Reflexões sobre o conteúdo do Estado Democrático de
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- Flávio Garrau Ramires
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1 Reflexões sobre o conteúdo do Estado Democrático de Direito Julia Maurmann Ximenes 1 Resumo No âmbito da Teoria do Estado, a problemática acerca do conteúdo do Estado Democrático de Direito tem sido uma constante nos debates. O Estado contemporâneo atual deve primar pelos direitos individuais e pelos direitos sociais e assim ser qualificado como Democrático de Direito? Essa e outras questões são objeto de análise no presente artigo. 1 Introdução Na disciplina Teoria Geral do Estado, ministrada normalmente nos primeiros semestres do Curso de Direito, emerge uma problemática que, na verdade, acompanha muitos alunos durante todo o curso e quiçá durante o exercício da nova profissão. Trata-se do conceito de Estado Democrático de Direito, expressão comumente apregoada de forma simplista e que não traduz seu verdadeiro conteúdo. A expressão Estado de Direito, conhecida na vertente contemporânea, é atribuída à segunda metade do século XVIII e início do XIX, com o surgimento da doutrina liberal e com as duas principais revoluções, a Americana e a Francesa, que consolidaram um processo iniciado anteriormente de limitação do poder do Estado frente aos indivíduos, principalmente na Inglaterra. Os detentores do poder passam a ter seu arbítrio cerceado por princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade individuais. 1 Doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Bacharela em Direito pela Universidade de Brasília. Professora de Teoria Geral do Estado no IESB.
2 Contudo, é notório que, apesar dos anseios revolucionários, a situação do cidadão no seu dia-a-dia pouco se alterou com o surgimento do Estado de Direito. A Revolução Industrial do início do século XIX demonstrou as atrocidades cometidas por empregadores contra seus empregados, cuja jornada de trabalho era excessiva, as condições de trabalho eram sub-humanas, uma verdadeira exploração do trabalhador. Aparecem, então, vários tipos de manifestações contrárias ao status quo, buscando dignidade da pessoa humana, um Estado que se responsabilizasse pelo social. Várias vertentes surgem dessas reações como o socialismo, o comunismo, o welfare-state (Estado de Bem-estar social). Desse rápido histórico da formação do Estado Moderno assoma uma questão: o famoso Estado Democrático de Direito seria, então, a soma do Estado Liberal e do Estado Social? O Estado contemporâneo, que observamos mundialmente, deve prezar direitos individuais e direitos sociais e, assim, ser qualificado como Democrático de Direito? Não, essa não é a concepção que podemos verificar com a expressão. A expressão Estado Democrático de Direito vai além do somatório das duas abordagens verificadas durante os séculos XVIII e XIX. Trata-se de um modelo que, obviamente, respeita os direitos proclamados pelos dois momentos históricos abordados, mas, mais do que isto, permite uma interpretação do Direito que ainda precisa de muito amadurecimento em uma sociedade como a brasileira, que continua buscando a democracia social. Isso porque a democracia política, ou seja, a participação do cidadão na vida pública é apenas um dos aspectos do conceito de democracia hodiernamente. O presente artigo visa traçar alguns parâmetros doutrinários sobre a formação do Estado Democrático de Direito, seu conteúdo formal e material, apontar algumas problemáticas que sua inserção nas Constituições contemporâneas acarreta, em especial no tocante ao dogma da separação dos poderes e do próprio papel do Poder 2
3 Judiciário, realçando ainda algumas questões de fundo no debate sobre o Estado Democrático de Direito no Brasil. 2 O Estado Democrático de Direito e Sua Relação Com o Estado de Direito Conforme já mencionado, o Estado de Direito emerge da formação que normalmente se chama de Estado Liberal e de uma necessidade básica: controlar o uso arbitrário do poder por parte do Estado. Nesse sentido, a concepção dos direitos fundamentais se baseava na filosofia política que imperou durante o século XVIII e início do século XIX: o liberalismo 1. Esse liberalismo é o liberalismo político, que visa firmar os direitos naturais: Esse era o direito de liberdade num dos dois sentidos principais do termo, ou seja, como autodeterminação, como autonomia, como capacidade de legislar para si mesmo, como antítese de toda forma de poder paterno ou patriarcal, que caracterizara os governos despóticos tradicionais (BOBBIO, 1992, p. 86). 2 John Locke ( ), um dos principais filósofos políticos do liberalismo, desenvolveu toda uma teoria em que defendia os direitos naturais inalienáveis do homem, ou seja, direitos individuais acima de qualquer coisa, uma expropriação dos poderes privados, traço típico da organização política durante a Renascença (Monarquia Absolutista). Ademais, Locke subordinava todos os poderes ao Poder Legislativo, e, conseqüentemente, ao poder contido na lei. Trata-se do princípio da legalidade: não há nenhuma outra fonte de autoridade a não ser sob o manto da lei e do Poder Legislativo. O objetivo era delimitar o poder do Estado. O Estado passa a ser visto como um Estado-Polícia, que vigia a aplicação das liberdades e igualdades formais (positivadas). 3 3
4 No Estado Social 4, o rol de direitos fundamentais se amplia, exigindo que as liberdades e igualdades formais apregoadas pelo Estado Liberal tivessem, inclusive, o amparo do Estado para que ocorressem. Assim, apesar de, durante o Estado Liberal, o empregado formalmente ter os mesmos direitos que o patrão, na realidade era este último que tinha o controle da situação, determinando todos os deveres de seus subordinados, que não tinham direitos reais. A partir do Estado Social, o Estado se insere nessa relação, estabelecendo uma igualdade material, na medida que o empregado passa a ter direitos amparados pelo próprio Estado, como direito a férias, a licença maternidade, a licença médica e outros. Bobbio aponta que o Estado Moderno nasce justamente dessa inversão: Primeiro liberal, no qual os indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivindicação; e, finalmente, social, no qual os indivíduos, todos transformados em soberanos sem distinções de classe, reivindicam além dos direitos de liberdade também os direitos sociais, que são igualmente direitos do indivíduo: o Estado dos cidadãos, que não são mais somente os burgueses, nem os cidadãos de que fala Aristóteles no início do Livro III da Política, definidos como aqueles que podem ter acesso aos cargos públicos, e que, quando excluídos os escravos e estrangeiros, mesmo numa democracia, são uma minoria (BOBBIO, 1992, p. 100). Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito não representaria apenas o somatório dos direitos de cunho individualista, apregoados no Estado Liberal, e dos direitos sociais, do Estado de Bem-Estar Social. Isso porque, na verdade, o próprio conceito de Estado de Direito poderá caracterizar essa 4
5 somatória, na medida que o Estado de Direito, como um status quo institucional provém, originariamente, da concepção individualista e racionalista do Direito, durante o século XVIII, mas que, na verdade, teve o rol dos direitos fundamentais, em especial, ampliados por ocasião da Revolução Industrial e do surgimento das políticas do welfare state. Nosso objetivo, aqui, é destacar que o Estado Democrático de Direito implica, sim, uma interpretação diferenciada do Direito e não apenas elencar os direitos. Dessa feita, hoje a fórmula do Estado de Direito, representada pela vinculação jurídica do poder do Estado submetido ao Direito, traduzido em institutos como The Rule of Law (inglês) 5, always under law (americano) 6, Rechtsstaat (alemão) 7, tornou-se insuficiente diante dos Estados policêntricos e das sociedades plurais. O que faltava era a legitimação democrática do poder. O elemento democrático busca legitimar o poder: a soberania popular diz de onde vem o poder e sem ela o Estado se torna a-político (CANOTILHO, 1998). A concepção de Estado Democrático de Direito acarreta controvérsias que se baseiam na forma de se ver a questão da liberdade na busca pela legitimidade do poder: no Estado de Direito, a liberdade é negativa, de defesa ou de distanciamento do Estado; no Estado Democrático, a liberdade é positiva, pois representa o exercício democrático do poder, que o legitima. Os críticos dessa forma de Estado dizem que essa concepção de liberdade representa o liberalismo político: o homem civil precede o homem político. Assim, o liberalismo consagrou uma concepção estática de Constituição, eliminando o problema dos pressupostos ideológicos e sócio-econômicos, indispensáveis à compreensão do conteúdo constitucional (BONAVIDES, 1999, p. 216). Nesse sentido, o Estado Democrático de Direito, dentre outras questões passíveis de serem levantadas, acrescenta aos conceitos referentes à própria formulação do Estado Moderno um novo espaço: um espaço necessário para interpretações construtivistas. Trata-se 5
6 de discutir o papel da Constituição e do próprio Poder Judiciário, como última instância de interpretação desse documento essencial para a caracterização de um Estado de Direito. Na verdade, utilizando Habermas, o Estado Democrático de Direito visa buscar uma nova forma de legitimação: É que o Direito não somente exige aceitação; não apenas solicita dos seus endereçados reconhecimento de fato, mas também pleiteia merecer reconhecimento. Para a legitimação de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei, requerem-se, por isso, todas as fundamentações e construções públicas que resgatarão esse pleito como digno de ser reconhecido (HABERMAS, 2003, p. 68). A preocupação com a legitimidade é a tônica do Estado Democrático de Direito já que um dos seus pressupostos é a eliminação da rigidez formal, ou seja, não existe uma forma preestabelecida, que deva ser simplesmente adotada independentemente das circunstâncias históricas e culturais dos diferentes Estados. Oportuno salientar que tal concepção de legitimidade e, conseqüentemente, legitimidade da própria Constituição, no caso específico do Brasil, exige um olhar mais crítico. Isso porque o peculiar processo histórico da política brasileira possibilita a percepção de que a Constituição não é realmente legítima vontade nacional e popular. A sociedade brasileira é carente, historicamente, de mentalidade cívica e de cultura política democrática. Ainda que se defenda a existência de valores e princípios de uma Constituição, o seu aspecto substancial, eles, no caso brasileiro, constituem mais uma recepção do patrimônio político-cultural de positivações constitucionais estrangeiras. Urge, portanto, assegurar, à maioria da população que não participa, a 6
7 possibilidade de conquistar uma democracia de cidadãos. Disso se retira a percepção de duas democracias da Constituição a da representação e a da participação, esta última mais dependente da mediação do Direito (VIANNA, 1999, p ) O atual momento histórico brasileiro representa o processo de consolidação democrática, no qual a sociedade tenta efetivar os direitos adquiridos na Constituição de forma substantiva, realmente exercendo a cidadania. Nesse contexto, o Poder Judiciário adquire uma concepção política de proteção ao ideal democrático, não só de representação via procedimentos eleitorais, mas de efetiva participação, em uma espécie de ativismo judicial. Esse pode ser analisado de diversas formas, mas aqui salientamos justamente a emergência de discursos acadêmicos e doutrinários, vinculados à cultura jurídica, que defendem uma relação de compromisso entre Poder Judiciário e soberania popular (CITTADINO, 2000). Desta feita, o elemento democrático cunhado na expressão ora trabalhada não se restringe ao voto, ao exercício dos direitos políticos, como possa aparentemente transparecer. O que se propõe é uma nova forma de interpretar as funções do Estado e do próprio conceito de democracia. Zimmermman (2002, p. 64-5) aponta as seguintes características básicas do Estado Democrático de Direito, tendo em vista a correlação entre os ideais de democracia e a limitação do poder estatal: a) soberania popular, manifestada por meio de representantes políticos; b) sociedade política baseada numa Constituição escrita, refletidora do contrato social estabelecido entre todos os membros da coletividade; c) respeito ao princípio da separação dos poderes, como instrumento de limitação do poder governamental; d) reconhecimento dos direitos fundamentais, que devem ser tratados como inalienáveis da pessoa humana; 7
8 e) preocupação com o respeito aos direitos das minorias; f) igualdade de todos perante a lei, no que implica completa ausência de privilégios de qualquer espécie; g) responsabilidade do governante, bem como temporalidade e eletividade desse cargo público; h) garantia de pluralidade partidária; i) império da lei, no sentido da legalidade que se sobrepõe à própria vontade governamental. Percebe-se, portanto, que a visão predominante nessas características implica as características que embasaram a formação do Estado de Direito, ou seja, a preocupação com a limitação do poder do Estado. Essa visão é a que estamos colocando em discussão no presente artigo. Por intermédio do conceito formal e do conceito material de Estado de Direito, é possível criar o vínculo entre Estado de Direito e democracia e, dessa forma, explicitar melhor o conteúdo da expressão Estado Democrático de Direito. O conceito formal implica o sistema jurídico e constitucional efetivo e o conceito material envolve um sistema em aplicação da justiça da ordem jurídico-positiva. O Estado de Direito material pressupõe o formal, contudo avança para alcançar os padrões exigíveis minimamente de democracia ocidental. O pressuposto originário dessa análise é a fragilidade dos mecanismos de controle da ação administrativa: a cidadania não se esgota na escolha dos candidatos. Dessa feita, novos campos de ação, em que o direito não tem como atuar, são propostos. O Estado não é ente isolado no quadro social: ele age e interage mediante a atuação social, a atuação popular, a atuação de grupos, etc. Esses novos mecanismos públicos ou privados ( público não é sinônimo de estatal ) de encaminhamento de reclamações, queixas, soluções, sugestões é que caracterizam o Estado Democrático de Direito. Alguns exemplos: direito às informações (art. 5º, XXXIII, CF/88), direito de petição (art. 5º, XXXIV, a, CF/88), direito à 8
9 publicidade, a hábeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF/88), a ação popular (art. 5º, LXXIII, CF/88), a mandado de segurança individual (art. 5º, LXIX, CF/88) e coletivo (art. 5º,LXX, CF/88), a hábeas data (art. 5º, LXXII, CF/88), à iniciativa popular (art. 61, 2º), a mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF/88), a controle judicial (art. 5º, XXXV, CF/88), a controle da constitucionalidade das leis, direta ou indiretamente (na indireta, são partes legítimas o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, os partidos políticos representados no Congresso, as confederações sindicais art. 103, CF/88). São exemplos da defesa de uma participação efetiva, direta e indireta, na vida pública e não só na política (sentido partidário). Afinal, ainda que o ativismo judicial transforme em questão problemática os princípios da separação dos poderes e da neutralidade política do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, inaugure um tipo inédito de espaço público, desvinculado das clássicas instituições político-representativas, isso não significa que os processos deliberativos democráticos devam conduzir as instituições judiciais, transformando os tribunais em regentes republicanos das liberdades positivas dos cidadãos (CITTADINO, 2000). Infere-se, portanto, que esta percepção do conteúdo do Estado Democrático de Direito demanda um novo papel, não apenas por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, que deverão ter a preocupação com a legitimidade de seus atos, mas do próprio Poder Judiciário. Aqui inserimos um exemplo particular, o brasileiro. A Constituição Federal de 1988, ao inserir a expressão Estado Democrático de Direito, incluiu algumas alterações que afetam diretamente o papel do Poder Judiciário. Institutos, como o mandado de injunção, colocam em xeque o dogma da separação dos poderes, na medida que o Poder Judiciário pode defrontar-se, em qualquer instância, não com um pedido de resolução de conflito 9
10 direto, mas sim de pedido de criar o direito, quando o Poder Legislativo foi omisso. Essa nova visão ultrapassa a concepção de direitos subjetivos para dar lugar às liberdades positivas: limita-se e condiciona-se, em prol do coletivo, a esfera da autonomia individual, ou seja, os direitos fundamentais não mais podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que eles são titulares. 3 Considerações Finais Constituição e Democracia Diante do exposto, podemos refletir sobre algumas questões inferidas da abordagem ora proposta sobre o conteúdo da expressão Estado Democrático de Direito. A primeira delas diz respeito ao próprio conceito de Constituição. Considerando o Estado como referência máxima da lei fundamental, um conceito seria: [...] a organização de seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado (SILVA, 1991, p. 37-8). Poderíamos atribuir a uma suposta concepção positivista a definição de Constituição, em seu sentido formal: norma máxima do ordenamento jurídico, situada no topo da pirâmide jurídica, fonte primária de todos os direitos, deveres e garantias, conferindo fundamento de validade às leis e atos normativos, no sistema lógico de normas que forma a ordem jurídica. 10
11 O que propomos é analisar a Constituição à luz de seu conteúdo e, nesse sentido, destacar o importante papel do Judiciário em sua interpretação. No tocante à interpretação constitucional, Häberle (1996) afirma que as influências, expectativas, pressões sociais, a que o juiz está exposto, contêm um fragmento de legitimação e impedem a arbitrariedade da interpretação. Isto porque o povo não é apenas fonte de legitimidade democrática no dia das eleições, mas também consiste em fonte de legitimação como partido político, como opinião pública, como grupo de interesses, como cidadãos. Trata-se de visualizar a democracia como democracia dos cidadãos e não como democracia popular, no sentido rousseauniano, que seria mais restrito, pois coloca o povo em último lugar, por intermédio dos direitos fundamentais. Na concepção da democracia dos cidadãos, o povo atua em todas as partes, universalmente, em muitos níveis, por muitos motivos e de muitas formas. Infere-se, portanto, que, mais uma vez, a questão da legitimidade não se reduz à questão do poder legítimo, mas sim que, por intermédio das leis jurídicas que este proclama e impõe, se exerça a Justiça e não o mero poder (MAIHOFER, 1996). Inclusive porque, como já salientado anteriormente, a concepção de lei como estatuto da vontade geral, corporizada na representação parlamentar composta por deputados livres de qualquer dependência, não condiz com a realidade do Estado moderno, em que a lei expressa a vontade do partido ou coligação majoritária, e o governo dita à maioria parlamentar o programa legislativo e o conteúdo das leis (MOREIRA, 1995). Torna-se claro, portanto, o grande papel da Constituição e a sua contribuição substancial no tocante ao controle que exerce justamente nestas leis que nem sempre representam a Justiça. Trata-se de ressaltar a importância da Constituição, não somente sob o aspecto de lei fundamental de todo o ordenamento jurídico, mas sob o aspecto substancial, inclusive de seu papel na consolidação do Estado Democrático de Direito. 11
12 Ao inserir a expressão Estado Democrático de Direito na Constituição de 1988, o constituinte se orientou por uma visão menos individualista de Estado, provocando maior participação dos componentes individuais, em uma perspectiva ascendente de baixo para cima (ZIMMERMANN, 2002, p. 109). Vários mecanismos processuais são instituídos no sentido de buscar dar eficácia a seus princípios e essa tarefa é responsabilidade de uma cidadania juridicamente participativa que depende, é verdade, da atuação do Poder Judiciário, mas, sobretudo, do nível de pressão e mobilização política que, sobre eles, se fizer (CITTADINO, 2000). É este o novo desafio do Poder Judiciário na proposta ora apresentada: perceber a relação entre Estado e sociedade a partir da perspectiva de um conceito de cidadania que ultrapasse o conceito clássico de exercício dos direitos políticos. Esse novo conceito implica também a flexibilização do dogma da separação dos poderes, haja vista que o Poder Judiciário representa o mecanismo de defesa do cidadão não apenas contra o uso arbitrário do poder por parte do Estado, mas também de exigir-se sua atuação prospectiva. 12
13 Referências Bibliográficas BITTAR, E.C.B. Doutrinas e filosofias políticas. São Paulo: Atlas, BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, BONAVIDES, P. Teoria do Estado. 3 ed. São Paulo: Malheiros, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998 CITTADINO, G. Pluralismo, direito e justiça distributiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Poder judiciário, ativismo judicial e democracia. Encontro da ANPOCS, 21., 2001,. Caxambu, Anais do XXI Encontro da ANPOCS. [s.e: s.n.], DALLARI, D. A. Elementos de teoria geral do Estado. 23 ed. São Paulo: Saraiva, HÄBERLE, P. Retos actuales de Estado Constitucional. Oñati: [s.n.], Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, HABERMAS, J.; HÄBERLE, P. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE, J.; MOREIRA, L.(Org). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p
14 MAIHOFER, W. Princípios de una democracia en libertad. In: BENDA, E. et al. Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 1996, p MOREIRA, V. Principio da maioria e princípio da constitucionalidade. In: COLÓQUIO NO 10º ANIVERSÁRIO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995, p SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, VIANNA, L. W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Renavan, ZIMMERMANN, A. Curso de direito constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, Notas 1 Cumpre salientar que na Inglaterra esse processo de delimitação do poder do Estado se inicia muito antes: a Magna Carta de 1215, apesar do cunho aristocrático, na medida que apenas delimitou a atuação do então monarca perante a nobreza, é tida como um exemplo da preocupação com a problemática do poder concentrado e de formação da consciência liberal posteriormente aprofundada pelos filósofos do Iluminismo. Ademais, o Bill of Rights inglês, de 1689 é outro exemplo. 2 Apesar do destaque dado ao século XVIII para a formação do Estado de Direito, a Inglaterra é, na verdade, a fonte de inspiração para os filósofos políticos do Iluminismo. Montesquieu ( ), por exemplo, retira a teoria da separação dos poderes 14
15 de fontes inglesas, com a proibição da confusão das mesmas pessoas no exercício das funções executiva, legislativa e judicante e a liberdade definida como possibilidade de fazer tudo que a lei não proíbe. 3 Na verdade, é justamente esta abordagem de cunho mais individualista das duas Revoluções do século XVIII, a Americana e a Francesa, que será responsável pela própria crise do Estado Liberal:...a concepção da sociedade que está na base das duas Declarações [Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e Declaração de Independência Americana] é aquela que, no século seguinte, será chamada (quase sempre com uma conotação negativa) de individualista.... Ambas as Declarações partem dos homens considerados singularmente; os direitos que elas proclamam pertencem aos indivíduos considerados um a um, que os possuem antes de ingressarem em qualquer sociedade (BOBBIO, 1992, p. 90). 4 Denominamos de Estado Social, para fins didático-pedagógicos, a reação à visão individualista mencionada anteriormente, ou seja, uma nova percepção do papel do Estado, que deverá ser mais intervencionista. 5 Cujas quatro dimensões básicas são: observância de um processo justo legalmente regulado quando se julgar e punir cidadãos com privação de liberdade e propriedade; proeminência das leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real; sujeição dos atos do Executivo à soberania do parlamento; igualdade de acesso aos tribunais por parte dos cidadãos (CANOTILHO, 1998, p ). 6 Império do Direito, com três tópicos: lei superior, juridicidade do poder à justificação do governo razões do governo devem ser públicas e tribunais que exercem a Justiça em nome do povo. 15
16 7 Estado de Direito do século XIX, que se limita à defesa da ordem e segurança públicas, remetendo os domínios econômicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência. 8 Dalmo de Abreu Dallari, autor de um dos mais importantes livros de Teoria Geral do Estado, aponta quatro pressupostos para o Estado Democrático de Direito, a saber: eliminação da rigidez formal (não existe forma preestabelecida, ela deve se adaptar à concepção dos valores fundamentais de certo povo numa determinada época); supremacia da vontade do povo, desde que seja livremente formada e amparada na igualdade substancial de todos os indivíduos; preservação da liberdade (tendo em vista a qualidade da liberdade e não a quantidade) e preservação da igualdade (converter o direito em possibilidade). Retomaremos esses pressupostos posteriormente (2002, p ). 9 A partir do século XIX a teoria da separação dos poderes passou a ser encarada também com o objetivo de aumentar e eficiência do próprio Estado, pela distribuição de suas atribuições entre órgãos especializados. Assim, um mesmo poder pode realizar funções diversas, como uma mesma função pode ser levada a cabo por poderes distintos: o poder legislativo legisla, administra e julga; o poder executivo administra, emana preceitos normativos, com força de lei (medidas provisórias) na conformidade do disposto na Constituição, ou decretos administrativos e regulamentares; o poder judiciário julga, administra e expede normas internas, dentro do âmbito de sua reconhecida competência (aptidão jurídica para agir). Na verdade, é importante salientar que, para a efetiva garantia da liberdade e atuação democrática do Estado, é preciso maior dinamismo e presença constante na vida social, o que é incompatível com o tradicional dogma da separação dos poderes. 16
17 1 0 O Mandado de Injunção implica amplo debate sobre o conceito de jurisdição, ou seja, de dizer o Direito. Nosso propósito no momento é apenas apontar um exemplo de nova demanda imposta ao Poder Judiciário pela Constituição de Essa é a abordagem adotada pelo constitucionalismo comunitário, expressa principalmente na obra de Peter Haberle (1997). 17
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