quelles que soient les techniques mises em oeuvre, que de dire enfin ce qui était articule silencieusement là-bas. Il doit, selon um paradoxe qu il déplace toujours mais auquel Il n échappe jamais, dire pour la première fois ce qui cependant avait été déjà dit et répéter inlassablement ce qui pourtant n avait jamais été dit. Le moutonnement indéfini des commentaires est travaillé de l intérieur par le rêve d une répétition masquée: à son horizon, Il n y a peut-être rien d autre que ce qui était à son point de départ, la simple récitation.

268 268 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica do diz que na fundamentação do Estado Soberano Moderno, não há uma limitação de direito do poder pelo discurso de verdade, senão há uma produção do discurso de verdade pelo poder através das normas de direito. Coloca Foucault (1999, p. 28): quais são as regras de direito de que lançam mão as relações de poder para produzir discursos de verdade? Ora, o que ele faz neste momento é estabelecer uma tríade entre (a) poder, (b) direito e (c) verdade. Mas, ao contrário dos discursos de índole racionalista, ele propõe que tudo é uma questão de poder, e, sendo assim, de interesse. Afirma também isto se deve frisar desde já que o poder não tem um lugar (τόπος) estático e por excelência, como pressupõe a teoria clássica da soberania (cujo fundamento está no modelo ideal da limitação), mas ele [o poder] funciona, se exerce, circula e faz circular discurso isto ocorre na medida em que um discurso se sobressai ou não, se concentra ou não, toma aspecto de verdade ou não e, assim, passa a ter força (FOU- CAULT, 1999, p. 35). Atente-se: o direito, como sistema social e, portanto, comunicativo, é exercido por pessoas que vinculam e continuam um dado discurso na história. O ideal é que não haja muitas revoluções paradigmáticas e assim se estabeleça a ordem, fortalecendo a dogmática a partir dos comentários (de outros tantos comentários). Não obstante, o próprio Luhmann (1993), reconhece que podem surgir anomalias no sistema e este necessite evoluir. Evolução, todavia, não significa um avançar para o melhor, mas superar uma contingência (uma diferença) através de uma mudança x ou y. às vezes, contudo, a mudança supera as bases linguísticas do sistema e obrigam-no a diminuir sua complexidade isto é feito com a diferenciação funcional, cujo propósito é, também, instituir novo sistema (ou subsistema). Não é raro, portanto, que surja uma situação contingente cujo sistema deve absorver para continuar hegemônico. Assim, as diferenças são englobadas (quando possível) pela linguagem do sistema x ou y. Fica evidente que é de um modelo discursivo que se está falando. A dominação (e decorrente sujeição dos súditos, ou melhor, dos corpos) é realizada por uma continuação irrefletida dos discursos, que de tão espalhados e repetidos na rede da sociedade onde circula o poder, são dificilmente contrapostos por um modelo forte e indissolúvel. Entretanto, quando um perigo surge à continuação do discurso de verdade eleito, este deve, para prosseguir firme e sem que se lhe altere a substância, incluí-lo de forma fragmentada pelo (e no) antigo regime. Vez que o sistema autopoiético não se permite trabalhar com outra linguagem que não a sua própria, nada do que é introduzido é, verdadeiramente, diferente. Desta maneira, se se imagina um sistema A hipotético e uma contingência B, também hipotética, não é possível que B seja introduzido por A da forma como se lhe apresenta, pois a interação entre sistema e ambiente não ocorre através dos signos de B (ambiente), senão de A (sistema),

269 Bruno Lemos Hinrichsen 269 fazendo com que outra coisa seja incluída, uma terceira coisa. O papel do poder, neste caso, é manter-se de pé e o seu aparato é o discurso. Neste sentido, utiliza-se, a exemplo de Foucault (1999), das ferramentas jurídicas para produzir e reproduzir a verdade, fazendo com que o discurso continue um e o mesmo. O direito, dessa maneira, se caracteriza como o lugar de reprodução do impessoal na lei, na jurisprudência ou na doutrina. A intenção é perpetuação sistêmica, cuja possibilidade não há se não for mantido o discurso do ninguém (do todo mundo indefinido). Explica Heidegger (2009, p. 185): Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O impessoal, que responde à pergunta quem do ser-aí cotidiano, é ninguém, a quem o ser-aí já se entregou na convivência de um com o outro. Fica então esclarecida a característica primordial da dogmática como a de um causador (e ela própria em si mesma, também) do impessoal. Obviamente, enquanto se quiser falar em direito, em Estado de Direito e em segurança jurídica, ela será necessária, pois sem ela não há ordem: a dogmática é a própria ordem; ela é quem ordena o discurso. 8. Análise discursiva nas leis da educação no Brasil As leis da educação, para Montesquieu (1949, p ), têm primazia na recepção pelas pessoas (ainda na juventude), e preparam o indivíduo para ser um cidadão. Ela dá o delineamento da cultura de um povo, permite sua formação educacional (παιδεία). Montesquieu declara, então, que a educação se altera a depender do tipo de governo adotado por um país ou outro, tendo como princípio: (a) a honra, nas monarquias, (b) a virtude, nas repúblicas e (c) o temor, no despotismo. O trabalho aqui ganhará um novo rumo. Neste espaço, muito embora algumas teorias sejam trazidas à tona, o principal enfoque será uma análise foucaultiana dos recursos discursivos explícitos ou implícitos nas três Leis de Diretrizes e Bases da Educação no Brasil (1961, 1971 e 1996). É de notar, ademais, que a Constituição da República traz em seu bojo, como um princípio norteador que (BRASIL, 1988): Art A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Pois bem, em acordo com a tese de Montesquieu, a Lei Maior apresenta características de uma república e, de fato, é esta a definição de governo do Brasil: uma res publica (coisa pública), como indicara Cícero (1999). Ora, mas então, o que se questionar ainda neste trabalho? Pois é, de acordo

270 270 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica com as teorias apresentadas, em particular nas seções seis e sete, tentou-se evidenciar que há uma máscara para o discurso, o qual passa a todos os momentos, como o impessoal. E sim, há algo por trás, já de início, não só na Constituição, mas, outrossim, nas três leis aqui abordadas. O primeiro ponto diz respeito à ideia de regulamentação e disciplinamento dos corpos explorada por Foucault (2009). Na medida em que o art. 208 impõe a educação como um dever do Estado e chama isto de garantia, ele está, na realidade, simulando: não há uma garantia, pois a prática é a da dominação, ou seja, a de transformar em dóceis os corpos dos súditos nesta malha do poder através do discurso; tornar maleável e forte ao mesmo tempo este sujeito cujo corpo lhe é disciplinado. A ideia por trás é a de que se deve regular o ensino, se deve distribuir as disciplinas por interesses e, através disso, incluir a criança na linguagem. Garantir é, antes de tudo, regular e disciplinar; é tornar impessoal e para que o conceito fique claro e distinto, a dominação não é de um sujeito no topo de uma pirâmide em detrimento da alteridade sujeitada; longe disto! A dominação é um modelo que se dá na malha íntima, entre amigos, vizinhos, conviveres, nas prisões, nos hospitais, no escritório, nas escolas. E todos estes seguem esta voz do impessoal, a voz do ninguém: este, por sua vez, é a instituição, a própria base jurídica (FOUCAULT, 2010, p. 9). Afirma Coulanges (1937, p. 365): O govêrno denominou-se alternativamente monarquia, aristocracia, democracia; mas nenhuma dessas revoluções deu aos homens a verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados, poder ser arconte, eis o que se chamava liberdade; mas o homem estava subordinadíssimo ao Estado. Neste sentido, vez que nada disso mudou radicalmente nas sociedades modernas (a não ser a tendência econômica ao ter em substituição ao ser) o Estado, para manter-se como centro, não cedendo completamente às grandes corporações capitalistas, necessita ordenar o discurso em função do capital ou de termos mais genéricos e abstratos, como o bem comum que nada mais quer dizer que o Estado ele mesmo (MIAILLE, 2005, p ). Isto, entretanto, não faz com que a sociedade dos desejos seja menos subordinada ou mais livre que outras quaisquer de outrora: os desejos são impostos como realidade e clausura pelo Estado soberano, por um poder que não é só seu, mas é em si concentrado por acaso, por costume, hábito político: o poder da palavra; o ritual da palavra sagrada do direito.

271 Bruno Lemos Hinrichsen 271 Para se observar como o disciplinamento, a docilidade e a inserção no mesmo, são importantes para o sistema, independentemente de qual seja ele, demonstra-se o caráter da obrigatoriedade do ensino em ambiente escolar. Pois bem, em todas as leis a palavra obrigação está presente quer naturalmente quer por uma parônima. Na Lei de 61 (BRASIL, 1961), a palavra obrigação e suas parônimas aparecem 23 vezes ao todo. Por exemplo: (a) obrigatoriedade do ensino primário, o art. 27; (b) ao incentivo (no grau primário), no art. 28, b, e à obrigação (no grau médio) da frequência em sala de aula, no art. 38, VI: Art. 27. O ensino primário é obrigatório a partir dos sete anos e só será ministrado na língua nacional. Para os que o iniciarem depois dessa idade poderão ser formadas classes especiais ou cursos supletivos correspondentes ao seu nível de desenvolvimento. Art. 28. A administração do ensino nos Estados, Distrito Federal e Territórios promoverá: b) o incentivo e a fiscalização da freqüência às aulas. Art. 38. Na organização do ensino de grau médio serão observadas as seguintes normas: VI - freqüência obrigatória, só podendo prestar exame final, em primeira época, o aluno que houver comparecido, no mínimo, a 75% das aulas dadas. Já na Lei de 71 (BRASIL, 1971), repete-se 15 vezes. Por exemplo: (a) inclusão da disciplina educação moral e cívica, enaltecendo o caráter nacionalista, o art. 7º; (b) aconselhamento vocacional e orientação educacional, o art. 10, contribuindo ao tecnicismo que se construirá daí em diante no cenário nacional; (c) ao grau primário, art. 20: Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de lº e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969.

272 272 Direito e discursividade: aparatos de saber, controle e dominação linguística na dogmática jurídica Art. 10. Será instituída obrigatòriamente a Orientação Educacional, incluindo aconselhamento vocacional, em cooperação com os professôres, a família e a comunidade. Art. 20. O ensino de 1º grau será obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo aos Municípios promover, anualmente, o levantamento da população que alcance a idade escolar e proceder à sua chamada para matrícula. Por fim, na Lei de 96 (BRASIL, 1996), são 32 vezes que a palavra e seus parônimos aparecem. Por exemplo: (a) ensino fundamental, art. 4, I; ensino de recuperação, art. 24, V, e; inclusão de filosofia e sociologia no ensino médio, art. 36, IV. Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: V - a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios: e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos; Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes: IV serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. Fica patente, que a educação não é uma escolha; a criança não está ali por sua vontade. Tudo gira em torno da perpetuação do discurso, do prolongamento do paradigma. E não há melhor ambiente para operar a anátomo- -política (entenda-se, disciplina) do que no ambiente escolar, na criança,

273 Bruno Lemos Hinrichsen 273 na própria formação agora, do homem-máquina. Mas um ponto surge destoante: a filosofia e a sociologia não só foram introduzidas (isto porque em 1961 elas eram de ensino facultativo, em 1971 elas foram proibidas, tornadas facultativas novamente em 1996, vetada a proposta de lei cujo teor compunha a obrigação delas em 2001 e feitas disciplinas obrigatórias em 2008), como se tornaram matérias obrigatórias. Bem, isto não é muito difícil de explicar. Houve uma evolução sistêmica: surgiu uma contingência e ela foi introduzida dentro dos modelos da teoria de Luhmann (1984). Além do mais, este procedimento é uma ótima forma de dominação por apaziguamento, mas ainda assim dominação. As palavras são utilizadas com ambigüidade (Heidegger, 2009, p ), isto é, sem que se lhes defina completamente o sentido provocando, desta maneira, algo como o duplo-pensar (doublethink) em 1984 de Orwell (2009). Da mesma forma, uma vez que o sistema (o direito em si mesmo) procura o impessoal e a mesmidade no discurso de verdade continuado por laços de comentários, operando uma redução da complexidade (inclusive comunicativa), é possível falar na escola como local não da expansão de conhecimentos, senão da novilíngua (newspeak), também conceito de Orwell (2009) e que tem a ver exatamente com a redução do léxico, operada por jogos de linguagens. 9. Conclusão As ciências dogmáticas jurídicas adquirem seu estatuto da ordem, isto é, da ideia de sistema harmonioso, o que significa direito. Portanto, o que elas operam, sempre e cada vez mais, é uma observação limitada do acontecimento (e mesmo do acontecimento jurídico), já que tenta trabalhar os seus problemas a partir de casos concretos dados pelo próprio ordenamento. As tentativas dogmáticas, a maior parte das vezes ligadas à atividade filosófica ao menos de forma referencial, foram insuficientes, justamente devido à sua função de limitação da abertura de mundo, em função das práticas discursivas em prol da impessoalidade e da dominação (institucional). Diante deste quadro, obteve-se ainda como resultado, a ideia de que mesmo a produção legislativa (na qual se iguala à jurisprudencial vez que ambas são atividades de decisão) ocorre uma confluência entre redução de uso linguístico e atividade meio. Os momentos de decisão (lei e jurisprudência) são, justamente, os espaços para se operar propriamente a dogmática, ou seja, fazer imperar interesses discursivos de um poder incomunicável. Referências ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation: die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p.

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278 Parte IV INTERAÇÃO EM CONTEXTOS LEGAIS

279 13 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais 1. Introdução Sabrina Silveira de Souza Jorge Universidade Federal de Santa Catarina Uma discussão sobre coerência textual envolve a abordagem de termos como coerência local (coesão) e coerência global. A coesão e/ou coerência local em um texto diz respeito a inter-relação entre segmentos discursivos adjacentes 1 (LOUWERSE & GRAESSER, 2005, p.2). Por outro lado, a coesão e/ou coerência global é compreendida como a inter-relação de grandes trechos de um discurso 2 (ibid., p.2). Pesquisas nesta área mostram que problemas na coerência local e global de um texto podem levar à interpretação errônea do mesmo (MURRAY,1995). De acordo com o autor, a coerência local de um texto pode ser facilitada por marcadores discursivos como marcadores sequenciais, indicadores de relevância e conectores que indicam lógica como e, mas e porém. Em relação aos conectores, Goldman & Murray (1992 apud MURRAY, ibid.) corroboram outras pesquisas que afirmam que a presença de conectores é essencial para a adequada compreensão de um texto, uma vez que o torna mais claro. Da mesma forma, Al-Surmi (2011) afirma que: Embora vários estudos tenham investigado o papel dos marcadores discursivos no intuito de estabelecer uma representação discursiva coerente, ainda não houve um consenso à respeito de que estes marcadores facilitem a compreensão de um texto ou não (p. 1673) Minha tradução para: the interrelatedness between adjacent discourse segments. 2. Minha tradução para: the interrelatedness of larger spans of discourse. 3. Minha tradução para: although several studies have investigated the role of discourse markers in establishing a coherent discourse representation, there is still no consensus on 279

280 280 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais De acordo com o autor, estudos realizados por Chung (2000) investigaram a contribuição de marcadores discursivos e frases iniciais em parágrafos a níveis de compreensão micro e macro de um texto. Em diferentes versões de um mesmo texto com e sem marcadores discursivos enviadas a participantes de uma pesquisa, Chung (ibid.) observa que marcadores discursivos ajudaram na compreensão total das informações fornecidas em um texto, por exemplo, em relação à uma leitura no nível da macro estrutura do mesmo. Porém, não foi observado um grande efeito a nível de micro estrutura entre os segmentos dos textos 4 (Al-SURMI, ibid.). Este estudo tem como objetivo a analise de textos elaborados por oficiais da policia militar responsáveis por registros de ocorrências criminais com foco no aspecto de coerência local e global destes textos. Os registros dessas ocorrências podem ser realizados em duas situações diferentes. Uma é quando vítimas, suspeitos e/ou testemunhas prestam depoimento a um policial em uma delegacia de polícia (polícia civil). A outra é quando o policial (polícia militar) registra uma ocorrência criminal na qual ele esteve presente, como testemunha de um caso o qual ele foi solicitado a prestar auxílio. A escolha de uma pesquisa sobre a análise deste tipo de gênero textual dá-se por sua significância como prova dos fatos ocorridos, uma vez que traz informações sobre um acontecimento. Sendo assim, pode-se entender que, um texto que relata uma ocorrência criminal que apresente problemas de coesão e coerência podem levar os leitores a restrições de compreensão do mesmo, e que isto, consequentemente, pode afetar o rumo das investigações de um crime já na etapa preliminar, que é a da investigação policial. De acordo com o que foi discutido acima, este estudo compromete-se a testar a hipótese de que problemas de compreensão de um texto que relata uma ocorrência criminal podem afetar a percepção do leitor a respeito dos fatos ocorridos, devido a falhas de elementos de coesão que favoreçam a coerência textual. Ao longo deste capítulo, as seguintes perguntas serão respondidas: a) Como os aspectos de coerência local e global em um texto interagem na busca do significado do mesmo? b) Até que ponto problemas de coerência local e global em um texto privam o leitor de sua compreensão? c) Quais são as supostas implicações decorrentes de problemas de coerência local e global presentes em textos de relatos de ocorrências criminais? A fim de responder tais perguntas, o presente capitulo está organizado da seguinte maneira: Inicialmente, serão apresentados conceitos de coerência local e global bem como uma discussão de como elementos de coesão textual interagem na busca por coerência em um texto. Em seguida, serão fornecidas informações sobre estudos a respeito da analise linguística de whether discourse markers facilitate reading comprehension or not. 4. Minha tradução para: discourse markers enhance the understanding of the overall representation of the information in a given text, i.e. at macrostructure level of reading, but having no effect at the microstructure level between the segments of reading texts.

281 Sabrina Silveira de Souza Jorge 281 relatos de ocorrências criminais por policias, estudos estes que destacam a relevância de pesquisas sobre o assunto. Na sequência, haverá a descrição e comentários sobre os resultados dessa pesquisa objetivando verificar a hipótese mencionada. Por fim, com base nos resultados obtidos na pesquisa, a conclusão da mesma discutirá sobre a importância de relatos policiais de ocorrências criminais apresentarem uma estrutura textual coerente para beneficiar as investigações criminais que serão realizadas utilizando informações fornecidas nos mesmos. 1.1 Coerência local e global em textos Com o intuito de investigar a precisão do relato dos fatos de um crime em registros de ocorrências criminais, este estudo tem por objetivo observar como coerência local (coesão) e coerência global são estabelecidas nesse gênero textual. Em uma discussão a respeito de coerência e coesão textual, Louwerse & Graesser (2005) falam sobre diferentes abordagens na tentativa de conceitualizar esses termos. Como mencionado anteriormente, enquanto a coesão textual acontece quando pequenas unidades de um texto fornecem continuidade na estrutura das palavras e frases do mesmo, a coerência textual diz respeito à inter-relação encontrada em um texto que fornece continuidade em sentido e contexto do mesmo. De acordo com os autores: Coerência pode ser observada por sua relação conceitual, relação esta que os leitores estabelecem a fim de construir uma representação mental coerente do que encontra-se presente em um discurso. Por outro lado, coesão limita-se aos marcadores linguísticos que dão pistas ao leitor de como ele pode construir estas representações de coerência. Em outras palavras, a coesão enfatiza o discurso-como-produto e a coerência enfatiza discurso-como-processo (2005, p.2) 5 É mediante essa visão que os termos coerência local (coesão) e global são discutidos neste estudo. O primeiro se refere à coesão textual advinda da inter-relação entre sequências de textos enquanto a última diz respeito a grandes extratos do discurso que podem ser exemplificadas como sequências de ações demarcadas e estruturas retóricas da narrativa (tais como cenário + conflito + enredo + resolução), de textos expositores (como rei- 5. Minha tradução para: Coherence can be reserved for the conceptual relationships that comprehenders use to construct a coherent mental representation accommodated by what is said in the discourse. Cohesion is limited to the linguistic markers that cue the comprehender on how to build such coherent representations. Cohesion emphasizes discourse-as-product, and coherence emphasizes discourse-as-process.

282 282 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais vindicação + evidencia, problema + solução), e de outros gêneros discursivos 6 (Louwerse & Graesser, 2005, p.2). Sendo assim, diante do que foi abordado acima, relatos policiais de ocorrências criminais devem seguir a estrutura de uma narrativa, uma vez que têm a intenção de descrever a ocorrência dos fatos. No entanto, se eles apresentarem falhas em termos de coerência (local e global), os leitores do texto poderão ter problemas para compreendê-lo, e, consequentemente, irão interpretar os fatos ocorridos (ou relatados por uma testemunha, vitima ou suspeito, se for o caso) de forma errônea. 1.2 A relevância de estudos de relatos de depoimentos na fase policial Inquéritos policiais são instaurados com o objetivo de realizar uma investigação criminal e assim obter provas sobre um crime. Além das provas materiais de um crime, como por exemplo, aquelas obtidas através do exame de corpo delito em um caso de violência, existem também as provas verbais, que dizem respeito aos relatos dos depoimentos registrados por um oficial de polícia. Conforme exposto anteriormente, esses relatos podem tanto ser provenientes das coletas de depoimentos realizadas em uma delegacia policial (polícia civil), ou podem ser registros do próprio policial (polícia militar) no papel de testemunha de uma ocorrência. Nos casos dos depoimentos coletados nos departamentos de polícia, em alguns países, como Inglaterra e Estados Unidos, eles são gravados por áudio e vídeo e mais tarde uma transcrição destes registros é lida no tribunal. Porém, no Brasil, a maioria desses registros ainda é realizada por escrito por um oficial de policia. A importância da precisão no registro do que é relatado pelo depoente é enfatizado por Holt (2010), que afirma que: Registrar, contrastar, formular e repetir é crucial no processo de formular os fatos de uma ocorrência. Tais práticas permitem momentos de elaboração dos fatos que revelem uma versão da realidade, atuando como parte importante em um caso judicial (p. 35). 7 No entanto, há estudos a respeito da precisão e confiabilidade do registro de depoimentos coletados por um oficial de polícia (ALDRIDGE; BEN- NEWORTH; HAWORTH; MACLEOD, 2010). Pesquisas indicam que registros de depoimentos de suspeitos que são apresentados como evidências 6. Minha tradução para: scripted action sequences and the rhetorical structures of narrative (such as setting + conflict +plot + resolution), expository (such as claim + evidence, problem + solution), and other discourse genres. 7. Minha tradução para: reporting, contrasting, formulating and repeating are at the heart of the process of formulating the facts of the legal story. Their use produces important factmaking moments that distil and encode a version of reality, which play an important part in the legal case.

283 Sabrina Silveira de Souza Jorge 283 criminais não são representações precisas e fieis às palavras dos depoentes 8 (HAWORTH, 2010, p.180). Mais especificamente, os depoimentos coletados sobre uma ocorrência criminal em uma investigação policial podem sofrer alterações que resultam em inconsistências apresentadas no registro policial. Acredita-se que tais inconsistências podem ocorrer devido ao processo de recontextualização de um texto. Vista como um ato de controle (BAUMAN & BRIGGS,1990 apud ROCK, 2010, p.128), a recontextualização envolve a troca de um elemento linguístico em um texto, discurso, gênero ou estilo encaixando-o em um outro texto, discurso, gênero ou estilo e, crucialmente, alterando o seu uso e ambiente e assim, criando novos significados 9 (LINELL,1998 apud ROCK, 2010, p.128). Fairclough (1995) afirma que as escolhas linguísticas pelas qual os eventos são representados e transformados dependem dos objetivos, dos valores e prioridades da comunicação na qual eles estão recontextualizados 10 (FAIRCLOUGH, 1995 apud ROCK, ibid,). Estudos sobre a hibridade de textos que constituem evidencias criminais trazem informações relevantes sobre esse assunto. Por exemplo, Rock (ibid) faz comentários significativos a respeito da construção de textos escritos obtidos de depoimentos de vítimas, testemunhas e/ou acusados em uma investigação policial. A autora relata também como esta segunda versão (texto escrito) pode comprometer a busca por evidências concretas de uma ocorrência criminal. Rock (ibid) afirma que os textos decorrentes da coleta de depoimentos sofrem uma permanente recontextualização uma vez que o policial e o depoente aparecem engajados em uma conversa a respeito dos fatos ocorridos no qual a versão dada pelo depoente parece estar constantemente em mudanças (JOHNSON, 2008b apud ROCK, 2010). Por outro lado, há os registros de ocorrências realizadas pelo próprio policial que atua como testemunha de um caso no qual ele estava responsável por intervir no mesmo. Este trabalho é geralmente feito pela policia militar que registra os fatos e coleta depoimentos de envolvidos no local da ocorrência. Porém, esses registros também serão analisados como prova documental de uma investigação criminal, e por esta razão, também devem apresentar um grau de coerência que permita clareza dos fatos ocorridos. Um estudo realizado a respeito da utilização de dêixis em textos de relatos de ocorrências criminais por oficiais da polícia militar revelou a presença de complicações na estrutura dos textos que não contribuíam para o necessário grau de esclarecimento dos relatos ali encontrados. A conclusão deste 8. Minha tradução para: police suspect interviews as presented as evidence are still not accurate and faithful representations of the interviewee s words. 9. Minha tradução para: recontextualisation involves both shifting and changing something in one text, discourse, genre or style by slotting it into another text, discourse, genre or style and, crucially, altering its use and environment and creating new meanings. 10. Minha tradução para: on the goals, values and priorities of the communication in which they are recontextualised.

284 284 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais trabalho despertou o interesse em realizar um estudo de caso onde alguns dos dados analisados pelo autor fossem colocados à disposição de participantes a fim de conferir o entendimento dos mesmos sobre eles, baseado na forma que ocorrências criminais são relatadas e descritas. Com base no exposto, este capítulo busca enfatizar a importância de análises linguísticas de textos de registros de ocorrências criminais realizados por oficiais de polícia, sendo eles da policia civil ou militar, com o intuito de apontar problemas na construção dos textos que possam levar a uma errônea interpretação dos fatos ocorridos. 2. Método Objetivando averiguar a compreensão de relatos de ocorrências criminais registrados por policiais, este subcapítulo apresenta os participantes, o material e os procedimentos adotados nesta investigação. 2.1 Participantes Os participantes da pesquisa foram quatro brasileiros, falantes nativos da língua portuguesa com terceiro grau completo, os quais serão citados como P1, P2, P3 e P4. A escolha do perfil dos participantes quanto ao nível educacional foi baseada na expectativa dessas pessoas terem maior probabilidade de serem leitores com proficiência, e consequentemente, terem uma melhor compreensão dos textos. Além disso, como leitores proficientes, eles teriam mais chances de se aproximarem dos leitores reais deste tipo de texto, que supostamente compartilham do mesmo nível educacional, e assim, com as mesmas possibilidades de compreensão textual. Por leitores reais, subentendem-se delegados de polícia e juízes responsáveis pela análise de documentos para a instauração de um inquérito policial e pela decisão de condenação de um acusado de um crime, respectivamente. 2.2 Material Os dados para análise usada neste estudo são três textos de registros policiais de ocorrências criminais realizadas por oficiais da policia militar de Minas Gerais (apêndice A). Por razões éticas, e como já mencionado, é importante ressaltar que o material usado neste estudo é parte dos dados usados em uma dissertação de Mestrado (Tristão, 2007) que utilizou os textos como objeto de análise. Os textos usados aqui foram escolhidos de um total de 20 registros policiais disponíveis na dissertação. Estes registros foram elaborados por policiais no local das ocorrências na tentativa de relatar os fatos ocorridos. Os textos utilizados para este estudo foram escolhidos por esta pesquisadora de acordo com seus aparentes níveis de compreensão textual, sendo o Texto 1 considerado o mais claro de todos e o Texto 3, o mais problemático em termos de descrição dos fatos. De acordo com Tristão (ibid.), todas as informações

285 Sabrina Silveira de Souza Jorge 285 pessoais sobre os sujeitos envolvidos nas ocorrências criminais foram modificadas a fim de preservar as suas confidencialidades. Sendo assim, os nomes dos sujeitos envolvidos nas histórias dos Textos 1, 2 e 3 são ficcionais. 2.3 Procedimentos Três textos contendo relatos de ocorrências criminais realizados por policiais militares foram enviados por correio eletrônico aos quatro participantes da pesquisa juntamente com instruções a serem seguidas para a realização de uma atividade com o intuito de verificar a compreensão dos mesmos dos textos (apêndice B). Para a realização dessa atividade, eles deveriam ler os três textos (Textos 1,2 e 3) quantas vezes fossem necessárias. Logo após as leituras, os participantes foram orientados a responder perguntas gerais e específicas sobre os relatos presentes nos textos. Para o Texto 1, haviam 8 perguntas, para o Texto 2, 6 perguntas e para o Texto 3, 8 perguntas. A atividade foi desenvolvida a fim de verificar a compreensão dos participantes a respeito dos textos em níveis de coerência local e global. Algumas perguntas foram feitas para investigar a compreensão dos participantes à respeito de marcadores de coesão a fim de testar a eficácia destes marcadores (ou da falta deles) no estabelecimento de uma coerência textual que promovesse a compreensão dos textos. Mais especificamente, de observar se elementos de coesão utilizados (ou não) na construção das narrativas que descrevem uma ocorrência criminal, a sequência das ações e a estrutura retórica da narrativa afetavam o processo de coerência global, atrapalhando a compreensão dos textos. 3. Resultados Os resultados da pesquisa fornecidos abaixo tem relação com as respostas das atividades realizadas pelos participantes da mesma (apêndice B). 3.1 Texto 1 A narrativa do Texto 1 é a de um roubo de uma camiseta de um torcedor de um time de futebol. Quando perguntados sobre qual era o evento (questão 1), todos os quatro participantes forneceram respostas que mostraram a compreensão dos mesmos desse fato. Mais especificamente, P1, P2 e P4 reconheceram que o furto era o de uma camisa de um time de futebol. Quando perguntados sobre quem vossa presença se referia no texto (linha 10/11), todos os participantes concordaram que tal forma de tratamento fazia menção ao Delegado de Polícia. Além do mais, todos os participantes compartilharam a ideia de que quem foi levado ao Delegado foi o agressor. Porém, quando perguntados sobre quem eles acreditavam que havia relatado os fatos, (questão 2-c), P1 e P4 afirmaram que havia sido o oficial de policia. No entanto, P3 e P4 afirmaram que foi o agressor. O mau entendimento deste segmento do texto pode estar relacionado ao uso da voz passiva que

286 286 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais omite o sujeito da ação conforme podemos perceber nas linhas 7, 8, 9 e 10. Quando perguntados sobre o local da ocorrência, P1, P2 e P3 responderam que a mesma ocorreu em um bar chamado bar 30. Porém, P4 demonstrou dúvida e respondeu que foi nas imediações do bar 30. Na verdade, esta afirmação não está clara no texto, como podemos ver na linha 3, quando o policial relata que: quando ao nos aproximarmos do Bar 30, deparamos com uma briga generalizada. No que diz respeito à coerência local, ou seja, os elementos de coesão que fazem as relações entre as ideias do texto, o pronome obliquo lo, na linha 6, parece fazer menção ao agressor. Porém, esta referência não é feita com clareza, uma vez que não especifica se lo remete ao agressor ou a vitima, mencionados na frase anterior. Neste caso, o leitor pode inferir que lo se trata do agressor somente porque, provavelmente, seria o agressor que tentaria fugir do local, como demonstrado em o mesmo tentou se evadir do local (linhas 6 e 7). Além do mais, o uso da referência anafórica o mesmo (linhas 6 e 12) não deixa claro a quem esta se refere, ou seja, se ao agressor ou à vitima. De qualquer forma, todos os participantes tiveram a mesma compreensão sobre esta questão, ou seja, de que se referia ao agressor. Outras referências feitas a elementos do texto como o produto do furto (linha 9) referindo-se a camiseta roubada e o autor da resistência (linha 10) referindo-se ao agressor, também pareceram confundir os leitores na tentativa de compreender o desenrolar da história. No entanto, embora elementos de coesão, tais como os elementos anafóricos citados acima, não estejam sendo utilizados de forma apropriada no texto, os leitores puderam chegar às mesmas conclusões por dedução, baseadas em seus conhecimentos de construção textual. Vale ressaltar que, inferências textuais comuns no processo de compreensão de um texto são foco de algumas pesquisas (por exemplo, BARETTA et. all, 2009; GRAES- SER & KREUZ, 1993, dentre outros) e seu estudo deve ser considerado relevante em um estudo mais aprofundado da compreensão dos textos de relatos de ocorrências criminais feitos por policiais. Apesar de os participantes demonstrarem apresentar algum grau de dificuldades de compreensão dos fatos, eles foram capazes de fornecer respostas que demonstraram o entendimento do que se tratava a ocorrência. Entretanto, quando indagados se concordavam com a existência de elementos no texto que colaboravam com a má interpretação do mesmo (questão 4), P1 e P4 forneceram respostas similares que suscitaram a ideia de que o texto, por apresentar desordem no relato dos fatos, parecia confuso. P2 e P3 também relataram ter encontrado dúvidas sobre partes da história que diziam respeito sobre onde o evento ocorreu bem como as identidades dos sujeitos envolvidos na ocorrência. 3.2 Texto 2 O Texto 2 fala de uma pessoa que foi encontrada com uma substância química similar à maconha. De acordo com o que o policial registrou na

287 Sabrina Silveira de Souza Jorge 287 ocorrência, ele e outros policias decidiram ir à residência desta pessoa, embora não esteja claro se o suspeito estava junto com eles ou não. No local, o policial conversou com uma mulher que parece ser a esposa do suspeito. Quando os participantes da pesquisa foram indagados a respeito do que se tratava o caso (questão 1), todos os quatro participantes compreenderam que tratava-se de uma pessoa que foi encontrada com posse de drogas. Alguns puderam até mesmo identificar o nome da substância, conforme sugerida no texto. Os participantes também compreenderam que o policial foi à residência de alguém procurar por mais drogas. No entanto, nenhum deles soube dizer de quem era esta residência. P3 mencionou que o policial foi ao lugar indicado pelo suspeito e P4 afirmou que os policiais foram à residência de uma pessoa chamada Guilherme, afirmando não estar ciente de quem se tratava. Na verdade, da forma pela qual Guilherme é mencionado no texto não fica claro se ele era o que vendeu a droga ao acusado ou se era o filho do mesmo. Por outro lado, P2 compreendeu que Guilherme era o traficante. No registro do policial, Guilherme foi citado como sendo o filho da Sra Rosa Inês, como podemos ver na linha 8 do texto: mãe do Guilherme. No entanto, o uso de do, como referência anafórica, sugere que Guilherme já foi mencionado na história, embora isto não tenha acontecido. Este pode ser apontado como o mau uso de um elemento de referência que contribui para problemas de coesão textual, sendo o que provavelmente causou duvida em P4 a respeito da participação de Guilherme no ocorrido. Nenhum dos participantes apresentou problemas em compreender o local onde os fatos ocorreram. Porém, quando indagados a respeito do relacionamento da Sra. Rosa e do acusado (questão 2-b), P1 respondeu que ambos moravam juntos, P2 respondeu que eles não tinham nenhuma relação e P3 ficou em dúvida se eles poderiam ser casados ou simplesmente mãe e filho, mas que definitivamente moravam na mesma casa. P1 e P3 provavelmente deduziram que ambos moravam juntos pelo uso no texto do pronome demonstrativo sua em sua residência, que aparece duas vezes no texto (linhas 7 e 8), como referência a casa de José João (linha 7) e logo após, a casa da Sra. Rosa (linha 8). Os pontos mais obscuros do texto foram apontados pelos participantes P2 e P4 que demonstraram não ter certeza de quem era o consumidor, e quem era o traficante da droga. Finalmente, quando indagados sobre o que os levou a tais possíveis más interpretações dos fatos (ou de partes deles), os participantes relataram que era a forma confusa pela qual a ocorrência foi relatada. 3.3 Texto 3 O Texto 3 foi definitivamente aquele que mais apresentou problemas de coesão textual, e assim, de coerência, o que desfavorece a sua compreensão. A história relatada neste texto é a de uma pessoa que tentou invadir a residência que costumava morar com sua ex- esposa para levar a filha para passear. Esta pessoa foi acusada pelo policial de ter usado documentação falsa que

288 288 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais permitisse que ele pegasse a sua filha. Quando os participantes foram indagados sobre o que achavam que tinha acontecido (questão 1), todos mostraram dificuldades de compreensão. P1, P2 e P3 fizeram o uso de expressões tais como, eu acho, me parece e eu não tenho certeza, respectivamente. Por outro lado, P2 usou um ponto de interrogação no meio de sua resposta que também mostrou a sua dúvida em relação ao que foi relatado na ocorrência. Quando indagados sobre a que a expressão fatos ocorridos (linhas 19 e 20) se referia, eles afirmaram compreender que dizia respeito à invasão do homem na sua ex-residência. Porém, P4 afirmou não ter compreendido, relatando que o texto se apresentava confuso. Na tentativa de conferir como a coerência local é estabelecida no texto, os participantes foram solicitados a responder a respeito da identidade dos sujeitos envolvidos na ocorrência (questão 2). Com respeito a Jose Aritmeia, todos os participantes responderam que ele era o pai da garota. Porém, P1 afirmou que não estava certo se ele era mesmo o proprietário do apartamento, devido a informação que não parece clara no texto, descrita nas linhas 4 e 5. No entanto, todos os participantes identificaram facilmente os outros sujeitos envolvidos no ocorrido, como a ex-esposa e a empregada. Assim como nas atividades dos Textos 1 e 2, quando questionadas sobre o que poderia levar o Texto 3 a parecer confuso, P1, P2 e P3 mencionaram a falta de pontuação como a causa principal para que isso ocorresse. Mais especificamente, P1 mencionou que o texto possuía frases sem sentido e P3 relatou que elas eram muito longas. 4. Discussão Resultados finais mostraram que todos os participantes da pesquisa encontraram nos textos 1, 2 e 3 problemas que afetaram suas compreensões dos mesmos, em diferentes níveis, como pode se observar nas discussões acima. Embora os textos tenham apresentado problemas no estabelecimento de referências anafóricas como elementos que prevalecem a coesão e a coerência textual, a compreensão das partes significantes da história, as identidades dos sujeitos envolvidos na ocorrência bem como a relação estabelecida entre eles foram parcialmente compreendidas. Este fato pode ser justificado com base na afirmação de que somente elementos de coesão não são suficientes para a interpretação de um discurso. Os leitores criam inferências baseadas em seu conhecimentos prévios e em obstáculos para a compreensão de um discurso 11 (LOUWERSE & GRAESSER, 2005, p. 2). Porém, de acordo com os autores, embora elementos de coesão sozinhos não devam ser responsáveis pela coerência textual, a área da psicolinguística tem mostrado que a presença destes elementos facilitam a coerência textual 12 (ibid, p. 2). 11. Minha tradução para: cohesion alone is not sufficient for the interpretation of the discourse. Comprehenders generate inferences on the basis of background knowledge and discourse constraints. 12. Minha tradução para: although cohesion alone cannot fully account for coherence in discourse, the psycholinguistic literature has shown that cohesion facilitates coherence.

289 Sabrina Silveira de Souza Jorge 289 Esta afirmação é corroborada pelos resultados deste estudo que mostram que os participantes da pesquisa obtiveram, em níveis diferenciados, dificuldades de compreensão dos fatos ocorridos e relatados pelos policiais. Assim, como conclusão, pode-se dizer que a hipótese deste estudo foi confirmada. Mais especificamente, que os leitores dos textos 1, 2 e 3 sofreram problemas ao tentar compreendê-los devido a falhas no uso de elementos que permitem a coerência local e global. Como consequência, isto pôde afetar as suas percepções dos fatos presentes nas ocorrências criminais através da forma pela qual eles foram relatados e descritos pelos policiais. Apesar de se tratar de um estudo de caso, vale ressaltar que, se os responsáveis por avaliar os registros das ocorrências criminais analisados nesta pesquisa compartilharem do mesmo grau de compreensão dos participantes, a falha na descrição de detalhes importantes sobre os casos nos registros policiais, tais como, quem eram os suspeitos dos crimes, consequentemente, poderiam causar prejuízos a pessoas acusadas de um crime dos quais não são responsáveis. 5. Considerações finais A análise linguística de textos com registros de ocorrências realizadas por policias, sendo eles provenientes da polícia civil ou militar, pode trazer relevantes considerações sobre como a forma a qual o relato de um crime é descrito pode influenciar na decisão legal de um caso. O estudo realizado mostrou algumas considerações que demonstram problemas de interpretação dos relatos das ocorrências criminais realizadas por um oficial de policia. Diante disso, essa investigação tem por objetivo contribuir para a consciência da necessidade da melhoria na elaboração desse tipo de texto, como um documento importante que costuma servir de base para uma investigação criminal. As limitações deste estudo podem ser atribuídas ao fato de que os participantes do estudo não compartilhem do mesmo conhecimento de um delegado de policia ou de um juiz, por exemplo, que estão acostumados com a leitura deste tipo de documento. No entanto, isto não exatamente garante que eles possam compreender os relatos de um texto que apresente falhas em aspectos de coesão e coerência textual. Finalmente, um estudo deste tipo pode não somente despertar a necessidade para outros estudos na área de coerência local (coesão) e global em textos, mas também pode sugerir outros tipos de análises linguísticas do mesmo tipo de texto que venham abordar outros aspectos relevantes a respeito da elaboração destes textos. Referências ALDRIDGE, M. Vulnerable witnesses in the criminal justice system. In: COULTHARD, R. M. & JOHNSON, A. (Org.) The routledge handbook of forensic linguistics. London: Routledge, p

290 290 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais AL-SURMI, M. Discourse markers and reading comprehension: Is there an effect? In: Theory and practice in language studies. Finland: Academy Publisher, Vol. 1, No. 12, p BARETTA, L. et. al. Inference making while reading narrative and expository texts: An ERP study. Psychology & neuroscience Vol. 2, No.2, p BENNEWORTH, K. Sexual offences: Negotiating pedophilia in the investigative interview: the construction of sexual offences against children. In: COULTHARD, R.M. & JOHNSON, A. (Org.) The routledge handbook of forensic linguistics. London: Routledge, p GRAESSER, A.C. & KREUZ, R.J. A theory of inference generation during text comprehension. Discourse processes. New Jersey: Ablex Vol.16, p HAWORTH, K. Interviews as evidence. In: COULTHARD, R.M. & JOHNSON, A. (Org.) The routledge handbook of forensic linguistics. London: Routledge, p HOLT, E. & JOHNSON, A. Socio-pragmatic aspects of legal talk: police interviews and trial discourse. In: COULTHARD, R.M. & JOHNSON, A. (Org.) The routledge handbook of forensic linguistics. London: Routledge, p LOUWERSE, M.M. & GRAESSER, A.C. Coherence in discourse. In: STRAZNY, P. (Org.). Encyclopedia of linguistics. Chicago: Fitzroy Dearborn, p MACLEOD, N.J. Police Interviews with Women Reporting Rape: A Critical Discourse Analysis. Tese de doutorado. Aston University MURRAY, J.D. Logical connectives and local coherence. In: LORCH, R.F. & O Brien, E.J. (Org.). Sources of coherence in reading. New Jersey: LEA, p ROCK, F. Collecting oral evidence: police, the public and the written word. In: COULTHARD, R.M. & JOHNSON, A. (Org.). The routledge handbook of forensic linguistics. London: Routledge, p TRISTÃO, R. M. S. O boletim de ocorrência sob o aspecto da dêixis de base espacial como processo de instauração e manutenção de referência. Dissertação de mestrado. UFMG, Acesso em: 10 nov. 2014, Disponível em

291 Sabrina Silveira de Souza Jorge 291 handle/1843/aldr-76qhnj/disserta o_de_mestrado_roberto 1_. pdf?sequence=1>. Apêndice A TEXTO 1 1 Ao senhor delegado da Delegacia Adida do Estádio do Mineirão. Durante o evento 2 Cruzeiro X Atlético no Mineirão, efetuávamos o policiamento preventivo nas 3 imediações dos bares, quando ao nos aproximarmos do bar 30, deparamos com uma 4 briga generalizada entre torcedores da torcida do Atlético; ao intervirmos, 5 constatamos que o senhor João José, furtou a camisa do clube Atlético Mineiro, de 6 uma das vítimas que estava caído ao solo. Ao abordá-lo, o mesmo tentou se evadir 7 do local com o produto, através de solavancos e safanões. Nesse momento foi lhe 8 dado voz de prisão por resistência. A vítima do furto, devido a enorme confusão da 9 briga generalizada, não foi localizada, entretanto o produto do furto, foi apreendido 10 com o autor da resistência. Após os fatos relatados o mesmo foi conduzido a vossa 11 presença, ficando a disposição para providências futuras. No momento da 12 imobilização do autor o mesmo lesionou a cabeça ao bater no solo, tendo sido 13 encaminhado ao posto médico local, onde recebeu atendimento médico. TEXTO 2 1 Durante operação realizada no aglomerado do bairro Cabana, Beco da Boa

292 292 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais 2 Esperança, próximo ao número 20 (vinte), deparamos com o cidadão infrator citado 3 no campo 01, onde o João José foi abordado e encontrado em seu poder um tablete, 4 dois cigarros e uma pequena porção de uma substância esverdeada semelhante a 5 maconha. O mesmo nos relatou que comprou a referida substância no valor de trinta 6 e cinco reais, na rua Monsenhor Paulo Brasil, no bairro Cabana. Diante dos fatos os 7 militares deslocaram até a sua residência onde a senhora Rosa Inês Pereira da Silva, 8 mãe do Guilherme autorizou a entrada dos militares em sua residência para ser 9 realizada uma busca com o objetivo de certificar se não havia nenhuma outra 10 substância semelhante que fora encontrada em poder do João José. Diante do 11 exposto foi garantido seus direitos constitucionais bem como mantido a sua 12 integridade física, ficado a disposição TEXTO 3 1 No local comparecemos, onde a sra Solange disse-nos que por volta das 20:30hs 2 compareceu o seu ex-marido José Arimatéia, Neste Edf. Vindo ele solicitar o 3 comparecimento da VP5818 Sgt Ferreira que tomou conhecimento por parte de José 4 Arimatéia que necessitava de adentrar ao Edf. Sam Rafael até o (807) apartamento 5 este de propriedade de José Arimatéia, porém em nome de outro. Na portaria José 6 Arimatéia deu conhecimento ao porteiro Renato Rocha que, ele estava de posse de

293 Sabrina Silveira de Souza Jorge um Mandato Judicial e que iria subir até o apartamento e usando de má fé 8 mostrando um termo de audiência (no ) não deixando que o 9 porteiro e o zelador Júlio César verificasse o teor da documentação e contando uma 10 história que não condiz com a verdade para os policiais militares que acompanharam 11 até o citado apartamento, vindo a empregada doméstica abriu a porta do 12 apartamento 807 para atender José Arimatéia, quando ele adentrou e colocou sua 13 filha no colo (Larissa) quando a empregada Andréia deu conhecimento a Solange 14 que a criança estava com o pai (José Arimatéia) vindo Solange conversar com o Sgt. 15 Ferreira e pedi-lo para que orientasse a José de Arimatéia que deixasse a criança 16 Larissa descer pelo elevador com ela Andréia, fato este que aconteceu. Solange 17 relata que estava aguardando José Arimatéia para buscar a criança desde cedo, 18 conforme acordo policial. Quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael 19 Solange aguardou para despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos 20 ocorridos; quando José Arimatéia estava no lado externo (rua) vindo Solange 21 despedir da sua filha e aguardando retorno dos militares que estavam na rua no 22 interior da viatura e logo após eles deslocando para suas atividades. Vindo Solange 23 ligar 190 para relatar sua versão neste.

294 294 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais Apêndice B Caro (a) participante, Você irá realizar 3 atividades similares que correspondem a interpretação de textos de ocorrências policiais. Por favor, siga as instruções abaixo corretamente até o final desta pesquisa. Muito obrigada! ATIVIDADE I Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo: TEXTO 1 Ao senhor delegado da Delegacia Adida do Estádio do Mineirão. Durante o evento Cruzeiro X Atlético no Mineirão, efetuávamos o policiamento preventivo nas imediações dos bares, quando ao nos aproximarmos do bar 30, deparamos com uma briga generalizada entre torcedores da torcida do Atlético; ao intervirmos, constatamos que o senhor João José, furtou a camisa do clube Atlético Mineiro, de uma das vítimas que estava caído ao solo. Ao abordá-lo, o mesmo tentou se evadir do local com o produto, através de solavancos e safanões. Nesse momento foi lhe dado voz de prisão por resistência. A vítima do furto, devido a enorme confusão da briga generalizada, não foi localizada, entretanto o produto do furto, foi apreendido com o autor da resistência. Após os fatos relatados o mesmo foi conduzido a vossa presença, ficando a disposição para providências futuras. No momento da imobilização do autor o mesmo lesionou a cabeça ao bater no solo, tendo sido encaminhado ao posto médico local, onde recebeu atendimento médico. De que trata o fato ocorrido? Em relação às pessoas envolvidas no fato ocorrido: a) A quem se refere a expressão vossa presença? b) Quem foi conduzido a vossa presença? c) Quando é dito: Após os dados relatados, quem você acha que relatou os fatos? d) A quem se refere a expressão o mesmo, no texto? Onde acontece o fato ocorrido? (mencione mais de um local, se assim houver)

295 Sabrina Silveira de Souza Jorge 295 Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compreensão do mesmo? ATIVIDADE II Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo: TEXTO 2 Durante operação realizada no aglomerado do bairro Cabana, Beco da Boa Esperança, próximo ao número 20 (vinte), deparamos com o cidadão infrator citado no campo 01, onde o João José foi abordado e encontrado em seu poder um tablete, dois cigarros e uma pequena porção de uma substância esverdeada semelhante a maconha. O mesmo nos relatou que comprou a referida substância no valor de trinta e cinco reais, na rua Monsenhor Paulo Brasil, no bairro Cabana. Diante dos fatos os militares deslocaram até a sua residência onde a senhora Rosa Inês Pereira da Silva, mãe do Guilherme autorizou a entrada dos militares em sua residência para ser realizada uma busca com o objetivo de certificar se não havia nenhuma outra substância semelhante que fora encontrada em poder do João José. Diante do exposto foi garantido seus direitos constitucionais bem como mantido a sua integridade física, ficado a disposição desta seccional para as providência que julgardes cabíveis. Obs.: adianto-vos que na residência nada foi encontrado. a) De que trata o fato ocorrido? Em relação às pessoas envolvidas no ocorrido: a) Quem é João José? b) Qual a relação de Rosa Inês Pereira da Silva com João Jose? Onde acontece o fato ocorrido? (mencione mais de um local, se assim houver). Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compreensão do mesmo? ATIVIDADE III Leia o texto a seguir e responda as perguntas abaixo: TEXTO 3

296 296 Coerência local e global em textos de relatos de ocorrências criminais No local comparecemos, onde a sra Solange disse-nos que por volta das 20:30hs compareceu o seu ex:marido José Arimatéia, Neste Edf. Vindo ele solicitar o comparecimento da VP5818 Sgt Ferreira que tomou conhecimento por parte de José Arimatéia que necessitava de adentrar ao Edf. Sam Rafael até o (807) apartamento este de propriedade de José Arimatéia, porém em nome de outro. Na portaria José Arimatéia deu conhecimento ao porteiro Renato Rocha que, ele estava de posse de um Mandato Judicial e que iria subir até o apartamento e usando de má fé mostrando um termo de audiência (no ) não deixando que o porteiro e o zelador Júlio César verificasse o teor da documentação e contando uma história que não condiz com a verdade para os policiais militares que acompanharam até o citado apartamento, vindo a empregada doméstica abriu a porta do apartamento 807 para atender José Arimatéia, quando ele adentrou e colocou sua filha no colo (Larissa) quando a empregada Andréia deu conhecimento a Solange que a criança estava com o pai (José Arimatéia) vindo Solange conversar com o Sgt Ferreira e pedi-lo para que orientasse a José de Arimatéia que deixasse a criança Larissa descer pelo elevador com ela Andréia, fato este que aconteceu. Solange relata que estava aguardando José Arimatéia para buscar a criança desde cedo, conforme acordo policial. Quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael Solange aguardou para despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos ocorridos; quando José Arimatéia estava no lado externo (rua) vindo Solange despedir da sua filha e aguardando retorno dos militares que estavam na rua no interior da viatura e logo após eles deslocando para suas atividades. Vindo Solange ligar 190 para relatar sua versão neste. a) De que trata o fato ocorrido? b) Em relação ao texto quando no interior do Roll deste Edf. Sam Rafael Solange aguardou para despedir de sua filhinha Larissa e tomar ciência dos fatos ocorridos. Neste caso, o que você entende como fatos ocorridos? Em relação às pessoas envolvidas no ocorrido: a) Quem é Jose Aritmeia? b) Quem é Solange c) Quem é Andreia Onde acontece o fato ocorrido? (mencione mais de um local, se assim houver) Em sua opinião, o que não está claro no texto que impede a total compreensão do mesmo?

297 14 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher Márcia Cristiane Nunes Scardueli Universidade do Sul de Santa Catarina e Academia da Polícia Civil de Santa Catarina 1. Introdução Neste capítulo proponho-me a realizar análise discursiva do texto policial, em especial da peça denominada Relatório de Inquérito, que tem por finalidade encerrar os trabalhos policiais de investigação de uma situação delituosa. De forma pontual, os relatórios aqui analisados referem-se apenas às investigações policiais referentes a crimes cometidos contra mulheres que tenham sido vítimas de violência doméstica, praticada por seus parceiros íntimos, do sexo masculino 1, ou seja, maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados, uma vez que eles são apontados pelas estatísticas da violência contra a mulher como o grupo de maior incidência. Geralmente, a violência praticada pelos parceiros íntimos é parte de um padrão repetitivo de tentativa de controle e dominação da mulher, que pode se caracterizar por agressões físicas na forma de tapas, socos, chutes, tentativas de estrangulamento, queimaduras, além de destruição de objetos pessoais e ameaças de agressão física a ela, aos filhos e a outros membros da família; abusos psicológicos como humilhação, menosprezo e intimidação; 1. Esse corpus selecionado compõe o corpus da pesquisa de Doutorado da autora, situada na linha de pesquisa Texto e Discurso, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL (campus Tubarão), que tem por objeto de pesquisa os efeitos de sentidos que se estabelecem a partir da aplicação da Lei Maria da Penha, tanto na fase policial, quanto na fase judicial, em casos de violência contra a mulher praticada por parceiros íntimos do sexo masculino, investigados na cidade de Araranguá/SC, sob a perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, no período de 2006 a

298 298 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher comportamento de controle como vigilância de suas ações, restrição da liberdade de ir e vir, isolamento da família e amigos; e ainda, coerção sexual. No que tange à efetivação da análise discursiva, busquei encontrar nos relatórios policiais materialidades linguísticas que me permitissem discutir os efeitos de sentido que são produzidos a partir do discurso policial que investiga a violência doméstica praticada contra as mulheres. Minha expectativa foi poder verificar como delegados de polícia percebem o universo da violência doméstica, em especial daquela cometida contra as mulheres e como concepções pessoais podem ou não influenciar suas decisões, a partir da aplicação da Lei /2006 Lei Maria da Penha. 2 Nesse sentido, dos vinte relatórios policiais selecionados 3, produzidos nos anos de 2012 (16 documentos) e 2013 (quatro relatórios), na Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Araranguá, no Estado de Santa Catarina, recortei sequências discursivas que referem o sujeito vítima e o sujeito autor da violência doméstica, a fim de verificar a presença e/ou ausência de memória discursiva sobre as relações de gênero no cenário da violência, identificando os pontos que explicitam o caráter socialmente construído dessas relações. De acordo com Orlandi (2010), as unidades discursivas nas quais o corpus discursivo é recortado constituem fragmentos de um discurso que, submetidos à análise, são capazes de revelar uma determinada situação discursiva. 1.1 Do Jurídico ao Linguístico Considerando-se que o Estado tem por missão básica a promoção do bem- -estar geral e para isso estabelece normas que garantam a liberdade individual e possibilitem o equilíbrio da existência coletiva e que, nesse mister, ele se impõe, altera a realidade e age segundo a vontade geral expressada através da Lei, o poder de polícia surge como um mecanismo inibidor do arbítrio que restabelece a vontade geral da coletividade. Com o objetivo de proporcionar a segurança pública, a tranquilidade e a ordem social, o Estado, por intermédio das instituições policiais, em especial da Polícia Civil, também 2. A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 20 de setembro de 2006, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar e refere-se aos direitos das mulheres, determinando que o poder público desenvolva políticas que garantam a promoção dos direitos humanos (BRASIL, 2006). 3. O corpus amplo da pesquisa de Doutoramento da autora foi delineado de forma a ser composto pelos relatórios de inquérito policial e sentenças judiciais referentes aos processos desses mesmos inquéritos, que já estivessem conclusos e disponíveis para consulta no fórum da Comarca da cidade de Araranguá (extremo sul de Santa Catarina), do período de 2006, quando a Lei Maria da Penha foi promulgada, até setembro de 2013, quando o projeto de pesquisa foi qualificado.

299 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 299 chamada de Polícia Judiciária, investiga as infrações penais cometidas, a fim de que os seus autores sejam penalizados, de acordo com as leis vigentes. No que concerne à violência praticada contra as mulheres, em Santa Catarina, a Polícia Judiciária dispõe de unidades policiais consideradas pela corporação como especializadas 4 as Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI) 5. Uma vez que a primeira demanda dessas delegacias veio das mulheres e, possivelmente, esse ainda seja o grupo que recebe o maior número de atendimentos, essa unidade policial tem sido chamada apenas de Delegacia da Mulher. A violência doméstica praticada contra a mulher pode ser configurada como agressões físicas ou ameaças de agressão, humilhações, xingamentos, etc. Pesquisa realizada por Farias (2011) sobre os inquéritos policiais instaurados na Delegacia da Mulher de Araranguá em 2010 constatou que a maior concentração dos crimes apurados naquele ano era de ameaça (50%), seguida de lesão corporal, com 34% dos casos e o restante do percentual reunia outros tipos de crime. Os dados de Farias encontram respaldo na pesquisa de Nizer (2010), que verificou a incidência criminal contra a mulher na Delegacia da Mulher de Florianópolis, no ano de Os resultados foram os mesmos no que diz respeito aos tipos de crimes, ou seja, também em Florianópolis, o maior índice de registros foi do crime de ameaça (48%), seguido de violência física (21%) dos crimes analisados. No corpus documental selecionado para a presente pesquisa, também esses dados se repetiram. Dos vinte processos selecionados, quatorze apuraram crimes de ameaça, cinco de lesão corporal e cinco de injúria, considerando que alguns processos apuravam mais de um crime. Importante observar que é muito comum que a violência doméstica que se efetiva via ameaça e/ou lesão corporal venha acompanhada de agressões verbais (injúria e difamação). O Código Penal Brasileiro define o crime de ameaça no artigo 147, como sendo conduta de ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave. O crime de lesão corporal é tipificado no artigo 129: ofender a integridade corpo- 4. Pesquisa realizada em 2006, referente à representação da Delegacia da Mulher por policiais civis, apontou que, ainda que o termo especializada fosse usado para fazer referência a unidades policiais especiais, não houve esclarecimentos acerca do que consistia o termo. Isso indicou que sua utilização pelos policiais era apenas formal e não conceitual, ou seja, eles tinham conhecimento de que existem, no quadro da Polícia Civil, algumas delegacias especializadas, mas seu conhecimento sobre o tipo de trabalho específico nelas desenvolvido limita-se ao nome de cada uma dessas unidades policiais (SCARDUELI, 2006). 5. Essa é a nomenclatura utilizada no Estado de Santa Catarina; em outras unidades da federação outras nomenclaturas e siglas são atribuídas a essa unidade policial especializada, como Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e Delegacia da Mulher (DM).

300 300 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher ral ou a saúde de outrem. Por injúria entende-se a ofensa à dignidade ou ao decoro, definido como crime no artigo 140 do Código Penal (BRASIL, 2000). A Lei Maria da Penha classificou os tipos de violência contra a mulher em cinco eixos: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral (BRASIL, 2006). O crime de ameaça se enquadra na violência psicológica, o de lesão na violência física e o de injúria na violência moral. A denúncia da ocorrência de crimes se dá, geralmente, pela comunicação à Autoridade Policial dos fatos ocorridos transcrita num documento denominado Boletim de Ocorrência. Esse, via de regra, é o início da ação policial no processo de investigação do ocorrido, que vai culminar com a produção de um relatório sobre a situação apurada. O relatório é, então, a peça final produzida pela Polícia Civil, no processo de investigação e é de competência da autoridade policial 6 que não poderá manifestar sua opinião, limitando-se a declinar as providências realizadas e seus resultados, o resumo dos depoimentos prestados, bem como tipificar o delito e esclarecer sua autoria e materialidade (AVENA, 2009). Segundo Avena (2009), o conjunto de diligências realizadas pela autoridade policial visando à obtenção de elementos que apontem a autoria e comprovem a materialidade dos crimes investigados (oitiva das partes envolvidas, realização de exames periciais, etc) é o que constitui o Inquérito Policial, cuja finalidade é, portanto, reunir elementos necessários para a instauração da ação penal, pelo Poder Judiciário, em fase posterior. Nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa (AD), valorizam-se as condições de produção das formações discursivas, referidas por Orlandi (2010, p. 43), como aquilo que numa formação ideológica dada ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada determina o que pode e deve ser dito. Segundo Pêcheux (2008), as condições de produção são definidas pelos lugares ocupados pelo emissor e receptor na formação social. E, em face disso, o estudo da linguagem não pode estar desvinculado de suas condições de produção, exatamente o enfoque dado pela Análise do Discurso (BRANDÃO, 2004). 1.2 No Fio Discursivo dos Relatórios de Inquérito Para início da discussão sobre o material coletado na fase policial, abordarei a peça que compõe o inquérito policial denominada relatório e que é pro- 6. De acordo com o Art. 4º do Código de Processo Penal, a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria (BRASIL, 2012). Nesse sentido, o cargo de delegado de polícia é aquele a quem se atribui a autoridade de polícia judiciária, em âmbito administrativo.

301 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 301 duzida pelo delegado de polícia 7, a Autoridade de Polícia Judiciária, posição que atribui a esse sujeito a condição de apresentar descritivamente os fatos apurados numa investigação criminal, a fim de que possam ser julgados numa instância posterior, a judicial. A posição sujeito-delegado operando como o enunciador no texto dos relatórios é bem marcada, especialmente pela interação com o sujeito-juiz, a quem o relatório é endereçado, já desde o início do texto, pelo emprego dos vocativos 8 meritíssimo juiz ou excelentíssimo juiz que iniciam a enunciação da peça relatório. O emprego desses vocativos anuncia a formação discursiva na qual eles estão inseridos a do discurso jurídico e faz refletir sobre as condições de produção desse discurso e as possibilidades de efeitos de sentido por ele produzidos. Os interlocutores ocupam lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares esses que estão representados por uma série de formações imaginárias, conforme o que Pêcheux (1997) chamou de o jogo de imagens: a) a imagem que o falante tem de si, do lugar que ocupa e do que é enunciado; b) a imagem que o sujeito, ao enunciar, tem do seu ouvinte, do lugar ocupado por ele, e do discurso que é enunciado. No cenário da justiça-criminal (polícia civil e poder judiciário) as condições de produção de discursos são comuns às duas instituições (polícia e judiciário). Assim, o discurso que se estabelece num relatório acontece em um cenário que lhe é próprio e lhe dá especificidade, visto que faz parte de um gênero específico (relatório), que dialoga com alguém (juiz/promotor) sobre algo já estabelecido historicamente (conflito familiar/social), temática também já tratada anteriormente por outros sujeitos (advogados, juízes, promotores), e que já é predeterminada por uma ordem social, face ao caráter histórico-social da violência. Conforme Scardueli (2006), embora nem todas as práticas discursivas de policiais possam ser tomadas como exemplos de discurso jurídico, elas são fortemente influenciadas pelo discurso jurídico que esses sujeitos utilizam em suas práticas discursivas diárias nas delegacias de polícia, por eventualmente circularem em uma mesma formação discursiva em que são produzidos outros tipos de documentos oficiais como registros de ocorrências, portarias, ofícios, etc. A produção textual do relatório de um inquérito policial se organiza dentro de uma ritualidade habitual do discurso jurídico e, segundo Thomé (1997, p. 123), para uma melhor compreensão, o relatório deve ser dividido em três partes: preâmbulo, histórico da investigação e conclusão (ainda que nem sempre essas seções estejam claramente divididas). Nas peças ana- 7. Dos vinte relatórios de inquérito analisados nesta pesquisa, dezenove foram produzidos por um sujeito-delegado e um por outro, possivelmente que estivesse atuando na DPCAMI durante o período de férias do primeiro, que é o titular da unidade policial. 8. O vocativo meritíssimo juiz foi empregado onze vezes, excelentíssimo cinco vezes e quatro relatório foram produzidos sem emprego de vocativos.

302 302 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher lisadas, a menção à Lei Maria da Penha se faz apenas na parte inicial (no preâmbulo), em que a Autoridade Policial contextualiza os fatos ocorridos que geraram a instauração daquele procedimento policial. Nos relatórios analisados, o instrumento motivador da ação jurídica de instauração dos procedimentos policiais a Lei Maria da Penha foi assim mencionada: Instaurou-se o presente Inquérito Policial para apurar o crime de ameaça, este abrangido pela Lei /06, fato ocorrido em 04 de março de 2013 na Rua Doutor Virgulino de Queiróz, Centro, nesta cidade, figurando como vítima [nome] e como investigado [nome] [R18]. Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça, abrangido pela Lei /06 (...)[R9) Trata o presente inquérito do crime de ameaça, abrangido pela lei /06 (...) [R19] A formatação dos textos produzidos no meio jurídico segue uma modelagem pré-definida, que se repete como um padrão. Essa modelagem empregada nos textos jurídicos pode sugerir a generalização das situações tratadas naqueles textos, em que as particularidades de cada caso investigado e os sujeitos nele envolvidos parecem ser pouco observados. Nos casos de violência contra a mulher, em destaque neste estudo, a padronização dos textos pode silenciar enredos e histórias de vida, que se transformam em indicativos numéricos; deixando à deriva a questão das singularidades envolvidas em cada situação, promovendo assim, a desubjetivação dos textos. A Lei /06 é o dispositivo jurídico para o início da atividade policial investigativa que tratou dos crimes narrados pelas vítimas. Essa lei foi promulgada para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres, histórica e culturalmente submetidas à violência por parte de sujeitos do sexo masculino. A menção ao número da lei para justificar a instauração do procedimento policial silencia o cenário doméstico da violência ocorrida e que fez surgir a Lei 11340/06. Os crimes descritos nos relatórios analisados são referidos como abrangidos pela lei, sem que a questão da violência doméstica, que é a temática específica tratada pela lei seja mencionada. Esse silenciamento, então, pode ser entendido como constitutivo, definido por Orlandi (2007) como aquele que se diz, não dizendo, ou seja, a violência doméstica contra a mulher se revela apenas pela menção da Lei, pois se é

303 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 303 essa lei que está sendo aplicada, então fica implícito que a violência sofrida era no meio doméstico. Essa compreensão é possível porque a Lei Maria da Penha se inseriu historicamente na formação discursiva dos sujeitos que enunciam a violência. Essa questão remete, ainda, à presença de um interdiscurso. Azevedo (2007), referindo-se ao interdiscurso, diz que as escolhas linguísticas e discursivas que compõem um texto de determinado discurso não são aleatórias, mas marcadas por interlocutores (sujeitos) que enunciam a partir de posições inscritas numa formação social. Por isso, as condições de produção passam a ser compreendidas através da representação do imaginário histórico-social, porque os sujeitos que produzem linguagem o fazem de lugares ideologicamente marcados. Outra observação que se faz logo no início dos relatórios é a descrição do cenário em que os crimes aconteceram, em que o emprego do termo figurando desperta a atenção também para essa questão do silenciamento. Em treze dos vinte relatórios analisados o verbo figurar é empregado para apresentar a posição ocupada pelos sujeitos vítima e agressor, conforme o excerto a seguir: Instaurou-se o presente inquérito policial objetivando apurar o crime de ameaça, abrangido pela Lei /06, ocorrido em 13 de fevereiro de 2012, nesta cidade, figurando como vítima [nome] e investigado [nome] [R6]. O emprego do verbo figurar em relatórios de inquérito parece ser prática comum, em função do número de ocorrências. Observa-se que quando o termo não é empregado, outra expressão aparece: em tese, como no exemplo a seguir: Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça, abrangido pela lei /06, ocorrido em data não especificada, provavelmente no mês de maio de 2012, nesta cidade, em tese praticado por [nome] contra [nome] [R13]. Em ambos os casos, fica implícita uma suspeita sobre a ocorrência dos crimes e/ou a autoria deles; ou seja, o emprego desses termos produz sentido de dúvida. No dicionário, o verbo figurar significa representar, simbolizar, fingir, imaginar, supor (XIMENES, 2000, p. 436). A expressão em tese, por sua vez, significa teoricamente, supostamente. O emprego dessas expressões nos relatórios policiais indica a falta de condição para se chegar à verdade real, buscada pela polícia durante a apuração de crime, posto que essa verdade de fato não existe, e o que fica, a materialidade do crime com a qual a polícia trabalha, é, pois, apenas simbólica.

304 304 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher Ainda que essas expressões - figurar e em tese - pertençam à prática discursiva diária da polícia, em especial para a produção de relatórios, e que o seu emprego assim se justifique, é possível pensar nessas expressões como significando algo mais. Nos textos analisados, ainda que as expressões tenham sido usadas, todos os agressores foram considerados culpados pela autoridade policial que sugeriu ao juiz, no final dos relatórios, o indiciamento 9 deles por práticas de violência doméstica contra mulheres. Parece então que o emprego das expressões no início do texto não coaduna com o fim dele, em que há a menção da prática delitiva, conforme os excertos a seguir. Isso posto, indicie-se [nome] pela prática do crime previsto no artigo 147 do Código Penal [R6]. Isso posto, considerando a data das mensagens telefônicas, indicie-se [nome] [R13]. Fica a dúvida, por que o uso de figurar e em tese no texto final do trabalho policial, se é nesse momento que a autoridade vai declarar se está convicta de que o crime aconteceu e que fora determinada pessoa que o cometeu? Ou não estaria convicta? A contradição apontada acima indica a não homogeneidade da linguagem e do sujeito, o que pode também ser especulado em face do emprego do verbo apurar, na sequência discursiva apresentada anteriormente: Trata- -se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça [R13]. O enunciador, ao referir-se a apurar o crime de ameaça, afirma a ocorrência do crime, ou seja, o inquérito trataria, então, de apurar a ocorrência, no sentido genérico do meio policial, buscando responder as perguntas investigativas: quem cometeu, onde foi cometido, como e por que foi cometido. Assim, parte-se da premissa de que o crime ocorreu, o que novamente não explica o emprego de figurar e em tese. Essas expressões poderiam significar a dúvida sobre a ocorrência ou não do crime se ao invés de apurar o crime de ameaça, tivesse sido empregado apurar a denúncia de crime de ameaça, pois a investigação partiria então da suspeita da ocorrência criminosa. Pode-se, aqui, fazer referência a Pêcheux e a sua teorização sobre a incompletude da língua, da falha, do furo a que todo dizer está sujeito (2008). A produção do texto técnico prima (teoricamente) pela observância da objetividade e da imparcialidade, fazendo uso da função referencial da linguagem, uniformizando as estruturas linguísticas empregadas, que buscam 9. O termo indiciamento é empregado no meio policial, para designar o ato de atribuir formalmente a autoria de um crime a um suspeito. O indiciamento não significa culpa ou condenação, mas que os indícios colhidos durante a investigação, permitem atribuir a autoria do crime a alguém.

305 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 305 informar, visando à neutralidade do enunciador ainda que se saiba dessa impossibilidade, conforme apontado acima. O emprego da voz passiva é um exemplo disso. Nos excertos de relatórios previamente apresentados, a voz passiva com o uso do pronome se apassivador denota a tentativa de neutralidade e distanciamento dos fatos tal qual aconteceram para o que foi apurado pela polícia. Esse suposto lugar da neutralidade do discurso jurídico que tenta aparentar imparcialidade no tratamento das questões, porém, é questionável, em função de que ela se dá a partir de sentidos construídos dentro de uma formação discursiva que definiu como essa neutralidade deveria ser marcada. Assim, observa-se que essa tentativa de neutralidade acaba sempre por ocultar algum outro sentido, o da indiferença, por exemplo. 1.3 Marcas de Gênero A construção linguística dos textos dos relatórios permite-nos identificar os lugares sociais ocupados também por vítimas e agressores, na concepção do enunciador, reforçados no texto, pela escolha lexical que atribuem a eles (os agressores) o papel de dominação e a elas (as vítimas), o papel de subordinadas nessa relação de poder que se estabelece entre eles. Dentre as imagens que vão sendo construídas, no discurso ali apresentado, é possível perceber um cenário de dominação masculina sobre o indivíduo do sexo feminino, conforme os excertos a seguir dispostos, que foram grifados por mim: Relatou que a partir da separação passou a ser ameaçada de morte por ele, inclusive via telefone [R1]. Relatou sofrer com ameaças de morte e agressões verbais do tipo puta, vagabunda e alcoólatra, proferidas pelo investigado [R2]. Relatou que vem sofrendo injúrias e ameaças de [nome] [R3]. Em razão da ingestão frequente de bebidas alcoólicas ele lhe agride verbalmente, chamando-a de puta e vagabunda e ainda faz ameaças de morte [R4]. Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai, mas o investigado continuou a proferir ameaças de morte e injúrias tipo vagabunda e sem-vergonha [R8]. Disse que [nome] sempre a agredia e ameaçava de morte. Afirma que após a última agressão física saiu de casa, mas [nome] continuou a

306 306 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher fazer ameaças. Em relação às lesões sofridas não fez registro anterior por medo [R10]. Alega ter sido agredida fisicamente e injuriada com as palavras puta e vagabunda [R11]. Após pedir a separação passou a ser ameaçada de morte e injuriada por ele[r12]. Relatou que após uma discussão foi agredida fisicamente por ele, com tapas e apertões, além de [nome] ter proferido ameaças de morte, dizendo que [nome] iria para o inferno, assim como ele, colocando uma faca em seu pescoço [R15]. Relatou que foi agredida por ele, o que acabou deixando lesões em seu rosto [R17]. Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que somente a morte iria separá-los. Informou que [nome] tentou manter relações sexuais à força, sem seu consentimento, e que gritou, acordando seus filhos, quando o acusado não persistiu no ato [R18]. Os excertos acima denotam situações em que as vítimas são submetidas a ações por parte de seus agressores que as colocam em situação inferior, de submissão, de vulnerabilidade diante deles. Observa-se, ainda, que as ações descritas como sendo dos agressores têm conotação de atos da fala em que as ações são praticadas especialmente pela fala dos sujeitos, como nos verbos: ameaçar, agredir verbalmente, injuriar e proferir ameaças. Nos excertos acima, esses termos foram usados dezesseis vezes, enquanto que ações que requeriam uma atividade física diversa da fala foram empregadas apenas quatro vezes, como indicam os termos: agredida fisicamente com tapas e apertões, colocar a faca no pescoço, manter relações sexuais à força. Quanto às atitudes das vítimas, os excertos apontam atitudes como saiu de casa, mudou-se para a casa do pai e gritou, ações essas realizadas para conter as agressões dos parceiros. Também a própria atitude de denunciar foi uma ação nesse sentido, de conter as atitudes dos agressores. A literatura específica sobre a violência contra a mulher aponta que, em geral, essas vítimas possuem autoestima baixa e sentem-se incapazes de reagir (SAFFIOTI, 1997), entretanto, o cenário da pesquisa, por si só mostra uma ação das mulheres vítimas a de denunciar. As denúncias motivaram a ação do Estado sobre a violência sofrida por elas. Nos casos ana-

307 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 307 lisados, todos foram iniciados pela denúncia das próprias vítimas. Além de denunciar, também é possível perceber que outras atitudes dessas vítimas destoam desse quadro descrito por Saffioti (1997), de que elas se sentem incapazes de reagir, conforme demonstram os excertos abaixo: A vítima, em depoimento, disse que conviveu com [nome] por dois anos e que resolveu separar-se em virtude do comportamento dele [R1]. Em depoimento neste inquérito a vítima relatou que conviveu com o investigado por 41 anos e devido às agressões dele se separou [R7]. Em depoimento prestado em agosto de 2012, a vítima disse ter se separado do investigado em razão dele usar cocaína. Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai (...) [R8]. Afirma que após a última agressão física saiu de casa, (...) [R10]. Relatou ter convivido com o investigado por dez anos e que tiveram dois filhos desse relacionamento, porém, decidiu se separar [R11]. Importante pensar que essas ações praticadas pelos homens que ficam mais restritas aos atos de fala podem indicar a preocupação em não deixar marcas visíveis, que poderiam ser mais eficazes para a penalização desses autores pela Lei Maria da Penha, posto que marcas visíveis se configuram como vestígios do crime praticado e independem de testemunhas como no caso de ameaças e injúrias. No cenário da violência doméstica, a penalização muitas vezes deixa de acontecer pela ausência de provas, que podem ser tanto técnicas quanto testemunhais. Além dessa questão da produção de provas, também se pode pensar sobre o efeito simbólico da agressão verbal sobre as mulheres, que parece manter estreita relação com a sua sexualidade. Observa-se que os xingamentos proferidos pelos agressores contra as vítimas deslizam para significados relacionados à traição, com forte apelo sexual, sugerindo que as mulheres envolvem-se com outros homens, como no caso de puta, vagabunda e sem-vergonha, como mencionados nos relatórios de número 2, 4 e 8, exemplificados acima. Essa também foi uma constatação da pesquisa de Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), que investigou valores de gênero nas representações de xingamentos, manifestados por adolescentes da cidade de

308 308 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher Brasília. Segundo as autoras, quando atribuídos às mulheres, os xingamentos têm caráter sexual ativo tais como puta, prostituta, piranha, safada, já os dirigidos aos homens têm caráter passivo. Xingar é insultar com palavras, com o propósito de machucar e degradar moralmente outra pessoa, o que se considera uma violência moral e psicológica. Na ofensa praticada via xingamento, os significantes empregados pouco importam, o que conta mesmo são seus significados. De acordo com Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), o xingamento carrega em si valores morais e regras apregoados por uma sociedade, independentemente da consciência do falante ao proferi-los, podendo, então, veicular, também, valores atribuídos aos diferentes gêneros. A educação das mulheres, no sistema patriarcal, que ainda exerce forte influência nas relações de gênero, associa as mulheres ao casamento, que deverá ser para sempre; à maternidade, além de posicioná-la no lar, onde ela ficará afastada, isolada do mundo exterior, guardada em domínio privado, do marido, provavelmente. Essa representação construída da mulher colabora para a compreensão dos xingamentos a elas proferidos, que as desmoraliza quanto a essa postura idealizada de comportamento feminino. Segundo Judith Butler (2008), o gênero está, a todo tempo, sendo mobilizado nas práticas discursivas cotidianas que se manifestam nas atitudes de homens e mulheres, a partir de padrões determinados socialmente, sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Esse posicionamento da autora remonta à questão da memória discursiva que retoma os já-ditos, em outros tempos, outros lugares. No caso específico dos xingamentos na relação conjugal, eles costumam agir como coadjuvantes da violência física, conforme citado por Freitas e Pinheiro (2013). As injúrias proferidas pelo parceiro podem machucar muito também e, na maioria das vezes, não deixam vestígios para serem usados como provas criminais exceto se forem proferidas por escrito ou na presença de testemunhas. Os agressores, por (supostamente) conhecerem bem suas vítimas, sabem o que pode doer mais sem deixar vestígios, uma vez que as mulheres geralmente se sentem muito afetadas pelas injúrias que recebem, talvez por atacarem a sua honra. 1.4 Heterogeneidade(s) Os elementos que designam os papéis desempenhados pelos sujeitos como enunciador (Autoridade Policial) e interlocutor (Juiz de Direito) resultam de lugares determinados na estrutura de uma formação social que lhes é comum, conforme definido por Pêcheux e Fuchs (1997). A finalização dos textos analisados traduz essa ideia. De acordo com Orlandi (1987, p. 180), o discurso é visto como o lugar, o centro comum que se faz no processo de interação entre falantes e ouvintes, autor e leitor e esse processo de interação é o que pressupõe o jogo de imagens refletidas no texto. Desse modo,

309 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 309 questiona-se: como se estabelece o jogo de imagens no discurso dos relatórios aqui analisados? Como se posicionam produtor e destinatário desse discurso, no que concerne à questão da violência contra a mulher? Assim, considerando-se o conceito de formações imaginárias, cunhado por Pêcheux ([1969] 1997, 2008), pode-se dizer que as imagens que os interlocutores de um discurso atribuem a si e ao outro são determinadas por lugares construídos no interior de uma formação social, que inserem o juiz de direito em instância diversa da do delegado de polícia e que poderá ou não acatar a sugestão do policial, quanto à penalização do indivíduo investigado. Abaixo os excertos selecionados e grifados por mim: Ainda, com fundamento no artigo 311, in fine e 313, III do Código de Processo Penal, represento a Vossa Excelência pela decretação de prisão preventiva em desfavor de [nome], já qualificado nos autos [R3]. Outrossim, informo que, tão-logo o indiciado for localizado será interrogado e o depoimento encaminhado a esse juízo [R1]. Observa-se que, ainda que o relatório policial seja produzido com a preocupação da neutralidade e a impessoalidade, os excertos apontam o uso da primeira pessoa verbal como enunciadora: represento e informo. Possivelmente esse emprego seja uma retomada da autoridade policial garantida ao sujeito-delegado para decidir pelas ações quanto ao que foi apurado no inquérito policial. Quanto à questão da alteridade, é possível identificar, nos relatórios analisados, que a autoridade policial atribui a elementos externos ao texto a certeza sobre a prática delituosa de alguém, a fim de subsidiar sua decisão, conforme excertos a seguir, com grifos meus: Isso posto, baseado nas declarações da vítima e testemunha, indicie-se [nome] pela prática dos crimes previstos nos artigos 149 e 147 do Código Penal [R12]. O laudo de exame de corpo de delito constatou ofensa à integridade física de [nome] [R15]. O relatório psicológico com entrevista da criança [nome] foi conclusivo para a ocorrência de agressão de [nome] [R19]. Considerando-se que o relatório é atribuição da autoridade policial e que é nele que a autoria do crime será apresentada para o juiz (interlocutor desse texto), a menção a elementos exteriores opera como garantidores de que

310 310 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher não só a opinião do policial está contando naquele momento, mas outros documentos juntados aos autos do inquérito policial, a fim de justificar e embasar a decisão da autoridade. Também o uso de aspas para marcar a fala do outro pode ser percebido nos relatórios, marcando essa presença. Os excertos a seguir, grifados por mim, apontam: Relatou que em todas as vezes em que [nome] vai até sua casa para pegar os filhos, este agride com palavras, chamando-a de vagabunda e cachorra, inclusive na frente das crianças[r16]. Relatou que após uma discussão foi agredida fisicamente por ele, com tapas e apertões, além de [nome] ter proferido ameaças de morte, dizendo que [nome] iria para o inferno, assim como ele, colocando uma faca em seu pescoço. Acrescentou que no dia seguinte foi injuriada por ele, que a chamou de vagabunda e filha-da-puta e novamente agredida fisicamente com socos, tapas e empurrões [R15]. Alega ter sido agredida fisicamente e injuriada com as palavras puta e vagabunda [R11]. [Nome], mãe da vítima, esclareceu que ambos naquela data estavam estranhos, tendo inclusive perguntado para a filha se ela havia bebida, sendo que [nome] respondeu que um pouquinho (...). Tempos depois, o próprio [nome] teria dito que batera em [nome] porque ela havia falado muitas coisas [R17]. Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que somente a morte iria separá-los [R18]. Os excertos apontam, ainda, para um uso recorrente dos xingamentos que configuram o crime de injúria e que são marcados no texto do relatório pelo delegado pelo uso das aspas, provavelmente para definir o crime, bem como para chamar atenção sobre esse tipo de violência. O uso das aspas nos excertos acima apontados é o que se chama de discurso citado ou representação do discurso outro na perspectiva da heterogeneidade enunciativa proposta por Authier-Revuz (2008). Segundo Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade discursiva dos sujeitos que enunciam pode ser apontada por dois princípios: a Heterogeneidade Constitutiva e a Heterogeneidade Mostrada. Esta última pode ser ain-

311 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 311 da marcada e não-marcada. Quando marcas explícitas de outro sujeito são mostradas e marcadas no texto do eu, pelo discurso direto, uso de citações ou de aspas, por exemplo, tem-se a heterogeneidade mostrada marcada. Já a heterogeneidade mostrada não-marcada se estabelece pela presença do outro interferindo através do uso de ironia, imitação, etc. A heterogeneidade constitutiva, por sua vez, é um princípio que fundamenta a linguagem e implica em perceber a presença de outros discursos que não são marcados na superfície do texto, mas que poderão ser localizados na memória discursiva, pelo reconhecimento da formação social e ideológica investidas no texto enunciado. Interessante observar que no corpus também foram encontrados momentos em que as aspas não foram empregadas para marcar os xingamentos. Exemplos postos em destaque: Disse que no dia 16 de maio de 2010, em uma comemoração ao dia das mães, [nome] começou a ingerir bebidas alcoólicas e em seguida passou a ofendê-la verbalmente chamando de vagabunda[r7]. Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai, mas o investigado continuou a proferir ameaças de morte e injúrias tipo vagabunda e sem-vergonha[r8]. [Nome], mãe de [nome], relatou que após a separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar [nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisicamente se a visse com outro homem [R20]. Afirma que tentou impedi-lo de entrar na residência quando foi agredida fisicamente, bem como injuriada com palavra tipo vagabunda e puta [R5]. Pode-se inferir que o uso de aspas para marcar os xingamentos sirvam para distinguir o quanto inapropriados aqueles termos ficariam na formalidade do texto do relatório. Ainda que necessários para a qualificação criminal, o emprego dos xingamentos parece destoar do cenário da escrita formal, cujas palavras seriam, ilusoriamente, do enunciador e as marcadas com aspas não. É relevante observar que, na produção do texto jurídico, há uma constante preocupação com a forma e com a semântica, de maneira a construir um texto que atenda ao cenário discursivo do meio jurídico, a saber, um cenário de formalidades, de polidez, de gentilezas. Nesse cenário, o emprego de palavras ofensivas e xingamentos, de maneira geral, não tem lugar; isso justificaria, então, o emprego das aspas, a fim de tentar limpar o texto

312 312 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher da sujeira provocada pelo outro. Há de se pensar, ainda, que as formações discursivas que esse outro opera, são outras, diversas da do enunciador do relatório de inquérito, bem como esse outro pertence, via de regra, à outra classe social. No excerto do relatório R17, mencionado acima, o uso das aspas deixa de fazer referência a xingamentos e dá ênfase a expressões utilizadas tanto pela vítima um pouquinho quanto pelo agressor muitas coisas que teriam sido citadas por uma testemunha. A marcação das aspas naquela situação sugere o distanciamento do enunciador para com aquelas expressões e parece querer sugerir outros sentidos além dos que já se podem apreender de antemão. Um pouquinho é uma quantidade difícil de ser definida, posto que está no plano relacional das ideias. Para alguém um pouquinho pode ser muito pouco, mas para outro alguém esse pouco pode ser muito; assim como muitas coisas, tanto pode significar muito quanto nada, dependendo do ponto de vista interacional no contexto da enunciação. Trata-se em ambos de conotações autonímicas, conforme foi definido por Authier-Revuz (1990), em que o enunciador sujeito-delegado coloca em suspensão a sua responsabilidade sobre os sentidos que se produzem a partir dessas expressões e parece questionar a apropriações dessas palavras no depoimento da testemunha que foi citado no relatório. Além disso, ainda nesse excerto, observa-se o seguinte: [Nome], mãe da vítima, esclareceu que ambos naquela data estavam estranhos, tendo inclusive perguntado para a filha se ela havia bebida, sendo que [nome] respondeu que um pouquinho (...). A aparição desse bebida teria sido um lapso de escrita? Um ato falho? Possivelmente, mas provavelmente, não por acaso. De acordo com Teixeira (2005), a psicanálise atribui a esses atos uma revelação do inconsciente que se estrutura como uma linguagem. No caso analisado, uma vez que o tema bebida surgiu no depoimento da testemunha, que relata ter questionado a filha sobre ter bebido, em função do comportamento que ela e o companheiro estavam aparentando, o que teria sido admitido por essa vítima, parece haver a indicação ou a sugestão do enunciador sobre a bebida como problema de fundo naquela situação de violência doméstica. Muito frequente é a alegação das famílias de que os problemas de violência doméstica se agravam quando há o uso de bebidas alcoólicas. Ainda que se saiba que a violência doméstica não pode ser atribuída apenas a esse fator, quando ele está presente, geralmente é aspecto impulsionador para a violência. Nessa situação, então, pode-se fazer uma leitura de que, nesse caso, o sujeito enunciador, inconscientemente, aponta para os motivos do delito em apuração: a bebida, que se configurou ali como um lapso de escrita, mas pode revelar outros sentidos, mas também a possibilidade de não haver mais o que se dizer. A falha ali, então, conforme Orlandi (2012, p. 79), não é o menos, é o mais. O mais que sugere outras reflexões sobre a violência e o contexto maior em que ela se dá.

313 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 313 Outro aspecto que desperta atenção nos excertos dos relatórios apresentados anteriormente dizem respeito à postura dos agressores para com as vítimas. Em: após a separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar [nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisicamente se a visse com outro homem [R20] (grifos meus), o agressor indica o sentimento de possessão que nutre pela vítima, ao ponto de ameaçar agredi-la, caso a encontrasse com outro parceiro. Considerando que ele também proferiu xingamentos como puta e vagabunda, que sugerem uma conduta sexual com muitos parceiros, é possível que esse agressor já esteja prevendo que, de fato, vai encontrá-la com outra pessoa. Considerando que estão separados, muito provavelmente ela encontrará outro parceiro e ele também. Ocorre que, enredado numa cultura machista em que incorporou um ideário de controle do homem sobre a mulher, esse agressor acredita que tem o domínio sobre ela, numa expressão de virilidade, conduzida por um padrão hegemônico atribuído ao gênero masculino, conforme definiram Freitas e Pinheiro (2013). Outra amostra desse sentimento de posse está em Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que somente a morte iria separá-los [R18]. Há uma postura extrema desse agressor que não aceita a separação do casal e que só admitiria isso em caso de morte. A morte é uma separação radical. Antes mesmo de o sujeito aceitar a morte, se faz necessário que aceite a separação, o que parece que ele não está disposto a fazer. É uma posição discursiva narcísica forte, que novamente demonstra sentimento de posse pela mulher, que ou será dele, ou não será de mais ninguém. Além disso, também ressoa aí também uma voz genérica de cunho religioso, ouvida no ato do casamento: até que a morte os separe. Assim, para finalizar, por ora, as discussões sobre os relatórios de inquéritos policiais selecionados para esta pesquisa sobre os efeitos de sentido gerados nos discursos produzidos nesses documentos, percebe-se que, discursivamente, o enfrentamento às situações de violência a que as mulheres são submetidas, no meio doméstico não se efetiva. De fato, os sentidos que se produzem reafirmam e/ou reforçam as condições de hierarquias estabelecidas entre os gêneros masculino e feminino, no que concerne às marcas de gêneros deixadas no discurso que refere a violência. Ainda que o trabalho da polícia judiciária, no contexto da violência conjugal, tenha por objetivo o encaminhamento dos agressores à esfera judicial para julgamento pelos crimes praticados contra suas parceiras, os discursos empregados na fase policial geram sentidos ainda muito impregnados por relações ideológicas e de poder, referente às questões de gênero. Nesse sentido, esses discursos mais reproduzem o status quo do cenário da violência conjugal do que inovam, como se esperava que acontecesse com a promulgação da Lei Maria da Penha que, conforme Pasinato (2010), representou um marco no extenso processo histórico de reconhecimento

314 314 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher da violência contra as mulheres como um problema social no Brasil e cujo objetivo é de atuar no contexto da proteção, da prevenção e da repressão a esse tipo de violência. Referências AUTHIER-RÉVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Trad. C. M. Cruz e J. W. Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p , Authier-Revuz, J. A representação do discurso outro: um campo multiplamente heterogêneo. Calidoscópio, Vol. 6, n. 2, p , mai/ ago de AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal para concursos públicos. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Metodo, AZEVEDO, Adélia Maria Evangelista. O jogo de imagem no discurso das instituições financeiras sobre o enfoque: o idoso. (2007). Disponível em: Evangelista.pdf. Acesso em 15 de Nov BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: UNICAMP, BRASIL. Código Penal. 15ed. São Paulo: Saraiva, BRASIL. Lei Maria da Penha, Lei Federal n , de 07 de gosto de 2006, Coíbe a violência doméstica e familiar contra mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - Ministério Justiça, BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, FARIAS, Adrileia João. A aplicação da Lei Maria da Penha na Delegacia da Mulher de Araranguá: análise dos inquéritos policiais de Monografia (Especialização em Gestão da Segurança Pública) UNISUL Virtual - Universidade do Sul de Santa Catarina, FREITAS, Lúcia; PINHEIRO, Veralúcia. Violência de gênero, linguagem e direito: análise de discurso crítica em processos na Lei Maria da Penha. Jundiaí: Paco Editorial, NIZER, Joacyr de Paula. Agressões contra mulheres em Florianópolis segundo os boletins de ocorrência registrados nas delegacias da capital

315 Márcia Cristiane Nunes Scardueli 315 de In.: CÓRDOVA, L.F.N et al (Org). Os 25 anos da Delegacia da Mulher de Florianópolis: impasses e perspectivas para a base de pantera. Florianópolis: UFSC/CFH/NUPE, ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.ed. Campinas: Pontes, As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SR: Editora da UNICAMP, Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. 9.ed. Campinas, SP: Pontes, Quando a falha fala: materialidade sujeito, sentido. In.: Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas, SP: Pontes Editores, p , PASINATO, Wania. Lei Maria da Penha: Novas abordagens sobre velhas propostas. Onde avançamos? Civitas, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p , maio/ago PÊCHEUX, M. Les Vérites de la Palice. Maspero, Paris, 1975, trad. brasileira. Semântica e Discurso. Em Orlandi et alli, editora da UNICAMP, O Discurso: estrutura ou acontecimento. 5ª. Ed. Campinas, SP: Pontes, PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, F; HAK, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani [et al.]. Campinas, editora da UNICAMP, p , SAFFIOTI. H. I. B. Violência doméstica ou a lógica do galinheiro. In: KUPSTAS, Márcia (org). Violência em debate. São Paulo: Moderna, SCARDUELI, M.C.N. A representação da Delegacia da Mulher para policiais civis da 19ª região policial catarinense. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade do Sul de Santa Catarina, Disponível em: TEIXEIRA, Marlene. Análise de discurso e psicanálise: elementos para uma abordagem do sentido no discurso. 2ª ed, Porto Alegre: EDIPUCRS, THOMÉ, Ricardo Lemos. Contribuição à prática de polícia judiciária. Florianópolis: Ed. do autor, 1997.

316 316 Análise discursiva de textos policiais: situações de violência conjugal em uma Delegacia da Mulher XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. 2ª Ed., São Paulo: Ediouro, ZANELLO, Valeska; BUKOWITZ, Bruna; COELHO, Elisa. Xingamentos entre adolescentes em Brasília: linguagem, gênero e poder. Interacções, Lisboa, v. 7, n. 17, p , 2011.

317 15 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na falaem-interação Daniela Negraes Pinheiro Andrade Universidade do Vale do Rio dos Sinos 1. Análise da Conversa (Aplicada): uma introdução A Análise da Conversa se desenvolveu a partir do olhar científico do sociólogo Harvey Sacks direcionado para as conversas mundanas. Tendo como base um corpus de conversas telefônicas gravadas obtidas em um centro de assistência a potenciais suicidas, Sacks percebeu que, ao contrário da crença baseada no senso comum, as conversas comuns não tinham uma natureza caótica, mas obedeciam a uma organização interna própria. Os estudos de Sacks, posteriormente expandidos por Gail Jefferson e Emanuel Schegloff sedimentaram os fundamentos da Análise da Conversa (doravante AC). A publicação do artigo A simplest systematics for the organization of turn-taking for conversation 1, em 1974, marcou oficialmente o surgimento da área. Cerca de quase 20 anos após essa primeira publicação, os analistas da conversa de segunda geração Paul Drew e John Heritage (1992) organizaram o livro Talk at Work 2. Esse volume, que traz uma coletânea de trabalhos voltados para a descrição das ações sociais realizadas através da fala-em-interação em contextos institucionais, pode ser considerado um marco para os analistas da conversa pelo que ele representou em termos de expansão de escopo para as pesquisas em AC. A publicação do volume, contudo, demandou algumas justificativas por parte dos organizadores da obra. O posicionamento dos autores frente ao que, até então, eram considerados trabalhos em AC pode ser depreendido das palavras de Drew e Heritage (1992, p.4), 1. O título do artigo pode ser traduzido como Uma simples sistemática para a organização da tomada de turnos na conversa. 2. O título da obra pode ser traduzido como Conversas no trabalho. 317

318 318 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação pode parecer surpreendente que a perspectiva [da AC], como seu próprio sugere, que está associada às análises de conversas comuns entre pares em contextos cotidianos devesse ser aplicada às interações que não são evidentemente conversas comuns nesse sentido. [...] Não há nada acerca das perspectivas e técnicas associada à análise sequencial da conversa ordinária que seja inimiga da análise da fala institucional. (grifo dos autores, minha tradução) 3 A partir dos trabalhos aplicados aos contextos institucionais, principalmente os voltados para estudos em ambientes de sala de aula e contextos médicos, a AC, como observa Richards (2005), passou a obter reconhecimento dentro da Linguística Aplicada, tendo em vista a congruência, até mesmo a convergência, entre certos aspectos dos programas da Linguística Aplicada e da Análise da Conversa (DREW, 2005, p. xv, minha tradução) 4. Pois, nem bem a AC alcançou o status de disciplina em pé de igualdade com outros programas abarcados pela Linguística Aplicada (doravante LA), os analistas da conversa vislumbram uma segunda virada na área. Trata-se do que os pesquisadores vêm chamando de Análise da Conversa Aplicada. Como explica Drew (2005), esse mais novo movimento da AC tende, em certos aspectos, a abranger trabalhos que transcendem as pesquisas realizadas na área até agora, Esse continuum da AC está retratado na obra Applying Conversation Analysis 5, organizada por Keith Richards e Paul Seedhouse e lançada em O livro explora a interface entre a AC e a LA e demonstra como a análise da conversa institucional pode contribuir para a prática profissional, porém, em esferas diferentes das comumente encontradas nos programas da LA. Diferentemente dos programas da LA, que se voltam majoritariamente para as práticas profissionais relacionadas à aquisição e aprendizagem da linguagem, os estudos da Análise da Conversa Aplicada (doravante ACA) estão direcionados para as análises de conversas institucionais no âmbito das práticas profissionais relacionadas aos negócios e ao comércio. Ao que parece, essa mudança de perspectiva obedeceu a uma demanda dos próprios profissionais atuantes nas mais variadas áreas que, nas palavras de Richards 3. No original: It may seem surprising that a perspective which, as its very name suggests, is associated with the analysis of ordinary conversation between peers in everyday contexts should be applied to interactions which are evidently not ordinary conversation in quite this sense. [...] There is nothing about the perspective and techniques associated of ordinary conversation which is inimical to the analysis of institutional talk. 4. No original: [there is] a congruence, even a convergence, between certain aspects of the programs of AL and CA. 5. O título do livro pode ser traduzido como Aplicando a Análise da Conversa.

319 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 319 (2005, p.1, minha tradução) 6 vieram a reconhecer o valor da pesquisa [em AC] com respeito às suas realizações peculiares. A relevância da AC para os estudos de fala-em-interação nas relações comerciais pode ser sintetizada nas palavras de Richards (2005, p.1, minha tradução), um dos pontos fortes da Análise da Conversa como disciplina de pesquisa é a sua capacidade de direcionar a atenção dos pesquisadores para características aparentemente muito pequenas da interação e transcender suas dimensões para além de todas as expectativas revelando delicadezas de designs e gerenciamentos que resistem aos ataques dos mais estabanados instrumentos. Em outras palavras, o que diferem os trabalhos aplicados que se servem dos métodos da AC é o fato de que a (in)competência linguística dos participantes implicativa ao fazer-se profissional não é um conceito tomado a priori, mas sim como algo passível de ser investigado em suas dimensões mais sutis e, ao mesmo tempo, difícil de ser observado fora do aparato teórico-metodológico da AC, em vista da perspectiva êmica 7 (HUTCHBY; WOOFFITT, 1998) adotada como premissa nesses estudos. A perspectiva êmica da qual as pesquisas em AC estão imbuídas é particularmente interessante aos profissionais, de um modo geral, uma vez que desvela, perante seus olhos, as sutilizas das ações empreendidas por eles através da fala-em-interação que são, em última instância, constitutivas do fazer-se profissional. Além disso, ou, quem sabe, justamente por isso, como coloca Drew (2005), a aplicação dos métodos da AC(A) revela aspectos da fala-em-interação institucional que parecem ser apropriado aos treinamentos que visam ao aprimoramento dos recursos interacionais dos profissionais. O surgimento da ACA e os consecutivos desafios frente a esse novo espaço de trabalho suscitaram aos analistas da conversa algumas reflexões. Uma delas concerne às limitações da área frente às demandas impostas pelo perfil dos profissionais potencialmente interessados em pesquisas em ACA. É sabido que, no mundo corporativo, rapidez e agilidade são valores estimados pelos clientes do mercado de prestação de serviços e isso pode representar um entrave para negociações entre analistas da conversa e profissionais dos negócios e comércio, hajam vistos os impedimentos que os métodos da AC apresentam concernentes ao tempo para se realizar uma 6. No original: [...] have come to recognize the value of research that respects their peculiar achievements. 7. Menos do que lidar com conceitos tais como cultura, classe social, gênero, racismo, competência, dentre outros, de forma apriorística, a perspectiva êmica leva em conta o ponto de vista dos atores sociais. A organização social é construída situadamente de acordo com o sentido que os atores atribuem aos objetos, às situações, aos símbolos que os cercam (COULON, 1987, p. 15).

320 320 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação pesquisa. Kitzinger (2005) reflete sobre essa problemática em seu artigo intitulado Working with childbirth helplines: the contributions and limitations of Conversation Analysis 8 e conclui que o tempo necessário para conduzir uma pesquisa em ACA pode tensionar o gerenciamento das expectativas das organizações por resultados rápidos (KITZINGER, 2005, p.115, minha tradução) 9. A autora também se posiciona a favor do emprego de métodos outros aliados à AC(A), tendo em vista que a área não oferece solução para todas e quaisquer demandas das organizações, mesmo quando a investigação se encontra dentro dos domínios da linguagem. Esse apelo por ecletismo em estudos analíticos da conversa (HERITAGE; ROBINSON, 2005, p. 31) 10 não deixa de ser um (re)posicionamento surpreendente em vista da preocupação de alguns analistas da conversa em se manterem fiéis aos princípios fundamentais da AC. É importante ressaltar que, embora os estudos acadêmicos em AC que impulsionam o continuum da área tendam a ocorrer no eixo Estados Unidos Europa, várias pesquisas em AC no Brasil apresentam caráter fortemente aplicado (OSTERMANN; SOUZA, 2011; OSTERMANN, 2003; DEL CORONA, 2012) no sentido de oferecerem algum retorno pós-pesquisa às instituições que gentilmente abriram suas portas para os pesquisadores. São os casos, por exemplo, de Ostermann e Souza (2011), que realizaram pesquisa junto ao Disque Saúde, de Del Corona (2010), que estudou as interações do 190, serviço de atendimento telefônico da Brigada Militar, no Rio Grande do Sul e Ostermann (2003), que investigou as interações em contexto de serviço de proteção à mulheres em situação de vulnerabilidade. Há que se salientar, porém, que embora se tenham pesquisas de porte em AC no Brasil, ainda há um longo caminho a ser percorrido pela área no que diz respeito aos trabalhos de base em língua portuguesa. Em outras palavras, a grande maioria das pesquisas em AC está fundamenta na língua inglesa, havendo bastante espaço para estudos dedicados a descrever fenômenos interacionais em língua portuguesa. Embora fenômenos tais como organização de construção e tomada de turno, organização de sequência, de reparo e de preferência, entre outros, sejam comuns aos eventos de fala- -em-interação, de um modo geral, não se pode negar que as particularidades de cada língua, como seus traços prosódicos, por exemplo, são nuances que devem ser descritas para que se consiga fazer uso de todo o potencial oferecido pelos métodos da AC. 8. O título do artigo pode ser traduzido como Trabalhando com atendimento de apoio às gestantes em situação de pré ou pós-parto: as contribuições e limitações da Análise da Conversa. 9. No original: [The length of time necessary to conduct AC analysis] may mean managing organizations expectations for rapid results. 10 No original: [...] a plea for eclecticism in applied conversation analytic studies.

321 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 321 A importância de se descrever como ações sociais são realizadas através da organização da fala (ANTAKI, 2011, p.1) 11 em língua portuguesa é implicativa à condução de pesquisas de relevância social nas mais diversas áreas. São muitas as áreas que oferecem grandes possibilidades para os analistas da conversa: salas de aula, consultas médicas, serviços de atendimento telefônico à população (bombeiros, SAMU 12, conselho tutelar, polícia rodoviária, SACs 13 etc.), atendimento psicológico aos adictos, delegacias da polícia civil, entre outros, são somente uma pequena gama de ambientes onde pesquisas em AC tendem a tornarem-se profícuas. As pesquisas que tomam por foco interações cotidianas (conversa informal entre amigos, familiares, etc), justamente por constituírem a base da AC são, também, de fundamental importância para os estudos em AC em língua portuguesa. 1.1 Análise da Conversa aplicada ao campo forense: uma contextualização do presente trabalho No que concernem aos estudos de AC aplicados ao campo forense em particular, o Brasil mostra-se um terreno fértil, pois são poucas as publicações nessa área. A Linguística Forense enquanto disciplina constitui-se per se um campo ainda inexplorado no cenário brasileiro em comparação com o que ocorre em outros países que já dispõem, inclusive, de departamentos especializados nesse campo acadêmico (e.g. Aston University e Cardiff University, na Grã-Bretanha, Nebraska Wesleyan University, nos Estados Unidos, entre outras). Esse panorama, contudo, tende a mudar tendo em vista a fundação da Associação Luso-brasileira de Estudos Forenses, na cidade do Recife, e, também, a Terceira Conferência Europeia da Associação Internacional de Linguística Forense que, de forma inédita, abre espaço para uma sessão dedicada aos trabalhos em língua portuguesa. É essencial, portanto, que os trabalhos em AC(A) acompanhem a tendência de crescimento da Linguística Forense nos países falantes do português e se solidifique tanto no campo acadêmico quanto no mercado profícuo da consultoria linguístico-forense. Tendo em mente a urgência de pesquisas de base em AC que contemplem o desenvolvimento da Linguística Forense no Brasil e que possam servir para futuros trabalhos de caráter aplicado nos moldes sugeridos pela ACA, segue-se uma reflexão sobre as falas-em-interações que constituíram um evento interacional audiência de instrução. A discussão baseia-se no depoimento de uma pessoa que teve um talão de cheques roubado e foi intimada a depor por conta de uma folha de cheque do talão ter sido utilizada sem permissão, o que caracteriza um caso de estelionato. Kátia, a pessoa vítima do roubo do talão de cheques, dá mostras de não ter familiaridade 11. No original: [...] how social action is brought about through the close organization of talk. 12. Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. 13. Serviços de Atendimento ao Consumidor.

322 322 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação com as práticas concernentes a uma audiência de instrução. O desconhecimento de Kátia não sensibiliza os participantes do Direito. Muito antes pelo contrário, percebe-se que os interlocutores de Kátia, de forma especial o juiz, não agem como facilitadores em prol do entendimento da depoente acerca do que está se passando e isso gera consequências interacionais observáveis através da sequencialidade da conversa. A análise baseada em dados empíricos sugere que as ações empreendidas pelos participantes do Direito, nesse caso, contribuem para a construção de um ambiente interacionalmente tenso com o qual a depoente tem que lidar. No caso específico desse trabalho, a AC revela-se um método apropriado para desempacotar as ações interacionais dos interagentes do Direito que contribuem para percepção do senso comum de que as audiências de instrução constituem um ambiente hostil para os participantes leigos (HOLT; JOHNSON, 2010). Comumente, pensa-se que tal hostilidade dá-se em razão do uso de palavras ou expressões, principalmente de origens latinas, por parte dos juízes, promotores e advogados ou, em outras palavras, o uso do juridiquêz (Tiersma, 1999, p. 51,). Contudo, o estudo revela que mesmo em uma interação na qual o uso do juridiquêz apresenta-se reduzido, outras ações interacionais dão conta de construir um ambiente adverso para a participante leiga. Diante de tal constatação, a pergunta que guia esse trabalho é: como se traduz a hostilidade nos encontros legais na fala-em-interação? Para responder a essa pergunta, alguns conceitos necessitam ser revisados. Sendo assim, passa-se a uma breve fundamentação teórica acerca de alguns conceitos caros à AC e à sociolinguística interacional. 2. Breve fundamentação teórica e metodologia É comum que algumas sequências interacionais sejam organizadas em ações pareadas (SACKS, 1992). Isto implica dizer que, em certas ocasiões, quando uma fala é produzida por um dos participantes da conversa, abre-se espaço interacional relevante para que outra fala seja proferida em resposta à primeira, de maneira de elas formem um par adjacente (SACKS, 1992). Nesse sentido, pergunta-resposta, oferta-aceitação/rejeição, saudação-saudação, ordem-execução, entre outros, são exemplos de pares adjacentes. Face à primeira parte, a segunda parte do par adjacente obedece a uma organização de preferência (POMERANTZ, 1984), conforme mostra o quadro abaixo, de forma resumida: Quadro 1: adaptado por LEVINSON, 1983, p.91 apud MARCUSCHI, 2001, p. 52 [adaptado por JUNG LAU; OSTERMANN, 2005, p.69] Primeira parte do par Segunda parte do par Preferida Despreferida Pedido Aceitação Recusa oferta convite Aceitação Recusa

323 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 323 Avaliação Concordância Discordância Pergunta resposta esperada resposta inesperada censura ofensa crítica Recusa não-resposta Admissão De acordo com que se pode depreender do quadro acima, a segunda parte do par adjacente, nesses casos, pode ser categorizado em (i) resposta preferida e (ii) resposta despreferida. Há algumas características linguísticas que marcam as respostas despreferidas, a saber: enquanto (i) tende a apresentar pouco material morfológico, (ii) tende a vir marcada com maior material morfológico e a trazer hesitações, prefácios, justificativas, desculpas e mitigadores em sua formulação (POMERANTZ, 1984). Além disso, é importante ressaltar que (i) e (ii) são ações sócio-culturalmente determinadas e que (ii) são, de um modo geral, evitadas entre os interagentes. O emprego das respostas (des)preferidas está intimamente ligado ao conceito de face, cunhado por GOFFMAN (1995, 213), segundo o qual face é o valor social positivo que os indivíduos querem criar e/ou manter para si mesmos. Em relação ao conceito de face, Ostermann (2006, p. 18) lembra que em circunstâncias normais, interagentes visam a manter não apenas a sua própria face, mas também a de outros participantes n interação. De acordo com a autora, o trabalho de manutenção de face, ou facework (GOFFMANN, 1955, p. 213), é realizado através do emprego de estratégias interacionais que garantem a fluidez da interação e se prestam à demonstração de interesse sobre o tópico da conversa e também ao encorajamento que os interagentes podem dar uns aos outros a fim de permitir a continuação da linha de pensamento em voga. Em comparação com conversas mundanas, provavelmente, a mais distinta e mais conhecida característica linguística da fala jurídica é a pergunta, em ambas as formas interrogativas e declarativas [...] 14 sendo que os participantes leigos são largamente controlados por e estão à mercê das perguntas dos profissionais nos encontros legais díades (HOLT; JOHN- SON, 2010, p. 21, minha tradução) 15. Desse modo, a audiência de instrução, foco desse trabalho, que é aquela na qual o juiz toma o depoimento das partes (autor e réu) bem como das testemunhas de cada uma das partes a fim de produzir provas que o possibilite julgar o processo e, se for o caso, expedir sentença, pode representar um evento hostil (HOLT; JOHNSON, 2010) para os participantes leigos. 14. No original: Probably the most distinctive and most widespread linguístic feature of legal talk is the question in both interrogative and declative form [...]. 15. No original: Lay interactants are largely controled by and at the mercy of questions from professionals in dyadic legal encounters.

324 324 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação No caso do participante leigo estar experimentando o evento (audiência de instrução) pela primeira vez e, em muitos casos, por uma única vez na vida (DREW; HERITAGE, 1992, p. 110) 16, há a possibilidade de que as ações interacionais praticadas pelos profissionais do Direito resultem em necessidade de esforço interacional por parte do participante leigo ao lidar com pressupostos concernentes ao evento a sua frente. Desse modo, conflitos interacionais podem surgir face ao desconhecimento do participante leigo com relação à rigidez imposta pelo evento em si e sua consequente não orientação para o fato de que os turnos, nesse caso, são pré-alocados, ou seja, compete ao participante leigo se manifestar somente perante a anuência do juiz. Os exemplos dos excertos 1 e 2, mostrados a seguir, se prestam para mostrar como a participante leiga, através de sua fala, demonstra não ter familiaridade com as regras discursivas operadas em audiências de instrução. O propósito de trazer os excertos supracitados é implicativo ao que se quer discutir mais tarde a respeito do perceptível desalinhamento por parte dos participantes do Direito, de forma acentuada, por parte do juiz, diante do desconhecimento da participante leiga em questão. Os excertos que fazem parte dos dados analisados para esse trabalho foram extraídos de um corpus formado por interações gravadas em áudio que ocorreram em audiências de instrução no ano de 2008, em um fórum da região metropolitana de Porto Alegre. As falas foram transcritas segundo as convenções de transcrição elaboradas por Jefferson (1974) e adaptadas por Schnack, Pisoni e Ostermann (2005). Para fins de produção do presente artigo, as transcrições foram revisadas no laboratório Lacontext do departamento de Linguística Aplicada da Unisinos. As convenções de transcrição adotadas aqui se encontram em anexo ao final do artigo. Ressalta-se, também, que todas as informações referentes aos participantes foram anonimizadas de forma a preservar suas identidades. 3. Não, a gente fica meia perdida, né? : o desempacotamento da hostilidade na fala-em-interação em uma audiência de instrução É sabido que julgamentos e audiências são convencionalmente governados por um sistema rígido que permite somente aos/às participantes do Direito escolher os tópicos a serem respondidos, fazer perguntas e controlar a interação como um todo. Em contraste, testemunhas não podem introduzir tópicos ou fazer perguntas outras que não pedidos de esclarecimento quando os/as participantes do Direito não são claros (Shuy, 2011). Além disso, conforme colocam Johnson e Coulthard (2010, p. 4, minha tradução) 17, 16. No original: once at a lifetime 17. No original: Lay individuals are always disadvantadged in institutional contexts because they lack the ian institutional perspective and lack knowledge of the hybrid institutional registers they encounter.

325 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 325 participantes leigos/as estão sempre em desvantagem em contextos institucionais devido a falta de perspectiva institucional e a falta de conhecimento acerca dos registros institucionais híbridos que eles encontram em tais contextos. Além das restrições concernentes às possibilidades de fala e, muitas vezes, aos conhecimentos acerca dos registros profissionais híbridos impostos aos participantes leigos, esses últimos também podem encontrar-se em situação de desvantagem em relação a outros tipos de práticas que, por vezes, fazem parte dos encontros institucionais. No caso das audiências de instrução aqui analisadas, por exemplo, uma das práticas para a qual a participante leiga mostra não estar orientada diz respeito à gravação do evento. No excerto que se segue, a assistente do juiz está orientada para colher os dados pessoais da participante leiga, Kátia. Como se pode perceber, o juiz, na linha 5, solicita que Kátia se aproxime do microfone. Vale lembrar, aqui, que existem, pelo menos, dois tipos de público para os quais os profissionais do Direito estão, supostamente, orientados: os participantes presentes na audiência juízes, promotor(es), advogado(s), autor(es), réu(s), e testemunha(s) - e o público leitor dos registros oficiais (ANDRADE, 2010). Desse modo, ao solicitar que Kátia aproxime-se do microfone, o juiz dá mostras de estar orientado para a necessidade de ter a fala de Kátia audível na gravação oficial dos depoimentos relativos ao caso em questão. Na linha 7, Kátia oferece a segunda parte do par adjacente aberto pela assistente (não mostrado aqui) e informa sua idade. Na linha 8, a assistente abre mais um par adjacente, agora, com respeito ao estado civil de Kátia ao que a depoente responde sem hesitação, fechando o par. Na linha 10, a assistente profere algo que não foi identificado pela analista e, em seguida,

326 326 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação na linha 11, Kátia diz saber do que se trata (= a sei a té: x >que (se tra:ta)<=), provavelmente referindo-se ao porque de ela ter sido intimada a depor. Na linha 12, a assistente profere um sinal de recebimento da fala do outro 18 (GARDNER, 2001), indicando ter ouvido o que Kátia falou. Nesse ponto, contudo, ao invés de se alinhar ao comentário de Kátia, a assistente demonstra estar orientada para impropriedade da fala da depoente naquele espaço interacional e segue focada em sua tarefa abrindo mais um par adjacente, agora, solicitando que Kátia informe sua profissão. Note-se que Kátia não se orienta imediatamente para a pergunta da assistente, mas somente fechará o par aberto na linha 15, após ter proferido uma fala não relativa ao provimento da informação solicitada e após uma pausa (linha 14) e uma hesitação (ã:, linha 15). O fechamento do par adjacente prefaciado com pausa e hesitação sugere certo estranhamento por parte de Kátia pelo fato de ter tido sua fala ouvida, porém não legitimada. A não familiaridade da participante leiga reside no fato de ela ter falado fora de hora e ter sofrido consequências interacionais por isso. Explicando de outro modo, a fala da depoente, na linha 11, não havia sido autorizada pelo juiz, portanto, embora a assistente tenha sinalizado ter ouvido o que foi falado por Kátia, ela não se engaja no comentário feito pela depoente. É plausível pensar que Kátia tenha dirigido sua fala não somente para a assistente, mas também ao juiz, uma vez que ele estava posicionado a sua frente e já havia se dirigido a ela (linha 5). Nesse ponto, embora nem sempre seja possível, é essencial que se diga que gravações em vídeo são de grande utilidade como fontes de recursos preciosos para pesquisas em AC pela possibilidade de incorporação de mais elementos de sustentação para as análises como, por exemplo, pistas de contextualização (GOFFMAN, 1974; 1981) 19 (gestos, direcionamento do olhar, etc.). De um modo ou de outro, pode-se dizer que o comentário de Kátia não tem sua fala legitimada. O lapso de tempo entre a abertura da primeira parte do par adjacente feita pela assistente e o momento de provimento da segunda parte do par feito por Kátia aliado ao material morfológico que indica hesitação na fala evidenciam um possível estranhamento da depoente com relação ao desvio do que é comum que se espere em uma situação similar em contexto de conversa mundana. Em outras palavras, um comentário como o feito por Kátia também constitui a abertura de um par adjacente e, como tal, requer que a segunda parte do par opere como endosso da primeira. Como se percebe, nesse caso, o sinal de recebimento da fala do outro da assistente não cumpre o papel de endossar a fala da depoente. O desconhecimento de Kátia perante os procedimentos comuns às audiências de instrução pode ser percebido também em outra sequência interacional, conforme mostrado mais adiante. 18 No original: Acknowledgement token. A tradução para o português foi sugerida por Ana Cristina Osterman. 19 No original: Contextualization Cues.

327 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 327 Conforme mencionado acima, as gravações das interações feitas nas salas de audiências constituem parte integrante do processo em andamento. Essas gravações visam a institucionalizar o fato relatado. Conforme lembra Andrade (2010, p. 27), em casos de crimes julgados em tribunais de 2ª instância, esse documento representará a versão oficial e definitiva do depoente, uma vez que ele não mais terá a chance de se pronunciar sobre o caso. Sendo assim, é imprescindível que, frente a uma pergunta, o depoente verbalize suas respostas não podendo, por exemplo, assentir ou negar com a cabeça ou, ainda, proferir sua fala em volume insatisfatório tendo em vista os propósitos da gravação. Desse modo, o excerto 2, apresentado a seguir, se presta para mostrar a não orientação da depoente para a necessidade de se fazer ouvir, não somente pelos participantes presentes, mas também pelo possível público leitor dos registros oficiais. O excerto em questão inicia com uma pergunta feita pela promotora dirigida à Kátia (linha 86). Após uma pausa, Kátia responde com um recibo responsivo (GARDNER, 2001, p. 95, minha tradução) 20, na linha 89. Percebe-se, pela convenção de transcrição, que ela produziu sua fala em volume mais baixo. Após mais uma pausa, na linha 91, o juiz solicita que Kátia confirme sua resposta. A depoente, na linha 93, confirma sua resposta dando ênfase ao sim proferido por ela. A ênfase pode ser observada através dos sinais de sublinhado (_), que indica som acentuado e pelo sinal de divisão (:), que indica prolongamento da fala. Após mais uma pausa de 1.0 (1 segundo), Kátia, na linha 95, ao que parece, presta contas (COULON, 1995, p. 42) 21 da sua maneira de falar (é que eu falo interessante notar que a fala de Kátia não é completada por um adjetivo (meio o que?), mas é acompanhada de um pulso de risada (@). Segundo Jefferson (1979, p. 80), o riso, na maioria das vezes, pode ser considerado uma atividade através da qual um participante convida outro(s) participante(s) a rir. Uma vez que a atividade de rir pode funcionar como uma ação de convidar, o(s) participante(s) para quem o convite foi endereçado pode(m) aceitá-lo ou decliná-lo. Uma das formas através da qual o(s) participante(s) convidado(s) a rir pode(m) declinar o convite é dar seguimento à conversa preenchendo o turno subsequente de modo a ignorar a risada (JEFFERSON,1979, p. 93). O riso (ou a ausência dele) exerce um importante papel quando se trata de externar (des)afiliação em uma interação, além de mostra-se útil em situações de desconforto, ansiedade e vergonha (GLENN, 2003, p. 80). Segue-se o excerto: 20. No original:, answering Mm [token] 21. No original: accountability. A tradução para o português foi sugerida por Garcez (2008, p. 27).

328 328 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação Jefferson (2003) explica que o riso é um elemento interacional que pode se prestar para várias ações, dentre elas, lidar com situações embaraçosas. Desse modo, pode-se pensar que a fala de Kátia funciona quase como um pedido de desculpas pelo seu modo de falar. Nesse ponto, é importante salientar que não se tem como saber como a depoente se sentiu ou o que ela pensou ao dizer o que disse, mas pode-se refletir, sob a perspectiva da sequencialidade, sobre que ação aquela fala desempenhou naquele turno. Sendo assim, não parece provável que Kátia estivesse orientada para a necessidade de ser fazer audível para os propósitos da gravação. De outro modo, a construção do turno de Kátia parece indicar que a depoente tenha buscado uma forma de lidar com um possível mal-estar diante da situação embaraçosa em que ela se encontra, a saber, ter sido impelida pelo juiz a confirmar sua resposta, sem que lhe tenham explicitado que a audiência seria gravada e muito menos da necessidade de se falar alto e em bom tom 22. As análises dos dois excertos supracitados servem de contextualização para a discussão sobre as proporções hostis que podem tomar os encontros legais vis-à-vis algumas sequências interacionais. Nos excertos que se seguem, três aspectos podem ser evidenciados nas interações analisadas: a) a não familiaridade da depoente com o evento traz complicações práticas sobre seu entendimento de como ela deve proceder perante os documentos que ela deve assinar; b) a resistência do juiz em oferecer alguma espécie de ajuda que tranquilize a depoente acerca da assinatura daquele papel e c) a ausência de esclarecimentos pela promotora, embora, em alguns momentos, ela se mostre mais sensível às necessidades da depoente. Embora não fique explícito no excerto mostrado abaixo, a audiência está se encaminhando para o final e o juiz solicita que a depoente assine o termo de confirmação de comparecimento à audiência. No excerto 3, na 22. A pesquisadora possui a transcrição total da interação e, por isso, pode afirmar que tal informação, em nenhum momento, foi apresentada à depoente.

329 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 329 linha 110, Kátia, ao que parece, começa a ler o documento, haja visto seu comentário ( <só tô: (.) tentando (entendê)>, na linha 113. Após uma pausa na qual a depoente, provavelmente, dá continuidade à sua leitura, na linha 116, Kátia solicita uma explicação (você pode me expli cá assim >o que que:<) ao que a promotora lhe explica tratar-se do termo de confirmação de comparecimento à audiência (linhas 118, 119, 120). Note-se que o prolongamento da fala de Kátia, sinalizado por (:), abre um espaço relevante para a tomada de turno. No entanto, a promotora não toma o turno prontamente, mas somente após uma pausa. A pausa, numa interação face-a-face, assim como o riso, pode desempenhar ações variadas não podendo ser tomada, a priori, como negativa. Entretanto, na interação em análise, é plausível refletir sobre o aspecto negativo da pausa na linha 117 haja vista que a solicitação de Kátia demonstra sua preocupação com relação ao documento que ela teve que assinar sem ler. Segue-se o excerto: Como se pode perceber pela sequencialidade dos turnos, mesmo depois da explicação da promotora, Kátia dá mostras de que as dúvidas permanecem (linha 121). O turno de Kátia inicia-se com sim, o que, em princípio, pode levar a crer o seu entendimento acerca do que representa o papel em questão (documento de confirmação de seu comparecimento à audiência), contudo, o conteúdo morfológico do turno (>sim mas o que que (vai sê) fe:ito< algum processo,) sugere que ela requer mais informações sobre o que acontecerá depois da audiência, ou seja, que caminhos o processo irá tomar. A entonação contínua na fala de Kátia, nesse caso específico, sinalizada por uma vírgula (,), abre um espaço relevante para tomada de turno e a promotora, dessa vez, em fala colada, provê mais elementos informativos concernentes ao processo em andamento.

330 330 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação Para os propósitos da análise do próximo excerto, faz-se necessário esclarecer que, no momento da interação em discussão, o juiz já havia terminado de interrogar a depoente e havia passado a palavra ao ministério público, ou seja, à promotora. No excerto 4, apresentado a seguir, a depoente continua engajada na interação com a promotora quando o juiz se manifesta. Segue-se o excerto: Na linha 134, Kátia questiona seu direito a uma cópia do documento (>vou ganhá uma cópia de:ssa,<). Após uma micro pausa, o juiz, que tinha se manifestado pela última vez na linha 104 para encerrar oficialmente a audiência (não mostrado aqui), toma o turno na linha 136 ( não. ). A resposta do juiz, conforme o que aponta Pomerantz (1974), apresenta-se no formato preferido, o que pode ser pensado como uma das formas de contribuição para a construção da hostilidade desse encontro situado. Explicando de outro modo, observa-se, na maioria das situações de fala-em-interação, que os interagentes, ao terem que negar algo a alguém, tendem a proteger suas próprias faces bem como as faces dos seus interlocutores (GOFFMAN, 1955). Uma das formas ad hoc de trabalho de proteção de face, nesses casos, é a mitigação da resposta que, normalmente, vêm acrescidas de carga morfológica, de hesitação e de prestações de contas (COULON, 1995, p. 42) da razão pela qual uma negação é necessária naquele momento. Ou seja, nesses casos, o formato socialmente esperado é o despreferido. A resposta do juiz, contudo, apresenta-se em um formato que contraria o que é socialmente esperado. Em outras palavras, em face do formato preferido em que se apresenta (direta, sem hesitação, sem pausas e sem acréscimo de carga morfológica), a resposta do juiz pode ser conside-

331 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 331 rada uma ameaça à face da depoente. Reflete-se também sobre o fato de a resposta preferida do juiz não apresentar, ao que parece, uma ameaça a sua própria face. Nesse aspecto, embora não se possa tomar a figura do juiz como detentor do poder aprioristicamente, pode-se dizer que a fala dele, nesse caso, opera em prol da construção de sua identidade enquanto detentor do poder. Conforme vê-se, à resposta do juiz, segue-se uma pausa relativamente longa. Note-se que Kátia não se manifesta frente à negativa do juiz. Tendo-se aberto um espaço relevante para a troca de turnos após a pausa, a promotora toma o turno e oferece uma alternativa à depoente: conseguir um atestado (provavelmente para fins trabalhistas, já que a depoente havia mencionado estar trabalhando. Sequência não mostrada aqui). O juiz se alinha à promotora ( um comprovante ãhã.) e, em seguida, a promotora indica o local onde Kátia deve ir para conseguir o atestado. Kátia, porém, não confirma precisar do atestado, mas insiste em saber se ela não ganha nenhum papel (linha 142). A fala da depoente apresenta-se com entonação ascendente nas palavras ganho, ne nhum e pa pel, sinalizada com o símbolo de seta para cima ( ), o que evidencia a ênfase colocada nessas palavras. Ainda sobre esse turno de fala, pode-se observar que Kátia também traz a palavra não ([não] ganho ne nhum pa pel) (linha142). A indagação de Kátia apresenta-se em formato de pergunta de polaridade negativa (BOLINGER, 1978). Segundo essa autora, perguntas de mesma polaridade suscitam respostas que vão ao encontro da concordância sobre o que foi perguntado. Dito de outra forma, esse tipo de pergunta suscita uma resposta que tenha a mesma equivalência polar (positiva ou negativa) da pergunta (ANDRADE, 2010) no turno subsequente. Desse modo, pode-se pensar que ao preencher seu turno com uma pergunta de polaridade negativa, Kátia requerera uma resposta negativa do juiz. No entanto, seguindo Lamerichs e Molder (2005), é preciso refletir não somente sobre o turno subsequente à fala de Kátia, mas também sobre que efeitos interacionais a resposta precedente do juiz, na linha 136, pode ter exercido na formação do turno da depoente. Em outras palavras, ao comparar-se a primeira pergunta feita por Kátia com respeito ao seu direito de obter uma cópia do papel ( >vou ganhá uma cópia de:ssa,<) (linha 136), percebe-se que ela não emprega uma pergunta polarizada, contudo, diante da diretiva do juiz, na linha 137, pode-se pensar que Kátia tenha reformulado a sua pergunta ( linha 142) de modo a salvar sua face bem como a face do juiz. Desse modo, a depoente parece estar orientada para a polaridade negativa da resposta prévia do juiz e não que o juiz tenha proferido uma resposta alinhada à polaridade da pergunta feita pela depoente. Além disso, note-se que o juiz se orienta para o verdadeiro desejo de Kátia qual seja, a cópia daquele papel à mão e não o atestado que pode ser conseguido na porta de vidro ao lado, conforme sugerido pela promotora. O desejo de Kátia

332 332 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação se confirma no seu turno da linha 145 ( não eu digo de:sse aqui.) ao que o juiz novamente nega e é endossado,dessa vez, pela promotora. Diante da terceira negativa do juiz e do endosso da promotora, Kátia repete a negativa em volume baixo ( não,, linha 148). Veja-se como a depoente lida com a situação que lhe é imposta frente a sua falta de familiaridade com os procedimentos próprios a esse tipo de audiência, no excerto 5, a seguir: Após uma breve explicação por parte da promotora de que o processo criminal diz respeito ao acusado, entre os turnos 150 e 156, Kátia expressa sua apreensão. A carga morfológica trazida por Kátia dá conta de explicitar que ela estava perdida, que não sabia o que estava se passando e que havia consultado o advogado da empresa onde trabalhava com respeito a ter que prestar depoimento. Observa-se também que há vários momentos nos quais a promotora ou o juiz poderiam ter tomado o turno, mas não o fizeram, o que pode explicar o alongamento do turno de Kátia. É somente depois de uma pausa mais prolongada que a promotora tranquiliza a depoente, ainda assim, sem prover mais explicações sobre os procedimentos práticos adotados em situações de audiência de instrução. 4. Considerações finais No que concernem aos pressupostos teórico-metodológicos da Análise da Conversa, a análise apresentada dá conta de desempacotar as ações interacionais dos participantes do Direito que se traduzem na hostilidade dos encontros legais abordada por Holt e Johnson (2010). As respostas negativas dadas pelo juiz em formato preferido diante das indagações de Kátia, em três ocasiões, sugerem que ele não se orienta interacionalmente para as dúvidas externadas pela depoente e ainda se utiliza da construção do turno em formato preferido para se construir como detentor do poder e ameaçar a face de Kátia. No contexto situado em questão, as ações empreendidas pelo juiz geram consequências para a depoente, ou seja, percebe-se que ela tem que empregar esforços interacionais para lidar com uma situação, ao que parece, até então inusitada para ela em um ambiente que se mostra pouco

333 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 333 amigável. Uma das formas que a depoente encontra para lidar com a desafiliação do juiz é reformular o design do seu turno de modo a construir uma pergunta de polaridade negativa, tendo em vista a primeira resposta negativa do juiz frente a sua primeira pergunta. A depoente, ao empregar essa estratégia interacional, salva sua face e a face do juiz, agindo em conformidade com o que é esperado socialmente. As falas da promotora, por sua vez, trazem mais carga morfológica e apresentam-se em formato despreferido diante das indagações da depoente (pedido de explicação fornecimento de explicação), o que, nessas ocasiões, é socialmente esperado. No entanto, as respostas dadas pela promotora diante das indagações de Kátia não podem ser interpretadas como não problemáticas, hajam vistas as pausas que as antecedem. Além disso, de qualquer forma, pela sequencialidade da interação, vê-se que as explicações ofertadas pela promotora não dão conta de despreocupar a depoente. Ainda, uma última informação faz-se necessária nesse ponto para reforçar as conclusões tiradas a partir das análises feitas. Embora não mostrado aqui por motivos de limitação de espaço, mesmo diante da proposta da promotora de que ela deve se tranquilizar, a depoente mostra-se insegura e retorna à sala de audiência após alguns minutos de ausência para, mais uma vez, perguntar se não havia mesmo nenhum problema em ter assinado o documento requerido pelo juiz. Isso demonstra que as informações providas pela promotora não foram suficientes para dissipar as dúvidas da depoente. As questões levantadas aqui servem como reflexão sobre os direitos dos cidadãos em saber o que se passa em situações como a apresentada no artigo. Dito de outro modo, qualquer cidadão intimado a oferecer seus préstimos de forma a contribuir com a justiça brasileira deveria ter o direito preservado de conhecer os motivos pelos quais foi chamado a comparecer a uma audiência de instrução. Ademais, o cidadão tem o direito de ser notificado quanto ao fato de as interações nas salas de audiência serem gravadas e também de ser informado sobre a razão de tal procedimento. Deveras importante, ainda, o cidadão tem o direito de saber que tipo de documento está sendo impelido a assinar. Todas essas medidas tendem a evitar complicações interacionais que possam contribuir para a percepção do senso comum de que as audiências de instrução são constrangedoras e hostís. No que tange à área forense, os trabalhos em ACA podem contribuir para a sensibilização dos profissionais do Direito em relação às necessidades e anseios dos depoentes, principalmente em se tratando de participantes não familiarizados com os procedimentos adotados em audiências públicas. Precisa-se ter em mente, porém, que, diferentemente do que tende a acontecer em situações comerciais, talvez, os participantes do Direito, na esfera pública, não sejam receptivos às propostas que visam ao aprimoramento dos recursos linguísticos dos profissionais, dado o engessamento próprio da área. Entretanto, essa não é uma afirmação com valor de verdade sem que antes seja feito um trabalho de campo com vistas a apresentar a esses pro-

334 334 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação fissionais as possibilidades oferecidas pelas pesquisas em ACA. De qualquer forma, pensa-se que as práticas previstas a partir de pesquisas em ACA possam ser do interesse de profissionais forenses que atuam na esfera privada nos mesmos moldes de interesse apresentados por profissionais de outras áreas. É necessário lembrar, porém, que problemas éticos podem surgir para os analistas da conversa, tendo em vista a natureza conflitante própria da área forense, e cabe a cada pesquisador se posicionar com bom senso e discernimento sob pena de macular a AC(A) e os seus membros. Referências ANDRADE, Daniela Negraes P. O uso de referentes pessoal e de lugar e o uso de formulações em interrogatórios na corte. São Leopoldo, RS. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, ANTAKI, Charles. Applied Conversation Analysis: Intervention and Change in Institutional Talk. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011 BOLINGER, Dwight. Yes-no questions are not alternative questions. In: HENRY, Hiz. (Ed.) Questions. Dordrecht: Reidel, 1978, p BROWN, Penelope; LEVINSON, Stephen. Politeness: some universal in language usage. Cambridge: Cambridge University Press, COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis: Editora Vozes, 1995, 134p. DEL CORONA, Márcia. O universo do 190 pela perspective da fala em interação. São Leopoldo. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, 2012 DREW, Paul. Foreword: Applied linguistics and conversation analysis. In: RICHARDS, Keith; SEEDHOUSE, Paul. Applying Conversation Analysis. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005, p. xiv-xx. DREW, Paul; HERITAGE, John. Talk at work: interaction in institutional settings. Cambridge: Cambridge University Press, p. JEFFERSON, Gail. A note on laughter in male-female interaction. London: Discourse Studies, v.6, n.1: , JEFFERSON, Gail. A note on resolving ambiguity. In: GLENN, Phillip J.; LEBARON, Curtis D.; MANDELBAUM, Jenny. (Eds) Studies in Language and Social Interaction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 2003, p

335 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 335 JEFFERSON, Gail, A technique for inviting laughter and its subsequent acceptance/declination. In: PSATHAS, George. (Ed.) Everyday language: Studies in ethnomethodology. New York, NY: Irvington Publishers, 1979, p JEFFERSON, Gail. Error correction as an interaction resource. Language in Society, v.3, n.2: , GARCEZ, Pedro M. A perspectiva da análise da conversa etnometodológica sobre o uso da linguagem em interação social. In: LODER, L. L; JUNG, N. M. Fala-Em-Interação Social: Introdução à Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas: Mercado de Letras, 2008, p GARDNER, Rod. When listeners talk: response tokens and listener stance. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, GLENN, Phillip. Laughter in interaction. New York: Cambridge University Press, 2003, 190p. GOFFMAN, Erving. Frame Analysis. New York: Harper & Row, 1974, Interaction. Psychiatry: Journal for the Study of Interpersonal Processes, v. 18, p , GOFFMAN, Erving. On face-work: an analysis of ritual elements in social interaction. Psychiatry: Journal for the Study of Interpersonal Processes, v.18, p , HERITAGE, John; ROBINSON, Jeffrey D. Some versus Any medical issues: encouraging patients to reveal their unmet concerns. In: RICHARDS, Keith; SEEDHOUSE, Paul. Applying Conversation Analysis. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005, p HOLT, Elizabeth; JOHNSON, Alice. Legal Talk. Socio-pragmatics of legal talk: police interview and trial discourse. In: COULTHARD, Malcolm; JOHNSON, Alice. The routledge handbook of forensic linguistics. London and New York: 2010, p HUTCHBY, Ian; WOOFFIITT, Robin. Conversation Analysis: Principles, Practices and Applications. Cambridge: Polity Press, JUNG LAU, Carla Rosane; OSTERMANN, Ana Cristina. As interações no telemarketing ativo de cartões de crédito: da oferta velada à rejeição. Alfa, v.49, n. 2, KTZINGER, Celia. Working with childbirth helplines: the contributions and limitations of conversation analysis. In: RICHARDS, Keith; SEEDHOUSE,

336 336 Não, a gente fica meia perdida, né? : como se traduz a hostilidade dos encontros legais na fala-em-interação Paul. Applying Conversation Analysis. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005, p LAMERICHS, Joyce; MOLDER, Hedwig te. Reflecting on your own talk: the discoursive action method at work. In: RICHARDS, Keith; SEEDHOUSE, Paul. Applying Conversation Analysis. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005, p OSTERMANN, Ana Cristina; SOUZA, Joseane de. As demandas interacionais das ligações para o disque saúde e sua relação com o trabalho prescrito. Alfa, v.55, n.1, OSTERMANN, Ana Cristina. Comunidades de prática: gênero, trabalho e face. In: HEBERLE, Viviane M.; OSTERMANN, Ana C.; FIGUEIREDO, Débora de C. (Orgs.). Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: Editora da UFDC, p. OSTERMANN, Ana Cristina. Communities of practice at work: gender, facework and the power of habitus at an all-female police station and a feminist crisis intervention center in Brazil. Discourse Society, V.14, n. 4: , POMERANTZ, Anita. Agreeing and disagreeing with assessments: some features of preferred/dispreferred turn shapes. In: ATKINSON, J. Maxwell; HERITAGE, John. Structures of social action: studies in conversation analysis (Studies in emotion and social interaction). Paris: Cambridge University Press, 1984, p RICHARDS, Keith. Introduction. In: RICHARDS, Keith; SEEDHOUSE, Paul. Applying Conversation Analysis. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005, p SACKS, Harvey. Lectures on conversation. Oxford: Blackwell, v. 1 e v. 2. SACKS, Harvey; SCHEGLOFF, Emanuel; JEFFERSON, Gail. The simplest systematics for turn-taking in conversation. Language, v. 50, n. 4, p , SCHNACK, Cristiane Maria; PISONI, Thaís Dutra; OSTERMANN, Ana Cristina. Transcrição de fala: do evento real à representação escrita. Entrelinhas, v. 2, n. 2, 2005.

337 Daniela Negraes Pinheiro Andrade 337 ANEXO Convenções de Transcrição 2005 [texto] = (1.8) (.),.? - : >texto< <texto> texto TEXT Texto (texto) XXXX hhh.hhh Falas sobrepostas Fala colada Pausa Micropausa Entonação contínua Entonação ponto final Entonação de pergunta Interrupção abrupta da fala Alongamento de som Fala mais rápida Fala mais lenta Fala com volume mais baixo Fala com volume mais alto Sílaba, palavra ou som acentuado Dúvidas Texto inaudível Comentários da transcritora Risada Entonação descendente Entonação ascendente Expiração audível Inspiração audível SCHNACK, C.; PISONI T.; e OSTERMANN, A. Transcrição de fala: do evento real à representação escrita, Entrelinhas, v. 2, n

338 16 Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem 1 1. Introdução Fernando José de Souza Filho Universidade Católica de Pernambuco O presente texto trata das interações entre realidade e linguagem no âmbito dos processos linguísticos que perpassam o discurso legitimante do modelo punitivo hodierno. O capitulo tem como objetivo geral compreender qual a relevância dos processos de linguagem na formação do discurso legitimador do modelo punitivo contemporâneo. O discurso conformador do atual sistema de justiça criminal é estudado à luz da criminologia crítica e da moderna teoria da linguagem. Parte-se da hipótese de que se a linguagem é o elemento fulcral do discurso, utilizando-se esta última palavra com o sentido empregado por Habermas, então o atual modelo punitivo se sustenta a partir de processos de linguagem. São objetivos específicos: identificar os processos de linguagem empregados no discurso legitimador do atual modelo punitivo e compreender qual a importância desse discurso para as instituições estruturadas pelo Estado, para a persecução penal, como também para a manutenção e produção do delito. O fio condutor do presente trabalho é o entrelaçamento da teoria do discurso de Habermas com as ideias de Louk Hulsman. A teoria do discurso de Habermas tem seu foco na racionalidade reflexiva subjacente aos processos linguísticos, de modo que a partir de sua teoria consensual da verdade, serão demonstradas as inconsistências do modelo punitivo ante a denominada situação ideal de fala. 1. Texto elaborado para o evento científico Linguagem e Direito: os múltiplos giros e as novas agendas de pesquisa no Direito. 338

339 Fernando José de Souza Filho 339 Inexoravelmente, linguagem e realidade estão interligadas de modo inseparável, de modo que a prática punitiva moderna é racionalmente justificada através de processos linguísticos. Louk Hulsman considera que o atual sistema de justiça criminal utiliza a linguagem da punição do cotidiano da população para mascarar os reais mecanismos aplicados na prática penal. Portanto, o modelo punitivo hodierno passa, no presente texto, pelo crivo da moderna teoria da linguagem, demonstrando-se as gigantescas contradições existentes nesse modelo. Nesse contexto, verifica-se que as expressões linguísticas podem apresentar uma dupla dimensão: tanto descritiva, quanto prescritiva; sendo este segundo plano indispensável à compreensão da diferença entre aquilo que é prometido pelo modelo institucional, em relação aquilo que é efetivamente aplicado na persecução penal. No mesmo sentido, tem-se que a persuasão é um dos atributos da linguagem, devendo ser considerado esse aspecto fundamental do discurso, pois é amplamente utilizado para legitimar o atual modelo punitivo. Consequentemente, analisa-se o discurso que, ao mesmo tempo, mantem as instituições destinadas a punir e é responsável pela produção dos delitos, adentrando-se nas estruturas fundamentais da gênese da criminalidade. Nessa conjuntura, serão estudadas as interações entre os processos linguísticos e os mecanismos utilizados pelo Estado para solucionar desvios ou desajustes de conduta. O entrelaçamento da teoria do discurso de Habermas com as ideias de Louk Hulsman proporciona uma visão muito mais ampla do atual modelo punitivo, fazendo com que os paradigmas tradicionalmente consolidados na prática penal, sejam vistos numa perspectiva diametralmente oposta aquela preconizada pelo discurso legitimante. A filosofia é um poderoso instrumento de desconstrução de paradigmas, capaz de ampliar as vias de entendimento de determinada matéria, através da problematização. A filosofia de Habermas, precisamente a teoria do discurso, aplicada à criminologia crítica permite, nesse trabalho, um aprofundamento das ideias de Louk Hulsman acerca da gênese da criminalidade, sobretudo dos mecanismos institucionais de produção e manutenção do delito. O presente capitulo tem significativa relevância científica pois servirá de subsídio para o aperfeiçoamento do sistema de justiça criminal contemporâneo, além de fornecer elementos indispensáveis à compreensão da influência da linguagem na manutenção do atual modelo de punição aplicado pelo Estado. A pesquisa é bibliográfica e descritiva, pois visa descrever a influência do discurso utilizado pelo atual sistema de justiça criminal à luz da criminologia crítica e da moderna teoria da linguagem, com ênfase na teoria do

340 340 Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem discurso de Habermas e nas ideias de Louk Hulsman. Habermas e Louk Hulsman estão lado a lado nesta jornada rumo ao entendimento das estruturas linguísticas que instrumentalizam a formação embrionária da criminalidade nas sociedades contemporâneas. 2. A consciência moral Como ponto de partida, por ser indispensável para a compreensão da teoria do discurso, serão tratados aspectos relativos à consciência e à moral, apresentando-se um sentido à expressão consciência moral. Consciência, em síntese, de acordo com a definição de John R. Searle, são estados e processos de sensibilidade ou ciência, internos, qualitativos e subjetivos. (SEARLE, 2010, p. 55) Tais estados e processos de sensibilidade ou ciência têm na subjetividade a sua característica de maior relevo, a qual pode ser apresentada como o pertencimento individual da consciência, ou seja, como ontologicamente única e exclusiva de cada indivíduo. ( SEARLE, 2010, p. 58) Desse modo, tem-se que a consciência, por ser subjetiva, é percebida por cada pessoa de modo diferenciado, sendo alcançada por cada indivíduo de forma particular. Habermas realoca o foco da problemática da consciência moral da consciência para a linguagem. Nesse prisma, tem-se que no quadro da filosofia da consciência, não é possível, portanto, afirmar coerentemente, ao mesmo tempo, atividade do sujeito e intersubjetividade ( DUARTE, 2004, p. 185) Há, portanto, uma mudança de paradigma no âmbito da consciência moral, da subjetividade, que é eminentemente individual, para os processos linguísticos, que são intersubjetivos. Viceja a relevância da racionalidade reflexiva subjacente aos processos linguísticos, havendo um deslocamento da subjetividade para a objetividade, de modo que apenas a passagem para o paradigma do entendimento permite resolver a questão de uma razão concomitantemente situada e crítica. (DUARTE, 2004, p. 185) A relevância da consciência no discurso prático, nos termos estabelecidos por Habermas, reside, justamente, na formação de uma ponte entre o ego e o alter. Nesse sentido, o consenso sobre algo mede-se pelo reconhecimento intersubjetivo da validade de um proferimento fundamentalmente aberto à crítica. (HABERMAS, 2002, p. 77) Do mesmo modo, a auto-relação moral-prática do ator que age comunicativamente exige uma atitude reflexiva ante suas próprias ações reguladas por normas. (HABERMAS, 2004, p. 103)

341 Fernando José de Souza Filho 341 A reflexividade individual é elemento primordial da racionalidade discursiva. Por outro lado, há um amálgama entre a reflexividade individual e a sociedade, de modo que a auto relação existencial exige uma atitude reflexiva ante o projeto de vida próprio, no contexto de uma biografia individual, mas entrelaçada com formas de vidas coletivas dadas. (HABERMAS, 2004, p. 103) Etimologicamente, tem-se que o vocábulo moral (do latim mors, morus, mores, morale) é produto de uma das tentativas de tradução de ética. (MOLINA, 2003, p. 34) A ligação entre o direito e a moral é reconhecida por Habermas, tese originariamente sustentada por Robert Alexy, para o qual o raciocínio jurídico é um caso especial de juízo moral. Há, dessa maneira, uma ligação entre direito e moral, a partir da complementariedade do discurso jurídico e das normas deônticas, hipótese que também se enquadra na doutrina de Dworkin, segundo a qual os princípios jurídicos são a dimensão jurídica da moralidade. ( DUARTE, 2004, p. 188) Para Alexy, pelo fato da argumentação jurídica ser uma atividade linguística, sua teoria da argumentação jurídica se fundamentou na correção dos enunciados normativos. Designando essa atividade linguística dos enunciados normativos de discurso prático. Portanto, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. ( ALEXY, 2011, p. 30) Além disso, Habermas considera que há uma confluência entre a ética do discurso e teoria de Kohlberg acerca do desenvolvimento da consciência moral e que, dessa maneira, essa última confirmaria a primeira. (HABER- MAS, 1989, p. 143) A teoria de Kohlberg está baseada em três premissas: cognitivismo, universalismo e formalismo. Em relação ao cognitivismo a ética do Discurso refuta o cepticismo ético, explicando como os juízos morais podem ser fundamentados, ou seja, a ética do discurso também é adepta do cognitivismo, ideia que aplicada à moral, indica que juízos morais pressupõem uma racionalidade reflexiva obtida a partir do conhecimento. No tocante ao universalismo, a teoria do discurso refuta o relativismo ético, para o qual a validez dos juízos morais só se mede pelos padrões de racionalidade ou de valor da cultura ou forma de vida à qual pertença em cada caso o sujeito que julga. ( HABERMAS, 1989, p. 147) Por fim, o formalismo, que significa que a ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo.( HABERMAS, 1989, p. 148)

342 342 Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem 3. Teoria do discurso O fio condutor do presente trabalho é a teoria do discurso de Habermas, com ênfase na racionalidade subjacente aos processos linguísticos. A teoria de Habermas acerca da ética, a denominada ética do discurso, parte das reflexões sobre a linguagem segundo Wittgenstein para explorar a possibilidade de identificar na comunicação humana e nas suas regras intrínsecas uma via de acesso à ética. (NERI, 2004, p. 213) Desse modo, as regras intrínsecas à prática social da interação comunicativa não são simples regras gramaticais ou linguísticas; incluem, porém, princípios de ordem moral, que têm força normativa. ( NERI, 2004, p. 214) Nesse intento, perpassa-se o âmbito da denominada metalinguagem, cujo objeto central reside na preocupação de superar as deficiências de uma linguagem qualquer para criticá-la ou chegar a maior exatidão. (LE- PARGNEUR, 1972, p. 27) É relevante destacar que Habermas forma a sua teoria da ética do discurso com base na filosofia da linguagem, especificamente a partir das ideias do segundo Wittgenstein, de Austin e de Searle, e, dessa maneira, buscando os pressupostos universais da ação comunicativa, desde o ponto de vista de uma análise interacionista do estabelecimento de relações interpessoais, reconstruirá a teoria dos atos de fala( Austin e Searle). ( DUAR- TE, 2004, p. 181) 3.1 O agir comunicativo e o cognitivismo Cumpre destacar a posição cognitivista acerca da ética defendida por Habermas, para o qual razões morais estão ligadas à pretensões de validez racionalmente justificáveis, rechaçando fortemente teorias não-cognitivistas como o emotivismo e o decisionismo. (HABERMAS, 1989, p. 62) O cognitivismo está associado à ideia de uma racionalidade reflexiva como pressuposto do conhecimento. Para Habermas, apesar da teoria decisionista de Hare ser melhor que as doutrinas emotivistas e imperativistas por considerar que questões morais são debatidas através de razões, é falha por não associar pretensões de verdade à argumentação. ( HABERMAS, 1989, p. 76) Por outro lado, Habermas dá destaque a teoria de Toulmin asseverando que Toulmin não se atém mais à análise semântica de expressões e frases, mas concentra-se quanto ao modo de fundamentação das proposições normativas. ( HABERMAS, 1989, p. 78) Inicialmente, cabe tratar do conceito de agir comunicativo, como sendo as interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medin-

343 Fernando José de Souza Filho 343 do-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez.( HA- BERMAS, 1989, p. 79) A diferenciação entre ação estratégica e ação comunicativa é essencial para se compreender essa última expressão. Nesse sentido, no denominado agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de adesão. (HABERMAS, 1989, p. 79) Perceba-se que a diferença fundamental entre os dois conceitos apresentados por Habermas reside na racionalidade presente no agir comunicativo ante as ingerências intersubjetivas que perpassam o agir estratégico. Dessa forma, a interação estratégica, para Habermas, é, em síntese, uma ação orientada para o êxito, ao passo que ação comunicativa é uma ação orientada para a compreensão intersubjetiva, que alcança a sua plenitude no exercício sem barreira da comunicação. ( ATIENZA, 2003, p. 206) Nos processos linguísticos em que há interações o falante ergue pretensões de validade, através de atos de fala, desejando que o dito por ele seja válido ou verdadeiro num sentido amplo. ( ATIENZA, 2003, p. 161) O conceito de discurso para Habermas está diretamente relacionado à ideia de interação comunicativa, havendo, para esse filósofo, a transição da ação comunicativa para o discurso quando ocorre a problematização das pretensões de validade. Quando a problematização da pretensão de validez está ligada à verdade de proposições assertivas, tem-se o discurso teórico, ao passo que quando toca proposições regulativas, alcança-se o discurso prático. ( ATIENZA, 2003, p. 162) O objeto principal de estudo desse trabalho está centrado no denominado discurso prático, aquele atinente às normas regulativas, em que há a incidência da argumentação moral. Cabe, nesse ponto, compreender como atos de fala relacionados à normas, denominados de regulativos, estão permeados por pretensões de validez, ou seja, será estudada a questão da validade moral da normas. Enunciados normativos devem ser compreendidos diferentemente de enunciados descritivos. Proposições normativas não podem ser verificadas ou falsificadas, isto é, não podem ser testadas pelas mesmas regras de jogo que as proposições descritivas, de modo que não se pode tratar problemas práticos, ou seja morais, considerando-os como passíveis de verdade. ( HA- BERMAS, 1989, p. 75) Os atos de fala se ligam aos fatos diferentemente da forma com que se ligam as normas. Habermas exemplifica essa ideia através de uma proposição deôntica do tipo: não se deve matar ninguém. Essa proposição pode ser exteriorizada por meio de atos de fala regulativos, mas, independentemente

344 344 Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem disso, possui validez, diferentemente das proposições assertóricas do tipo: o ferro é magnético, que dependem de atos de fala constatativos para serem verdadeiras ( HABERMAS, 1989, p. 81). Desse modo, essa distinção ocorre porque as normas sociais diante das quais podemos adotar um comportamento conforme ou desviante, não são constituídas independentemente de toda validez, como as ordenações da natureza, em face das quais só adotamos uma atitude objetivante. ( HABERMAS, 1989, p. 81) Isso quer dizer, em síntese, que a validez das normas, tanto morais quanto jurídicas, preexistem aos atos de fala, do mesmo modo que só há sentido em se atribuir um predicado a um objeto, erigindo-se uma pretensão de verdade, numa proposição assertórica, empregada numa ato de fala constatativo, como por exemplo, do tipo: o morango é vermelho, diante do próprio morango. Essa característica marcante das normas de bastarem por si, independentemente do ato de fala, é confirmada na teoria da linguagem de John R. Searle, para o qual as proposições normativas são autoreferenciais. Nesse sentido, há nas proposições regulativas, como as ordens, uma característica denominada autorefencialidade que as diferencia das proposições meramente assertóricas, que quer dizer que elas tem em si próprias o seu referencial, independentemente da sua satisfação. Portanto, quando uma ordem é dada, há dois comandos que devem ser considerados: que se satisfaça aquilo que foi ordenado e, sobretudo, que a ordem seja obedecida. Dessa maneira, tem-se que as condições de satisfação da ordem são autoreferenciais a própria ordem pois o que a ordem ordena é que ela mesma seja obedecida. ( SEARLE, 2010, p. 240) Disso decorre que há uma dupla dimensão que deve ser considerada numa norma deôntica: descritiva e prescritiva. Como exemplo, tem-se que há numa sentença judicial uma dupla justificação, ou seja, há numa sentença independentemente dela ser considerada pela doutrina processualística como meramente declaratória, além da declaração de um direito, a ordem implícita para que a sentença seja obedecida, reafirmando todo o sistema punitivo. Isso ocorre também em relação aos atos administrativos, pois ao declararem algo também prescrevem algo, reafirmando e revalidando toda a conjuntura. Nesse sentido, o assentimento de uma norma está ligado à possiblidade de mobilizar, num dado contexto da tradição, razões que sejam suficientes pelo menos para fazer parecer legítima a pretensão de validez no círculo das pessoas a que se endereça ( HABERMAS, 1989, p. 83).

345 Fernando José de Souza Filho 345 Isto implica dizer que uma norma deverá, para que ocorra a sua aceitação social, ter sua validez racionalmente justificada. Conforme analisado, o mundo das normas funciona diferentemente da natureza, em que a referência é o estado das coisas, o qual independe de fundamentação, ou seja, a validez normativa é dependente de justificação, de modo que a verdade de atos de fala constatativos independe de fundamentação. 3.2 Princípios da universalização e do discurso Nesse ponto, tratar-se-á do princípio da universalização. Dessa maneira, tem-se que o princípio moral é compreendido de tal maneira que exclui como inválidas as normas que não possam encontrar o assentimento qualificado de todos os concernidos possíveis. ( HABERMAS, 1989, p. 84) Remete-se, a partir desse ideal, ao imperativo categórico de Kant. Portanto, a teoria do discurso é incompatível com o relativismo jurídico em relação as normas morais. A aceitabilidade das razões apresentadas pelos participantes do discurso está, portanto, sob a resolutiva condição de que também a norma será efetivamente observada por todos. (GUNTHER, 2011, p. 241) Isto implica que o assentimento da justificação de uma norma deve corresponder a validade e observância dessa norma em relação a todos os concernidos. Para Habermas, entretanto, não se deve confundir o princípio da universalização com um princípio fundamental da ética do discurso, qual seja uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem(ou possam chegar), enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma. ( HA- BERMAS, 1989, p. 86) Nesse sentido, segundo Habermas, a argumentação moral é fundamental para a superação de problemas da vida cotidiana, em que haja pretensões de validez normativas, utilizadas em interações comunicativas. ( HABERMAS, 1989, p. 87) A ação comunicativa problematizada, ou seja, o discurso prático, necessita de agências estatais livres de obstáculos nas sociedades hodiernas, que protejam os direitos fundamentais. É essencial que a moral e o direito estabeleçam mecanismos institucionais para a consecução da integração social dos mundos da vida, intersubjetivamente compartilhados.( DUARTE, 2004, p. 193) Há uma preocupação, nesse aspecto, de Habermas, com a legitimação por obra da lógica do dinheiro ou do poder que, inolvidavelmente, des-

346 346 Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem truiria os pressupostos da comunicação necessária para a legitimação normativa em uma sociedade moderna. ( DUARTE, 2004, p. 193) 4. O sistema de justiça criminal O atual modelo de justiça criminal subsiste através das relações de poder, e como tal, reafirma-se, sistematicamente, através do discurso. Na época do suplício corporal, o terror, traduzido no medo físico e no pavor coletivo era o exemplo. Hodiernamente, o fundamento do exemplo é a lição, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade pública. ( FOUCAULT, 2010, p. 106) Nesse sentido, Louk Hulsman considera a justiça criminal um sistema que usa o discurso da punição, linguagem comum ao público em geral, para legitimar o modelo e ao mesmo tempo mascarar os processos que efetivamente ocorrem, a saber: Na prática, chamar tais atividades de punição significa criar uma legitimação infundada; em consequência, não considero a justiça criminal como um sistema destinado a dispensar punições, mas sim um sistema que usa a linguagem da punição de modo a esconder os reais processos em curso e produzir consenso através de sua errônea apresentação, assimilando-os aos processos conhecidos e aceitos pelo público. ( HULSMAN, 2004, p. 36) O atual modelo punitivo legitima-se pelo discurso, passando a retórica a ocupar uma posição de destaque, de modo que a persuasão se faz pelo uso da linguagem, através da reafirmação da Lei. Cumpre ressaltar, a importância dada por Louk Hulsman aos valores morais, de modo que há, nesse ponto, uma convergência entre a sua doutrina e a teoria do discurso de Habermas. Nesse sentido, sob a ótica de Gabriel Ignácio Anitua, Hulsman reafirmava os valores morais como o limite mais adequado para as violências. ( ANITUA, 2008, p. 697) 5. Conclusão Tratou-se, inicialmente, da consciência moral, com ênfase na conformação da doutrina do desenvolvimento moral de Kohlberg e da ética do discurso de Habermas. Evidenciou-se uma perfeita compatibilidade entre essas duas teorias. Em seguida, abordou-se a teoria do discurso de Habermas propriamente dita, ressaltando-se, sobretudo, aspectos relacionados à ação comunicativa e ao cognitivismo, tendo-se demonstrado que razões morais estão

347 Fernando José de Souza Filho 347 ligadas à pretensões de validez racionalmente justificáveis; e aos princípios da universalidade e do discurso, premissas fundamentais da ética do discurso de Habermas. Noutro ponto, cuidou-se da análise das peculiaridades do atual sistema de justiça criminal, apontando-se para a convergência entre a teoria do discurso de Habermas e a doutrina de Louk Hulsman, no que tange à proeminência dos valores morais. Questão relevante, diz respeito ao assentimento social de normas. Para que ocorra a aceitação social de uma norma, ainda conforme a teoria da ética do discurso, é crucial que a pretensão de validez da norma seja racionalmente justificada para aquele grupo para o qual ela se destina. No Brasil, em matéria penal, não há o necessário assentimento generalizado das regras jurídicas pela população, de modo que as normas criminais não estão racionalmente justificadas como deveriam estar. Da mesma forma, o dinheiro e o poder são obstáculos à legitimação normativa racionalmente justificável em uma sociedade. São indispensáveis instituições oficiais livres das ingerências do dinheiro e do poder para que se alcance uma situação ideal de fala. Os processos linguísticos vem sendo utilizados para se legitimar um sistema de justiça criminal que não tem oferecido respostas satisfatórias para a sociedade. Portanto, conclui-se que o discurso prático, como problematização da ação comunicativa, é essencial à ressignificação do atual modelo punitivo. Referências ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos Pensamentos Criminológicos/ Gabriel Ignácio Anitua; tradução Sérgio Lamarão Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica, Editora Forense, Rio de Janeiro ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica, Perelman, Viehweg, Alexy, MacCormick e outros, Landy Editora, São Paulo, DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do Discurso e Correção Normativa do Direito: aproximação à metodologia discursiva do direito, Landy Editora, São Paulo, FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 38. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

348 348 Crítica ao Discurso do Sistema de Justiça Criminal: desconstruindo o atual modelo punitivo a partir da teoria da linguagem GUNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Klaus Gunther; tradução: Cláudio Molz, 2 ed. - Rio de Janeiro, Forense, HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo/ Jürgen Habermas; tradução de Guido A. de Almeida Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos/ Jürgen Habermas. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos / Jürgen Habermas; tradução de Milton Camargo Mota, 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, HULSMAN, Louk. Alternativas à Justiça Criminal. In: PASSETTI, Edson(org.). Curso Livre de Abolicionismo Penal Rio de Janeiro: Revan, MOLINA, Aurélio et al. A ética, a bioética e o humanismo na pesquisa científica: breves apontamentos e principais documentos Recife; EDUPE; Centro de Documentação Oliveira Lima, NERI, Demetrio. Filosofia Moral - Manual Introdutivo; tradução: Orlando Soares Moreira, São Paulo, Edições Loyola, LEPARGNEUR, Hubert. Introdução aos estruturalismos. São Paulo, Editora Herder, SEARLE, John R. Consciência e Linguagem/ John R. Searle; tradução Plínio Junqueira Smith São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

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