NEWS LETTER 5. Observatório Constitucional. Newsletter N.º 5 Fevereiro de
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- Rafael Sampaio de Lacerda
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1 Newsletter N.º 5 Fevereiro de NEWS LETTER 5 Observatório Constitucional O ano 2013 terminou. Do ponto de vista da actividade constitucional lato sensu, foi um ano cheio de eventos relacionados, directa ou indirectamente, com a Constituição devido, principalmente, ao processo de revisão constitucional. Contudo, além deste, não se pode negligenciar a actividade do Conselho Constitucional que, em 2013, foi bastante produtiva (cinco (5) acórdãos), tomando em conta os limites formais e materiais do âmbito da sua intervenção estabelecidos na Lei Fundamental. No que concerne ao primeiro aspecto, apesar do facto de os aspectos processuais da revisão constitucional terem sido amplamente comentados nos Newsletters anteriores, era interessante ter um ponto de vista imparcial e tecnicamente reconhecido sobre o referido processo de revisão constitucional para ter uma perícia independente e, assim, melhor avaliar, o referido processo que deverá ser concluído no primeiro semestre deste ano. É na ocasião da visita do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, docente conceituado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Moçambique, no âmbito da cooperação com a Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, que esta perícia independente foi concretizada a 19 de Setembro de O Professor Marcelo Rebelo de Sousa concedeu uma entrevista ao Editor-Chefe do Newsletter 1
2 sobre o processo de revisão constitucional que está a decorrer em Moçambique e entregamos ao leitor deste Newsletter a integralidade da mesma (II). No que concerne ao segundo aspecto, o Conselho Constitucional no dia 17 de Setembro de 2013 proferiu um Acórdão muito comentado na imprensa nacional e estrangeira atinente ao pedido de apreciação e declaração, com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas contidas nos dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) formulado por Maria Alice Mabota e outros mil novecentos e noventa e nove cidadãos. Um jovem e promissor jurista da praça, dr. Salvador Nkamate, aceitou fazer um comentário sobre o assunto para o Newsletter (I). I O ACORDÃO N. 04/CC/13, DE 17 DE SETEMBRO DO CONSELHO CONSTITUCIONAL: UM CONTRIBUTO IMENSÚRAVEL PARA A REPOSIÇÃO DA LEGALIDADE VIOLADA PELA PRÓPRIA LEI NA QUESTÃO DA PRISÃO PREVENTIVA 1 A realidade de que grande parte dos dispositivos do Código de Processo Penal (CPP), em vigor em Moçambique, aprovado em período colonial, encontra-se desajustada da progressista Constituição da República de Moçambique de 2004 (CRM), particularmente em relação à questão da Prisão Preventiva, é conhecida por todos aqueles que de forma teórica ou prática lidam com aquele instrumento. A CRM, seguindo as linhas do constitucionalismo liberal prevê um abrangente leque de garantias e liberdades fundamentais e estabelece princípios de protecção dos cidadãos suspeitos de prática de actos infraccionais de forma a melhor salvaguardar a dignidade da pessoa humana e a falibilidade do próprio processo. Todavia, sobre prisão preventiva no direito moçambicano têm sido apontados sérios problemas, seja do ponto de vista legal, pelo não acompanhamento de alguns dispositivos infraconstitucionais a magna carta, seja, sobretudo, por conta de uma actuação preconceituosa, comodista e corrupta das agências penais, aliada a falta de capacidade e uma conivência desumana das agências judiciais, práticas estas que se sustentam nalguns dispositivos do próprio CPP. Do ponto de vista teórico há que reconhecer uma renúncia da legalidade pela própria lei. As contradições na legislação processual penal no que concerne ao instituto da prisão preventiva, não ocorrem apenas em relação à Constituição Processual Penal e as normas do Direito Internacional, ocorre igualmente uma contradição lógica entre a própria 1 dr. Salvador Nkamate, Assistente Estagiário Faculdade de Direito da UEM/ Advogado. Colaborador do Newsletter. legislação processual penal ordinária, o que traduz a renúncia aludida. Neste contexto, o Acordão 04/CC/13 de 17 de Setembro, do Conselho Constitucional, assume-se como um movimento em sentido contrário a toda a deslegalizacão institucional da prisão preventiva e do processualismo penal. Constituí um marco importante para a afirmação dos direitos humanos, dos direitos fundamentais dos cidadãos a contas com a justiça penal, sendo de relevância extrema compreender o seu alcance prático-jurídico. 1. O Regime Jurídico da Prisão Preventiva antes do Acórdão 04/CC/13, de 17 de Setembro do Conselho Constitucional. Apesar das garantias individuais terem sido reforçadas com a Constituição de 2004, no plano infraconstitucional não se fizeram reformas da legislação processual penal, resultando daí que os órgãos de persecução penal continuem a trabalhar suportados por uma legislação obsoleta, que apresenta contradições em relação à Constituição (1.1.) e que sustenta a renúncia da legalidade na decretação da prisão preventiva existente no sistema jurídico-penal (1.2.) A contradição entre a legislação ordinária e a Constituição. Com a aprovação da Constituição de 1990, e mais recentemente com a Constituição de 2004, alguns artigos do Código de Processo Penal deixaram de estar em consonância com o quadro constitucional em vigor em Moçambique. Com efeito, a norma constante do 2º, al. a), do artigo 291 do C.P. Penal, ao estabelecer a incaucionabilidade dos crimes em abstracto puníveis com pena de prisão maior superior a pena estabelecida no n. 5, do art. 55 do Código Penal (C.P), sem consideração pelas razões de necessidade, adequação e proporcionalidade, que sustentam a imposição da prisão preventiva nos casos concretos, era inconstitucional, por violação dos princípios da liberdade e da presunção da inocência até decisão final (Assim decidiu a 2ª Secção do Tribunal Supremo no seu Acórdão proferido no âmbito do Proc. n. 214/99-C.) e do princípio da proibição do excesso (Princípio implicíto na norma do art.3 da CRM, que Consagra a República de Moçambique como Estado de Direito e Democrático, segundo a jurisprudência do Conselho Constitucional, vide o Acordão 04/CC/13 de 17 de Setembro, do Conselho Constitucional.). Igualmente reportava-se inconstitucional, o art. 293 do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n. 2/93 de 24 de Junho, por consagrar que fora dos casos de flagrante delito, a prisão preventiva só poderá ser levada a efeito mediante ordem por escrito do juiz, do Ministério Público ou das demais autoridades de polícia de 2 Observatório Constitucional Newsletter Fevereiro 2014
3 investigação criminal. O mesmo artigo esclarece no n s. 1, 2 e 3, do parágrafo único, que são autoridades de polícia de investigação criminal, além do Ministério Público, para efeitos de disposto neste artigo as seguintes: os directores, inspectores e subinspectores da Polícia de Investigação Criminal; os oficiais da Polícia da República de Moçambique com funções de comando; e os administradores de distrito, chefes de posto administrativo ou presidentes de conselho executivo de localidade, onde não haja oficiais da Polícia com funções de comando respectivamente. Assim, uma vez que no ordenamento jurídico moçambicano os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais, nos termos do n. 4, do art. 223, da CRM, aquela consagração afigurava-se inconstitucional. Igualmente, a manutenção da culpa formada até a decisão judicial definitiva com consequente manutenção da prisão salvo se houver despronúncia ou absolvição, põe em causa o direito à liberdade e consubstancia uma medida privativa de liberdade indefinida e por assim dizer corresponde a uma antecipação da culpa, tendo por esse desvalor, a norma constante do 3º, do art. 308 do C.P. Penal, sido considera como inconstitucional, tanto mais que violava a CRM, que dispõe no nº 1, do art. 61, que são proibidas penas e medidas de segurança privativas ou restritivas de liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida. Dispunha ainda, o 1º do art. 311 do C.P. Penal que os presos não poderão comunicar com pessoa alguma antes do primeiro interrogatório. O juiz ou agente do Ministério Público na instrução preparatória poderá ordenar em decisão fundamentada que o arguido continue incomunicável depois do interrogatório, contanto que a incomunicabilidade não exceda quarenta e oito horas. A norma supra referenciada chocava com o disposto no n. 4, do art. 63, da Constituição da República onde se estatui que o advogado tem direito de comunicar pessoal e reservadamente com o seu patrocinado, mesmo quando este se encontre preso ou detido em estabelecimento civil e militar. Nesta breve análise a estes quatro artigos do CPP que integravam o leque de normas do núcleo duro do regime da prisão preventiva no ordenamento jurídico moçambicano, ficou demonstrada, a contradição destes em relação à constituição, contradições que se refletem igualmente em relação vários instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados por Moçambique, como são os casos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Carta Africana dos Direitos do Homem dos Povos, nos seus arts. 14, nº 2 e 7, al. b) respectivamente, e que patrocinavam uma completa renúncia a legalidade nos processos de decretação e manutenção da prisão preventiva A renúncia da legalidade na decretação da prisão preventiva em Moçambique. Segundo Claus Roxin a pena estigmatiza o condenado e o leva à desclassificação e a exclusão social, consequências que não podem ser desejadas num Estado Social de Direito, o qual tem por fim a integração e a redução de descriminações (ROXIM, Claus; Estudos de Direito Penal, Tradução: Luis Greco, 2ª Edição Revista, Renovar, Rio de Janeiro - São Paulo Recife, 2008, p. 2.). Mais ainda, no mundo inteiro, e com maior incidência nos países subdesenvolvidos, a prisão gera uma patologia cuja principal característica é a regressão (ZAFFARONI, Eugenio Raul; Em busca de penas perdidas, a Perda de Legitimidade do Sistema Penal, Revan, São Paulo, 1989, p. 3
4 135), conforme sustentou Eugênio Raul Zafarroni. Perante essa realidade inolvidável, a prisão, ainda que precária deve aplicar-se apenas nas situações em que ponderadas todas medidas existentes, estas não se revelem adequadas para garantirem os fins processuais, tendo-se sempre presente o princípio da proporcionalidade, o qual funciona como critério de ponderação entre a necessidade de garantia da ordem pública, dos fins do processo e a necessidade de garantia dos direitos fundamentais do acusado. Em Moçambique, entidades do poder executivo, concretamente a Polícia de Investigação Criminal, sustentados por uma competência inconstitucional e contraditória, abusam da prisão preventiva, a qual é usada para garantir a instrução dos processos e, nos casos extremos, ainda assim frequentes, a prisão preventiva é usada para chantagem e extorsão de suspeitos, ou até de cidadãos inocentes. Na maioria dos processos crimes tramitados com réu preso, a prisão preventiva foi primariamente decretada pela Polícia de Investigação Criminal e o juiz, entidade com poderes para limitar direitos fundamentais, foi apenas chamada a função secundária de validação da prisão. Todavia, é realidade comprovada, que a Policia de Investitigação Criminal decreta prisão preventiva, sem observar os pressupostos desta, quer por ignorância dos seus agentes, quer por conveniência do poder executivo e das corporações que o sustentam. Ao promover este tipo de contradição, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade penal não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade selectiva dirigida, naturalmente, aos sectores vulneráveis (ZAFFARONI, Eugenio Raul; Em busca de penas perdidas, a Perda de Legitimidade do Sistema Penal, op. cit., p. 27). É sobre esta realidade de ilegalidade institucionalizada, de renúncia à legalidade fomentada pela aceitação da decretação da prisão preventiva por entidades sem competências constitucionais para o fazer e incapazes de avaliar correctamente os demais pressupostos processuais necessários a decretação da prisão preventiva e fomentada pela não previsão de prazos certos para determinados actos processuais, que o Acórdão n. 04/CC/13 de 17 de Setembro, dá um contributo inestimável rumo a sua eliminação. 2. O Regime Jurídico da Prisão Preventiva em face do Acórdão n. 04/CC/13, de 17 de Setembro do Conselho Constitucional. A retirada das normas supra descritas do ordenamento jurídico moçambicano permitiu, um progresso visando a harmonização da legislação interna sobre a prisão preventiva com os comandos constitucionais e as normas e orientações do sistema jurídico internacional nesta temática. Dos quatro dispostivos legais declarados inconstitucionais, incluindo o 1º do art. 311, do Código de Processo Penal, que se refere a incomunicabilidade do arguido antes do primeiro interrogatório, o qual havia sido declarado inconstitucional num acordão anterior (Acórdão 02/CC/13, de 28 de Abril, do Conselho Constitucional), por violação do disposto no n. 4 do art. 63 da Constituição da República, que determina o direito do arguido comunicar com o seu advogado em qualquer estabelecimento prisional e a qualquer momento, pode-se extrair as seguintes consequências prático-jurídicas no sistema. Relativamente aos pressupostos, a decretação da prisão preventiva apenas pela apreciação abstrata do crime que o arguido é acusado não é admissível. Esta deve resultar da apreciação concreta da necessidade da aplicação dessa medida, a qual tem fins meramente processuais e não constitui antecipação da pena como actualmente entendem muitos policias, procuradores e até juízes. Não se pode aplicar prisão preventiva apenas porque o arguido é acusado da prática de um crime que é punido por uma pena de prisão maior superior a pena estabelecida no n. 5, do art. 55 do C.P, é preciso avaliar-se em concreto se a acusação tem fundamento e se há necessidade de decretarse esta medida, porque o arguido pode colocar-se em fuga, pertubar a instrução do processo ou continuar a praticar crimes. Relativamente a competência para decretar a prisão preventiva, a retirada da norma dos n s 1, 2 e 3 do único do art. 293 do Código de Processo Penal, atentos a redação dada pela Lei n 2/93 e, consequentemente, a norma da al. f), do n 1, do art. 44 da Lei Orgânica do Ministério Público, representa um avanço na medida em que retira o poder das autoridades administrativas, concretamente da polícia e do Ministério Público, o poder de ordenarem a captura de cidadãos, sejam suspeitos ou arguidos, fora das situações de flagrante delito. Esta decisão é importantissima para o funcionamento correcto da nossa justiça penal, dado que haviamos chegado a um nível em que era a polícia que controlava todo o processo de captura dos arguidos, deixando o poder judicial numa posição secundária de confirmação das suas decisões, quando se sabe que o poder judicial é o guardião dos Direitos e Liberdades fundamentais dos cidadãos. Relativamente aos prazos da prisão preventiva, a retirada da norma do 3º do art. 308, do Código de Processo Penal do ordenamento jurídico moçambicano, constitui um avanço, na medida em que a problemática dos prazos de prisão preventiva prolongados é bastante acentuada no nosso sistema penal e a norma ora revogada, permitia que a justiça penal pudesse manter 4 Observatório Constitucional Newsletter Fevereiro 2014
5 arguidos de forma indeterminada em prisão preventiva. Perante a incapacidade do sistema de realizar investigações celéres e eficientes, a norma ora revogada servia de suporte para que os órgãos da administração da justiça penal determinassem o cumprimento de verdadeiras penas à cidadãos, sem que estes estivessem condenados. Enfim, no País existe um autêntico sistema de antecipação da pena de prisão. O Acordão n. 04/CC/13 de 17 de Setembro, do Conselho Constitucional, promove a retida da legislação penal, um conjunto de normas não razoáveis e propõe a construção de um quadro legal mais garantista para os cidadãos a contas com a justiça penal. Entretanto, dado a sua natureza de decisão judicial e vinculado ao princípio da separação de poderes, o acordão não trouxe novas normas jurídicas, o que nalguns casos, originou lacunas cujo seu preenchimento reportasse urgente. Por exemplo, a retirada da norma constante do 3º, do art. 308 do C.P.P, não resolveu em definitivo a problemática em torno dos prazos de prisão preventiva na medida em que, no País, continua a não estar regulada a questão dos prazos de prisão preventiva após a pronúncia ou a formação da culpa, e a realidade prática demonstra que arguidos continuam a permanecer indefinidamente em prisão preventiva após a pronúncia. Nestes casos reclama-se um papel activo na Assembleia da República, no sentido de completar o processo de purificação da legislação processual penal, juntando-se ao Conselho Constitucional neste esforço. Ao Governo exige conformação com o acordão e a adopção de medidas concretas de adequação a nova realidade legal, por exemplo, a institucionalização dos juízes de turno para responder os desafios resultantes da retirada do ordenamento jurídico das normas dos n s 1, 2 e 3 do único do art. 293 do Código de Processo Penal, atentos a redação dada pela Lei n 2/93 e consequentemente norma da al. f), do n 1, do art. 44 da Lei Orgânica do Ministério Público e, dessa forma, evitar uma carência de entidades com poder para avaliar a necessidade de decretação da prisão preventiva. Conclusão. O Acordão n. 04/CC/13 de 17 de Setembro, do Conselho Constitucional, constituí um marco histórico na questão da proteccão dos direitos humanos, dos direitos fundamentais em Moçambique, na medida em que, determina a não aplicação de uma série de normas jurídicas que permitiam o uso abusivo e ilegal da prisão preventiva, em clara contradição às garantias que a Constituição da República confere aos cidadãos, no que concerne a sua liberdade, segurança e direitos no âmbito do processo penal. É também um contributo valiosissímo a teoria e a prática jurídica em Moçambique, poís, no acordão denotase claramente uma linha de interpretação activista e póspositivista, a qual permite o reconhecimento de princípios implicítos na Constituição da República e no sistema jurídico, o que muitas vezes é determinante para a afirmação da justiça, mesmo nos casos em que esta não coincide com a legalidade. O aprefeiçoamento do quadro legal da prisão preventiva permanece uma necessidade urgente, todavia, com o Acordão 04/CC/13 de 17 de Setembro, do Conselho Constitucional, deu-se um enorme passo que permite, reivindicar com segurança uma nova forma de actuar por parte dos órgãos do sistema da administração da justiça penal, relativamente a prisão preventiva. Para ter acesso ao referido Acórdão do Conselho Constitucional, consultar: CC-2013 II A REVISÃO CONSTITUCIONAL SEGUNDO O PROFESSOR MARCELO REBELO DE SOUSA O leitor do Newsletter encontrará a seguir o texto integral da entrevista do Professor Marcelo Rebelo de Sousa concedida ao Editor-Chefe do Newsletter sobre o processo de revisão constitucional pátrio. Editor-Chefe: Professor Marcelo Rebelo de Sousa, ontem, durante a palestra subordinada a Conversa sobre a revisão constitucional, o Senhor Professor desenvolveu um conjunto de comentários sobre um conjunto de artigos da Constituição, objecto de propostas para uma eventual revisão. A minha primeira questão seria de saber qual é o seu ponto de vista, de uma forma geral, sobre este processo da revisão constitucional em Moçambique. Marcelo Rebelo de Sousa: O processo começou há três anos. Foi um processo que começou com mecanismo original que foi a criação de uma Comissão Ad-Hoc e não pela apresentação de várias projectos ou propostas pelos parlamentares uma vez que entretanto só apareceu uma que foi da Frelimo e não apareceu mais uma outra no quadro da Assembleia, mas sobretudo a originalidade esteve na abertura à sociedade civil, no debate que se criou na sociedade moçambicana ao longo dos últimos dois anos sobretudo. Esse debate levou ao aparecimento de propostas individuais de uma proposta da UDM, mas sobretudo uma proposta global que partiu da iniciativa de uma instituição tipicamente da sociedade civil, GDI, 5
6 Editor-Chefe: A segunda questão seria um ponto de pormenor em termos de processo. Vimos que a proposta do proponente era bastante restritiva, significa que tudo vai culminar no alargamento da proposta original que foi do partido Frelimo. Antes do debate no Plenário para sua aprovação, será que, na sua opinião, o projecto final não carecia de último debate público para fazer conhecer à sociedade civil (que contribuiu neste processo), a versão definitiva do projecto da Comissão Ad-Hoc? e que é uma proposta que cobre os princípios, os direitos, os deveres, a organização económica, mas também, e sobretudo, a organização do poder político e a fiscalização da inconstitucionalidade e da ilegalidade. Este material que é muito rico, está à disposição da Comissão Ad-Hoc para fazer a síntese e para integrar numa só e única proposta. O debate foi mais rico do que aquilo que muitos esperavam sobretudo pela iniciativa do GDI e o próprio debate de ontem (dia 19 de Setembro de 2013) permitiu para uma dezena de juristas, para o Presidente do Conselho Constitucional, para vários conselheiros do Conselho Constitucional, para os deputados, para o representante da Comissão Ad-Hoc e para interessados e várias sensibilidades, alargar a reflexão sobre uma matéria muito importante para um futuro próximo de Moçambique. Entretanto, penso que o processo é, assim mesmo, é original e interessante e a minha opinião que exprimi ontem é de que haveria vantagem em concluir rapidamente este processo uma vez que para o ano estão anunciadas as eleições presidenciais e não é conveniente que haja relativamente a essas eleições uma proximidade excessiva do momento culminante do processo que vai ser a discussão e votação na Assembleia. Portanto como saldo global, penso que o processo de revisão constitucional é positivo. Marcelo Rebelo de Sousa: De facto a iniciativa da Frelimo, foi uma iniciativa limitada, foi patente a preocupação de não tocar em nenhum sector essencial da Constituição material moçambicana havendo portanto, melhorias formais, aditamentos nalguns aspectos nos direitos e deveres fundamentais, retoques na organização política, e aperfeiçoamento em matéria do poder local; mas, no essencial a ideia é ser uma proposta muito contida ao contrário do contributo do GDI que é muito vasto e alternativo. Portanto eu penso que até pela reacção que encontrei da parte dos membros do Conselho Constitucional (a começar pelo Presidente), que há clima para haver o alargamento da proposta originária da Frelimo nos trabalhos da Comissão Ad-Hoc incorporando múltiplas alterações, aditamentos provenientes do debate da sociedade civil. Se assim for, e se o trabalho for rápido (uma vez que já está facilitado - trata-se agora de cortar e colar), escolher-se-á aquilo que se pretende dos preceitos que se encontram formulados com uma grande precisão técnica, como é o caso dos que constam da proposta do GDI. O que quer dizer que, o ideal é que este trabalho de revisão seja finalizado antes do fim do ano ou até ao fim do ano (2013), se assim não for, pelo menos até aos primeiros meses do ano seguinte (2014). Seria conveniente, haver o pronunciamento da versão definitiva da Comissão Ad-Hoc até o período supra, o que permitiria, a última apreciação antes da discussão parlamentar que poderia estar concluída até ao fim do primeiro trimestre (de 2014; eu penso que isso seria um equilíbrio entre o trabalho parlamentar e a participação da Sociedade Civil. Editor-Chefe: Senhor Professor, para finalizar gostaria de saber agora e em especial quais são os sectores, as propostas que foram feitas que para si são essenciais, inovadores e que permitiriam melhorar a Constituição vigente. Marcelo Rebelo de Sousa: Bom, eu começaria logo pela incorporação do princípio de respeito da dignidade da pessoa humana que é um princípio básico e que ilumina os demais 6 Observatório Constitucional Newsletter Fevereiro 2014
7 princípios da Constituição. Depois há aperfeiçoamentos importantes em matérias de direitos, liberdades e garantia. A proposta do GDI é muito precisa e muito rigorosa nessa matéria, há aditamentos úteis ainda no domínio dos direitos que enriquecem a visão do Estado de Direito Democrático no que respeita a organização económica e aos direitos e deveres económicos, encontramos também algumas precisões que são úteis mas em termos do funcionamento do regime económico do que propriamente para a sua mudança. Quanto a organização do poder político há várias propostas do GDI que são fundamentais como sejam, as respeitantes à participação na vida pública e na vida política, as respeitantes ao sufrágio para os órgãos electivos e aos sistemas eleitorais. Decompondo artigos na Constituição que estão muito sintéticos e há uma necessidade de aperfeiçoálos. Depois há uma tónica do aumento do pluralismo e da representatividade nas propostas apresentadas e existe um debate fundamental que é o confronto entre a Constituição que existe e a proposta da Frelimo, por um lado, e a proposta do GDI, por outro lado, que entre um sistema presidencialista, praticamente puro, para não dizer super presidencialista e um sistema em que o Chefe do Estado deixa de ser Chefe do Governo e, portanto, deixa, também, de ter uma intervenção na nomeação, por exemplo, de presidentes de tribunais superiores, para além, do Conselho Constitucional, isso altera a própria lógica do funcionamento na relação Primeiro-Ministro e outros membros do Governo, estabelece as premissas de responsabilização política do Governo perante o Parlamento e o papel do Presidente que iam ser centrais na organização do poder político. Ainda na organização do poder político, se propõem melhorias em termos da Administração Pública e em termos do poder local. Finalmente quanto a fiscalização da constitucionalidade há temas que são ligeiramente técnicos mas são politicamente sensíveis, é importante, por exemplo o tema da eleição do presidente do tribunal constitucional ou do conselho constitucional pelos seus pares, por exemplo a forma da escolha dos conselheiros constitucionais e o seu mandato. Eu sugeria que se ponderasse não em dois mandatos mas num só e que seja mais longo, por exemplo, de nove anos. Também na competência dos poderes do Tribunal Constitucional, a proposta de alargamento quer no lado da Frelimo é que sobretudo quanto a apreciação da constitucionalidade e da legalidade de actos não normativos expressamente proibidos na Constituição, o que exige algum cuidado na enumeração desses actos ou na limitação desses actos para não haver aqui uma sobreposição quanto ao órgão, aos tribunais administrativos quanto ao controlo dos actos administrativos que por natureza não são normativos; mas também há uma proposta do GDI que é bastante importante quanto ao alargamento do recurso extaórdinario que permite proteger ou reforçar a proteção dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, o que significa demonstra avanços importantes na garantia da Constituição. Há portanto, vários pontos que são politicamente sensíveis para o enriquecimento do Estado do Direito Democrático, nos principios, nos direitos, na organização do poder político e na fiscalização da constitucionalidade e da legalidade, o que permite prever que a discussão parlamentar, para além daquela que vai continuar na sociedade civil, poderá ser muito interessante. Editor-Chefe: Muito obrigado professor e agora mesmo para fechar esta entrevista Marcelo Rebelo de Sousa: Como última nota dizer que, o processo de revisão desenvolveu-se, a meu ver, de forma muito positiva, afastando a ideia que poderia surgir em alguma proposta (mas não surgiu em nenhuma proposta) de rever o limite de dois mandatos presidenciais. Portanto, nem a proposta da Frelimo e nenhuma outra proposta, se refere a possibilidade de introduzir uma disposição sobre um terceiro mandato na Constituição, algo que eu considero uma posição muito sensata e esse também é um aspecto muito positivo do processo na fase em que ele se encontra. Não podia encerrar este Newsletter sem desejar, aos leitores do Newsletter e em nome da equipe do Observatório Constitucional, um Feliz ano de 2014! Editor-Chefe. 7
8 FICHA TÉCNICA Propriedade e edição: GDI - Governance and Development Institute Av. 24 de Julho, nº 3737, 1º Andar, Flat 5 P.O. Box. 889 Maputo Moçambique Tel: Telefax: geral@gdi.org.mz Coordenador: Benjamim Pequenino Editor-Chefe: Gilles Cistac Periodicidade: Trimestral Layout e maquetização: Zowona Comunicação e Eventos Financiamento: 8 Observatório Constitucional Newsletter Fevereiro 2014
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