SOTERIOLOGIA: A DOUTRINA DA SALVAÇÃO
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- Tânia Marinho Leão
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1 SOTERIOLOGIA: A DOUTRINA DA SALVAÇÃO Hélio Wahlbrinck 1 O que é salvação? O que é perdição? Quem necessita de salvação? Qual a profundidade e qual a extensão da salvação? Salvação é um produto religioso, que necessitamos comprar e consumir para que sejamos transformados misticamente em um dos salvos? Ser um dos salvos significa enriquecer? Ou, ainda, a salvação é um poderoso resgate da nossa autoconfiança para, então, alcançar vitória sobre vitória nesse mundo e conseguir nos sobrepor a tudo e a todos? Ou salvação é assumir a cruz e carregá-la junto aos humildes e necessitados, num processo contínuo de resgate da dignidade e da vida humana? A salvação é absolutamente individual, solipsista e íntima (do coração)? Ou ela é tanto individual como coletiva, histórica e relacional? Existe uma salvação acima da história e fora dela? A salvação, do ponto de vista cristão, é um produto a que somente os santos (salvos, separados) misticamente iniciados têm acesso ou qualquer humano está incluído e, inclusive a natureza, pode nela estar incluída? A salvação é uma emoção muito forte numa experiência religiosa ou ela é uma mudança radical na consciência de filiação, consciência de co-pertença, com intrínseca disposição e efetiva mudança de mentalidade, de vida, intra e inter-humana? Salvação é algo para um futuro glorioso e distante ou é já e também no e sobre o passado como bases sobre o qual o futuro se constrói? A igreja é dona da salvação e, por isso, só dentro dela é possível acessá-la a salvação é assunto do sagrado Deus divide a história entre sagrado e profano, tem interesse em separar os humanos no aqui e no agora entre salvos (santos) e profanos (mundanos) não iniciados, ou Deus tem um projeto para a humanidade toda e, inclusive, para a natureza? Talvez, ainda, salvação seja um nome eufemista para um estado de crise permanente do humano diante de si, num processo não de reforma, mas de decisão, como todo ôntico, na busca de corresponder com o transcendental ontológico que o persegue como persegue o amante a sua amada? Quem está com a salvação? O Cristo crucificado não está com ela, mas veio trazê-la: ela não está com o nu, forasteiro, cego, desprezado, faminto, sofredor; no entanto, eles são os seus destinatários prediletos! Ela também não está com os cães famintos, violentos e vorazes e nem se destina a eles (ou 1 Acadêmico do curso de integralização de Teologia pela FTBP, turma 2010.
2 também a eles se destina?). Nem tampouco está com os porcos e os escarnecedores. O que é salvação para quem esta morrendo de fome? O que é salvação para quem padece de sofrimento psíquico-mental, inclusive com alienação mental e não consegue ser pai, marido, esposa, filho/a, irmão/ã; seu status é vergonha? O Reino de Deus, inaugurado por Jesus como o Cristo, tem algo para quem está em profunda crise e correndo risco de não ter vivido e nem ter descoberto a esperança? Do que necessitamos nos salvar: do Deus vingativo, que exige sacrifício para aplacar a sua ira? Ou necessitamos nos salvar das conseqüências dos nossos atos? Ou, mais especificamente, da nossa alienação como seres humanos? Deus é um deus de amor ou é implacavelmente exigente e vingativo? Se, no Antigo Testamento, Deus mostrou a Abraão que não requer sacrifício humano (Isaque), porque, em Jesus Cristo, teria o sacrifício perfeito por ele exigido, conforme alguns, para a expiação dos pecados e da culpa? Elencamos as perguntas acima para nos deixar sensibilizados com a multifacetada realidade em que nos movemos quando falamos em soteriologia, especialmente se a visualizamos como determinante também da imanência da vida humana. Parece-nos claro não ser viável responder a todas essas inquietações em torno da questão do que seja salvação do ser humano como integralidade física, psíquica, mental, espiritual, transcendente e transcendental. Para direcionar a nossa exposição, pensamos ser razoável trabalharmos a partir e especialmente esse tema em Paul Tillich (1984). Iniciamos essa tarefa a partir da seguinte colocação O significado universal de Jesus como o Cristo [...] pode também ser expresso no termo salvação. Ele mesmo é chamado Salvador, Mediador ou Redentor. [...] O termo salvação tem tantas conotações quantas são as negatividades que necessitam de salvação. Mas pode-se distinguir salvação com relação à negatividade última e com relação àquilo que conduz à negatividade última. Negatividade última é chamada de condenação ou morte eterna, que é a perda do t e l o s intrínseco ao próprio ser, a exclusão da unidade universal do Reino de Deus, a exclusão da vida eterna (TILLICH, 1984, p ) Tillich segue colocando que, na esmagadora maioria das vezes em que se usa o termo salvação ou a frase ser salvo, pensa-se a salvação diante da negatividade última. Essa questão torna-se, assim, uma questão de ser ou não ser. A vida eterna é o alvo último e a forma como pode ser conquistada ou perdida, aponta o sentido mais limitado do termo salvação. Conforme Tillich, partindo do original (de salvus, curado ) pode ser adequado interpretar salvação como cura. Assim, cura significa reunir aquilo que está alienado, reorientar aquilo que está disperso, separar o abismo entre Deus e o homem, entre o homem e seu mundo e do homem consigo mesmo. A partir dessa interpretação é que se desenvolve o conceito de Novo Ser. Salvação é a saída do antigo ser e a transferência para o Novo Ser. Essa compreensão inclui os elementos
3 de salvação que foram enfatizados em outros períodos; inclusive, sobretudo, a realização do sentido último da própria existência, mas o considera sob uma perspectiva especial, que é a de tornar salvus, curado. Na igreja grega a compreensão de salvação era ser salvo do erro e da morte; na compreensão da igreja romana, salvação tem a ver com salvar-se da culpa e de suas conseqüências nesta e na outra vida. No protestantismo clássico, salvação tem a ver com livrar-se do fardo da lei no seu poder de causar ansiedade e condenação. Já no pietismo e no revivalismo, salvação tem a ver com a conquista do estado de impiedade através da conversão e da transformação daqueles que se convertem. De forma semelhante, no protestantismo ascético e liberal, salvação tem a ver com conquista de pecados especiais e o progresso na dimensão da perfeição moral. Nesses termos, salvação está para o transcendente e para o transcendental, bem como para o imanente. Na forma do tempo imediato, no hic et hoc do homem comum, tem a ver com a transformação do homem em direção ao Novo Ser; a salvação se configura como processo já na imanência, se é que compreendemos Tillich corretamente. Nesse sentido, haveria uma convergência entre Paul Tillich e JFLeite (2010) no sentido de a salvação ter implicância direta no modo de vida do crente? JFLeite, comentando Lutero diz A idéia de plena, livre e presente salvação para os justificados pela fé, como se Cristo tivesse feito tudo e o cristão não tivesse nada a fazer para sua própria salvação, levou à terrível doutrina de que a fé e não o procedimento é que importa doutrina que é a própria base da hipocrisia. Por isso, Cristo preveniu os seus ouvintes contra a imitação dos fariseus, dos quais declarou: Eles dizem, mas não fazem (Mt 23.3). Com toda evidência, ele pensava que não é somente o que cremos que importa, mas também co mo procedemos. Por outras palavras, ele insistiu sobre a necessidade, para a salvação, tanto da fé como das boas obras; como o faz a igreja católica (BOISSET, 1971, p.19). O próprio Cristo fez questão de acentuar a necessidade das boas obras para a salvação. Advertiu-nos: nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade do pai que está nos céus (Mt 7. 21). Louvando as boas obras, disse: Rejubilai-vos e alegraivos, pois grande é a vossa recompensa no céu (Mt 5.12). Declarou que essas boas obras ou a ausência delas serão um fator decisivo no Juízo Final. Então ele dirá vinde benditos [...] pois eu estava com fome e me destes de comer ou Afastai-vos de mim, malditos, pois estava com fome e não me destes de comer (Mt e 41). Como se pode, então, dizer que a salvação é totalmente sem obras, se, por falta de boas obras, ela pode ser perdida? (JFLEITE, p.20) Poderíamos dizer ainda mais. Quando o apóstolo Paulo fala todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas (1Co 6.12), há uma dificuldade no horizonte do status das obras. Paulo não deixa de explicar o que quer dizer, mas no v. 12 em si, fica a aporia do status das obras do ponto de vista soteriológico; ou seja, é apenas uma questão de conveniência fazer boas obras ou, muito antes e mais que isso, as boas obras não são apenas uma questão de conveniência, têm status de referendar a salvação, elas são a legitimidade de situação junto ao Novo Ser (usando, aqui, a expressão de Paul Tillich)? As boas obras, na medida em que forem vivenciadas com autenticidade, são o carimbo da garantia de salvação depois, mas também junto à obra
4 soteriológica de Jesus como o Cristo. São sinais de cura e integração. Elas, em sua autenticidade, são a efetivação do processo de cura que o Novo Ser funda. Quando Paulo diz não de obras, para que ninguém se glorie, ele constrói um argumento fundamental de sua teologia, quando na verdade deveria ser secundário. Ele parte, talvez, do exemplo da viúva pobre, que dá a sua última moedinha e assim, faz muito [...]. Para Jesus, as obras são fundamento da salvação desde que observado entre nós a condição histórica e real de cada um em contribuir, participar, laborar. As obras que para Jesus são a marca da fé, (espelhados no exemplo da viúva pobre), quando movidos pelo desejo honesto de contribuir, Paulo, em seu discurso, relativiza como secundário ou, até mesmo, como problema; seu discurso, assim, pode dar margem à falsa modéstia e à hipocrisia. Certamente a intenção de Martim Lutero (1987) não foi questionar as boas obras, mas questioná-las no seu status, diríamos nós, aqui, de legitimador histórico da salvação, tendo em vista as obras ilegítimas da sua época como as indulgências; ou seja, para combater as obras ilegítimas ligadas ao catolicismo romano, Lutero eclipsa, a nível de discurso, as obras da fé e a fé de obras, que tem, em Jesus como o Cristo, status de asseguradoras da salvação diante do juízo e, também, status de concretizadoras da salvação no aqui e agora. O apóstolo Paulo teve, em sua época, problema estruturalmente semelhante expresso em seu esforço por combater as obras da lei. Questionando as obras da lei na forma do judaísmo legalista, casuísta e cego, que leva as pessoas a agir de forma não autêntica e apenas por certa formalidade ritual, ele eclipsa, igualmente, a nível de discurso, as obras da fé e a fé de obras, em seu status de asseguradoras e concretizadoras e consumadoras da salvação. A carta de Tiago é um entre outros textos que deixa referendada e fundamentada essa nossa visão do ponto de vista bíblico (ver Tg ). Tiago, na verdade, nos deixa claro que a fé sem obras é morta e esta fé não é a fé dos cristãos, mas dos demônios. Outrossim, é pelas obras que a fé cristã legítima se consuma; esta é a cura. Retomando a reflexão de Tillich, certo é que o cristianismo deriva salvação da teofania em Jesus como o Cristo, mas ele não separa salvação através de Cristo dos processos de salvação, ou seja, da cura, que acontecem através de toda história. Em todos os períodos em que o homem existe, existe uma história de eventos revelatórios. Se, por um lado, seria errôneo chamar esta mesma história de história da salvação à moda humanista, por outro lado, seria igualmente errôneo negar que eventos revelatórios ocorrem onde quer que seja, ao lado do aparecimento de Jesus como o Cristo 2, pois Existe uma história da revelação cujo centro é o evento Jesus, o Cristo; mas esse centro não está desprovido de uma linha que conduz até a ele (revelação preparatória) e uma linha que deriva dele 2 Sobre isso ver, também, JFLeite, p.15, onde o fora da igreja não há salvação é relativizado.
5 (revelação recebida). Além disso, afirmamos que onde existe revelação, existe salvação. Revelação não é informação a respeito de coisas divinas; é a manifestação estática do Fundamento do Ser em eventos, pessoas e coisas. Essas manifestações têm poder de abalar, transformar e curar. Eles são eventos salvíficos nos quais está presente o poder do Novo Ser. [...] está presente e cura onde quer que seja realmente aceito. A vida da humanidade depende dessas forças curadoras; elas impedem que as estruturas autodestrutivas da existência mergulhem a humanidade numa aniquilação completa. (TILLICH, Op.cit., p.372) Tillich segue dizendo que isso vale tanto para indivíduos como para grupos e é fundamento de evolução positiva das religiões e culturas humanas. Não obstante, qual é o caráter peculiar da cura através ou no Novo Ser, em Jesus como o Cristo? Se o aceitamos como salvador, o que é essa salvação, como se realiza, se consuma, historicamente e na expectativa do telos? Conforme Tillich, a resposta não pode ser que não existe salvação fora do Cristo e, sim, que ele é o crivo último de toda cura e de todo processo salvífico, mesmo que aqueles que o aceitaram existencialmente só estão curados fragmentariamente. Em Jesus como o Cristo, no entanto, a qualidade curadora é completa e ilimitada. Quando olhamos para Jesus, o Cristo, como salvador (mediador, redentor), ele traz salvação através do significado universal de seu ser como Novo Ser, não sendo correto fazer distinção, nesse contexto, entre pessoa e obra de Cristo. Isso para evitar que se compreenda a expiação como um tipo de técnica sacerdotal empreendida com o objetivo de realizar a salvação, mesmo que esteja incluso, nessa técnica, o autosacrifício. O significado de Jesus como o Cristo é seu ser, e os elementos profético-sacerdotal e real nele são conseqüência imediata de seu ser (além de vários outros), mas não são ofícios especiais unidos a sua obra. Jesus como o Cristo é o salvador através do significado universal de seu ser como Novo Ser (Idem, p.374). É nessa condição de Novo Ser que Jesus, como Cristo, representa Deus junto aos homens e os homens junto a Deus; em ambas as direções, ele é mediador. Poderíamos dizer que ele é Deus e homem junto aos homens e homem e deus junto a Deus, mas não submetido ou submisso a depravação humana e efetivador da vontade infinita de Deus em Cristo como Deus que chega até nós (mediador) e como Deus que nos resgata para dentro de seu agir salvador (redentor): a vivência do Novo Ser santificação. O termo redentor significa comprar de novo e introduz a idéia de que alguém (que não Deus) tem o homem sob seu domínio, Satanás, a quem deve ser pago um preço de resgate. Conforme Tillich, isto em parte é verdadeiro, mas é problemático no sentido de colocar Deus na condição de negociador com poderes antidivinos, antes de poder libertar o homem da prisão, da culpa e do castigo. Daí, decorrem as diferentes doutrinas da expiação.
6 Nesse escrito não há espaço para abordar as diferentes doutrinas da expiação; mencionaremos o ponto de partida e de chegada de Tillich quanto a isso: a doutrina da expiação é a descrição do efeito do Novo Ser em Jesus como o Cristo sobre aqueles que são possuídos por ele em seu estado de alienação (Op. cit. p.375). Assim, aponta-se para dois aspectos da expiação: o aspecto da manifestação do Novo Ser, que tem um efeito expiatório e o aspecto do que acontece ao homem sob o efeito expiatório; importante ressaltar que expiação sempre é, para Tillich, tanto um ato divino quanto uma reação humana. Deus supera a alienação humana na medida em que esta é uma questão de culpa. Mesmo assim, esse ato de Deus somente se torna efetivo se o homem reage e acolhe a eliminação da culpa entre ele e Deus; o elemento objetivo é ato de Deus e o subjetivo, a reação humana diante desse ato. Olhando para a história da Igreja, Tillich ressalta um novo enfoque a partir de Tomás de Aquino. Nele, o aspecto subjetivo de forma alguma está presente no processo expiatório. O aquinate acrescenta a idéia da participação do cristão no que acontece à cabeça do corpo cristão, o Cristo. Aqui acontece a troca do conceito substituição (o sofrimento de Cristo que tornaria desnecessário o sofrimento, castigo humano sofrimento vicário) pelo conceito de participação. Versando sobre princípios da doutrina de expiação, Tillich aborda seis, sendo o último deles o que ancora na participação: [...] através da participação no Novo Ser, que é o ser de Jesus como o Cristo, os homens também participam da manifestação do ato expiatório de Deus. Eles participam do sofrimento de Deus que assume as conseqüências da alienação existencial sobre si mesmo ou, para dizê-lo de forma sucinta, eles participam do sofrimento de Cristo. Disso se segue uma valoração do termo sofrimento substitutivo. É um termo bastante impróprio e não deveria ser usado em teologia. Deus participa do sofrimento da alienação existencial, mas seu sofrimento não é um substituto para o sofrimento da criatura. Nem o sofrimento de Cristo é um substituto para o sofrimento do homem. Mas o sofrimento de Deus, universalmente e no Cristo, é o poder que supera a autodestruição da criatura mediante participação e transformação. Não substituição, mas participação livre, é o caráter do sofrimento divino. E, reciprocamente, não ter um conhecimento teórico da participação divina, mas ter uma participação na participação divina, aceitando-a e sendo transformada por ela esse é o caráter tríplice do estado de salvação. (Ibidem, p ) Quando Tillich (apoiado em Tomás de Aquino) fala dessa relativização da compreensão do sofrimento de Cristo como sofrimento vicário e coloca, em seu lugar, a visão da participação livre de Deus na realidade humana, coloca, ainda, que precisa haver, da parte do homem, reciprocidade, não teórica, mas participação na participação divina, acolhendo-a e sendo por ela transformado, ele aponta, também, para um procedimento prático, as obras da pessoa como um resultado intrínseco desta participação (assim como a obra de Jesus como o Cristo foi e é encarnada na História). Olhando a partir do princípio da não-contradição, talvez Tillich e JFLeite não dizem a mesma coisa, mas apontam para um mesmo resultado prático na vida das
7 pessoas que se envolvem com o Novo Ser. Uma vida que se enquadra no quem quer ser meu discípulo, tome a sua cruz e siga-me e, também, vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados [...]. Seguindo, Tillich diz que o caráter tríplice da salvação à luz do princípio da participação e a base da doutrina da expiação deve considerar que o efeito do ato expiatório divino sobre o homem se expressa em três momentos: participação, aceitação e transformação, o que, em termos clássicos se chama Regeneração, Justificação e Santificação: a) Regeneração salvação como participação no Novo Ser Aqui Tillich deixa claro que o poder salvador do Novo Ser em Jesus, como o Cristo, depende da participação, do envolvimento do homem nele; somente assim o poder do Novo Ser pode abranger quem está sob as garras do velho ser. Isso é uma questão de iniciação na espiritualidade cristã. Contudo, o que esta na vez, aqui, não é o fator subjetivo, ou seja, a reação humana, mas o aspecto objetivo, é a relacionalidade do Novo Ser em relação aos que por ele são possuídos. Isso corresponde a um impacto e introduzir para dentro de si, alcançando-se o estado que Paulo chama de estar em Cristo. A terminologia clássica a esse estado são expressões como Novo Nascimento, Regeneração, ser uma nova criatura. Aqui se pensa em fé ao invés de descrença, entrega, ao invés de hybris, amor, ao invés de concupiscência. Esse processo, conforme Tillich, não é fato apenas no campo subjetivo (humano) individual; regeneração é um estado de coisas universal. É o novo éon trazido por Cristo. A realidade objetiva do Novo Ser procede a participação subjetiva do indivíduo nesse éon. A mensagem de conversão é, antes de mais nada, a mensagem de uma nova realidade a qual somos solicitados a nos dirigirmos; à vista da mesma, deve afastar-se da antiga realidade, o estado de alienação existencial no qual se viveu. Regeneração (e conversão), entendidos nesse sentido tem pouca coisa em comum com a tentativa de criar reações emocionais apelando ao indivíduo em sua subjetividade. (TILLICH, Op. cit., p.380) A questão é ter sido transportado para a nova realidade em Jesus como o Cristo. As conseqüências subjetivas no indivíduo podem ser e são fragmentárias, ambíguas e não configuram a base para reivindicar parte no Cristo, mas a fé que acolhe Jesus como o portador do Novo Ser é a base; a pessoa apenas participa. Isso nos abre a vista de uma segunda relação que o Novo Ser estabelece junto aos que por ele são possuídos. b) Justificação salvação como aceitação do Novo Ser
8 O sentido do ato expiatório de Deus não reside na realidade subjetiva, fragmentária e ambígua do indivíduo, não depende do seu estado de desenvolvimento. Identifica-se com o elemento do apesar de, ao processo de salvação. È a conseqüente implicação imediata da doutrina da expiação e, essa é o coração e o centro da soteriologia. No horizonte da Regeneração, Justificação é, antes de tudo, um evento objetivo (divino) e, depois, é subjetivo na forma da recepção, aceitação dela por parte da pessoa: [...] no sentido objetivo é o ato eterno de Deus mediante o qual ele aceita como não alienados aqueles que, na verdade, se acham alienados dele pela culpa, mediante o qual ele os introduz na unidade com ele, que se manifesta no Novo Ser em Cristo (Op. cit. p.381). Seguindo, a doutrina paulina confere à palavra justificação pela graça mediante a fé um sentido que, tendo em vista a seqüência de nossa exposição, se acha radicalmente no sentido oposto ao da santificação. A questão da justificação reside em a pessoa acolher, aceitar que é aceita por Deus e, assim, curada em sua ansiedade, culpa e desespero. Justificação é tornar justo, tornar o homem aquilo que ele é essencialmente e do que ele esta separado. Como em Lutero, sem o ato objetivo de Deus na justificação pela graça através da fé, o homem não tem condições de lidar sozinho com sua ambigüidade, alienação, frente à Lei; ele necessita aceitar ser aceito por graça, mediante a fé. A causa, nisso tudo, é tão somente Deus (pela graça) e a fé de que somos aceitos é o canal dispensador da graça ao homem (através da fé). Essa fé, por sua vez, também é dom de Deus, mediante a ação do espírito Santo. c) Santificação salvação como transformação pelo Novo Ser Tillich resume os dois itens acima dizendo que como ato divino, Regeneração e Justificação são um e mesmo ato (ato, aqui, tem sentido de evento). Por outro lado, santificação se distingue de ambos assim como um processo se distingue de um evento no qual se iniciou. Nesse horizonte, santificação pode significar ser recebido na comunidade dos sancti [...] esses seriam os que são possuídos pelo Novo Ser. Tillich mesmo diz, aqui, que essa compreensão se deve ao ressurgimento do paulinismo durante a Reforma. Talvez ele, nesse contexto, subentenda a questão do arrependimento. Não obstante, sentimos falta da articulação clara de que para o alienado estar dentro e continuar no processo de salvação, o arrependimento (realidade subjetiva humana), a atitude humana, na dimensão de um procedimento claro de abandono de seu comprometimento com o velho ser e a caracterização, no dia-a-dia, do significado prático de santificação como modus vivendi renovado e segundo o Espírito de Deus precisa ser
9 mencionado. Estas são questões que já discutimos acima, quando falamos de Lutero e Paulo que, em termos de discurso, parece-nos, não têm a questão do procedimento renovado do crente (as boas obras) como consumação e asseguradoras da salvação (claro, já não como fundadoras da salvação). Talvez Tillich queira dizer isso daí, quando coloca a expiação não como um ato apenas de Deus, mas como acontecimento no qual a participação do ser humano é real (ou deve ser real), quer dizer, o ser humano participa do proceder de Deus na vida, na história. A erupção do Novo Ser no mundo, em Jesus como o Cristo, tem como fim nossa participação, aceitação e transformação pessoal e coletiva (cura); quem não mais é alienado, do ponto de vista de divino de si-mesmo, vive, do ponto de vista humano um novo pensar, sentir e proceder. Como a salvação se realiza e efetiva historicamente e tem um telos, Tillich trata disso no restante de sua obra, sob os títulos A vida e o Espírito (parte 4) e A história e o Reino de Deus (parte 5). Santificação é, portanto, o processo no qual o poder do Novo Ser transforma a personalidade dos indivíduos, a identidade da comunidade, tanto dentro da igreja como também fora dela. Aqui, se lemos Tillich corretamente, está todo o aspecto do proceder prático com status de salvação. Tanto a esfera religiosa como a secular são objetos da ação santificadora do espírito de Deus que é, em cada momento da pessoa e da coletividade, a atualidade do Novo Ser que atrai para a participação, a aceitação e a transformação, a cura, a superação da alienação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. LEITE, J. F. Análise da doutrina da soteriologia no contexto histórico cristão LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, v.1, São Leopoldo: Sinodal e Porto Alegre: Concórdia OLIVEIRA, João Batista de. Soteriologia: a doutrina da salvação TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Paulo: Paulinas. 1984
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