HUGO ARRUDA DE MORAIS

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1 0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS GEOGRÁFICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUGO ARRUDA DE MORAIS TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS EM TORNO DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS EM PASSIRA-PE: Uma análise discursiva do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas Recife 2017

2 1 HUGO ARRUDA DE MORAIS TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS EM TORNO DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS EM PASSIRA-PE: Uma análise discursiva do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco, para a obtenção do título de Doutor em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho (UFPE). Co-orientadora: Prof. Drª. Elisa Magnani (UNIBO-Itália). Recife 2017

3 2 Catalogação na fonte Bibliotecária: Maria Janeide Pereira da Silva, CRB M827t Morais, Hugo Arruda de. Territórios, territorialidades e discursos em torno dos projetos de assentamentos rurais em Passira-PE : uma análise discursiva do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas / Hugo Arruda de Morais f. : il. ; 30 cm. Orientador : Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho. Coorientadora : Profª. Drª. Elisa Magnani. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Recife, Inclui Referências. 1. Geografia. 2. Geografia humana. 3. Territorialidade humana. 4. Assentamentos humanos Projetos. 5. Análise crítica do discurso. 6. Concessões de terras. I. Castilho, Cláudio Jorge Moura de (Orientador). II. Magnani, Elisa (Coorientadora). III. Título. 918 CDD (22. ed.) UFPE (BCFCH )

4 3 HUGO ARRUDA DE MORAIS TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS EM TORNO DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS EM PASSIRA-PE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIOTERRITORIAL DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS Aprovada em: 10/03/2017. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Geografia. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Cláudio Jorge Moura de Castilho (Orientador Examinador Interno) Universidade Federal de Pernambuco Prof. Dr. Alcindo José de Sá (Examinador Interno) Universidade Federal de Pernambuco Profa. Dra. Beatriz Maria Soares Pontes (Examinadora Externa) Universidade Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Paulo Roberto Baqueiro Brandão (Examinador Externo) Universidade Federal do Oeste da Bahia Profa. Dra. Maria do Carmo de Albuquerque Braga (Examinadora Externa) Universidade Federal Rural de Pernambuco

5 4 À minha esposa Ana Patrícia, pela paciência, dedicação, compreensão e amor que foram fundamentais para vencer mais esta etapa da minha vida.

6 5 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, em nome de Jesus Cristo, por ter sido o meu Bom Pastor, por ter me guiado e orientado pelos caminhos mais seguros. Agradeço à minha esposa Ana Patrícia de Melo, pelo companherismo e por ter acreditado no meu projeto de vida. A paciência, os conselhos e a amizade sempre presentes foram fundamentais nesse minha jornada diária de trabalho. Agradeço à minha família, por ter respeitado o meu trabalho e dado força na hora que sempre precisei. Agradeço aos meus amigos do Conexão, na pessoa de Eduardo Arruda, que sempre estiveram comigo nessa caminhada. Agradeço aos meus amigos, Felipe, Givago, Cézar, Rodolfo, companheiros de boas conversas. Com eles, foram muitos momentos de descontração e esquecimento das dificuldades do trabalho de pesquisa. Agradeço ao meu amigo, Padre Mariano, por todos os conselhos e ajudas dadas. Agradeço à Suzana Gomes, minha amiga, que fez a revisão dos textos em inglês. Agradeço à Lúcia Sant Ana, que fez inúmeras vezes uma revisão e correção gramatical do textos de meu trabalho. Agradeço à Katielle, pela ajuda na confecção dos mapas de minha pesquisa. Agradeço às minhas Tias Zeza e Fal, pelas vezes que me acolheram em suas casas no período em que fazia o curso. Agradeço a todos os amigos do Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Espaço Urbano (MSEU), que trabalham comigo desde Agradeço aos Professores e Funcionários do Departamento de Geografia, na pessoa de Eduardo Véras, pela atenção e respeito dados a mim. Agradeço aos Professores Jorge Ventura do PPGS e Nilo Américo do PPGEO pela participação em minha qualificação e pelas valiosas observações.

7 6 Agradeço ao meu orientador Professor Cláudio Jorge Moura de Castilho, por acreditar em mim e permitir enxergar novos horizontes dentro da Geografia. Agradeço à minha co-orientadora Professora Elisa Magnani, por ter colaborado com meu trabalho no período em que fiz meu estágio doutoral na Università di Bologna (UNIBO), na Itália. Agradeço ao Professor Claude Raffestin, pela disponibilidade e pelo inesquecível momento de conversar e debater pontos sobre meu trabalho. Agradeço à CAPES pelo financiamento dessa pesquisa. Agradeço ao CNPQ, pela oportunidade de realização de meu Estágio de Doutorado Sanduíche na Università di Bologna. Agradeço às famílias assentadas nos PA Independência e Varame I, por sempre me receberem e permitirem a realização dessa pesquisa. Vocês são verdadeiros heróis! Enfim, agradeço a todos que acreditaram e acreditam que um jovem oriundo de Passira, um pequeno município do interior de Pernambuco, conseguisse realizar seu sonho de ser doutor em uma ciência tão bonita como a Geografia. Grato em Cristo Jesus!

8 7 RESUMO A presente tese de doutoramento possui como objetivo central compreender de que forma acontece o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir de seus discursos. Partimos da perspectiva de que na realidade brasileira [e em estudo] existe um verdadeiro campo de lutas e afrontamentos em torno da Reforma Agrária (RA) e, principalmente, dos assentamentos rurais. Uma disputa territorial que se estabelece pelo desencontro entre os discursos que contestam e propõem a RA e as práticas que possibilitam ganhos e formas de inserção social de camponeses pobres e sem-terra nesses territórios. Embates a partir do que se diz e do que se faz, entre o que se propõe como solução e o que supostamente não precisa dessa solução. Por isso, mais do que uma mera intervenção estatal nas áreas de conflitos agrários, carregadas de discursos de mudança social, sustentabilidade, integração social, econômica, política e cultural, e da defesa de uma bandeira ou da força de um movimento social, a partir do discurso em torno das ocupações de terra impulsionadas pelo MST, a construção e a efetiva inclusão desses grupos de famílias deve ser estabelecida a partir de práticas sociais que atendam as reais demandas do cotidiano territorial desses indivíduos que vivem e fazem dos assentamentos seus locais de existência. Uma vez que são os discursos associados às práticas desses sujeitos sem-terra que possibilitam novos processos de inclusão socioterritorial, a partir da construção de uma realidade simbólica e da possibilidade real de ação no espaço, na tentativa da conquista do território e em busca de transformação de sua condição de vida. A questão central indaga, portanto, sobre em que medida ocorre o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas nos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE? A hipótese central parte da perspectiva que a apropriação e o uso dos territórios dos PAs, no município de Passira-PE presente nas práticas sociais e nos discursos do Estado e dos movimentos sociais não possibilita a real inclusão socioterritorial das famílias assentadas. A tese central está, portanto, centrada numa perspectiva que há na construção desses territórios um verdadeiro jogo ou confronto de discursos e práticas sociais divergentes, resultando em ganhos sociais muito limitados para as famílias assentadas nos PA Independência e Varame I. Fundamentados na problemática relacional, nossa análise compreende o estudo da sociedade pela sua dimensão espacial do discurso, a partir das territorialidades discursivas. Para isso, propomos como procedimento metodológico a Análise Crítica do Discurso (ACD) como instrumento técnico que nos possibilitou, mediante a descrição, interpretação e explicação dos discursos enunciados junto às famílias assentadas, compreender o processo de uso e

9 8 apropriação dos sujeitos no âmbito dos territórios dos PA, a fim de aprofundar a natureza do processo de inclusão socioterritorial dessas famílias, a partir dos territórios da Reforma Agrária no Passira-PE. Palavras-chave: Território. Territorialidade. Discurso. Análise Crítica do Discurso. Projetos de Assentamentos. Passira.

10 9 ABSTRACT The main purpose of this PhD thesis is to comprehend the discourses around the socioterritorial insertion process of the families settled in the construction of Rural Settlement Projects located in Passira-PE. We start from the perspective that in the Brazilian reality there is a real field of struggles and confrontations around the Agrarian Reform and, mainly, around the rural Settlements. A territorial dispute is established by the mismatch between the discourses which challenge and proposed the agrarian reform and the practices which enable gains and forms of social integration of families landless in those territories. Therefore, more than a mere state intervention in the areas of agrarian conflicts, full of social change discourses, sustainability, social, economic, political and cultural integration, defense of a ideology or the power of a social movement - from the discourses around the land occupations promoted by the MST - the construction and the effective integration of these families should be drawn from social practices that cover the real needs of those individuals in their territorial daily lives. Considering that are the landless discourses and practices that enable new processes of inclusion and socio-territorial integration, starting from the construction of a symbolic reality and the possibility of a real action in the space to change their living conditions. Thus, the central issue of this analysis asks to which extent the socio-territorial integration process of families settled occurs in the Rural Settlement Project in Passira-PE? The central thesis proposes that the use of the territories of Settlement Projects (PA in Portuguese) in the town of Passira-PE - present in the social practices and in the State and social movement discourses - does not allow the real socio-territorial insertion of the settlers. Inother words, there is in the construction of these territories a real game or confrontation of discourses and divergent social practices, resulting in social benefits too limited to families settled in the PA in study (Independência and Varame I). Based on the relational approach, our analysis includes the study of society by their spatial dimension of the discourse and discursive territorialities. This thesis has the Critical Discourse Analysis as a methodological tools to enable the description, interpretation and explanation of discourses that are settled out to the settled families, understanding the nature of the socioterritorial insertion process in the Agrarian Reform territories located in Passira-PE. Keywords: Territory. Territoriality. Speech. Critical Discourse Analysis. Settlement Projects. Passira.

11 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Agrovila do PA Independência Figura 2 - Perfil de ocupação dos lotes da Agrovila Figura 3 - Movimento de ocupações e acampamentos dos camponeses atualmente assentados no PA Independência Figura 4 - Movimento de ocupações e acampamentos dos camponeses atualmente assentados no PA Varame I

12 11 LISTA DE FOTOGRAFIAS Foto 1 - Entrada do Assentamento Independência, às margens da PE Foto 2 - Visão parcial da agrovila do PA Independência Foto 3 - Modelo de casa do PA Independência Foto 4 - Assentados auxiliando na construção de suas próprias casas Foto 5 - Instalação informal da rede elétrica no PA Independência Foto 6 - Instalação formal da rede elétrica no PA Independência Foto 7 - Cisterna das casas do PA Independência Foto 8 - Casa-sede do assentamento PA Independência Foto 9 - Criação de animais ao lado da casa Foto 10 - Plantação de feijão, na frente da Casa da Agrovila (meses de março, abril, maio e junho) Foto 11 - Estrada que dá acesso ao PA Varame I e que divide o assentamento em duas partes Foto 12 - Vista parcial de casas do PA Varame I dentro de cada lote da agrovila Foto 13 - Casa inacabada no PA Varame I Foto 14 - Paisagem de lote que apresenta cultura irrigada no PA Varame I Foto 15 - Lote sem cultura alguma, uma vez que o parceleiro não dispõe de condições para fazer irrigação Foto 16 - Paisagem de lote no PA Varame I com plantação irrigada das lavouras de hortaliças e milho, ao fundo Foto 17 - PE 78 dividindo a Fazenda Varame e os PA Varame I e II

13 12 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Brasil Número de famílias acampadas por Estado Gráfico 2 - Passira População urbana e rural 2000/ Gráfico 3 - Polo Bom Jardim População rural em municípios que apresentam assentamentos 2000/ Gráfico 4 - Passira Distribuição da população por faixa etária 2000/ Gráfico 5 - Passira Percentual de analfabetos por sexo Gráfico 6 - Passira Rendimento mensal das famílias Gráfico 7 - Passira Rendimento médio mensal da população urbana e rural

14 13 LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Polo Bom Jardim na Mesorregião do Agreste Pernambucano Mapa 2 - Polo Bom Jardim para Desenvolvimento de Projetos de Reforma Agrária do Estado de Pernambuco Mapa 3 - Passira Localização do PA Independência Mapa 4 - Passira Localização do PA Varame I

15 14 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Passira Projetos de Assentamentos e número de famílias assentadas Quadro 2 - Concepções de territorialidades ativas Quadro 3 - Brasil Movimentos Socioterritoriais Quadro 4 - Brasil Número e movimentos socioterritoriais que realizaram ocupações por ano 2003/ Quadro 5 - Brasil Movimentos socioterritoriais e lugares de atuação Quadro 6 - Pernambuco Movimentos socioterritoriais Quadro 7 - Modalidades de créditos liberados aos PA em Passira/PE

16 15 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Brasil Evolução da concentração fundiária no Brasil 1967/ Tabela 2 - Brasil Estrutura fundiária no Brasil Tabela 3 - Brasil Assassinatos e prisões em conflitos do campo Tabela 4 - Brasil Metas do I PNRA 1985/ Tabela 5 - Brasil Famílias assentadas no I PNRA 1985/ Tabela 6 - Brasil Ocupações de terra e famílias envolvidas 1990/ Tabela 7 - Brasil Famílias assentadas no Governo Fernando Henrique Cardoso 1995/ Tabela 8 - Brasil Ocupações de terra e famílias envolvidas 1995/ Tabela 9 - Brasil Brasil Ocupações de terra e n de famílias 1999/ Tabela 10 - Brasil Acampamentos 2001/ Tabela 11 - Brasil Metas do II PNRA 2003/ Tabela 12 - Brasil Famílias assentadas no Governo Lula 2003/ Tabela 13- Brasil Relação número de assentados e ocupações Governo Lula 2003/ Tabela 14 - Brasil Número de ocupações e famílias no MST 2003/ Tabela 15 - Brasil Número de ocupações e famílias no MST Tabela 16 - Pernambuco Ocupações realizadas pelos movimentos socioterritoriais 2001/ Tabela 17 - Pernambuco Relação Movimentos sociais, ocupações e famílias 2001/ Tabela 18 - Polo Bom Jardim Relação das ocupações e famílias 2001/ Tabela 19 - Passira Relação das ocupações e famílias 2001/ Tabela 20 - Passira Imóveis ocupados, movimentos sociais e famílias 2004/ Tabela 21 - Pernambuco Relação número de famílias assentadas e em ocupações 2001/ Tabela 22 - Polo Bom Jardim Relação dos PA 2001/ Tabela 23 - Polo Bom Jardim Relação número de famílias assentados e em ocupações 2001/ Tabela 24 - Passira Projetos de Assentamentos Rurais 2001/ Tabela 25 - Passira Estrutura fundiária do município

17 16 Tabela 26 - Passira Estrutura fundiária do município Tabela 27 - Passira Relação pessoal ocupado por categoria de propriedade Tabela 28 - Passira Relação pessoal ocupado por categoria de propriedade

18 17 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS EM TORNO DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS EM PASSIRA-PE: APORTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS APROXIMAÇÃO COM O OBJETO E A PROBLEMÁTICA DE PESQUISA OBJETIVOS E CONCEITOS FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS Dimensão espacial do discurso Concepção de discurso como poder Concepção de discurso como prática Território, poder e discurso Território e poder Território, territorialidade e linguagem Territorialidades e discursos A noção de Territorialidade As territorialidades ativas As territorialidades e os discursos ativos e passivos O PERCURSO METODOLÓGICO A técnica de análise dos discursos Delineando a técnica de coleta dos discursos A análise e tratamento dos discursos Os interesses de conhecimentos A REFORMA AGRÁRIA E OS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS ENQUANTO DISPUTA TERRITORIAL: APROXIMAÇÕES ENTRE OS DISCURSOS E PRÁTICAS DO ESTADO E DO MST REFORMA AGRÁRIA: TERRITÓRIO DE DESENCONTROS E DISPUTAS ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS DISCURSOS E PRÁTICAS EM TORNO DOS PLANOS GOVERNAMENTAIS DE REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL... 97

19 As políticas governamentais na década de 80, o I PNRA e a gênese do MST e do discurso da RA a partir da luta pela Terra Governos Militares e o Estatuto da Terra MST: gênese e o discurso em torno da luta pela terra e pela Reforma Agrária O I Plano Nacional de Reforma Agrária: o discurso da Reforma Agrária possível As políticas governamentais na década de 90, a RAM e o discurso contra o neoliberalismo Governos Collor, Itamar e o discurso desenvolvimentista de FHC FHC, a despolitização da luta camponesa, e a Reforma Agrária de Mercado O discurso da esperança e as práticas da não reforma agrária: o II PNRA O discurso de esperança e a disputa territorial no governo Lula O Plano Plínio e a sua derrota O II Plano Nacional de Reforma Agrária: o discurso do desenvolvimento territorial sustentável e dos territórios de produção e qualidade de vida Do discurso da esperança ao da frustação: a prática da não reforma agrária no Governo Lula MST, discursos e a permanência da luta pela terra Ocupações como forma de acesso à terra: sentidos e desdobramentos na espacialização e territorialização da luta pela terra e pela RA O CAMPONÊS, A LUTA PELA TERRA E OS ASSENTAMENTOS RURAIS DE REFORMA AGRÁRIA EM PERNAMBUCO E EM PASSIRA O CAMPONÊS E A CULTURA DA EXPLORAÇÃO PELA RENDA DA TERRA O camponês do Agreste Pernambucano A LUTA PELA TERRA E A ORGANIZAÇÃO DOS CAMPONESES EM PERNAMBUCO As Ligas Camponesas: a gênese da luta pela terra UM QUADRO ATUAL DA LUTA PELA TERRA E DA REFORMA

20 19 AGRÁRIA EM PERNAMBUCO, A PARTIR DO MST Ocupações e a permanência da luta pela terra a partir do MST Os Projetos de Assentamentos Rurais em números O MUNICÍPIO DE PASSIRA: ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOECONÔMICOS DA POPULAÇÃO LOCAL A implantação dos assentamentos e a tendência à desconcentração fundiária no município de Passira-PE OS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS NO MUNICÍPIO DE PASSIRA-PE: CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS E DA POPULAÇÃO ASSENTADA CARACTERIZAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA POPULAÇÃO DO ASSENTAMENTO INDEPENDÊNCIA Organização e produção O contexto histórico dos assentados Perfil atual das famílias assentadas CARACTERIZAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA POPULAÇÃO DO ASSENTAMENTO VARAME I Organização e produção O contexto histórico dos assentados Perfil atual das famílias assentadas O PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIOTERRITORIAL DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS: DISCURSOS E TERRITORIALIDADES ATIVAS E PASSIVAS NOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS INDEPENDÊNCIA E VARAME I AS TERRITORIALIDADES E OS DISCURSOS ATIVOS NO PERÍODO INICIAL DE FORMAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS A luta pela terra e a difícil tarefa da formação da identidade territorial Territorialidades e Discursos na conquista do território do PA 275 Independência Territorialidades e Discursos na conquista da território do PA Varame O sujeito assentado, território e novos discursos IMAGEM PROJETADA, REPRESENTAÇÕES E EMBATES

21 20 DISCURSIVOS A PARTIR DOS TERRITÓRIOS DOS PA Territórios dos PA e o espaço imaginado nos discursos do MST A ruptura com o espaço imaginado e o embate discursivo com o MST O discurso de desqualificação do INCRA DA MOBILIZAÇÃO NO ESPAÇO ÀS TERRITORIALIDADES E DISCURSOS PASSIVOS NOS TERRITÓRIOS DOS PA INDEPENDÊNCIA E VARAME I O não protagonismo nos territórios dos PA A não apropriação dos territórios dos PA e a falta de autonomia Os territórios dos PA e descrédito com a consciência de lugar CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS

22 21 1 INTRODUÇÃO Este estudo busca compreender como acontece o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir de seus discursos. Entendemos que a forma como é conduzido o processo de Reforma Agrária (RA) na realidade em estudo impossibilita a ampliação da capacidade que as famílias assentadas têm de apropriarem e usarem os territórios dos Projetos de Assentamentos Rurais (PA), reorganizando-os de forma a atender aos interesses coletivos. Para nós, os discursos e as práticas do Estado e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) em torno da construção dos PA se estebelecem através de um campo de lutas, enfrentamentos e negação das ações do outro. Com um discurso centrado na luta pela terra, o MST se coloca junto aos camponeses pobres e sem-terra como alternativa única na construção de uma outra realidade de vida, a partir de ações centradas nas ocupações e nos acampamentos. Por outro lado, há por parte do governo federal, um posicionamento de representante da classe trabalhadora e aliado dos movimentos sociais, sustentando-se no discurso de realização de uma RA que modifique a difícil realidade do campo, a partir da efetivação dos assentamentos rurais como territórios de realização de mudanças em várias dimensões. Um ponto central nesse debate é que tanto o Estado como o MST apontam em seus discursos que esses territórios possibilitaram autonomia, liberdade e cidadania às famílias de camponeses beneficiadas, constituindo-se em verdadeiros territórios de vida e trabalho. Porém, muitos dos PA, inclusive os estudados nesta pesquisa, não condizem com tais discursos. Poucos são os avanços nesses aspectos na medida em que o que se vemos, na realidade, são camponeses e membros de suas famílias questionando as ações do governo e das organizações camponesas, apontando os erros e as poucas conquistas em termos de inclusão. Entendemos que os Projetos são frutos de uma disputa territorial, centrada num embate discursivo que se dá, pelo menos, entre três atores: o Estado brasileiro, as organizações camponesas, com destaque para o MST e as famílias de trabalhadores rurais beneficiadas. Desse modo, existe um grande desencontro histórico entre discursos e práticas sociais em torno dos territórios de RA. Há uma grande divergência histórica e espacial entre o que é dito e o que é feito enquanto prática com relação aos assentamentos rurais. As

23 22 proposições, soluções e caminhos acontencem dentro de um quadro discursivo, baseado na inclusão das famílias camponesas, mas há poucas ações no sentido de efetivar esse processo. Tais territórios são frações do espaço criado e construído primeiramente no discurso, tornando-se uma manifestação da linguagem, uma imagem e um instrumento de poder. Antes dos assentamentos existirem enquanto realidades materiais da reforma agrária, eles são construídos e disputados de forma imaterial, a partir do que é dito e das representações criadas. Isso nos levou a repensar a importância do discurso como uma ação indissociável da produção do espaço e, consequentemente, do território. Numa perspectiva do discurso como um acontecimento reflexo e condicionador das ações humanas. Buscamos um discurso que ultrapassa a concepção linguística. O discurso aqui é visto não só como um fenômeno linguístico, mas também social, assumindo um papel importante na produção do espaço (LEFEBVRE, 1986). Tomamos o uso da língua como prática social e com dimensões na construção das realidades espaciais. O que permite que as ações e os comportamentos dos sujeitos ligados ou não à sua capacidade intrínseca de construir o território possam estar presentes e concebidos pelos seus discursos. Daí a territorialidade discursiva. Com isso, no primeiro capítulo desta tese, desenvolvemos, embasados na perspectiva de território e dos aspectos semiológicos do livro Por uma Geografia do Poder, de Claude Raffestin, uma análise centrada no entendimento da linguagem, como sistema sêmico, manifestando poder e estratégia de apropriação do território pelos atores sociais. Partimos da perspectiva de que tanto o território como o discurso são construídos socialmente, numa relação de apropriação do espaço pelo sujeito. Mobilizamos, para a análise, a contribuição de Raffestin no que concerne à relação território e linguagem; uma análise sobre a problemática relacional na construção do território; as contribuições de Michel Foucault para a relação do discurso e do poder e as de Norman Fairclough para o entendimento do discurso como uma forma de prática social. Neste capítulo, também apresentamos a nossa noção de territorialidade e sua ligação com o discurso, a partir da perspectiva das territorialidades discursivas como ações e práticas sociais dos sujeitos em torno do processo de uso e apropriação do espaço geográfico, em forma de discurso, no âmbito da relação entre grupos humanos e seu ambiente de vida, por meio da linguagem. Ainda no mesmo capítulo, apresentamos o percurso metodológico centrado na Análise Crítica do Discurso (ACD) como instrumento técnico que nos possibilitou, mediante a descrição, interpretação e explicação dos

24 23 discursos enunciados junto às famílias assentadas, compreendendo o processo de inclusão dos sujeitos no âmbito dos territórios dos PA, territórios da Reforma Agrária em Passira-PE. No segundo capítulo, baseamo-nos na concepção de desencontro histórico (MARTINS, 2003) entre discursos e as ações com relação à RA, retomando o quadro discursivo da disputa territorial entre o Estado e o MST em torno do I e do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Centramos nosso debate na retomada do processo histórico em torno do que foi dito [em termos de discurso] e das ações desses atores ao longo do período, enfatizando que o que foi enunciado não necessariamente coincidia com os objetivos dos trabalhadores rurais que lutam pela terra no país. Principalmente, no II PNRA do governo Lula, uma vez que o discurso da esperança e da possibilidade de realização da RA no Brasil foi frustrado com a prática da não reforma agrária, constituindo-se em uma grande farsa histórica.no terceiro capítulo, apresentamos como se dá o processo de constituição do camponês, a partir do processo de exploração e expropriação proporcionada pela renda capitalista da terra. Inclusive, retomamos algumas características do camponês do Agreste de Pernambuco e as formas de exploração sofrida, no âmbito do quadro histórico de atuação do MST em PE, bem como os números de suas ações no estado e no município de Passira, como uma tentativa de mostrar que o discurso do movimento é capaz de mobilizar uma grande massa de camponeses pobres e sem-terra. O quarto capítulo discorre sobre os PA no município de Passira-PE como materialização dos discursos e das práticas em torno da luta pela terra e da reforma agrária no estado federado de Pernambuco. Com isso, apresentamos alguns aspectos históricos e socioeconômicos dos assentados nos PA Independência e Varame I, a fim de entendermos a sua trajetória de vida e trabalho como camponeses explorados e exproriados. Também, traçamos algumas características desses territórios, a partir da organização, produção e perfil populacional atual. No quinto capítulo, apresentamos o processo de construção dos assentamentos rurais Independência e Varame I por parte das famílias assentadas, a partir de uma ACD. Acompanhado de uma reflexão que permeia uma análise do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas, a partir de territorialidades ativas e/ou passivas. Para isso, retomamos os discursos formulados em torno das ocupações e do agir social dos sujeitos no espaço, as imagens e as representações criadas no período de luta pela terra, os cenários e as rupturas em termos de discurso e realidade territorial, o papel do INCRA e do MST, a concepção de ser assentado e a tomada do território do PA como espaço de mobilização coletiva.

25 24 Por último, nas considerações finais, apresentamos uma reflexão baseada no referencial teórico utilizado e nas evidências empíricas levantadas em campo junto aos PA. 2. TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS EM TORNO DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS EM PASSIRA-PE: APORTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 2.1 APROXIMAÇÃO COM O OBJETO E A PROBLEMÁTICA DE PESQUISA A presente tese intitulada Territórios, territorialidades e discursos em torno dos projetos de assentamentos rurais em Passira-PE: Uma análise discursiva do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas foi concebida a partir de uma jornada acadêmica, desde a graduação no Curso de Bacharelado em Geografia até à atual fase de doutoramento. Ao longo dessa caminhada, dedicamo-nos à compreensão da realidade socioespacial e territorial dos Projetos de Assentamentos Rurais (PA), no Município de Passira-PE, numa perspectiva de vislumbrar as possíveis mudanças na condição de vida de famílias assentadas, a partir dos territórios dos assentamentos rurais abordados. Pretendíamos, ao longo desse percurso de formação universitária, compreender em que medida se está havendo ou não uma inclusão digna, autônoma e participativa das famílias assentadas, por meio da política de Reforma Agrária (RA) no Brasil, a partir dos referidos territórios. Por isso, a nossa formação traz um questionamento central e instigante: há de fato uma inclusão socioterritorial e de forma contínua e participativa das famílias em PA em Passira-PE? Devido a esse questionamento, começamos a passear nos PA de Passira-PE, especificamente, no Independência e Varame I, conhecendo mais a fundo as realidades das famílias assentadas, bem como vivenciamos de perto as vitórias e os sofrimentos dessas pessoas. Tomamos contato direto com indivíduos que sofreram diferentes formas de exploração e expropriação ao longo de suas vidas. Camponeses que trabalhavam como parceiros, rendeiros, alugados, explorados por grandes proprietários do município e região. As idas ao campo possibilitaram constatar que muitas famílias eram expropriadas pelo capital, mesmo aquelas que dispunham de pequenas porções de terra. Para sobreviver, muitas

26 25 disponibilizam a força de trabalho a serviço dos médios e grandes proprietários, num processo que na maioria das vezes passava por várias gerações. Isso nos fez vislumbrar que muitos camponeses do município de Passira-PE (e por que não do Brasil?), podem ser vistos e são sinônimo de trabalhador rural pobre, constituindo-se como não cidadãos. Diante desses passeios e constatações, reafirmamos a importância da RA como uma possibilidade concreta de reprodução social de uma parcela da população de famílias camponesas e trabalhadores que moram no meio rural. Uma vez que por meio dos territórios foi possível vemos que quase a totalidade das famílias assentadas se livrou do processo de exploração e expropriação sofrida pelo capital, passando a ter alguns ganhos relativos de autonomia e real ampliação da cidadania, por meio de conquistas materiais e imateriais: [...] E agora eu não sou sem-terra, eu sou com terra. Eu já fui sem-terra, hoje eu sou com-terra! Eu sou mais realizado! [...] Hoje eu sou um cidadão! (Discurso assentado 3, PA Independência) 1. Por isso, é incontestável a importância dessa política socioterritorial na correção do regime da propriedade, extremamente concentrada no Brasil e, por sua vez, no município de Passira. Fica evidente que a RA provoca alterações na estrutura fundiária vigente, passando a propriedade da terra para as mãos dos pequenos camponeses e do seu núcleo familiar. Ao mesmo tempo, essa política ampliou e possibilitou melhorias nas condições sociais, econômicas e políticas dessas comunidades rurais. Porém, mais do que uma simples ação de distribuição de terra, mudando a condição jurídica de algumas propriedades rurais, a RA, por meio dos territórios dos assentamentos rurais, deve significar, concomitantemente, uma reforma social e territorial. Esses territórios devem, portanto, possibilitar para cada uma das famílias assentadas uma possibilidade real de participação ativa na sociedade como cidadãos, não sendo um cidadão de discurso, mas de fato. Cada PA deve conduzir as famílias assentadas a transformações sociais, políticas, econômicas e ambientais nas suas vidas. A RA no Brasil, e especificamente no município de Passira-PE, deve existir por meio de um conjunto de políticas que possibilitem avanços significativos nos processos de inclusão socioterritorial. E os PA devem se constituir como territórios que materializam a completude desse processo. 1 Optou-se por não revelar a identidade dos entrevistados. Por isso, os mesmos serão identificados por uma numeração que segue a sequência das entrevistas realizadas.

27 26 Dessa forma, na atual pesquisa de doutoramento, reafirmamos que os assentamentos rurais são etapas do processo de disputa territorial que se estabelece na luta pela terra e na construção do processo de RA, o qual deve ser compreendido a partir de três perspectivas: 1. Território da materialização da luta pela terra dos camponeses, empreendida junto aos movimentos sociais; 2. Território fruto da intervenção do Estado; e 3. Território que possibilite novos processos de inclusão socioterritorial. Como território da materialização da luta pela terra dos camponeses, o PA deve ser empreendido de fato pelos movimentos sociais, por meio de um processo de espacialização e territorialização (FERNANDES, 1999, 2000; OLIVEIRA, 2001, 2007). Como afirma Fernandes (1999), os territórios dos assentamentos rurais são frutos da atuação e das pressões exercidas pelos trabalhadores rurais sem-terra impulsionadas pelos movimentos sociais, constituindo-se em frações da luta pela terra, em trunfos (FERNANDES, 1999). Esses territórios materializam a vitória do camponês e põem fim a uma longa marcha de lutas (violentas) pelo acesso à terra (OLIVEIRA, 2001, 2007), dando início ao processo de inclusão pela RA (FERNANDES, 1999). Os Assentamentos Independência e Varame I são exemplos desses territórios que materializam os esforços das cinquenta e uma (51) famílias de camponeses que, junto com o MST, lutaram pela obtenção da terra. Foi por meio de ocupações de terra das várias fazendas do município, que diversas famílias camponesas, localizadas tanto no campo como na cidade, e que hoje estão assentadas, colocaram-se no cenário político e encontraram possibilidades reais de terem acesso a um pedaço de terra, libertando-se do processo de exploração vivenciada ao longo de sua vida. Conforme afirmam: Foi um sonho realizado ter um pedaço de terra. Todo agricultor tem vontade de ter um pedaço de terra! A gente sobrevive da terra e nas terras dos outros é muito ruim. [...] Minha vida melhorou muito, porque a gente trabalha no que é da gente, o que a gente planta é da gente (Discurso assentado 1, PA Independência) 2. [...] antigamente a situação da minha vida era mais difícil porque eu trabalhava para os outros e agora eu estou trabalhando para eu. Quando eu trabalhava na fazenda do homem, eu me alevantava às quatro horas da manhã para fazer um cuscuz para gente levar. Quando era sete e meia, a gente tava chegando na metade do caminho para trabalhar e chegava de sete hora da noite em casa. E hoje não, hoje eu trabalho e acordo a hora que eu quero e trabalho no que é meu. Pego de sete, laigo de nove. Pego de duas horas da tarde e a hora que eu quiser ir eu vou. Se quiser, não trabalho e pronto. Eu acho que a vida aqui vai melhor, piorar não pode. Porque aqui a gente 2 Optou-se pela transcrição das falas das pessoas mantendo sua forma de expressar-se sobre o mundo. Isso porque nossa preocupação não é com o padrão da norma culta, mas com o que é dito sobre a realidade.

28 27 trabalha na agricultura aplanta um feijão, um maxixe, um jerimum, uma fava, um milho, uma macaxeira, uma batata, um inhame entendeu? Que dizer, e antigamente quando a gente trabalhava lá fora para o proprietário, só trabalhava para ele. A gente não podia plantar na terra dele. O que a gente tinha que plantar na terra dele só era capim, outra coisa ele não queria. [e para comer?] E pra eu comer, tinha que trabalhar para ele lá dois a três dias para ele e ele paga para a gente sobreviver! (Discurso assentado 9, assentado PA Varame I). É importante que fique claro que nesse processo, os movimentos sociais, com destaque para o MST, apresentam-se como principais atores sociais que atuaram no município de Passira-PE e que, por meio da luta pela terra, reuniu em torno de si um grande número de famílias que se achavam precariamente incluídas na sociedade ou que se apresentavam como categorias sociais residuais 3 (MARTINS, 2003; 2008). A segunda perspectiva parte da compreensão de que os PA Independência e Varame I constituem territórios fruto da intervenção do Estado, ou seja, são territórios criados como uma resposta (algumas vezes violentas) às lutas e ações populares no campo. Esses territórios são instrumentos de ordem do Estado contra a atuação dos movimentos sociais (MARTINS, 2003). Tanto o Independência como o Varame I são territórios fruto da experiência da intervenção estatal em Passira-PE. Os dois PA foram implantados no ano de 2005, na vigência do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), fruto da ação do Governo Federal, por meio do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), numa tentativa de acalmar o conflito social em torno da terra presente e crescente no município. Com isso, indagamos se o Estado é o interventor ou o apaziguador da pressão popular e ator social que institucionaliza o território do assentamento rural. As duas perspectivas anteriores sobre o PA, nos conduzem a uma terceira, que é a de compreendê-lo como territórios que possibilitaram novos processos de inclusão socioterritorial. Os assentamentos rurais devem se constituir como espaços de transformação e de mudança de vida, possibilitando a real inclusão socioterritorial e não uma inclusão precária e instável (MARTINS, 2003). Permitindo às famílias assentadas a reconstrução da vida, a partir da reinvenção da ação conjunta e comum a todos (OLIVEIRA, 2001). Isto 3 Segundo Martins (2008), o MST e outros movimentos sociais reúnem em torno de si categorias sociais residuais, suscitando a coexistência de uma diversidade imensa em termos de origens e situações das pessoas que neles se envolvem, que por meio da luta pela terra consegue agregar em torno de si os indivíduos mais pobres do campo, criando a possibilidade da emergência de novos protagonistas na história da luta pela terra no Brasil.

29 28 porque o camponês precisa de uma base territorial para a sua reprodução, com a valorização do meio natural e da unidade de habitação familiar 4 (WANDERLEY, 1996). É importante destacar que essas três perspectivas não se excluem, mas antes, se complementam. É a partir da ação dos movimentos sociais rurais, com destaque ao MST, em torno da luta pela terra, que os camponeses passam a vislumbrar a possibilidade real de construir uma nova realidade de vida, a partir da conquista do território de trabalho no PA. Ao mesmo tempo, isso só se faz possível no momento em que ocorre a intervenção estatal nas áreas de conflito entre famílias camponesas sem-terra e os latifúndios improdutivos. As três perspectivas supramencionadas, que norteiam nossa pesquisa e a noção de assentamentos rurais, têm por base a concepção de RA como sendo uma política social destinada a quebrar barreiras do desenraizamento e da marginalização de trabalhadores rurais que são condenados à migração (MARTINS, 2003; 2008). O objetivo, portanto, do PA deve ser a ressocialização das populações marginalizadas. A inclusão das famílias nos PA representa a possibilidade de novas oportunidades de organização social e a real construção de uma vida com mais dignidade, com novos projetos e formas de sobrevivência mais autônoma e participativa. Sobretudo, se compreenderem territórios que possibilitem novas experiências, possíveis avanços e mudanças sociais, econômicas e políticas desencadeadas em forma de políticas de maior acesso ao mercado, moradia, financiamento, etc., como uma totalidade complexa. Porém, para que os PA produzam efeitos significativos e se constituam de fato em territórios de transformações na vida dos assentados, superando a condição de camponês explorado vivenciada anteriormente, é necessário que as próprias famílias sejam os verdadeiros protagonistas da luta pela terra e pela RA (MARTINS, 2003). É necessário que a RA amplie o lugar das famílias assentadas enquanto atores sociais importantes na construção dos territórios dos PA, num processo lento e contínuo de mudanças não só dos aspectos econômicos, mas também das questões políticas e de mentalidade (MARTINS, 2003). A construção de territórios de assentamentos rurais deve possibilitar e 4 Conforme Wanderley (1996), a conquista da terra para essas famílias constitui-se como uma possibilidade de libertação com relação às explorações sofridas e impostas pelo capital. Os camponeses, ao conquistarem a terra, têm a possibilidade de construir uma vida com maior autonomia, através da luta pela reprodução da unidade familiar, contra a proletarização e pela ampliação da margem dos frutos do seu trabalho.

30 29 atender as verdadeiras necessidades dos pobres do campo, uma vez que eles são bloqueados do acesso a terra enquanto propriedade sua (MARTINS, 2003). Por isso, a RA não deve ser vista como uma mera possibilidade de acesso à terra, mas, simultaneamente, como uma real conquista de fração do espaço pelos camponeses pobres. Também, ela deve ser pensada e construída com outros desdobramentos, por meio de políticas de preservação e permanência das famílias camponesas na terra, como uma possibilidade de emancipação, protagonismo e autonomia dessas famílias. Dessa forma, o número de assentamentos e desapropriações pode conduzir a uma definição e a caminhos que conduzam à construção da RA. Porém, em qualquer realidade socioespacial, o caráter eficaz da RA mostrar-se-á a partir da capacidade das famílias assentadas compreenderem o processo de transformação no qual elas estão inseridas. Qualquer tentativa de mudança buscada pelo MST e/ou pelo Estado só acontecerá a partir do processo de apropriação material e imaterial dos PA por cada uma das famílias envolvidas. É a partir da capacidade de construir o seu próprio território, por meio de práticas de identidade, representação, autonomia, autogoverno e participação que cada assentado passará pelo processo de ressocialização socioterritorial, inserindo-se na sociedade como cidadão participativo. Ao mesmo tempo, em que possibilitaria a interação com os outros atores sociais que participam desse processo, fazendo dos PA verdadeiros territórios usados 5. Isso permitirá, também, que as mesmas compreendam todas as dimensões que envolvem a luta pela terra e pela Reforma Agrária (STEDILE, 2005). Nesse caminho, cada família passa a ser responsável e protagonista, apontando soluções e alternativas para a construção dos territórios dos PA, possibilitando que a RA se torne uma política agrícola e não somente uma política fundiária (OLIVEIRA, 2007). Como também, uma política de assistência e medidas adicionais fundamentais para se chegar à justiça social, pela qual cada assentamento rural constituir-se-ia no território de justiça e transformação, conforme consta dos discursos do Estado 6 e do MST 7. 5 Por território usado entendemos o espaço, a partir de Santos (2000), não como um sinônimo de espaço geográfico, mas como uma categoria de análise desse espaço, por meio da concepção de espaço banal. Ou seja, território é um espaço fruto dos usos e das apropriações das ações diárias dos sujeitos. 6 II PNRA. Plano Nacional de Reforma Agrária: paz, produção e qualidade de vida no meio rural. Brasília: MDA, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. MST: Lutas e conquistas. Publicação da Secretaria Nacional do MST. São Paulo, 2010.

31 30 Neste processo diário, a partir de seu território, as famílias assentadas passariam a ter mais consciência social dos problemas socioterritorias enfrentados, investindo mais esforços na ampliação das conquistas, superando o desenraizamento e as explorações vivenciadas anteriormente. Porém, é necessário compreender que a construção dos territórios em Passira- PE é fruto de um processo histórico de conflitos em torno da RA no Brasil. Uma luta que se manifesta e é travada de forma material e imaterial, numa verdadeira disputa territorial, por meio de ações e discursos. Levantamos essa perspectiva, uma vez que entendemos que em torno da RA e dos territórios dos assentamentos rurais existe uma série de atores sociais e ações que possibilitam e apontam caminhos para a construção e resolução dos problemas políticos, sociais e econômicos enfrentados por cada uma das famílias camponesas que lutam há séculos pelo acesso à terra. Dentre eles, destacamos o Estado e o próprio MST, como os principais atores sociais, por apresentarem uma série de ações, mas principalmente por enunciarem uma série de discursos em torno da RA e dos territórios dos assentamentos rurais. Entendemos que, em qualquer realidade socioespacial envolta por embates em torno da luta pela terra e pela RA, os conflitos se estabelecem de várias formas. Dentre elas, na forma discursiva, principalmente a partir dos discursos que cada pessoa envolvida enuncia sobre o problema/questão vividos. Daí por que, é por meio do discurso que os territórios de assentamentos primeiramente assumem uma forma imaterial, através da manifestação da linguagem, tornando-se um território imaterial e uma representação do espaço. Entendemos que os PA, antes de existirem enquanto materialidade, existem através dos discursos do MST e do Estado, num verdadeiro campo de lutas e afrontamentos em torno da RA. São esses discursos que permitem aos camponeses a construção de uma realidade simbólica e uma ação no espaço, na tentativa da conquista do território e em busca dessa realidade. Em contrapartida, a conquista e a existência material dos territórios dos PA para as famílias assentadas permitem novos embates no campo discursivo. Isso porque, após a sua existência material, o território permitirá novas ações e conflitos que se estabelecem e confrontam os discursos ditos anteriormente. Primeiramente, a partir da comparação entre o que foi dito enquanto imaterialidade e o que existe de fato como materialidade. E, em seguida, com novos discursos que permitirão o confronto com a realidade e a possibilidade de novas ações em torno do território, através de formas de apropriação, uso, cooperação, autonomia,

32 31 organização. Daí por que entendemos que exista uma relação indissociável entre território, discurso e prática. Tecemos essas observações iniciais na tentativa de fazer uma aproximação com o tema e para chamarmos atenção para a questão central da presente pesquisa: Em que medida ocorre o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas nos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE? Isso no sentido de elucidar, sobretudo, a sua verdeira natureza social. O referido problema de pesquisa versa sobre o território enquanto uma apropriação material e imaterial do sujeito do/no território, pelo que buscaremos compreender os caminhos e as situações de inclusão socioterritorial das famílias de sem-terra assentadas nos PA, a partir de suas práticas sociais no processo de apropriação e uso dos territórios em epígrafe. Partindo deste ponto central, formulamos duas questões secundárias: a. Em que medida ocorre a participação ativa das famílias assentadas no processo de construção dos territórios dos PA? b. Em que medida as famílias assentadas compreendem o seu papel e a sua participação na construção do território dos PA? Uma análise das ações, mas que se fará por meio dos discursos das famílias envolvidas, numa relação clara e indissociável entre território, discurso e prática. 2.2 OBJETIVOS E CONCEITOS Compreender de que forma ocorre o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir dos discursos, constitui o objetivo central desta pesquisa. Com o intuito de alcançar este objetivo, redimensionamos e definimos dois objetivos específicos: a. Explicar de que forma ocorre o processo de participação das famílias assentadas na construção dos territórios dos PA; b. Analisar de que forma as famílias assentadas compreendem o seu papel e a sua participação na construção do território dos PA.

33 32 Frente a tais objetivos, a pesquisa buscará compreender se de fato há a participação e capacidade de organização dos territórios dos PA por parte das famílias assentadas, procurando compreender, por meio dos discursos formulados, se há de fato uma inclusão socioterritorial contínua e participativa. Tal percurso caminhará por uma análise que perpassará uma relação (indissociável) entre território e discurso em torno dos PA e da Reforma Agrária. O caminho se justifica pelos seguintes aspectos: Primeiro, há um grande desencontro histórico entre discursos e práticas sociais em torno dos territórios dos PA e a RA no Brasil. Há uma grande divergência histórica (e por que não espacial?) entre o que é dito e o que é feito enquanto prática com relação aos assentamentos rurais, tanto por parte do Estado como dos movimentos sociais. Há proposições, soluções e caminhos, tudo dentro de um quadro discursivo, para a inclusão das famílias camponesas nos PA, mas há poucas ações no sentido de efetivar esse processo. Partimos da perspectiva apontada por Martins (2003), ao entender que existem discursos em torno da Reforma Agrária que não se constituem em ações reais de inclusão socioterritorial dos camponeses pobres nas várias partes do país (MARTINS, 2003). O Estado e o MST não estão sendo capazes de permitir que as famílias assentadas possam ser os reais sujeitos do processo de transformação histórica de suas realidades. O que há de fato é uma experiência histórica brasileira de politizar as demandas dos camponeses de fora para dentro, buscando dar a voz a quem não tem voz (MARTINS, 2003). Não há uma efetiva participação e incorporação das ideias e concepções dos pobres nas decisões políticas, mas um desencontro entre quem realiza e quem se beneficia, como também entre os verdadeiros sujeitos na luta pela terra e pela RA e os reais protagonistas: O desencontro entre o discurso contestador e radical das organizações políticas e sindicais, de um lado, sobretudo dos grupos de mediação nelas envolvidos, e a prática efetiva dos grupos sociais que reivindicam, tem se manifestado de vários modos. No geral, o grande diagnóstico dos primeiros ultrapassa o pequeno diagnóstico do efetivo sujeito social de necessidades. Na maioria das vezes, as necessidades políticas da sociedade vão muito além das necessidades sociais imediatas de grupos circunscritos [...] o que faz com que a prática fundada no pequeno diagnóstico raramente corresponda, de fato, ao projeto histórico anunciado no grande diagnóstico. E, certamente, não correspondem ambos diagnóstico das possibilidades históricas efetivas, de que as crises constituem um anúncio e a consciência social viabilizada pelos grupos de mediação constitui um limite de compreensão e uma limitação da ação (Ibidem, p. 172).

34 33 Esse desencontro, segundo Martins (2003), é fruto da mediação política. A atuação do Estado e dos movimentos sociais, por meio de discursos e práticas, em torno das lutas dos camponeses, constitui-se numa verdadeira tutela e é um problema da não emancipação do trabalhador. As mediações possibilitam lutas políticas que se espalham pelo Brasil, mas não há emancipação. Discursos que, de certo modo, impedem que o sujeito social da RA tenha força social para impor projeto social próprio e, portanto, eficaz. Daí por que existem dois discursos em torno da luta pela terra e da RA: os grandes discursos ou discurso histórico dos agentes de mediação enunciados pelo Estado e pelos movimentos sociais, e os pequenos discursos ou discurso vivencial, ditos pelos camponeses pobres. Enquanto que os grandes discursos derivam da visão, dos interesses e do conjunto de relações de poder que envolvem os agentes de mediação com relação ao problema da RA; os pequenos discursos são construídos a partir da realidade local dos camponeses explorados e expropriados no processo cotidiano de construção e apropriação dos territórios dos PA. Esses discursos fazem da RA um processo de intervenções voluntárias dos grupos que tomam os problemas sociais dos camponeses como sendo seus, bloqueando de forma significativa as transformações sociais no país 8. Tais discursos, traço próprio das mediações, cercam e bloqueiam a imaginação e a criatividade social e política dos mais pobres (MARTINS, 2003). Um segundo aspecto que justifica a compreensão do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas, a partir da relação entre território e discurso, é entender que tanto o Estado como o MST constrói a RA a partir de uma disputa que se estabelece no nível discursivo. Nesse sentido, os PA são territórios que se tornam, primeiramente, uma manifestação da linguagem, uma imagem do espaço e um instrumento de poder. Antes dos assentamentos existirem enquanto realidades materiais da RA, eles são construídos e disputados de forma imaterial, a partir do que é dito e das suas representações. Ao apresentar um discurso em torno da RA, Estado e MST constroem, por meio do sistema sêmico, que permite uma imaginação do que virá a ser o território. É por meio de tais 8 Segundo aponta Martins (2003), esses discursos representam uma contextualização radical e uma reivindicação limitada das lutas sociais empreendidas pelos camponeses. Apresentam formas de mediações que têm motivações ideológicas, partidárias e culturais diferentes dos reais interesses dos possíveis beneficiados com a Reforma Agrária.

35 34 imagens que esses atores sociais vão conduzir ações e intenções no espaço 9. Daí por que o território torna-se, primeiramente, fruto de uma ação imaterial, dentro de um campo de poder e de uma relação de comunicação (RAFFESTIN, 1993). Isso que faz com que seja apropriado e usado pelas famílias assentadas a partir de territorialidades que envolvem representações, mediações e intenções no espaço. O terceiro e último aspecto que justifica o caminho de explicar as formas de inclusão socioterritorial contínua e participativa das famílias assentadas nos PA em Passira-PE, por meio dos discursos, se dão pela perspectiva de entender que os discursos destas são formas ou modos de ações lentas sobre o território e a partir do território. Com base ainda na perspectiva de Martins (2003), entendemos que cada discurso com relação à RA se estabelece a partir da concepção do problema, pelo que alguns discursos não casam com a consciência social, não correspondendo com o tempo social do camponês. Um tempo mais lento. Se não incorporamos essa dimensão mais lenta do sujeito assentado na análise da RA, os discursos em torno dela serão vazios (MARTINS, 2003). Ao mesmo tempo, a construção antecipada da realidade espacial, por meio de ações de comunicação e informação, muitas das vezes não se traduz na realidade espacial vivenciada por um sujeito. O que faz com que a representação não se torne realidade, ocasionando uma ruptura clara entre imagem territorial projetada e o território real (RAFFESTIN, 1993). Afirmamos essas perspectivas, uma vez que, como a RA é construída inicialmente a partir desse sistema sêmico e nas imagens territorialmente projetadas nos discursos do Estado e MST, a realidade dos PA, vivenciada pelas famílias assentadas, não necessariamente vão ser condizentes com as imagens e representações presentes nos discursos, rompendo com a relação entre imagem criada e vivida. Com isso, a realidade territorial e o conjunto de relações que perpassam a construção desses territórios podem, ao mesmo tempo, limitar as ações das famílias assentadas enquanto sujeitos participativos, como também possibilitar novas formas de resistência e conflitos. Isso permitirá que, a partir do próprio território do assentamento, as famílias confrontem os discursos ditos anteriormente, por meio da emergência de outros e de novas ações. Desta forma, o discurso poderá igualar-se à prática social uma vez que cria 9 Segundo nos afirma Raffestin (1993), é a partir do espaço construído discursivamente que o sujeito busca agir no vivido.

36 35 representações, significações e constituições da realidade (FAIRCLOUGH, 2001), ao mesmo tempo em que possibilitará novas formas de poder, saber e estratégias (FOUCAULT, 2001). Nesse sentido, a territorialidade, enquanto agir social (DEMATTEIS, 1995; GOVERNA, 2005; MAGNAGHI, 2005) e reflexo da multidimensionalidade do vivido territorial (RAFFESTIN, 1993), possibilitará ao sujeito (assentado) construir novos projetos, novas identidades, representações e imagens do território, a partir do discurso, tornando a territorialidade efetivamente discursiva. Isso acontece num caminho em que o discurso permeia o processo de produção do espaço e de forma mais específica, a apropriação e uso dos territórios dos PA. 2.3 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES E DISCURSOS A construção dos PA em qualquer realidade rural passa pela compreensão de que tais territórios encontram-se dentro de um processo histórico de conflitos em torno da RA, envolvendo uma série de embates e afrontamentos que se manifestam e são travados de forma material e imaterial. Isso acontece numa verdadeira disputa territorial, através de ações e discursos, entre o governo e as organizações camponesas. Dessa forma, buscaremos nas próximas seções apresentar a relação indissociável entre território, territorialidade e discurso. Retomaremos a concepção de território como produto social marcado por relações de poder, mas, principalmente, como uma manifestação da linguagem, que, dialeticamente, cria representações e imagens do espaço. Apresentaremos a concepção de territorialidade como sendo ação do sujeito, e a concepção de discurso como uma relação de poder e prática social, mas interrelacionadas.

37 Dimensão espacial do discurso Entendemos que existe uma ligação entre espaço, território e linguagem, apontada por Raffestin (1993) e que pode ser vista, inicialmente, em Henri Lefebvre (1986), a partir da dimensão espacial do discurso 10. Segundo o filósofo francês, Toda língua se situa em um espaço. Todo discurso diz alguma coisa sobre um espaço (lugares ou conjunto de lugares) 11 (LEFEBVRE, 1986, p. 155). Logo, a linguagem não está desligada do espaço geográfico. Antes, está associada ao seu processo de produção: Há portanto entre a linguagem e o espaço relações mais ou menos desconhecidas (Ibidem, p. 155), podendo o espaço ser descoberto, decifrado e lido, por meio do discurso: A linguagem precede (lógica, epistemológica, geneticamente) o espaço social, o acompanha ou o segue? Nela se encontra a condição ou a formulação? A tese da prioridade da linguagem não se impõe; as atividades que demarcam o solo, que deixam traços, que organizam gestos e trabalhos em comum, não teriam prioridade (lógica, epistemológica) em relação às linguagens bem regradas, bem articuladas? É preciso, talvez, descobrir algumas relações ainda dissimuladas entre o espaço e a linguagem, a logicidade inerente à articulação funcionando desde o início como espacialidade, redutora do qualitativo dado caoticamente com a percepção das coisas (o prático-sensível). Em qual medida um espaço se lê? Se decodifica? A interrogação não receberá uma resposta satisfatória tão cedo. Com efeito, se as noções de mensagem, de código, de informação etc., não permitem seguir a gênese de um espaço (proposição enunciada mais acima, que aguarda argumentos e provas), um espaço produzido se decifra, se lê. Ele implica um processo significante (Ibidem, p. 26). O espaço, portanto, reúne em si um conjunto de saberes em que a linguagem pode ser vista como uma prática, através do discurso. Numa relação clara de apreensão do objeto pelo sujeito: Para uns, de maneira explícita ou implícita, o falar se desenvolve na clareza da comunicação, desentoca o que se esconde, o obriga a se mostrar ou o acabrunha com imprecações mortais. Para outros, a palavra não basta; falta a prova e a operação suplementar da escrita, geradora de maldição e de sacralização. O ato de escrever, além de seus efeitos imediatos, implicaria numa disciplina capaz de apreender o objeto para e pelo sujeito, aquele que escreve e fala. Em ambos os casos, a palavra e a escrita são consideradas como prática (social); [...] Tais são os postulados dessa ideologia, que identifica o conhecimento, a informação, a comunicação, colocando-se a transparência do espaço (Ibidem, p. 37). Seguindo a argumentação do autor, o uso do discurso, enquanto prática, é e deve ser visto como uma forma de apreensão da realidade espacial, uma vez que o espaço reúne o 10 É importante que fique claro que o autor não fez grandes discussões sobre a relação, mas deixou pistas que seguiremos aqui. O que estamos buscando são argumentos teóricos para chegarmos à perspectiva de uma dimensão espacial do discurso e caminhos que justifiquem a relação território, territorialidade e discurso. 11 Tradução livre feita do francês ao português, por C. Castilho.

38 37 social e o histórico, mas também: [...] articula o social e o mental, o teórico e o prático, o ideal e o real (LEFEBVRE, 2006, p. 41). Em outras palavras, todo discurso é saber e poder no e a partir do espaço. É uma série de conhecimentos adquiridos, que traz na sua essência e no seu sentido, o vivido, o cotidiano e os conflitos dos indivíduos: O saber do discurso, integra-se sem dificuldade o dito e o nãodito e o interdito, concebidos como essência e sentido do vivido. Desde então o saber do discurso chega até o discurso social (Ibidem, p. 160). Isso possibilita que o discurso, dentre os quais se destaca o do cotidiano, esteja ligado ao conhecimento humano, rebatendo-se no espaço, delimitando-o e exercendo o saber e as práticas, quando o sujeito fala, verbaliza sobre sua realidade e seu interesse; e isto numa tentativa de dominação e produção (LEFEBVRE, 1986). O discurso dentro da análise do espaço geográfico (e consequentemente, do território, enquanto apropriação deste) pode ser entendido como uma ação, fazendo com que espaço e discurso estejam dentro de um quadro indissociável: Essas palavras do discurso cotidiano discernem, sem os isolar, espaços e descrevem um espaço social. Elas correspondem a um uso desse espaço, portanto, a uma prática espacial que elas designam e compõem (LEFEBVRE, 2006, p.27). Dessa forma, faz-se necessário, neste momento, retomarmos a concepção de discurso como poder e prática social. Para em seguida entendermos o território e a territorialidade na sua relação com a linguagem Concepção de discurso como poder A noção de discurso a partir do aporte teórico e das questões apontadas por Michel Foucault se tornam importantes nessa pesquisa, pois parte da perspectiva do discurso como fruto das relações constituídas pelo poder Em entrevista informal concedida a estudantes de Los Angeles, em 1975, intitulada Diálogo e Poder, e transcrita no livro Michel Foucault: Estratégia, Poder-Saber, Foucault (2006), ao ser questionado por um estudante se ele era um filósofo ou um historiador, respondeu: Nem um nem outro (FOUCAULT, 2006, p. 255). Como o próprio autor afirma em suas respostas posteriores, ele se interessava pelo discurso como sendo um acontecimento num dado momento. A análise do discurso permeou a sua obra, porém respeitando os vários posicionamentos que ele vai tomando na medida em que a constrói. Daí por que a sua produção foi extremamente vasta e muito complexa. Nossa perspectiva aqui não é mostrar uma diferença ou aproximação das várias perspectivas do pensamento foucaultiano, que permeiam o estruturalismo, o pós-estruturalismo e a hermenêutica. Porém, estamos sim nos debruçando em torno das contribuições para a compreensão da noção de discurso.

39 38 Corroboramos com suas ideias quando afirma que o discurso é um acontecimento ou uma série de acontecimentos, permeado ou controlado pelo poder. Este se dá numa (i)materialidade e existe por meio de práticas sociais que produzem uma realidade associada à atividade humana (FOUCAULT, 2005). Neste sentido, antes de existirem enquanto materialidade, os territórios dos PA são construídos discursivamente, a partir dos embates estabelecidos entre o Estado e o MST em torno do problema da RA. Estes dois atores sociais, por meio dos seus posicionamentos discursivos, criam realidades imateriais. E em torno dessas representações agem no espaço. Por isso, o poder não dá sentido ao discurso, mas opera no interior de um sistema de relações conflituosas. Daí, a natureza discursiva do poder (FOUCAULT, 2005). Esta perspectiva parte de uma concepção de que o poder em si não existe. O que existe de fato são os embates que emergem em determinados espaços e em tempos dados e que os discursos transmitem (FOUCAULT, 2005), tornando-se uma correlação de forças ou um jogo de lutas ou microlutas diárias (FOUCAULT, 2005). Afrontamentos que se encontram presentes em toda a parte e ganhando corpo nas instituições 13 : [...] o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; [...] Onipresença do poder: não porque tenha privilégio de agrupar tudo sob a invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda a parte; não porque engloba tudo e sim porque provém de todos os lugares (Ibidem, p. 88). A perspectiva de Foucault é mostrar que o que importa não são os vários discursos e a sua proliferação, mas o poder como sendo condição de suas existências (FOUCAULT, 2005). É o poder que faz com que o discurso seja o que é de fato. Em outro trabalho, Foucault (2010) reafirma esse posicionamento ao descrever o poder como um acontecimento no discurso: A verdade do discurso estava situada no acontecimento de sua enunciação, no que ele fazia e no que ele era, deixando de lado o conteúdo do seu enunciado, aquilo que ele dizia. Importante é o acontecimento arbitrário do discurso, e não tanto a proposição discursiva; o poder e o desejo é que fazem com que o discurso seja aquilo que ele é (FOUCAULT, 2010, p. 55). 13 Não há um ponto específico na estrutura da sociedade, no qual se localiza o poder. Este é relacional e exercido na prática em vários espaços: Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado [...] O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como máquina social que não está situada em lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. Esse caráter relacional do poder (FOUCAULT apud MACHADO, 2009, p, 12).

40 39 Em conformidade com Foucault, Candiotto (2010) mostra que um dos principais efeitos dessa perspectiva é que todo discurso se impõe a outro como sendo verdadeiro. Os discursos vão existir negando a verdade imposta pelo outro. Daí o conflito estabelecido entre os discursos do Estado e do MST frente aos assentados, uma vez que cada discurso se coloca diante do outro desqualificando-o: Em razão do perigo que representa a proliferação dos discursos na sociedade, seus poderes são conjurados, seu controle e seleção efetuados por procedimentos excludentes que, por sua vez, recortam objetos e sujeitos, estabelecendo o regime daquilo considerado verdadeiro num domínio determinado. Noutras palavras, o discurso qualificado como verdadeiro é aquele que se impôs sobre outros discursos relegando-os ao terreno do falso e do ilusório, instaurando assim uma ordem. A ordem do discurso é o critério normativo para impor significações, identificar, dizer que é verdadeiro e o que é falso, o que está certo e o que está errado, o que é delirante e o que é racional, nada mais do que um modelo de operar separações (CANDIOTTO, 2010, p. 51). Por isso, o discurso é esse acontecimento que busca a vontade da verdade (FOUCAULT, 2011), uma vez que, ao se estabelecer, cria procedimentos de exclusão do outro 14. Impondo-se como verdadeiro, num processo em que o discurso contrário é desqualificado, menosprezado, em qualquer circunstância ou espaço 15 (FOUCAULT, 2011). Assim, a própria verdade é produzida pelo jogo histórico das práticas do poder. Essa perspectiva é fundamental na nossa pesquisa, pois o debate em torno da RA no Brasil acha-se envolto nesse jogo de afrontamentos e desqualificação discursiva. Basta tomarmos como referência toda a verbalização e as ações do Estado em torno do PNRA, bem como os discursos e as práticas do MST centradas nas ocupações de terra. Esses embates são estabelecidos devido a posicionamentos contrários que se colocam como caminho para enfrentar e solucionar os problemas dos camponeses pobres no país. Por isso, em torno do processo de construção dos assentamentos rurais de RA emergem posicionamentos discursivos que apresentam oposições de saber, formas de exclusão, negação e possibilidades de diversas ações. Ao mesmo tempo, nesses territórios podem (e devem) surgir os discursos das famílias assentadas com base na vivência territorial e 14 O discurso existindo ou acontecendo na necessidade histórica de excluir o outro foi chamado por Foucault (2011) de maquinaria destinada a excluir. 15 Na Ordem do discurso, Foucault (2011) coloca que os procedimentos de exclusão são formas de separação do que é verdadeiro e falso nos discursos. Segundo o autor, a partir da oposição entre o discurso do louco e do médico, a exclusão se dá na separação do discurso considerado verdadeiro e rejeição do discurso considerado falso, que Foucault (2011) questiona. Coloca o discurso científico da psiquiatria como exemplo. Essa relação excludente entre verdade e rejeição é a necessidade de determinados discursos se colocarem como qualificados e verdadeiros, numa clara oposição entre razão científica e loucura.

41 40 das relações de poder estabelecidas diariamente, mesmo que por meio de relações desiguais, com os atores. A própria vivência e o cotidiano no território do assentamento são caminhos à possibilidade para a construção de novos discursos e a aquisição de novos saberes. Basta observarmos o discurso do assentado: Na verdade essa terra é do Governo Federal (INCRA). É um título de posse que você pode explorar, trabalhar, enfim, desfrutar da terra. Agora, esse tipo de posse só tem promessa para depois de 10 anos [...] Essa terra é da União! Isso aqui é da União! A gente não tem posse porque não tem documento nenhum. A gente não pode ir no banco, não pode fazer um projeto, um empréstimo, não pode. A gente não tem documento da terra. Isso é certo? Errado! Muito errado! Continuo escravo! De certa forma, continuo escravo. [...] O INCRA não escuta nós. Faz de conta que está escutando, mas escuta mesmo! Escuta não! Eu continuo escravo, não do fazendeiro, mas da União! (Discurso assentado/entrevista pré-teste 16, PA Varame I). Para encerrar esta seção, é importante deixar claro que, embora Foucault, em suas obras, tenha trabalhado e aprofundado a noção de discurso e as relações de poder, a investigação em torno da espacialidade ou da dimensão espacial dos discursos foi negligenciada. O pensamento foucaultiano está centrado não no sujeito ou no seu papel no campo de forças do poder, e sim nos discursos emergindo no campo das forças discursivas 17 (RABINOW; DREYFUS, 2010). Entendemos que o discurso é de fato uma projeção desses mecanismos de poder (FOUCAULT, 2005). Daí por que os territórios dos PA se constituem por meio de embates, lutas e conflitos, primeiramente, entre o INCRA e o MST, e depois com as famílias assentadas. Porém, nossa preocupação não é com o discurso tal como ele é. Buscamo-lo como uma prática social dos atores sociais envolvidos no processo de produção do espaço, como acontecimento importante para o entendimento do processo de construção do território. É importante que fique claro, portanto, que nossa preocupação é compreender de que forma ocorre o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, sendo o discurso um caminho. Mas, um caminho que se configura como poder e prática social. 16 O discurso desse assentado foi levantado em uma entrevista pré-teste. Porém, não conseguimos encontrá-lo em outros momentos para a realização de uma entrevista definitiva. Por isso, caso apareça mais algum discurso desse camponês, iremos identificá-lo pela denominação acima. 17 Em A Arqueologia do Saber, o sujeito é assujeitado, mas está imerso em um campo de forças que determinam a sua posição no campo dos discursos. Estes passam a ser um embate de forças que sujeita os sujeitos e os saberes por eles produzidos, numa série de relações de poder.

42 41 Com isso, cabe agora, esclarecer o que é discurso como prática social Concepção de discurso como prática O esquema teórico-conceitual que apresentamos nesta seção compreende e apreende o discurso como uma prática social. Para tal, a perspectiva da Teoria Social do Discurso em Fairclough (2001) traz uma contribuição muito grande, uma vez que coloca o discurso na sua relação com a sociedade de maneira mais concreta. O discurso se constitui como sendo o uso da palavra na vida dos indivíduos. Ao usar seu saber linguístico, cada ator social age no mundo. Dessa forma, o discurso é: [...] um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros, como também um modo de representação (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). É um acontecimento constitutivo da realidade, pois contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social [...] (Ibidem, p. 91). Para Fairclough (2001), ao falar, o sujeito age no seu espaço. Pois, falar é agir, por mais simples que seja o seu enunciado. Essa perspectiva coloca a linguagem e o discurso dentro do patamar da prática social, pois torna-se uma ação carregada de relações de poder, saber e que possibilita novas relações sociais: Ao usar o termo 'discurso', proponho considerar o uso de linguagem como forma de pratica social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. Trata-se de uma visão do uso de linguagem que se tornou familiar, embora frequentemente em termos individualistas [...]. Segundo, implica uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social; a última é tanto uma condição como um efeito da primeira (Ibidem, p. 90). Não há na proposta de Fairclough (2001) uma dicotomia entre sociedade e indivíduo, e sim uma relação constitutiva e de continuidade, em que a língua é vista como algo intrinsicamente social. Dessa forma, o discurso torna-se uma ação que contribui para a constituição da estrutura social, constituindo-se numa prática. Tornando-se uma parte da sociedade, não sendo exterior a ela. Essa perspectiva é corroborada por Resende; Ramalho (2011), ao afirmarem, também, dialogando com Fairclough, que: [...] um modo de ação historicamente situado, tanto que é constituído socialmente como também é constitutivo de

43 42 identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença (RESENDE; RAMALHO, 2011, p. 26). Com isso, o discurso é um elemento moldado e restringido pela estrutura social, como também tal estrutura é moldada e restringida por ele. Trata-se, assim, de um modo de ação que gera efeitos na sociedade, possibilitando processos de mudanças sociais: [...] o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário, pelas relações específicas em instituições particulares, como direito ou a educação, por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza discursiva como não-discursiva, e assim por diante. [...] o discurso é socialmente constitutivo. [...] O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhes são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Tal concepção implica uma relação dialética entre discurso, prática social e estrutura social (e espacial). E o discurso unifica uma série de relações sociais, fazendo com que possibilite certas ações, num verdadeiro jogo de relações: A constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de ideias nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sociais, materiais e concretas, orientandose para elas (Ibidem, p. 93). Essa perspectiva de discurso como modo de ação e, consequentemente, prática social, possibilita trabalhar a interface entre discurso e realidade. A própria prática social pode ser compreendida através dos jogos de palavras enunciadas pelos sujeitos que falam, por seus desempenhos verbais (FAIRCLOUGH, 2001). Pois a linguagem não está dissociada de funções específicas de suas atividades humanas, antes mantêm uma relação constitutiva com o mundo (FAIRCLOUGH, 2001). Em trabalho anterior, Fairclough (1989) já apontava para a questão do discurso como um fenômeno social. Ao apontar as relações de poder, ou os exercícios do poder, presentes na linguagem: Language is therefore important enough to merit the attention of all citizens. In particular, so far as this book is concerned, nobody who has an interest in modern society, and certainly nobody who has an interest in relationships of power in modern society, can afford to ignore language. That, to some degree or other, means everyone. Nevertheless, many people with precisely such interests have believed they could safely ignore language (FAIRCLOUGH, 1989, p. 03).

44 43 Segundo o autor, a linguagem e, em consequência, o discurso, é um fenômeno que influencia e é influenciado pelas relações de poder e, em especial, pelas práticas cotidianas dos sujeitos em seus contextos de vida. Daí porque o discurso é um fenômeno coletivo e que se dá em diversos contextos sociais (e espaciais). Por isso, a linguagem na sua relação com a sociedade é envolvida por poder, práticas e ideologia, tornando-se um campo de lutas: Ideologies are closely linked to power, because the nature of the ideological assumptions embedded in particular conventions, and so the nature of those conventions themselves, depends on the power relations which underlie the conventions; and because they are a means of legitimizing existing social relations and differences of power, simply through the recurrence of ordinary, familiar ways of behaving which take these relations and power differences for granted. Ideologies are closely linked to language, because using language is the commonest form of social behaviour, and the form of social behaviour where we rely most on 'commonsense' assumptions. (Ibidem, p. 02). Ao mesmo tempo, sendo um fenômeno social, o discurso carrega as perspectivas ideológicas e as relações sociais na sua constituição. Mas, também, reflete cada uma delas, tornando os fenômenos sociais em linguísticos. Com isso, podemos reafirmar que o discurso enquanto acontecimento nada mais é do que um reflexo das relações, dos processos e práticas conflituosas estabelecidas entre os vários indivíduos, grupos e instituições. Mas também, indo além, tornando-se uma parte desses 18 : My view is that there is not an external relationship between language and society, but an internal and dialectical relationship. Language is a part of society; linguistic phenomena are social phenomena of a special sort, and social phenomena are (in part) linguistic phenomena [ ] Social phenomena are linguistic, on the other hand, in the sense that the language activity which goes on in social contexts (as all language activity does) is not merely a reflection, or expression of social processes and practices, it is a part of those processes and practices (Ibidem, p. 23). Dessa forma, Fairclough (1989) apresenta a linguagem com, pelo menos, três características: i) é parte da sociedade, não sendo exterior a ela; ii) é um processo de interação social; e iii) é condicionada por outras partes da linguagem, não necessariamente linguísticas. 18 É importante também destacar que o autor chama a atenção para o fato de que os fenômenos linguísticos são sociais, mas que nem todos os fenômenos sociais são linguísticos. A língua é um fio ou uma vertente, uma faceta da sociedade, por onde podem ser estudadas as diversas práticas sociais: But it is not a matter of a symmetrical relationship between language and society as equal facets of a single whole. The whole is society, and language is one strand of the social. And whereas all linguistic phenomena are social, not all social phenomena are linguistic though even those that are not just linguistic (economic production, for instance) typically have a substantial, and often underestimated, language element (Ibidem, p. 23).

45 44 Dentro dessa concepção, o discurso constitui-se como parte do processo de interação entre atores, tornando-se de fato prática, já que está presente e tem origem no social e nas suas relações e embates diários, no próprio processo de existência do indivíduo em sociedade 19. Nessas condições, discurso, prática discursiva e a prática social se complementam (FAIRCLOUGH, 1989, 2001). Um ator quando age no espaço, ele pode atuar a partir de um discurso, pois este é uma determinação e construção para o início de várias ações, tornando-se uma dimensão que permite reflexões contextuais da realidade. Isso possibilita ser o discurso resultado do contexto e da interação dos sujeitos no processo de produção de sua realidade, na qual as condições socioespaciais de produção discursiva são importantes: [...] that social conditions determine properties of discourse (Ibidem, p. 19). Esta perspectiva, enfim, se torna importante nesta pesquisa, pois coloca o discurso como prática social. Mas também, por permitir que as ações em torno da RA e os PA, no Brasil, possam ser analisadas a partir dos discursos, uma vez que estes permitem a atuação do Estado e do MST na realidade espacial do país, dentro do quadro de poder, saber e exclusão. Ao mesmo tempo, é um caminho para se entender determinadas ações das famílias assentadas na construção da realidade dos PA em Passira-PE, na medida em que possibilita que tais sujeitos tenham a capacidade não apenas de reproduzir o que pensam, mas de agir criando novos contextos, a partir do que é dito. Por isso, faz-se necessário agora, retomar a concepção de território que norteia a nossa pesquisa, numa tentativa de mostrar a relação indissociável entre esta dimensão fundamental à vida humana e o discurso. 19 A perspectiva da língua, discurso e sociedade como mantenedores de uma relação é vista até por analistas de discurso de linha francesa que não são da perspectiva crítica apontada por Fairclough, de linha mais anglosaxônica. Segundo Orlandi (2012), a língua, na análise do discurso, não é um sistema abstrato, mas material que produz sentido a partir do discurso de sujeitos membros de uma sociedade. Para encontrar as regularidades na produção da linguagem, o analista do discurso deve relacioná-la a sua exterioridade. Essa proposta pensa a produção do discurso na dimensão tempo e espaço. O discurso é um sistema socio-histórico e espacial. Mostra o autor que o lugar social que um sujeito ocupa é importante para a constituição do seu discurso e dos efeitos que proporciona. Porém, nossa restrição ao uso da análise do discurso, nessa linha francesa ou mais de Michel Pêcheux, como técnica ou instrumento de pesquisa, se dá porque nela o que interessa ao analista é unicamente o sujeito discursivo e não o sujeito empírico que, mantém relações nessa realidade. A AD na linha francesa não trabalha com um sujeito empírico, e sim discursivo, dentro de várias formações discursivas. Nessa abordagem, não se vislumbra processos de mudanças sociais, numa perspectiva dialética entre discurso e estrutura socioespacial, presentes nos estudos de Fairclough, ou seja, ações do sujeito empírico na realidade, ou uma mudança do discurso por meio da relação com a realidade. O sujeito discursivo é assujeitado, os processos discursivos não poderiam ter origem no sujeito e no seu entendimento da realidade. Ele é unicamente reprodutor de discursos presentes na sua realidade e que interpelam seu imaginário.

46 Território, poder e discurso Espaço-território-discurso são dimensões sociais indissociáveis. O que não significa dizer que sejam sinônimos, mas que estão em unidade e que são construídas socialmente no próprio processo de produção do espaço geográfico pelo do uso e apropriação do território. O debate que nos propomos nas seguintes seções tem por base retomar a concepção de território na abordagem relacional proposta por Claude Raffestin. Além de apresentar a noção de território como uma manifestação da linguagem e territorialidade como caminho para o entendimento das ações dos atores sociais a partir de seus discursos Território e poder Iniciemos nossa reflexão sobre território e as relações de poder, a fim de nos situar no debate teórico-conceitual que nos propomos fazer, tomando como referência básica Claude Raffestin (1993), principalmente em torno de sua obra Por uma Geografia do Poder. Raffestin (1993) é um dos autores que mais se destaca nos estudos do território e das territorialidades dentro da geografia italiana e com grande repercussão na geografia brasileira. Em entrevista ao Professor Claudio Jorge Moura de Castilho, em 2012, ao ser questionado sobre a importância do seu livro, o geógrafo fala do papel desse estudo para as pesquisas que tem o território como foco central: Cette première question en fait s adresse plutôt aux chercheurs qui voudraient utiliser la méthode car l auteur sait mieux que personne les progrès qui ont été faits dans le domaine des relations entre pouvoir et territoire. Première remarque sur la question du territoire qui est vivement débattue chez les géographes. Certains considèrent que le territoire n a plus de sens, mais que seuls en ont les réseaux, mais d autres pensent que le territoire est encore au centre des préoccupations, comme le démontrent divers colloques dans le monde! Dernièrement un colloque a eu lieu à Paris pour fonder la science du territoire! Ce que j ai personnellement fait dans ce domaine est encore valable à certaines échelles mais ne l est plus à d autres échelles. Les exemples géographiques ne sont évidemment plus valables (RAFFESTIN, 2013, p. 175). Ele é uma sorte de autor, guia mas não como dogma em nossas concepções de território, por apreender o caráter relacional e multidimensional no seu processo de produção. Tais características identificadas e ressaltadas como componentes que resultam da busca pela explicação material e imaterial (SAQUET, 2013) da realidade espacial, tendo as relações de poder e de linguagem como elementos principais.

47 46 Em Raffestin (1993), espaço e território não são sinônimos, pois são distintos epistemologicamente, mas não podem ser analisados de forma separada. Não se pode pensar em território e desprezar o espaço geográfico, como também, não é concebível pensar em objetos e ações separados de relações de poder (RAFFESTIN, 1993). Ter ambos sem entender as várias relações sociais e multidimensionais dos sujeitos na sua construção é, no mínimo, cair num erro de análise. Ao mesmo tempo em que não são conceitos e categorias equivalentes, o território é visto como uma apropriação (i)material de sujeitos no espaço, que é anterior. É resultado de uma série de ações de atores sintagmáticos que criam sentidos. Relações que se cristalizam no território. Nas palavras do autor: O espaço é portanto anterior, preexistente a qualquer ação. O espaço é, de certa forma, dado como se fosse uma matéria-prima. Preexiste a qualquer ação. [...] Evidentemente, o território se apoia no espaço, mas não é espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder (RAFFESTIN, 1993, p. 144). Nessa perspectiva, é no espaço que se projeta o trabalho por meio de energia e informação, sendo o território uma produção a partir do espaço: O território, nessa perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. [...] território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço (Ibidem, p. 143). Segundo o autor, cada ator social se apropria e usa o espaço de acordo com as suas intenções, marcando-o como um campo de forças. Essas relações concretizam a existência do território e se constituem como carregadas de poder: Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder (Ibidem, p. 143). Nesse sentido, o território vai revelar um conjunto de intenções e os projetos de diversos atores. Nele, criam-se práticas e sistemas de relações multidimensionais que se materializam. A construção da realidade territorial se dá como uma apropriação e, posteriormente, um uso efetivo do espaço. Daí o seu caráter relacional e conflituoso, já que dentro de um sistema de ações, o território envolve vários tipos de atores multilaterais e diversos Essa relação entre espaço e poder também pode ser vista em Claval (1979). Para este autor, analisar o poder é uma análise das ações do homem para modificar o meio e sobreviver nele. O poder é um fenômeno social central na organização social. Ambas as noções são centrais no estudo da organização da sociedade.

48 47 Com isso, o território é um reflexo de relações de dominação, passando a ser um trunfo, uma conquista para atores sociais que se apoiam e se posicionam no espaço e se apropriam dele (RAFFESTIN, 1993). Uma apropriação que se dá com ações, conteúdos e cognição, em que o poder constitui-se como motor. Essa contribuição também se torna importante ao entender que as relações conflituosas se dão a partir de condições simétricas e dissimétricas, isso sinalizando para uma questão muito importante: o poder encontra um ponto de apoio no espaço. Daí porque os diversos embates da sociedade se encontram em toda parte, possuindo conteúdo e forma. Ao mesmo tempo, faz com que a posição que o sujeito ocupa no contexto socioespacial seja importante para o estabelecimento de relações com os demais. O que justifica a existência de dois tipos de poder: o poder com P maiúsculo, representado pelo Estado, e com p minúsculo, representado pelos demais atores sociais 21. Esse é um dos principais aspectos que não podem ser negligenciados na análise relacional de Raffestin (1993), ou seja, o território configura-se em um espaço de lutas, conflitos, embates. Daí a importância do poder como um dos elementos centrais no seu estudo, ponto levantado e defendido pelo autor e corroborado nos estudos e reflexões de Saquet (2013): [...] o poder significa, nessa perspectiva, relações sociais conflituosas e heterogêneas, variáveis, intencionalidade; relações de forças que extrapolam a atuação do Estado e envolvem e estão envolvidas em outros processos da vida cotidiana, como as famílias, as universidades, a igreja, o lugar de trabalho etc. O desenvolvimento das relações de poder e da ideologia se faz fundamental porque, nesta, age-se na orientação e constituição do eu, do indivíduo, integrando-o à dinâmica socioespacial através das mais distintas atividades da vida em sociedade (SAQUET, 2013, p. 32). Em outra passagem, o autor continua: O poder é inerente às relações sociais, que substantivam o campo de poder. O poder está presente nas ações do Estado, das instituições, das empresas..., enfim, em relações sociais que se efetivam na vida cotidiana, visando ao controle e à dominação sobre os homens e as coisas, ou seja, o que Claude Raffestin tem denominado de trunfos do poder (Ibidem, p. 33). 21 Essa visão de Raffestin está alicerçada nas concepções de Foucault, principalmente, na abordagem genealógica. Aqui há uma concordância de que o poder está estabelecido nas várias esferas sociais, emergindo em todos os espaços e tempos. O que fica evidente que não existe um poder único, do Estado ou de outra grande instituição, e sim uma rede de vários poderes que se estabelecem conflituamente em vários espaços da estrutura social.

49 48 Essa perspectiva tem uma influência muito grande na análise sobre o espaço e o território. Tornando-se importante e, por conseguinte,ponto de partida para muitos estudos posteriores, tanto na Itália como no Brasil, por exemplo. Em Dematteis (2005), observamos uma leitura do espaço a partir do processo de territorialização dos atores. Neste sentido, o território é um espaço modelado, construído por sujeitos em constantes embates e tramas, tornando-se um produto no qual o poder está presente. Com isso, as territorialidades, em suas várias escalas, não são dadas, mas construções que ligam uma multiplicidade de níveis territoriais e de quadros sociais, culturais e de poder (DEMATTEIS, 2005). Governa (2005), ao analisar a territorialidade humana, a partir de Claude Raffestin, afirma que esta nasce da relação tridimensional entre sociedade-espaço-tempo. Diretamente das relações de mediação e dos conflitos dos sujeitos em seus territórios. Por isso, afirma ser a geografia da territorialidade não uma descrição da materialidade, mas das práticas e da utilização dos recursos presentes na realidade. Devendo ser analisada a partir de relações e práticas entre vários atores agindo no e a partir do território. No Brasil, como já o dissemos, vários são os trabalhos que tomam como referência Raffestin e sua análise do território a partir do poder na perspectiva relacional. Vale citar, nesse momento, Haesbaert (2007) que aponta o território como sendo uma dominação de espaços socialmente construídos. Tal construção acontece com base na articulação das dimensões materiais e imateriais presentes em cada realidade, fazendo com que a apropriação se dê de forma simbólica, enquanto a dominação acha-se ligada às condições políticoeconômicas de cada grupo/sujeito social. O autor defende que O território é sempre, e concomitantemente, apropriação (num sentido mais simbólico) e domínio (num enfoque mais concreto, político-econômico) de um espaço socialmente construído (HAESBAERT, 2007, p. 42). Outro autor que se debruça no estudo do território e destaca o seu sentido relacional é Souza (2008). Este assinala e reafirma-o como resultado do exercício do poder, onde a delimitação é fruto de uma projeção espacial do exercício das relações conflituosas: O que define o território é, em primeiríssimo lugar, o poder (SOUZA, 2008, p. 59). Com isso, apresenta uma concepção de território como sendo um campo de forças, uma expressão espacial do poder: relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial (Ibidem, p. 65). Isso torna o território um espaço delimitado por

50 49 limites muitas vezes intangíveis. Não tendo necessariamente fronteiras visíveis na base material, mas realizando-se na projeção espacial. Logo, [...] eu comparei o território a um campo de força: ele é, obviamente, um aspecto, uma dimensão do espaço social, e ele depende, de várias maneiras, da dimensão material do espaço, mas ele é, em si mesmo, intangível, assim como também o poder é impalpável, como a relação social é. O poder é uma relação social (ou, antes, uma dimensão das relações sociais), e o território é a expressão espacial disso (Ibidem, p. 66). Voltando a Raffestin (1993), reafirmamos que o território é um objeto de atuação de vários atores sociais e de suas relações, estratégias, códigos e objetos construídos, em que tudo é colocado nesse movimento do poder, integrando um conjunto de relações nas diferentes atividades cotidianas. Por isso, ao trabalhar a noção de limite espacial e territorial, o autor francês nos apresenta a noção de tessitura territorial como sendo fruto das territorialidades e delimitações territorializadas e que se sobrepõe uma sobre as outras. Falar de território é, também, ter e fazer referência à noção de limite: Falar de território é fazer uma referência implícita à noção de limite que, mesmo não sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço. A ação desse grupo gera de imediato, a delimitação (RAFFESTIN, 1993, p. 153). Delimitar é manifestar poder no espaço, é se impor nele. É construir um (seu) território. É delimitar e projetar a fronteira ou o poder do grupo. É impor o limite desejado e suportado 22 : [...] a tessitura é a projeção de um sistema de limites ou de fronteiras, mais ou menos funcionalizadas. A tessitura é sempre um enquadramento do poder ou de um poder. A escala da tessitura determina a escala dos poderes. Há os poderes que podem intervir em todas as escalas e aqueles que estão limitados às escalas dadas. Finalmente, a tessitura exprime a área de exercício dos poderes ou a área de capacidade dos poderes (Ibidem, p. 154). E para explicar essa tessitura, este mesmo autor apresenta o território como uma realidade material e imaterial, em que, por meio de um sistema sêmico, cria-se imagens. Para Raffestin (1993), a imagem espacial é a forma assumida pelo espaço a partir das ações dos atores. Estes são capazes de produzir um território, a partir de informações, códigos e das funções dadas aos objetivos. As imagens vão, assim, revelar as relações de produção e o poder presente no quadro relacional, antes mesmo de sua existência material: 22 O próprio discurso do sujeito traz a noção de limite, pois ao falar, fala-se do seu espaço de vida, do território de ação.

51 50 As imagens territoriais revelam as relações de produção e consequentemente as relações de, poder, e é decifrando-as que se chega à estrutura profunda. Do Estado ao indivíduo, passando por todas as organizações pequenas ou grandes, encontramse atores sintagmáticos que produzem o território. De fato, o Estado está sempre organizando o território nacional por intermédio de novos recortes, de novas implantações e de novas ligações. O mesmo se passa com as empresas ou outras organizações, para as quais o sistema precedente constitui um conjunto de fatores favoráveis e limitantes. O mesmo acontece com um indivíduo que constrói uma casa ou, mais modestamente ainda, para aquele que arruma um apartamento. Em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem territórios (Ibidem, p. 152). Com isso, pensar no território, segundo Raffestin (1993), é pensar, ao mesmo tempo, nas práticas espaciais dos atores sociais, no processo de produção das tessituras, por meio de relações de poder, mas também, por um sistema de comportamentos e ações que se manifestam pela linguagem Território, territorialidade e linguagem Outros dos aspectos na abordagem relacional de Raffestin (1993) que se tornou central enquanto aporte teórico desta pesquisa, refere-se à possibilidade de considerar o território como uma ligação do mundo real, o das sensações e o das representações (RAFFESTIN, 1993, p. 50), a partir de territorialidades. Estas constituem uma série de comportamentos e ações que tem origem no sistema tridimensional, sociedade-espaço-tempo, que trazem questões da significação, dos signos da vida cotidiana, das expressões do presente, do vivido, do que é percebido e sentido no processo de apropriação do espaço pelos sujeitos (RAFFESTIN, 1993). Esse é um aspecto interessante de sua visão, pois apresenta a territorialidade como materialidade e, concomitantemente, imaterialidade, isto é, como uma totalidade complexa. Para o autor, as ações humanas são relacionais e dinâmicas, podendo ser percebidas, representadas e sentidas pelos sujeitos nas suas relações cotidianas. Por isso, uma das questões que não podem ser negligenciadas, no que tange à relação entre espaço e território, a partir das territorialidades, refere-se aos aspectos semiológicos. Daí porque ao estudar o território, Raffestin (1993) retoma questões ligadas à religião, às tecnologias e, principalmente, à língua. Esta, concebida como um instrumento do poder, estratégia de ação do sujeito no espaço e possibilidade de representação e intenções.

52 51 Aspecto central no existir dos sujeitos, a língua carrega em si os embates das relações sociais, mostrando a complexidade e o acontecer da sociedade. Possuindo conteúdo, práticas e um lugar no espaço. Ao mesmo tempo, a língua apresenta estratégias, códigos, componentes espaciais e temporais: A língua resulta do trabalho humano, é produto que se troca e que é, em consequência, objeto de relações (Ibidem, p. 37). Ao usar a língua, age-se no espaço 23, buscando-se satisfazer necessidades, finalidades, objetivos e estratégias para concretizar planos. Essa perspectiva afirma que as palavras são uma forma de manifestar as relações humanas na construção do território: As palavras e as mensagens não existem na natureza, pois são produtos humanos. Eis por que se pode falar em trabalho humano linguístico [...] A linguagem é trabalho humano e as línguas constituem a objetivação necessária (Ibidem, p. 99). Nesse sentido, da mesma maneira que o território é um trunfo, a língua também o é, já que tem significado: [...] a língua é um recurso, um trunfo, e por consequência está no centro de relações que são, ipso facto, marcadas pelo poder. Se a língua é um trunfo, do mesmo modo que um outro recurso qualquer, é preciso analisá-la nessa perspectiva (Ibidem, p. 98). Toda atividade linguística se desenvolve no espaço, fazendo o seu uso ser uma mediação entre as várias relações sociais, principalmente, as mediadas pelo poder: A linguagem ou as linguagens são meios para mediatizar relações políticas, econômicas, sociais e/ou culturais num dado lugar e por uma duração específica. Ou melhor, toda mediação linguística é submetida por uma relação extralinguística na qual circula o poder consubstancial a toda relação. A linguagem, como sistema sêmico, não é lugar de poder mas, ao contrário, manifesta poder (Ibidem, p. 100). Logo, toda língua mantém relações de poder no processo comunicacional. Isto porque está presente em todas as ações, mas principalmente no campo da comunicação: Todo poder se exerce num campo de comunicação; toda comunicação se manifesta no campo de um poder (Ibidem, p. 50). 23 Cabe aqui abrir parênteses para a aproximação da concepção de Raffestin (1993) com a de Filosofia da Linguagem de Wittgenstein (1999). Para este, a linguagem apresenta uma dimensão centrada no debate que permite a compreensão da realidade. Diz ele que a Filosofia busca entender a realidade material, tendo a linguagem como caminho. Segundo Wittgenstein (1999), as coisas do mundo (formas da realidade) e a linguagem (formas de representação) estão relacionadas. Todo signo representa um objeto. Nessa combinação, é possível configurar a realidade. Existe uma relação entre pensamento e linguagem, como também entre a realidade? Sua teoria se baseia na ideia de que é afigurada pela linguagem. Nela há elementos que possibilitam ou permitem a construção de tal relação. As proposições de um sujeito vão se apresentar num jogo de verdade e falsidade. Umas vão se apresentar como proposições verdadeiras e outras, como falsas para a compreensão da realidade.

53 52 Daí porque a língua é um instrumento como qualquer outro para o agir no espaço, pois passa a ser um recurso utilizado no processo de dominação da realidade pelos sujeitos. O que faz com que todo território seja composto por um sistema de ações, práticas, conhecimentos que se sustentam por um sistema de códigos, signos, significados, imagens e representações, a partir do poder presente no ato comunicacional. Isto se dá através das relações semânticas, ou mais especificamente das relações de poder estabelecidas pelo uso da linguagem para representar o espaço: É preciso, pois, compreender que o espaço representado é uma relação e que suas propriedades são reveladas por meio de códigos e de sistemas sêmicos. Os limites do espaço são os do sistema sêmico mobilizado para representá-lo (Ibidem, p. 144). Por isso, entendemos que a linguagem do Estado e do MST estão dentro de um campo de conflitos com a linguagem dos camponeses assentados, em que a primeira é o Poder com P maiúsculo e a segunda é com o minúsculo. Essa configuração de poder permite uma série de conflitos entre esses sujeitos no processo de apropriação do espaço. Dessa forma, o espaço passa a ser apropriado em território a partir do ato da comunicação, onde a linguagem vai transmitir também todo o acontecer referente a tentativa de fazer imaterialidade uma realidade vivida: Evidentemente, o território se apóia no espaço, mas não é espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle. Portanto, mesmo se isso permanece nos limites de um conhecimento. Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações. Todo projeto é sustentado por um conhecimento e uma prática, isto é, por ações e/ou comportamentos que, é claro, supõem a posse de códigos, de sistemas sêmicos (Ibidem, p. 144). Essas imagens dão sentido ao espaço, possibilitando, portanto, as ações dos sujeitos na apropriação deste em território: A imagem ou modelo, ou seja, toda construção da realidade, é um instrumento de poder e isso desde as origens do homem. Uma imagem, um guia de ação, que tomou as mais diversas formas. Até fizemos da imagem um "objeto" em si e adquirimos, com o tempo, o hábito de agir mais sobre as imagens, simulacros dos objetos, do que sobre os próprios objetos (Ibidem, p. 144). Raffestin (1993) tentou mostrar que no ato de construção e apropriação do território, a partir da fala, cria-se uma representação da realidade que não esgota o conteúdo do espaço. Mas, antes, mostra uma intenção de ação no espaço. O que faz com que o território seja construído, imaginado, vivido e/ou visto a partir de um ato comunicacional: [...] o espaço representado não é mais o espaço, mas a imagem do espaço, ou melhor, o espaço visto e/ou

54 53 vivido. É em suma, o espaço que se tornou o território de um ator, desde que tomado numa relação social de comunicação (Ibidem, p. 147). Essa argumentação do autor mostra que o território acontece, primeiramente, de forma imaterial, a partir do uso da língua, para depois se tornar real. Em trabalho mais recente, Raffestin (2009) ao fazer uma discussão entre território e paisagem, apresentou elementos, dando continuidade para a compreensão deste debate. Ao explicar o processo de territorialização como apropriação material e imaterial do espaço, o autor apresenta um modelo de representação da produção territorial. Ao fazer uma descrição do mesmo, aponta algumas variáveis: atores (individuais e coletivos), mediadores materiais (instrumentos diversos e/ou imateriais, conhecimento e/ou algoritmos à disposição do ator), programa do ator (conjunto de intenções e objetivos/metas), relação ator e ambiente (RAFFESTIN, 2009). Nessa discussão, o território é a base material e a territorialidade compreende as relações imateriais. Raffestin (2009) reafirma a abordagem do território como sendo um mundo material que se oferece à imaginação e à imaterialidade dos sujeitos, tomando diferentes formas de representação, na qual a linguagem possui um papel fundamental: Os territórios constituem o mundo material percebido e se tornam a matéria-prima oferecida à imaginação, para ser trabalhada e produzir imagens ou representações que podem ser manifestadas através de diversos tipos de linguagem: a língua natural para representação literária, a linguagem gráfica para o desenho e pintura, a linguagem plástica para a escultura, a linguagem sonora para a representação musical, as diversas linguagens, simbólicas, lógico-formais e/ou matemáticas (RAFFESTIN, 2009, p. 33). A língua, no seu uso, possibilita criar representações do território, ao mesmo tempo em que a paisagem passa a ser um produto da observação e da imaginação do homem. Assim afirmou o autor: Con la progettazione di un linguaggio si raggiunge la rappresentazione [...] La conseguenza di questo processo è evidente: partendo da una stessa realità e modificando il sistema Sg(ambiente fisico e sociale)/li (linguaggi) è possibile inventare diversi paesaggi (Ibidem, p. 30). Da mesma forma que a paisagem criada pode ser uma manifestação para uma nova territorialidade, uma vez que o que é dito e as ações dos mediadores possibilitam novos olhares sobre a realidade: lo sguardo è elemento costituente della territorialità senza però

55 54 essere quasi mai un elemento esplicito. [...] La qualità dell osbservatore è condizionata dalla qualità e dalla quantità dei mediatori a sua disposizione (Ibidem, p. 30). Ao fazer uma releitura de Raffestin, Saquet (2013) confirma essa perspectiva de ver a paisagem como uma representação do território, através da linguagem. Para este autor, o território é fruto das ações do homem no espaço e a territorialidade é a parte imaterial, acontecendo, também, na mente, permitindo que a língua transforme em paisagem: [...] um território pode não ter paisagem, ou representação. Esta acontece na mente. A contemplação é transformada, pela linguagem (escrita, gráfica, pintura, música, matemática...) em paisagem, que significa a interpretação do indivíduo e depende do lugar em que ele vive e do momento em que ele vive (SAQUET, 2013, p. 144). Um último aspecto que nos chama atenção nessa abordagem é o da relação entre território, imagem e ruptura. Para o autor, a ruptura é a relação de desigualdade entre o território material e a imagem ou representação deste. Segundo Raffestin (1993), se há uma ruptura entre o espaço real e o espaço imaginado pelo sujeito, isto acontece devido à diferença de informação construída na ação e a contida na realidade. Essa perspectiva mostra que, com a construção antecipada, a realidade espacial, por meio da linguagem, muitas das vezes, não se traduz com a realidade. O que faz com que representação não se torne realidade: [...] se há ruptura, esta só pode existir entre a informação que seria desejável no sistema de objetivos e a informação à disposição. A conseqüência dessa ruptura se traduz no nível da ação, isto é, essa ruptura significará então uma relação de poder dissimétrica, pois os ganhos antecipados correm o risco de ser inferiores aos ganhos efetivamente realizados, considerando-se a energia investida no processo. Só após a ação se verifica o valor da energia informada, cristalizada na representação (RAFFESTIN, 1993, p. 147). É aí que ocorre a ruptura entre a imagem territorial projetada (por meio do discurso) e o território real. Esta ruptura é estabelecida pelas relações de poder entre os atores no espaço, pois cada ator vai construir uma imagem do espaço e vai transmiti-la ao comunicá-lo. Dessa forma, a linguagem ganha significação importante no processo de construção do território porque é por meio de acontecimentos, como o discurso, que se pode entender as formas de uso e apropriação do espaço por vários atores (RAFFESTIN, 1993). Com isso, podemos afirmar que a abordagem semiológica apresentada por Raffestin (1993, 2009) no processo de análise de construção do território revela seu interesse pelo entendimento da multiterritorialidade humana. Essas relações imateriais revelam as relações de poder estabelecidas e presentes no processo de produção do território. Fazem surgir vários

56 55 territórios e, consequentemente, várias imagens das frações do espaço. Falar de território é falar de poder, e também de sistemas sêmicos, de linguagem relacionadas ao poder: As imagens territoriais revelam as relações de produção e consequentemente as relações de poder, e é decifrando-se que se chega à estrutura profunda. Do Estado ao indivíduo, passando por todas as organizações pequenas e grandes, encontram-se atores sintagmáticos que produzem o território. [...] Em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem territórios. Essa produção de território se inscreve perfeitamente no campo do poder de nossa problemática relacional. Todos nós combinamos energia e informação, que estruturamos com códigos em função de objetivos. Todos nós elaboramos estratégias de produção, que se chocam com outras estratégias em diversas relações de poder. [...] Sem linguagem, não há leitura possível, não há interpretação e, portanto, nenhum conhecimento sobre a prática que produziu o território (Ibidem, p. 152). Dessa forma, concordamos com este autor quando afirma que as relações de poder presentes na linguagem são fundamentais para o entendimento do processo de produção, apropriação e uso do território, para qualquer finalidade. Raffestin (1993) entende que a linguagem dos sujeitos conduz a certas formas de relações ou comportamentos, pois essa linguagem é um dos componentes indispensáveis para a compreensão das territorialidades de atores sociais (RAFFESTIN, 1993). É importante ter essa concepção da ligação indissociável entre linguagem e a realidade, ou dito de outra forma, língua e território, principalmente quando a temos como caminho para o entendimento da área em estudo, porque em estudos anteriores (MORAIS, 2009, 2012) já identificamos essa relação, principalmente, entre a imagem territorial criada e ruptura. Reafirmamos que os PA em Passira-PE são frutos de uma disputa territorial que se estabeleceu entre o Estado e o MST, dentro do nível discursivo, tendo sido construídos primeiramente no discurso, a partir da imagem do espaço criada por esses sujeitos. Nessa perspectiva, retomar a concepção de territorialidade é fundamental Territorialidades e discursos A noção de Territorialidade Esta seção é fruto das leituras e das atividades feitas durante a realização do Estágio de Doutorado Sanduíche na Università di Bologna, na Itália, no período de Julho/2015 a Março/2016.

57 56 O esquema teórico-conceitual que apresentamos até o presente momento parte da perspectiva de entender o território como um produto social das relações de poder estabelecidas entre os sujeitos no processo de apropriação do espaço. Neste processo, a linguagem se constitui como uma estratégia de ação, possibilitando a construção de representações e imagens do território (RAFFESTIN, 1993). Por isso, retomar a noção de territorialidade é fundamental. Por territorialidade, compreendemos, em Raffestin (1993), o agir social exercido a partir da mediação simbólica, cognitiva e prática. É uma intenção mediadora de organização territorial. Ou seja, é um conjunto de relações, comportamentos e ações de sujeitos em frações da realidade (RAFFESTIN, 1993). Conforme aponta o autor, a territorialidade é a relação tridimensional entre sociedadeespaço-tempo. Não é um vínculo simples entre o sujeito e o espaço, antes, é uma relação conjunta da realidade espacial com os vários atores agindo, simultaneamente, em conflito e interação. Isso a torna um fenômeno social, não sendo um objeto, mas uma relação de troca de energia e informação. Também, não é um dado físico e material. Daí por que as territorialidades são as práticas que usam e delimitam o espaço, a partir de recortes do espaço. Esses recortes possibilitam a formação de nós e a construção de redes: Toda prática espacial, mesmo embrionária, induzida por um sistema de ações ou de comportamentos se traduz por uma produção territorial que faz intervir tessitura, nó e rede (RAFFESTIN, 1993, p. 150). Assim, Raffestin (1993) aponta a territorialidade como multidimensional e inerente à vida social. Dando-se a partir das relações de mediação dos indivíduos em seus territórios: [...] territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade do "vivido" territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens "vivem", ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas (Ibidem, p. 158). É importante que fique claro que a territorialidade não é uma relação simples com o espaço, mas entre sujeitos na sua realidade. Num cotidiano e na interação local dos outros atores: A territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo das coisas. Conceber a territorialidade como uma simples ligação com o espaço seria fazer renascer um determinismo sem interesse. É sempre uma relação, mesmo que diferenciada, com os outros atores (Ibidem, p. 161).

58 57 Por isso, são caminhos que permitem a compreensão das relações humanas. Criando, inclusive, a construção das representações, imagens e refletindo as intenções dos sujeitos no espaço, por meio da comunicação (RAFFESTIN, 1993). Possibilitando também, o entendimento das percepções, dos sentidos e das ações coletivas, conflituosas e mediadas por um sistema simbólico. A territorialidade é uma soma de relações bio-sociais, é dinâmica, simétrica, dissimétrica e multiescalar. É o lado da vida do homem no seu existir, a face vivida do poder: Cada sistema territorial segrega sua própria territorialidade, que os indivíduos e as sociedades vivem. A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria possível dizer que, de certa forma, é a "face vivida" da "face agida" do poder (Ibidem, p. 161). Dessa forma, entender a organização da sociedade no espaço é entender as diversas formas de territorialidades, que se estabelecem de forma material e imaterial e entre homens e seus contextos históricos e geográficos: Eis por que relações reais realocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal (Ibidem, p. 162). Em trabalho mais recente, Raffestin (2009) reafirma a concepção de que todo território implica numa territorialidade possível. Ao mesmo tempo, cada novo recorte espacial é constituído a partir de certas relações culturais. Ogni nuovo territorio implica l esistenza di una territorialità e di possibili trasgressioni, perché l esistenza di un territorio e di una terriotrialità è legata ad una cultura e ad un atteggiamento e dunque ad un insieme di relazioni che costituiscono una territorialità (RAFFESTIN, 2009, p. 22). Nessas relações, espaço e tempo permitem que a territorialidade evolua num ritmo diferente para cada território: Ciò significa che un território è di solito imperfetto: è una concretizzazione non compiuta per l effetto delle scale di spazio e di tempo che fanno sì che la territorialità si sviluppi ad unritmo differente da quello del territorio (Ibidem, p. 22). Ao mesmo tempo que o território não é contemporâneo à territorialidade, já que é constantemente restruturado de acordo com o desenvolvimento de novas ações: Una cosa importante da dire è che il territorio non è mai contemporaneo della territorialità che vive si svolge. In modo continuo, il territorio è ristruturato per permettere lo svilupppo delle nuove forme di territorialità (Ibidem, p. 22).

59 58 Saquet (2011), novamente, ao fazer uma releitura de Raffestin, especificamente neste ponto, nos confirma esse pensamento, apresentando uma leitura das territorialidades a partir das temporalidades. Afirma que dentro de uma análise geográfica, é necessário entender que cada sujeito se territorializa de acordo com o seu tempo 25, já que este e a vivência na realidade espacial e territorial não é a mesma para todos. O autor chama atenção para o processo de descontinuidade com o tempo, a partir das pluralidades de ritmos de existência dos sujeitos na sua relação com o espaço. Essa perspectiva nos leva a pensar que a existência de diferentes temporalidades condiciona as várias formas de apropriação, uso e recortes territoriais. Daí por que o território existe a partir de uma simultaneidade de tempos e ações, em que o tempo apresenta-se a partir de duas perspectivas: a) a da coexistência (da simultaneidade das relações) e b) a histórica (contínuo; unido ao universal). Para Saquet (2011), a existência dessas desigualdades temporais leva, consequentemente, a territorialidades diversas, a partir das diferentes escalas de ações dos sujeitos no espaço, numa perspectiva transescalar e transtemporal das práticas sociais. Isso possibilita descontinuidades nas formas de apropriação e usos do território pelos atores, uma vez que existem a partir de uma coexistência no território dos tempos mais rápidos, dos homens rápidos, e dos tempos mais lentos, dos homens lentos. Com isso, Espaço-tempo-território se constituem dentro de processos relacionais e intimamente ligados. O que faz com que o território seja, concomitantemente, objetividade e subjetividade, multidimensional, fixos e fluxos, rupturas e permanências (SAQUET, 2011). Por isso, a territorialidade é constituída pela relação entre indivíduos e com o ambiente físico e social, a partir do seu tempo, num processo claro de busca constante pela conquista da autonomia possível no território: La territorialità è costituita dall'insieme delle relazioni che una società intrattiene con l'ambiente fisico e l'ambiente sociale per soddisfare i suoi bisogni con l'aiuto di mediatori, in previsione di ottenere la più grande autonomia possibile (RAFFESTIN, 2009, p. 22). 25 Saquet (2011) compreende o território a partir de apropriações, tempos, temporalidades e territorialidades de diversos sujeitos, em que as territorialidades (i)materiais vão mostrar as temporalidades e as formas de apropriação no espaço em diferentes escalas de relações.

60 59 Uma perspectiva não separada de Raffestin é a apontada por Francesca Governa (2005), ao apresentar uma concepção de território como constitutivo de fenômenos e de atividades humanas, centrando seu debate em torno do desenvolvimento local 26. Nesta sua abordagem, o território é apropriado por sujeitos em suas territorialidades ativas. Segundo essa perspectiva, faz-se necessário analisar o território e suas dimensões, a partir da interpretação dos sistemas locais de governança e das ações territoriais: [...] facciano ormai parte della scatola degli attrezzi delle scienze sociali per l'interprerazione dei sistemi locali e delle azioni di governance che si realizzano al loro interno, spesso le politiche urbane e territoriali appaiono rivolte al raggiungimento di obiettivi del tutto avulsi dal riferimento al territorio in cui e su cui agiscono. Il territorio rimane cioè una dimension e nascosta, anche perchè non è mai del tutto esplicitato il significato complesso e polisemico di questo concetto (GOVERNA, 2005, p. 43). Nesse caminho, a territorialità umana é um componente central para se entender a relação sociedade-espaço-território, uma vez que se tornam um conjunto de ações e práticas dos sujeitos (coletivos e locais) em torno do processo de uso e apropriação do território (GOVERNA, 2005). Desse modo, a territorialidade é apontada como um fenômeno de comportamento associado à organização do espaço geográfico, conectando as características do território ao comportamento dos indivíduos. Com isso, a territorialidade torna-se uma expressão geográfica do poder social, do controle e da estratégia espacial para o domínio de recursos de uma área. Sendo fruto da interação entre homem e espaço, permite que o território seja organizado e influenciado por comportamentos e ações dos indivíduos 27. Processo que conduz a territorialidade a três características bem distintas: identità spaziale, esclusività e compartimentazione (Ibidem, p. 45). Governa (2005), corroborando com a concepção já apontada por Raffestin (1993), coloca a territorialidade humana não como um vínculo simples entre sujeitos e o espaço, mas como uma relação conjunta destes, dentro de ações de conflito e interação: La territorialità umana, quindi, non é data dal semplice legame di un soggetto sociale con lo spazio, ma deriva dalla relazione congiunta con lo spazio e con gli altri soggetti sociali (Ibidem, p. 45). O que 26 Há uma centralidade do território ( centralità del territorio ) nos debates italianos que envolvem questões de desenvolvimento. O conceito e as interpretações em torno do território e das ações dos atores locais no seu processo de transformação coloca esse conceito como categoria de análise e operativa em torno do debate. 27 Essa perspectiva de Governa (2005) coloca a análise das territorialidades dentro do quadro local, passando pela concepção do lugar como possibilidade de desenvolvimento, a partir da transformação imposta pelo próprio sujeito.

61 60 permite a ocorrência do processo de territorialização e (re)organização do território de forma contínua. A autora está em concordância não só com o pensamento de Raffestin, mas também com as concepções de Giuseppe Dematteis (2005) ao apontar a territorialidade como um movimento de existir dos sujeitos. Uma existência que passa pela estruturação do ambiente físico-natural em território, numa interação do sujeito com o seu local de vida. Para Dematteis (2005), o território e a territorialidade ganham centralidade a partir da junção entre sociedade e meio ambiente. A ação humana é uma forma de interação entre os sujeitos e seu milieu locale, num processo de coesão sociocultural e ambiental: [...] una concezione di territorio che inserisce queste componenti socio-culturali in una più ampia visione sistêmica, comprendente tutte le altre componenti che nel corso della storia naturale e umana hanno variamente dotato i luoghi di risorse specifiche (DEMATTEIS, 2005, p. 10). Nessa relação entre sociedade e natureza, a noção de território como um recurso é justificada já que a própria territorialidade, como um componente das relações socio-culturais e ambientais, existe como ações e práticas dos sujeitos locais no seu território de vida (DEMATTEIS, 2005). Governa (2005) também destaca as territorialidades como capazes de delimitarem o espaço, materializando os projetos, as intenções e as vontades dos vários sujeitos, a partir de seus vários níveis escalares e extralocais de atuação. O território é o lugar da ação e as territorialidades são o conjunto dessas práticas no espaço. Daí porque se apresentam como (i)materiais e fruto de relações transcalari, multitemporali e multicentriche (GOVERNA, 2005), em que o Estado-nação constitui um ator que atua na construção dos recortes territoriais por meio de suas territorialidades e que vão desde o nível local e nacional e dos demais sujeitos por meio de ações conjuntas de de-territorializzazione e riterritorializzazione ao nível mais local (GOVERNA, 2005). Com isso, as territorialidades ligam uma multiplicidade de escalas territoriais, de quadros sociais e culturais de indivíduos, organizações e atores nas suas relações de poder. Isso permite que a territorialidade contemporânea seja analisada em níveis mais complexos e a partir de três processos: a) a dinâmica temporal, a qual faz referência ao passado para servir de base a novas transformações; b) a dinâmica espacial, que dá novos significados e novas

62 61 práticas ao uso do espaço e a c) dinâmica da ação política, que dá importância à construção social de novos territórios. Daí porque, segundo Governa (2005), cada ator social, Estado, Empresa, ONG, famílias, pequenas comunidades, têm suas territorialidades, ou seja, seus modos de ação no espaço. Passando o território a ser uma construção social múltipla, fruto das práticas coletivas, possibilitando, inclusive, a construção de novos espaços a partir de embates por diferentes territorialidades. Isso permite que as mudanças nas dimensões das territorialidades no processo de globalização afetam diversas perspectivas de se olhar o território (GOVERNA, 2005). A territorialidade dentro do contexto socioespacial de um mundo globalizado pode ser interpretada a partir de lógicas escalares diversas. Nessa concepção, o território não entra como simples espaço de localização de fenômenos e atividades, mas como espaço multidimensional: Non solo quindi la dimensione fisica e spaziale, fra il singolo e il tutto, ma anche la dimensione politica, dei valori, degli interessi, della capacità di comportamento colletivo. In questo modo, la dimensione territoriale inter non già come semplice spazio di localizzazione di fenomeni e attività, ma come connessione fra la dimensione identitaria, la dimensione politica, la dimensione economica, la dimensione simbolica e di mobilitazione sociale, le dimensione temporale (GOVERNA, 2005, p. 54). O que faz com que o território não seja fruto de ações que se estabelecem em escala a nível nacional, mas também por meio de relações locais, numa dimensão mais cotidiana, enquanto espaço de vida dos sujeitos. Passando a ser visto a partir de interações múltiplas, não só física, espaço-temporal, mas também de políticas, valores, interesses, comportamentos coletivos e das identidades locais (GOVERNA, 2005). O que valoriza o território e a territorialidade local como condições para a existência dos sujeitos na sua realidade e do reconhecimento de aspectos diversos: econômico, político-institucional, cultural e de construção de identidade e do ponto de vista de governança territorial (GOVERNA, 2005). Isso permite refletir sobre o agir passivo ou ativo desses sujeitos no território.

63 As territorialidades ativas 28 A presente pesquisa parte da concepção de que os PA, em Passira-PE são territórios de atuação do Estado, a partir das relações entre Planos Nacionais de Reforma Agrária e do MST como espaço de conquista da luta secular empreendida contra o latifúndio. Mas, acima de tudo, de territórios construídos e apropriados na vida cotidiana de famílias de camponeses que têm seus objetivos, desejos, temporalidades, escalas de atuação, ritmo de vida e sua relação com a natureza. Olhar os territórios e as territorialidades dos sujeitos locais é poder enxergar uma multiplicidade de ações, inclusive novas territorialidades. Com isso, a concepção de territorialidades ativas, relevantes na nossa pesquisa, toma por base a contribuição de Governa (2005). Para a autora italiana, o sujeito local atua como um attore territoriale, a partir de relações multiescalares e multidimensionais com outros. Portador de práticas e consciência, e tendo como referência suas identidades, encontra lógica e respaldo para justificar suas ações, no próprio território de existência, tornando-se um construtor: I soggetti locali sono cioè pensati in relazione alle azioni, cioè come portatori di un íntenzionalità che torva la sua logica nel riferimento al territorio. Essi agiscono come portatori di pratiche e di conoscenze, costrutorri di territorio e di nuove logiche di riferimento identitario ai luoghi (GOVERNA, 2005, p. 54). Daí porque o território local é uma construção social que deriva da mobilização de grupos, de ações coletivas, por meio de interesses, interações, confrontos, cooperação e conflitos (GOVERNA, 2005). Essa perspectiva está muito próxima da apontada por Dematteis (2005). Este autor, ao falar de territorialidades, afirma serem ações que permitem interações dos sujeitos em seus lugares, a partir de processos de cooperação, confiança, ajuda mútua, etc. O que faz com que o território se apresente como uma oportunidade de construção, um lugar de vida e de uma série de relações sociais que possibilitam interações: [...] il luogo non è più assunto come uma realità data, rigidamente individuabile e delimitabile sulle carte, ma come un divenire possibile, un costruto sociale che deriva dalla interazione fra i sogetti e le componeti, material e immateriali, del territorio (DEMATTEIS, 2005, p. 21). Assim, a noção de comunità ganha atenção e se valoriza, como também, a concepção de lugar passa a ser vista como uma unidade do território, a partir da noção de 28 Esta seção também é fruto das leituras e das atividades feitas pelo Estágio de Doutorado Sanduíche na Università di Bologna, na Itália, no período de Julho/2015 a Março/2016.

64 63 patrimônio e identidade: Particolarmente interessante sono, a questo riguardo, sia il dibattito Internazionale sul concetto di luogo (lieu, place), sia le riflessioni che portano a considerare il territorio in termini patrimoniali e identitari (Ibidem, p. 21). O território não é fruto somente das ações globais/exógenas, mas também é fruto das ações e das práticas locais dos sujeitos que ocupam o território local. Trazendo para o contexto de nossa pesquisa, o território dos PA, em Passira-PE, não são frutos unicamente de disputas territoriais que se estabelecem entre o Estado e o MST, mas também dos vários embates travados pelas famílias assentadas a partir do seu existir no lugar. E do confronto das imagens e representações criadas dos PA no período da luta pela terra. Essa perspectiva se torna importante na nossa análise, uma vez que os sujeitos podem ser construtores do território, a partir de novas territorialidades que surgem nos espaços de vida. Com isso, os territórios locais passam a ser lugares emergentes, não sendo simplesmente espaços de localização e dinâmica global ou nacional. Mas, como territórios insurgentes frente à economia, às redes globais ou nacionais, constituindo uma nuova geografia della resistenza (GOVERNA, 2005). São desses territórios que surgem identidades locais com potenciais processos de mudanças. Daí fundamenta-se a concepção de territorialidade ativa, ou seja, a partir de sujeitos ativos, com ações coletivas e de identidades locais. A territorialidade ativa está ligada, portanto, à capacidade do sujeito coletivo, por meio de suas ações e comportamento, no uso e apropriação do espaço, construir identidades locais e um projeto novo para o território: [...] della forma della territorialità porta cos`è interrogarsi sulla capacità/possibilità dei soggetti di forgiare la propria identità attraverso una azione di tipo territoriale; sul processo attraverso cui un azione terrirializzata, cioè territorialmente radicata o ancorata, sia in grado di costruire identità territoriale e soggetti attivi; e, aconra, sul progressivo slittamento dalla logia dell appartenenza passiva e data a un certo luogo verso la logica progettuale e attiva, in cui l identità territoriale si costruisce nell azione colletiva dei soggetti locali (GOVERNA, 2005, p. 55). Para Governa (2005), portanto, o entendimento da geografia da territorialidade não acontece pela descrição do espaço, mas das práticas e da utilização dos recursos presentes no espaço pelos sujeitos que o constroem. Dessa forma, a territorialidade ativa torna-se a capacidade de valorização dos recursos presentes no espaço e dos atores que constroem o território, através de suas estratégias e dos alcances de autonomia local.

65 64 Compreendemos que é dessa perspectiva de territorialidade ativa que se pode pensar em autonomia do sujeito local, ou seja, na capacidade do sujeito ter controle do processo de construção do seu território. Numa perspectiva bem próxima da já apontada por Raffestin (1993), apreendemos a territorialidade como uma ação do sujeito no espaço, visando autonomia: [...] a vida é tecida por relações, e daí a territorialidade poder ser definida como um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade espaço tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema (RAFFESTIN, 1993, p. 160). Autonomia no sentido de garantia de condições econômicas, políticas e culturais 29. Mas, acima de tudo, como conservação da identidade de uma coletividade, na possibilidade de escolhas e na capacidade de dominação do território (RAFFESTIN, 1993). Para Governa (1997), essa autonomia é a capacidade intrínseca de relações de dominação e resistência no território, possibilitando: 1. a Tomada de Lugar como relações que levam o indivíduo ao controle da sua realidade; ou seja, ao controle das forças externas de dominação; e 2. o Poder Dominante enquanto capacidade de construção e resistência. Numa correlação ou numa composição de forças, de práticas, de processos e de relações de poder: [...] l autonomia locale è vista come composizione delle forze, delle pratiche, dei processi e delle relazioni di potere, costituita però non solo dalle forze, dalle pratiche, dai processi e dalle relazioni di potere dei controllori, ma anche dei controllati (cioè del resisting power) (GOVERNA, 1997, p. 57). Essa argumentação em torno da autonomia apresenta-a como a capacidade intrínseca de relações de dominação e estratégias de resistência dos sujeitos em seus territórios locais, possibilitando definir processos de auto-organizzazzione e autoregolazione, controlando e respondendo, através das práticas sociais, culturais e políticas, os estímulos externos ao território, mantendo a própria identidade territorial: 29 Segundo o autor, o verdadeiro desenvolvimento no território é aquele que leva à autonomia e à verdadeira liberdade: Il est vrai que le Brésil avec le parti des travailleurs est sur la bonne voie, surtout avec le développement des politiques publiques, mais le problème est moins l accès à la quantité qu à la qualité des services. Etant entendu qu il y a encore beaucoup de problèmes pour l accès à la quantité. Le véritable développement réside dans la croissance de l autonomie : l autonomie étant la capacité de faire des choix. Peutêtre est-ce la vraie liberté. Quelle est l autonomie d un paysan du Nord-Est brésilien? Quels choix libres peut-il faire? Je ne réponds pas à la question car vous y répondrez beaucoup mieux que moi. Il y a un autre moyen de juger du développement qui est une forme de raisonnement marginaliste : c est de se dire qu on ne vaut pas plus que le plus maltraité de la collectivité : si je suis un riche carioca, je ne vaux pas plus que le plus pauvre des bidonvilles. Mais en général on ne se pose pas ces questions car elles dérangent. Le réel développement c est lorsque la réalité est au niveau de la statistique (RAFFESTIN, 2013, p. 178).

66 65 Autonomia locale, quindi, come capacità dell auto-organizzazione e autoregolazione, controlando, respondendo e ridefinendo endogenamente, attraverso specifiche pratiche sociali, culturali e politiche, gli stimoli e le perturbazioni provenienti dall esterno; di mantenere la propria identità territoriale; di elaborare, secondo le proprie esigenze e la própria normatività, le regole [...] (Id, 2005, p. 58). A territorialidade se torna ativa de fato quando conduz o sujeito local à capacidade de construir o seu próprio território, possibilitando novas ações e territórios autogeridos, o que em princípio, é dificil enxegar nos PA Independência e Varame I. Essa perspectiva de territorialidade ativa de Governa (2005) muito se aproxima da concepção de territorialidade de Albero Magnaghi, em Il progetto locale. Ele aponta as territorialidades como relacional e processual, pelo que as ações dos sujeitos locais podem criar novos territórios, em uma direção da autogestão, do autogoverno e da autonomia (MAGNAGHI, 2010). Magnaghi (2010) nos apresenta uma perspectiva de territorialidade dentro da abordagem territorialista 30, no âmbito de uma sustentabilidade focada no meio ambiente do homem, a partir das concepções de produção territorial 31 e produção de territorialidades. Para isso, também, apresenta-nos o território como uma produção fruto da relação homem e meio: L azione umana nei suoi processi insediativi ha profondamente transfomato gli ecosistemi fin dalle deforestazioni del Neolitico; ha fato e può fare molti danni all ambiente, con ricadute soprattutto sulla qualità dell habitat antropico [...] L approccio territorialista si discosta perciò dalla parzialità dell approccio ambientalista (che assume il punto di vista dell ambiente naturale come epicentro 30 A abordagem territorialista de Magnaghi (2010), parte de uma perspectiva do território sendo construído historicamente, em processos co-evolutivos, humanos e ambientais, passando a ser um neoecossitema, ou seja, um espaço fruto da ação do social e cultural do homem. O autor deixa clara a questão de que a abordagem territorialista se afasta da perspectiva da abordagem puramente ambientalista (como centro da questão da sustentabilidade). Nesse caso, a sustentabilidade passa a ser pensada a partir do território, sendo este constituído por três sistemas de relações: ambiente natural, ambiente construído e ambiente antrópico. Ou seja, o território passa a ser pensado pela relação cultural, natureza e história. Essa perspectiva de sustentabilidade não está ligada à qualidade ambiental por si só, mas à busca de uma relação virtuosa entre sustentabilidade ambiental, social, territorial, econômica, política, entre outras. Não se pode pensar um problema de qualidade ambiental isolando as relações existentes da sociedade e o meio social ( milieu ): Il concetto di sostenibilità non si risolve nella ottimizzazione della qualità ambientale e a qualunque condizione, ma nella ricerca di relazioni virtusose fra sostenibilità ambientale, sociale, territoriale, economica, politica che renda coerenti basic needs, self-reliance, ecosviluppo, verso autosostenibilità. In questa ottica, non si può isolare progettualmente un problema di sostenibilità ambientale senza cosiderare le relazioni fra i modelli di azione della società insediata e l ambiente stesso, relazioni costitutive del milieu (MAGNAGHI, 2010, p. 72). 31 Magnaghi (2010) também apresenta uma perspectiva relacional ao afirmar que o território é um produto organizado a partir das relações dos indivíduos e de suas várias dimensões existenciais. Não se pode pensar o território separando o sistema sociocultural, econômico e natural. Como meio ambiente do homem, ele deve ser pensado a partir da diversidade de relações sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais que o homem estabelece com o meio: ed è pertanto nella valorizzazione del pluriverso di culture che si apre la strada per salvare l'ambiente dell'uomo (MAGNAGHI, 2010, p. 73).

67 66 normativo della sostenibilità) nel momento in cui riferisce la sostenibilità dello sviluppo al territorio intenso come neoecosistema prodotto dell uomo (MAGNAGHI, 2010, p. 71). Essa perspectiva é interessante na medida em que coloca o território como um sistema vivo e os sujeitos locais como uma coletividade capaz de participar e produzi-lo, a partir de suas territorialidades (MAGNAGHI, 2010, p. 97), numa relação sociedade e natureza capaz de determinar novos usos, práticas, tecnologias e saberes ambientais e históricos. Desse modo, a territorialidade tem um papel fundamental na construção do território como il luogho come patrimonio 32. Há em Magnaghi (2010) uma perspectiva de pensar a produção territorial e as territorialidades a partir das: 1. identidades locais e 2. sociedades ativas. Segundo o autor, a identidade do território, denominada de l identità di lunga durata, se dá a partir da individualização de um lugar, o que é produto histórico das relações entre sociedade e natureza. Fruto do processo de territorialização, ou seja, das formas de territorialidades e da interação entre os sujeitos e o meio ambiente. E por meio do processo de reorganização, transformação e nova dinâmica do e no território que os indivíduos acumulam e depositam sua própria sapienza ambientale : Questa indivizione richiede di leggerre i processi di formazione del territorio nella lunga durata per reinterpretarne invarianti, permanenze, sedimenti materiali e cognitivi in relazione ai quali produrre nuovi atti territorializzanti. Ogni ciclo di territorializzazione, riorganizzando e trasformando il territorio, accumula e deposita una propria sapienza ambientale, che arricchisce alla conservazione e alla riproduzione dell identità terrirtoriale attraverso le trasformazioni (distruttive e ricostruttive indotte dalla peculiarità culturale del proprio progetto di insediamento) (MAGNAGHI, 2010, p. 75). Dessa forma, a massa territorial é constituída por um acúmulo histórico de atos territorializados de diversas naturezas. É esse processo histórico que indica no território il valore del patrimonio territoriale e le sue peculiarità per gli usi futuri (Ibidem, p. 76). Essa individualidade do lugar pode ser vista pela paisagem que carrega em si uma permanência: [...] ne rafforza il paesaggio, ne connota l'unicità e le peculiarità prodotte dalle permanenze e invarianze (Ibidem, p. 76). Essa reflexão permite ver o território com profundidades históricas, a partir de uma dimensão temporal. Ao mesmo tempo, enquanto lugar histórico, possuindo uma força 32 Essa argumentação de Magnaghi (2010) traz o território como o local de vida e atuação dos sujeitos. O território é um soggetto vivente (MAGNAGHI, 2010, p. 97), é fruto da interação de longa duração entre o homem e o ambiente. Isso faz do território um produto coevolutivo, fruto da ação ao longo do tempo, de transformação contínua.

68 67 identitária que atua profundamente na existência do individual e do coletiva, influenciando processos cognitivos, linguísticos, perceptivos e sensoriais: [...] il luogo come concetto storico, inscindibile dalla dimensione temporale ha una sua forza identitaria che interviene attivamente nella nostra esistenza individuale e colletiva nei processi cognitivi, linguistici, percettivi, sensoriali anche se sovente nelle forme latenti di una identité cachée di lungo periodo (Ibidem, p. 76). Com isso, o autor aponta alguns critérios para a análise do território como lugar de identidade local, dentre os quais citamos: 1. Uma análise centrada no entendimento das práticas que operam na territorialização local, ou seja, do processo de aquisição e saberes do ambiente local; 2. e nos valores e saberes do local, superando critérios de valores universais (MAGNAGHI, 2010). E aqui há um ponto crucial para se pensar as territorialidades dentro de uma perspectiva ativa. O território deve ser pensado na dimensão do sujeito e das suas identidades locais. No seu caráter político, na atuação cotidiana e em novas formas de liderança da população ambiente de vida: [...] esso richiede nuove forme di protagonismo delle comunità insediate, poiché riabilitare e riabitare i luoghi significa nuovamente prendersene cura quotidiana da parte di chi ci vive, acquisendo nuove sapienze ambientali, tecniche e di governo [...] (Ibidem, p. 79). O próprio desenvolvimento enquanto ação deve ser um movimento culturale, por meio da aproximação dos indivíduos e da coletividade de seus saberes, de suas memórias e de suas culturas locais. É retomar o território à sua identidade local 33 : Per poter aver dei luogui è necessario sapere vedere, saperli riconoscere, saperne interpretare i valori, le regole riproduttive, l identità profonda (Ibidem, p. 79). Essa concepção apresenta a territorialidade centrada na valorização da sociedade local, num verdadeiro fare società locale. Esta passa a ser uma atuação cotidiana que é condição fundamental para compreensão do território a partir da sociedade local. Caminho que permite aos sujeitos um cuidado e uma participação do processo de valorização do ambiente, passando a ser capaz de compreender o seu território, para depois atuar nele, a partir de novas ações Para Magnaghi (2010), pensar em qualquer ação política de desenvolvimento local sustentável, é pensar numa ação calcada no reconhecimento e valorização das identidades locais no território, mas, antes de tudo, num desenvolvimento da sociedade local, como participativo e ativo no seu lugar. 34 Essa abordagem territorial de Magnaghi (2010) é centrada e muito próxima da de Governa (2005) ao apresentar os habitantes locais na sua capacidade de autogovernança e organização. O sujeito passa a se inserir no território como participante, como construtor.

69 68 Num processo de contextualização dessa visão teórica com a realidade em estudo, entendemos que os PA Independência e Varame I devem ser vistos como territórios onde as famílias assentadas podem e passam por um processo de territorialização dos seus saberes nos territórios, sendo construídos a partir da relação cotidiana das famílias com os demais atores sociais. Isso nos conduz a pensar que qualquer ação ou discurso em torno dos PA devem levar em consideração as identidades e as relações locais. Ao mesmo tempo, que a própria interação dos assentados no território possibilita novos discursos e novas ações que são pensadas e articuladas diariamente. Daí porque os sujeitos devem ser vistos (ou deveriam ser vistos) como attori territoriale com un azione terrirializzata e capaz de costruire identità territoriale (GOVERNA, 2005). A perspectiva em discussão dialoga muito com a de Governa (2005), fazendo compreender as territorialidades ativas como ações dos sujeitos locais capazes de construir novas formas de mediação, relação social, prática e cognição dos sujeitos nos seus locais de vida, possibilitando para isso a construção de um novo território (MAGNAGHI, 2010). Como Governa (2005), Magnaghi (2010) apresenta uma concepção de territorialidade com um forte caráter político organizacional em favor da autonomia como elemento central na constituição do território. Para esse autor, a territorialidade, como ação e comportamento, pode levar os sujeitos locais a novas formas de interação e organização do território, por meio da capacidade de autogoverno ou autogestão. Argumenta autogoverno como uma perspectiva de territorialidade onde o sujeito local é um agente com capacidade de produção social do território, ou seja, que permite que este seja protagonista na reconstrução dos valores territoriais, dentro de uma nova relação entre comunidade e território. Segundo o autor, o sujeito como ações de autogoverno não é um mero habitante do território, mas abitanti-produttori come protagonisti (MAGNAGHI, 2010, p. 110). O autogoverno é um novo sistema de governo no território, pelo que o próprio sujeito passa a ser promotor do desenvolvimento. Numa condição de ação social, onde o sujeito cria novas formas de valorização do patrimônio territorial, favorecendo novas ações de autogestão, de atividades locais, de cooperação: Il processo può innescarsi favorendo lo sviluppo di attività microsociali, cooperative, comunitarie, autoorganizzate di reti locali di attori intorno a progetti di trasformazione (Ibidem, p. 111).

70 69 Essa compreensão possibilita ver o sujeito como uma coletividade que tem a capacidade de transformar seu território a partir de um projeto coletivo de ações: L'interpretazione del sistema di governo del territorio come ambito complesso di trasformazione implica che il soggetto progettuale sia colletivo (Ibidem, p. 112). Isso leva a novas formas de socialização, com novos pactos sociais e maior capacidade de inovação e transformação do território a partir de condições socioculturais: La nuova forma di socializzazione non vanno ricerca sulla difesa localista di identità appartate, ma in nuovi patti sociali che scaturiscano dalla composizione sociale delle genti vive di ogni luogo e che construiscano nuove forme comunitarie collegate in modo innovativo e trasfomativo ai modelli socioculturale e territoriale di lunga durata (Ibidem, p. 112). Dessa maneira, as perspectivas apontam para as territorialidades como um conjunto de ações capazes de construir territórios autogeridos pela população local. É uma concepção de ver o território e as práticas neles em movimento, contradição, em embates, com novas ideologias e criando identidades locais. Ou seja, dentro da perspectiva de um território com forte poder político e organizacional, possibilitando que o sujeito local passe a ser visto como parte integrante e pertencente ao território (GOVERNA, 2005). Nesse sentido, a territorialidade como uma nova prática de democratização comunitária, possibilitando a construção da coscienza di luogo (MAGNAGHI, 2010, p. 133), a consciência individual e coletiva do lugar, é alcançada de forma material e relacional quando o indivíduo passa a se reconhecer como pertencente e participativo. As ideias apresentadas até aqui contribuem para construir um caminho teórico que faz entender o território como sendo um produto/construção social, envolvendo uma série de comportamentos e ações dos sujeitos com relação ao seu espaço de vida. Ao mesmo tempo, nos faz entender que as territorialidades são práticas sociais chaves para a compreensão da produção e das disputas territoriais, principalmente das famílias assentadas em seu cotidiano. É por meio das territorialidades que podemos interpretar se há um processo de inclusão territorial das famílias assentadas nos PA em Passira-PE. Como o território e as territorialidades são fruto da inter-relação e da interação entre atores sociais e o meio ambiente físico e social, caminharemos para analisar a associação estabelecida entre discurso e territorialidade, a fim de chegarmos à compreensão de como tais ações e comportamentos no espaço podem ser interpretadas por meio de territorialidades que se manifestam nos discursos.

71 As territorialidades e os discursos ativos e passivos O esquema teórico-conceitual que apresentamos parte da perspectiva de entender o território como uma disputa territorial entre sujeitos no âmbito do processo de apropriação do espaço. Uma disputa que se estabelece em várias dimensões, dentre as quais a da linguagem, por meio dos discursos. Para compreender as territorialidades ativas e passivas das famílias assentadas em torno do processo de inserção socioterritorial nos PA em Passira-PE, na forma de discursos, o que denominamos aqui de territorialidades discursivas, é necessário, primeiramente, retomarmos de forma sucinta algumas concepções já colocadas. São elas: 1. Entendemos que existe uma relação indissociável entre espaço, território e linguagem. Conforme argumentou Claude Raffestin em alguns de seus trabalhos 1993 e 2009, o território é: i) uma apropriação (i)material de sujeitos no espaço; ii) marcado por um campo de forças e por relações de poder; iii) sistemas de objetos e signos, fruto de territorialidades cotidianas; iv) reflexo de relações intersubjetivas que são dinâmicas e expressas por meio da comunicação, revelam as necessidades de produzir e existir dos sujeitos (RAFFESTIN, 1993). O que diferencia o espaço do território são as relações sociais entre os sujeitos, estabelecidas por territorialidades cotidianas, mediadas por trabalho, poder e pela linguagem. Argumenta que a relação entre o sujeito e o território se dá por essas relações semânticas, isto é, por meio da língua, ou mais especificamente das relações de poder estabelecidas pelo uso da linguagem. Para o autor, as territorialidades carregam poder, mas também sentidos, representações e imagens construídas na relação do sujeito com o espaço, por meio da linguagem. Sendo esta uma forma do sujeito construir novas paisagens do espaço: É preciso, pois, compreender que o espaço representado é uma relação e que suas propriedades são reveladas por meio de códigos e de sistemas sêmicos. Os limites do espaço são os do sistema sêmico mobilizado para representá-lo (Ibidem, p. 144). A linguagem é uma mediação entre o sujeito e a realidade territorial. Uma dimensão da territorialidade que se apresenta por meio da comunicação social, revelando as formas de constituição da realidade e dos conflitos estabelecidos no processo de apropriação do espaço em território.

72 71 2. As territorialidades são ações dos sujeitos no processo de apropriação do espaço. Esse processo é exercido a partir da mediação simbólica, cognitiva e prática (RAFFESTIN, 1993). Ao mesmo tempo, essas territorialidades podem ser ativas. Sobre isto, entendemos como um conjunto de ações coletivas dos sujeitos locais em seu território por meio de estratégias de inclusão e cooperação. É pensar no território como um sistema ativo, por meio de sujeitos agente social no processo de transformação: [...] i territori sono visti come sistemi attivi, in cui la territorialiatà svolge un ruolo di mediazione simbolica, cognitiva e pratica fra la materialità dei luoghi e l agire sociale nei processi di transformazione e di sviluppo locale (GOVERNA, 2005, p. 26). Como argumenta Governa (2005), as territorialidades ativas possibilitam o sujeito a ser ativo no seu território, a ter ações e comportamentos inovadores, capazes de: a) construção de uma identidade territorial, b) autogoverno e autoregulação, c) redefinir práticas sociais, culturais e políticas e d) criar estratégias inclusivas. 3. Por último, entendemos que o discurso é um acontecimento, carregado de relações de poder, saber e práticas sociais. O discurso traz na sua constituição os jogos de lutas e afrontamentos, ou seja, uma série de relações de embates das micro-lutas sociais (FOUCAULT, 2005). Ao mesmo tempo, o discurso é um modo de ação dos sujeitos (FAIRCLOUGH, 2001), constituindo-se numa prática social, contribuindo para a constituição da estrutura social, uma vez que molda e é moldada por essa estrutura (FAIRCLOUGH, 2001). Recuperamos essas observações para mostrar que existe, no processo de construção do território, uma relação indissociável com o discurso, uma ligação entre território-poderlinguagem, numa perspectiva de dimensão espacial do discurso. Entender o discurso como um acontecimento, carregado de práticas sociais, relações de poder, saber e estratégias, possibilita interpretar o processo de construção e apropriação do espaço geográfico em território. Falar do espaço é agir nele, é criar delimitações, representações, imagens e, portanto, estabelecer relações de poder. Como afirma Lefebvre (2006), o espaço social [...] articula o social e o mental, o teórico e o prático, o ideal e o real (LEFEBVRE, 2006, p. 41) e todo e qualquer conhecimento humano se rebate no espaço, delimitando territórios de relações de poder, exercício do saber e práticas sociais.

73 72 Nessa perspectiva, a relação entre espaço-território-discurso diz respeito ao entendimento do território por meio de territorialidades presentes nas relações sociais de comunicação entre os sujeitos (RAFFESTIN, 1993). No território, há elementos do real, mas também há do abstrato, a partir das sensações, representações e das imagens (RAFFESTIN, 1993). A territorialização é um processo de apropriação social de fragmentos do espaço, por meio de territorialidades cotidianas que retratam as ações e os comportamentos dos sujeitos nesse processo. Dessa forma, a territorialidade pode acontecer enquanto discurso, o que nos leva a compreensão das territorialidades discursivas 35. Estas, enquanto dimensão espacial do discurso, são as ações dos sujeitos em torno do processo de uso e apropriação do território, em forma de discurso, numa relação entre grupos humanos e seu ambiente, por meio da linguagem. Como as territorialidades acontecem por meio de sujeitos passivos e ativos, como aponta Dematteis (2005) e Governa (2005), as territorialidades discursivas podem e devem acontecer de forma ativa e passiva. Por isso, compreendemos que as territorialidades discursivas podem ser definidas por meio de discursos passivos e ativos dos sujeitos em seus territórios de vida: Discurso Ativo ou Positivo é uma manifestação da linguagem sobre o espaço e que apresenta em sua constituição marcas que caracterizam ações e comportamentos ativos dos sujeitos coletivos no processo de uso, apropriação e construção do território; Discurso Passivo ou Negativo é uma manifestação da linguagem sobre o espaço e que apresenta em sua constituição marcas que caracterizam ações e comportamentos ativos dos sujeitos coletivos no processo de uso, apropriação e construção do território. Os discursos ativos vão conter traços de práticas sociais inovadoras dos sujeitos em seus territórios, apresentando novas formas de saber e utilização dos recursos locais presentes no território, retratando ações e comportamentos positivos (DEMATTEIS, 2005) que conduzem os sujeitos locais a manterem um maior controle na construção do território por meio da autonomia (GOVERNA, 2005), maior capacidade de se autorepresentar e 35 É importante que fique claro que não estamos trazendo aqui um conceito novo para a análise do processo de apropriação e construção de territórios. Mas, estamos buscando fazer uma associação, com o mínimo de esforço teórico, da possibilidade das ações humanas no espaço serem analisadas por meio dos discursos dos sujeitos.

74 73 autoprojetar (DEMATTEIS, 2005), como também da maior capacidade de autogestão e autogoverno (MAGNAGHI, 2010). É importante que fique claro que esse percurso teórico está centrado na problemática que envolve a realidade socioespacial e territorial do município de Passira-PE, a partir dos PA Independência e Varame I. Nossa preocupação é compreender de que forma acontece o processo de inserção socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir de seus discursos. Por isso, é importante o resgate dos discursos como ativos ou passivos - das famílias envolvidas para caminharmos nas práticas sociais em torno da RA e dos PA no município em epígrafe, a partir dos territórios de vida. Porém, entendemos que os territórios dos PA, no município de Passira-PE, são resultados da soma histórica dos discursos e práticas em torno da RA no Brasil, principalmente, no âmbito do quadro de relações de poder e de conflitos, empreendidas pelo Estado brasileiro, a partir dos Planos Nacionais de Reforma Agrária, e os vários movimentos sociais no campo do país, com destaque para o MST. Dessa forma, retomar o quadro histórico dos discursos e das práticas em torno da luta pela terra e pela RA é a primeira etapa que permite compreendermos os embates, os conflitos, as ações, e as contradições que conduziram a existência dos assentamentos ora analisados. 2.4 O PERCURSO METODOLÓGICO Nessa seção, apresentaremos uma discursão do caminho metodológico para a análise das territorialidades discursivas, a partir dos discursos das famílias assentadas nos PA Independência e Varame I. Para tal percurso, adotamos por base as quatro dimensões do delineamento da pesquisa qualitativa apontada por Bauer, Gaskell e Allun (2008): i) a abordagem ou pesquisa qualitativa, ii) geração dos dados, iii) sua análise e iv) interesses de conhecimentos envolvidos. Em conformidade com Bauer (2008), na primeira seção, intitulada, A técnica de análise dos discursos, trazemos a técnica de pesquisa, com base na Análise Crítica do Discurso (ACD), entendendo o texto como materialização do discurso e corpus de pesquisa. Na segunda seção, Delineando a técnica de coleta dos discursos, definimos a técnica de coleta, com base no instrumento entrevista, como também os critérios

75 74 de escolha dos entrevistados e como se deu o procedimento de entrevista. Na terceira seção, A análise e tratamento dos discursos, apresentamos os caminhos e o processo de análise voltada à descrição, interpretação e explicação dos discursos. Na última seção, Os interesses de conhecimentos, discutimos os interesses de conhecimentos que buscamos, partindo do grande desafio que enfrentamos nesta tarefa analítica que é articular o saber geográfico, que está no campo espacial, com o saber da ACD, situado no âmbito da linguagem A técnica de análise dos discursos Como já explicitamos anteriormente, o objeto deste estudo é compreender de que forma ocorre o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, cujo caminho de análise perpassará os discursos das famílias a partir dos territórios dos PA. Para tanto, a contribuição e originalidade da pesquisa podem ser destacadas mediante dois aspectos: 1. Repensar o processo de inserção socioterritorial de diversas famílias de trabalhadores rurais no campo, tendo por base a construção de novos territórios de assentamentos, ampliando as possibilidades da constituição de efetivas mudanças sociais, políticas, econômicas e espaciais na condição de vida dos beneficiários pela política de Reforma Agrária no Brasil; e 2. realizar um trabalho acadêmico, na Geografia, focando o estudo na relação entre território e discurso, tendo as territorialidades como condição dessa relação. Espera-se que a contribuição deste debate possa abrir novas discussões sobre a questão da dimensão espacial do discurso dentro dos estudos da Ciência Geográfica. Ao mesmo tempo em que é uma contribuição, o estudo se torna um desafio enorme, pois ao analisar o processo de análise dos territórios e das territorialidades presentes nos PA, a partir dos discursos das famílias, temos que articular teórica e metodologicamente o discurso como elemento desse processo. Para esse objetivo se efetivar, procuramos construir caminhos a fim de entender a relação supracitada de forma teórico-metodológica. O primeiro recurso teórico foi tomar o território como objeto de análise, entendo-o como fruto de um processo de produção social, de práticas espaciais, e que reúne o real e o imaterial, o social, cultural e o mental: [...] a prática espacial consiste numa projeção no terreno de todos os aspectos, elementos e momentos da prática social [...] (LEFEBVRE, 1986, p. 20). Por isso, foi fundamental a ideia

76 75 de relação entre território e linguagem apresentada por Raffestin, pela qual, por meio da linguagem, cria-se representações do território ou uma paisagem do território (RAFFESTIN, 1993). Também, a noção de discurso como poder e prática. Porém, como fazer as análises dos discursos das famílias assentadas para confirmar essa relação? Para tal, optamos pelo procedimento metodológico apresentado pela Análise Crítica do Discurso - doravante ACD. Na realidade, a ACD constitui-se em um método qualitativo de procedimento e é uma abordagem crítica entre as várias vertentes de Análise do Discurso 36, tendo como objetivo central a análise textual, levando em conta a descrição, interpretação e explicação das práticas sociais materializadas no texto como caminhos do processo investigativo. Essa abordagem crítica sobre a linguagem tem os estudos de Norman Fairclough com destaque para os trabalhos Language and Power (1989), Discurso e mudança social (2001) e Analysing discourse: textual analysis for social research (2003) como referências principais aqui tomadas. Dois aspectos são pertinentes à pesquisa qualitativa dentro do quadro da ACD: 1. uma análise do discurso mais linguisticamente orientada e centrada no texto e 2. abordagem que busca investigar o papel da linguagem no processo de mudança social, entendendo o discurso como um modo de ação e uma prática social (FAIRCLOUGH, 2001). Por meio dela, buscamos revelar o que está oculto na fala dos sujeitos famílias assentadas no processo de produção e apropriação do território, para intervir socialmente 37. A ACD parte de uma perspectiva teórico-metodológica tridimensional: texto, prática discursiva e prática social, em que tanto texto como a prática social são partes em conexão 36 Com relação a outras concepções ou vertentes da Análise do Discurso, buscar autores como Michel Pêcheux ou Van Dijk. 37 Uma vez que Fairclough (2001) parte da perspectiva que os discursos geram efeitos sociais na sociedade, possibilitando mudanças sociais: Hoje, os indivíduos que trabalham em uma variedade de disciplinas começam a reconhecer os modos como as mudanças no uso linguístico estão ligadas a processos sociais e culturais reais amplos e, consequentemente, a considerar a importância do uso da análise linguística como um método para estudar a mudança social. Mas ainda não existe um método de análise linguística que seja tanto teoricamente adequado como viável na prática. Meu objetivo principal neste livro é, portanto, desenvolver uma abordagem de análise linguística que possa contribuir para preencher essa lacuna uma abordagem que será útil particularmente para investigar a mudança na linguagem e que será útil em estudos de mudança social e cultural (FAIRCLOUGH, 2001, p. 19).

77 76 com o discurso dos sujeitos, mantendo ligações e sustentando a existência de ambos (FAIRCLOUGH, 2001). O que, para nós, tornou-se atrativo na escolha da ACD foi a possibilidade de se fazer uma análise do discurso centrada na análise textual, sendo esta uma parte 38, uma vez que o texto é uma materialização do discurso. Todo o material empírico levantado em campo se torna um discurso que pode ser convertido em texto e em material para a análise. Ao fazer uma análise do texto 39, faz-se uma interpretação dos significados do discurso, bem como das relações das interações estabelecidas entre os atores e seus contextos. Dessa forma, o texto é a soma de traços sociais e materialização de processos. E os discursos na forma de textos são produzidos e apresentam um significado potencial (FAIRCLOUGH, 2001), tornando-se caminhos para a compreensão das relações de poder e processos ideológicos presentes no discurso (FAIRCLOUGH, 1989). Resumidamente, os discursos levantados a partir dos locais de estudo vão ser materializados em texto. Eles irão representar os aspectos da realidade territorial dos PA estudados. Isso nos possibilitará ver os seus significados, a ligação com os contextos sociais, as relações sociais dos participantes, as atitudes, valores, desejos e os contextos situacionais em que se desenvolvem os discursos (FAIRCLOUGH, 1989). Aqui, o texto será visto como uma unidade de sentido. Não é um produto pronto e/ou acabado, mas é um código que será decodificado, uma unidade processual, um lugar do dito e do não dito, das possibilidades de sentido, da busca, das descobertas. Podendo até ser (re)visto dentro da Geografia como um acontecimento relevante, pelo menos como uma técnica de pesquisa. Partindo dessa perspectiva, o texto se torna um corpus de pesquisa. Um material que será analisado. Uma materialização das territorialidades discursivas. Do conjunto de ações dos sujeitos no espaço, retratando as marcas dos conflitos, dos embates, dos saberes e poderes presentes na produção do território dos PA, a partir dos discursos das famílias assentadas. 38 Essa concepção da análise textual é confirmada por Caldas-Coulthard (2008), quando afirma que a orientação crítica da análise do discurso preocupa-se com o texto como algo que reflete o social e, pelo menos em parte, o constrói (CALDAS-COULTHARD, 2008, p. 35). O texto na ACD, internaliza, traz consigo os traços ou elementos da prática discursiva e social, traços do político, do ideológico, do econômico. 39 Para Fairclough (2001), qualquer tipo de discurso conversação, discurso em sala de aula, discurso da mídia, etc. constituem-se como texto para análise. De acordo com o autor: E uma hipótese de trabalho sensata supor que qualquer tipo de aspecto textual é potencialmente significativo na análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p. 102).

78 Delineando a técnica de coleta dos discursos Como dito anteriormente, o presente estudo usa técnicas da ACD, entendendo o texto como corpus de pesquisa. Por isso, para a construção deste fizemos uma reunião dos discursos das famílias assentadas no município de Passira-PE, tendo a técnica de entrevistas como recurso metodológico central para a obtenção do corpus 40. Os discursos levantados se deram a partir de uma realidade socioterritorial dos PA, em Passira-PE. Trata-se de um município com intenso processo de espacialização e territorialização da luta pela terra, apresentando cinco (5) Projetos de Assentamentos (PA) que abrangem um total de 221 famílias assentadas (Quadro 1). Deste número de PA, foram estudados, os PA Independência e Varame I. Ambos totalizam uma população de 51 famílias assentadas. Quadro 1: Passira Projetos de Assentamentos e número de famílias assentadas PROJETO DE ASSENTAMENTO N DE FAMÍLIAS ASSENTADAS PA Independência 29 PA Poço Grande 100 PA Recreio II 40 PA Varame I 22 PA Varame II 30 Fonte: INCRA/PE, Estes territórios foram escolhidos estrategicamente, pelos seguintes motivos: a) Projetos de Assentamentos implantados na vigência do II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA); b) PA pelos quais os imóveis rurais passaram por ações de ocupação e formação de acampamentos de famílias camponesas; c) Envolvimento do MST como movimento de apoio ao processo de luta pela terra; d) Fruto de estudo realizado anteriormente à pesquisa de doutorado. Para a realização das entrevistas e o consequente levantamento do corpus, apareceram duas questões primordiais: 1. quem são e quais os critérios para a escolha dos entrevistados? 2. e quantas entrevistas seriam representativas para obter os resultados desejados? 40 Em conformidade com Gaskell (2008), o uso da entrevista como um método de coleta dos dados é muito empregado nas ciências sociais, servindo de base para o entendimento do mundo social (GASKELL, 2008). Dessa forma, pode-se: [...] mapear e compreender o mundo da vida dos respondentes é o ponto de entrada para o cientista social que introduz, então, esquemas interpretativos para compreender as narrativas dos atores em termos mais conceptuais e abstratos [...] (GASKELL, 2008, p. --).

79 78 Caso fizéssemos entrevistas com 51 famílias dos PA, a quantidade nos conduziria a um corpus muito extenso e quase impossível de se analisar num tempo disponível para a realização da pesquisa 41. Evitando esse erro, foram levantados critérios para a escolha das famílias que passaram pelo processo de entrevistas 42. Por isso, para fins de seleção, fizemos uma observação prévia dos PA, para compararmos inicialmente como estava a organização desses territórios após a pesquisa realizada anteriormente no período do mestrado em Geografia pelo PPGEO/UFPE. Para essas observações, fomos sustentados na concepção de paisagem de Santos (2008). Para este autor, paisagem é uma das dimensões do espaço possibilitando, a partir do aparente, chegarmos a uma análise da essência do problema em tela. Ancorados no visível, do presente nos territórios, nas formas espaciais, poderemos chegar ao significado, ao conteúdo, às ações no espaço 43. Pela dimensão da percepção foi possível perceber as condições socioterritoriais da falta ou não de reais mudanças na vida das famílias. Por isso, retornamos aos assentados que já foram entrevistados na pesquisa passada. Nosso contato se deu primeiramente com estes sujeitos. Em seguida, fizemos entrevistas com alguns assentados citados nas entrevistas, uma vez que estes falaram de outros companheiros da labuta e em condições de vida semelhantes ou diferentes da sua, tanto para o lado positivo como para o negativo. É importante destacar que verificamos que alguns assentados não se encontram mais presentes nos territórios dos PA, devido uma situação de repasse de lote. Identificamos 4 famílias nessa condição no PA Independência e 3 no PA Varame I. Buscamos contatos com alguns indivíduos para entender o porquê da sua saída logo após a implantação do assentamento. Porém, não queriam falar sobre o assunto. 41 Segundo Bauer & Aarts (2008), a extensão do corpus está relacionada ao tempo disponível para a realização da pesquisa, a primeira restrição. 42 Para isso, foi necessário usar a imaginação social científica, a partir de ambientes sociais relevantes (GASKELL, 2008, p. 70), ao selecionar as famílias entrevistadas para a obtenção dos discursos que compuseram o corpus analisado. Para Gaskell (2008), o pesquisador deve, como forma de justificar suas escolhas, observar de forma sistemática a realidade e acontecimentos afeitos a ela. 43 Segundo Santos (2008), as formas espaciais presentes na paisagem possibilitam o início do processo de análise da realidade: A dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que chega aos sentidos. [...] A percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é apenas uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das coisas materiais é sempre deformada. Nossa tarefa é a de ultrapassar a paisagem como aspecto, para chegar ao seu significado. A percepção não é ainda o conhecimento, que depende de sua interpretação e esta será tanto mais válida quanto mais limitarmos o risco de tomar por verdadeiro o que é só aparência (SANTOS, 1988, p. 22).

80 79 Por isso, no que se refere à segunda questão, quantas entrevistas seriam representativas para obter os resultados desejados, o levantamento do corpus, surgem outras indagações: Seriam entrevistadas todas as famílias assentadas que apresentassem indícios de práticas sociais que possibilitassem novos caminhos de uso e apropriação dos PA? Para a resolução de tais problemas, recorremos mais uma vez a Bauer (2008), por meio do método da saturação. Segundo o autor, a pesquisa qualitativa visa a (1) selecionar, (2) analisar e (3) selecionar novamente, num processo cíclico (BAUER & AARTS, 2008). A finalização do processo aconteceu com a saturação, ou melhor, quando as entrevistas feitas não apresentarem nada de novo (BAUER&AARTS, 2008). Por isso, deixamos claro que nossa preocupação não foi contar os discursos, e sim têlos, pelo que, a partir deles, pudéssemos ver as formas de representações e imagens sobre a realidade estudada, compreendendo as posições ou os pontos de vista com relação ao processo de apropriação dos territórios dos PA. Como também a compreensão da participação e capacidade de organização dos sujeitos nesses territórios 44. Dessa forma, fizemos 5 entrevistas no PA Independência e 4 no PA Varame I. Também é importante que fique claro que foram feitos dois tipos de entrevistas em cada assentamento: a) as pré-testes e b) as definitivas. As pré-testes serviram de base para a construção das definitivas, uma vez que durante os primeiros contatos e aplicações foram identificados alguns problemas, principalmente, na forma como foram elaboradas algumas perguntas. Com isso, após o término foi revisado o quadro de quesitos e reelaborado novos. Por isso, após cada pré-teste, voltamos as famílias assentadas entrevistadas anteriormente e a partir destas selecionamos novas e seus respectivos chefes para a realização de novas entrevistas, sendo seus discursos selecionados e analisados, compondo o corpus da pesquisa. Porém, deixamos claro que já no pré-teste, observamos que muitas perguntas conduziram a respostas que mantinham forte ligação com o nosso objetivo de trabalho, que foram utilizadas como dados a serem analisados, interpretados e explicados. 44 Em conformidade com Bauer (2008), essa pesquisa qualitativa tem como questões centrais a qualidade das interpretações das realidades sociais. Dessa forma, partimos da perspectiva que a realidade estudada é como uma rede de significações e de práticas sociais. Daí porque a forma de coleta de dados e construção do corpus de pesquisa está ligada aos processos de comunicação do mundo social (BAUER, 2008), uma vez que o mundo é construído através da comunicação (BAUER; ALLUN, 2008). O corpus foi uma coleção de materiais que, reunidos, puderam ser analisados, a partir de uma arbitrariedade ou escolha do pesquisador (BAUER & AARTS, 2008).

81 80 É válido ressaltar, também, que muitas perguntas feitas durante as entrevistas ficaram sem respostas. Sentimos que um gravador entre o pesquisador e o assentado quebrou, em certos momentos, a possibilidade de uma conversa mais franca, limitando e dificultando a profundidade de algumas respostas. Porém, o mesmo gravador não pode ser tirado nesse momento já que é por meio do mesmo que obtemos os discursos que serão descritos e analisados. Daí por que utilizamos um caderno de anotações, seguindo o conselho dado em nossa qualificação pelo Professor Dr. Jorge Ventura do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE. Neste, anotamos questões e observações que chamavam a nossa atenção durante a entrevista logo após desligar o gravador. Com isso, ficou evidente e mais conveniente deixarmos para o término da entrevista o registro das manifestações do entrevistado. Na condição de entrevistador, procuramos ter uma postura de escuta atenta com o entrevistado, interrompendo-o pouco, e evitando quaisquer anotações que os intimidassem. Mas, buscamos em certos momentos instigar o entrevistado com perguntas, que julgávamos necessárias e pertinentes, e que não necessariamente estavam no roteiro da entrevista. Todas as entrevistas se deram na casa dos assentados. Já nesse contato, deixamos claro aos assentados quais os objetivos e interesses da pesquisa, esclarecendo que guardaríamos o anonimato na produção final do nosso trabalho, algo que respeitamos ao longo desta redação. As citações dos discursos serão representadas da seguinte forma: Discurso assentado (número), PA Independência ou Varame I. Após o levantamento desses discursos, partimos para a realização das análises, por meio das etapas de descrição, interpretações e explicação, como aporte teórico-metodológico da ACD A análise e tratamento dos discursos Para analisar os discursos levantados junto aos assentados, procuramos garantir que toda interpretação estivesse enraizada nas próprias entrevistas e com base na técnica de análise da ACD. Tal percurso metodológico visou analisar as territorialidades discursivas, a partir dos discursos das famílias assentadas nos PA Independência e Varame I. Esse processo

82 81 teve por base três fases ou dimensões 45 : 1. descrição do discurso, 2. interpretação das palavras/frases do discurso e 3. explicação. Etapas metodológicas que serão explicadas a seguir. 1. Descrição do discurso Nessa primeira etapa, após as entrevistas em campo, buscamos descrever o discurso, colocando-o na forma de texto. Essa é uma fase da análise que está centrada na materialização do discurso 46. O objetivo da descrição foi, portanto, buscar as formas como os sujeitos compreendem e representam o contexto socioespacial vivenciado 47, a partir do processo de luta pela terra e da construção e apropriação do território dos PA. Dessa forma, nossa grade de análise contemplou mais especificamente as respostas dadas às questões colocadas: - A CONDIÇÃO DE VIDA ANTES DOS TERRITÓRIOS DOS PA: Comente um pouco sobre a sua história quando não era assentado: como era sua vida e seu trabalho anterior ao assentamento? Você se achava uma pessoa explorada e desrespeitada pelos proprietários de terra? Você gostaria de voltar à vida anterior? Sim ou não? Por quê? - IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DOS TERRITÓRIOS DOS PA A PARTIR DO DISCURSO DO MST: Como você conheceu o Movimento? Como aconteceram os contatos com o movimento? Comente como se deram as ocupações de terra de que você participou: Como foi realizada? Em que fazendas? Quantas famílias participaram? Quantas ocupações realizaram? Houve despejo? Comente sobre o período do acampamento: O que se fazia? Quem participava? Quanto tempo as famílias passaram acampadas? Houve despejo? Por que você decidiu fazer parte do MST e lutar por um pedaço de terra? Em algum momento você 45 Essas três dimensões têm por base o quadro metodológico da ACD, segundo Fairclough (1989): (1) descrição do texto, (2) interpretação da relação entre o texto e contexto e (3) explicação da relação entre interação e contexto social. 46 Para Fairclough (1989), a descrição é uma etapa da análise do discurso centrada nas propriedades formais do texto e no tipo de discurso que este toma por base. É por meio da descrição que se levanta aspectos das características formais do texto, ligados ao vocabulário ou à gramática para, em seguida, passar para a fase de interpretação. 47 Segundo Fairclough (1989), a descrição permite que o analista veja os valores experienciais, relacionais e expressivos. O valor experiencial é a maneira como o produtor do texto vê o mundo social, como ele o representa, fazendo referência aos conteúdos, conhecimentos e crenças. O valor expressivo tem a ver com assuntos e identidades sociais. Já o valor relacional é a forma como o produtor do texto mostra as relações sociais decretadas (FAIRCLOUGH, 1989).

83 82 pensou em desistir? Sim ou não? Por quê? Como o MST descrevia/dizia que seria o assentamento rural? Qual era a imagem e/ou representação que você tinha do assentamento? - O PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIOTERRITORIAL DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS: Comente como se deu a organização inicial do Projeto de Assentamento Rural? De que forma você participou do início da organização do assentamento? Como o INCRA ajudava as famílias no início do assentamento? De que forma o MST ajudava na organização das famílias? - A RUPTURA COM A IMAGEM TERRITORIAL PROJETADA: O que é um assentamento rural? O que é Reforma Agrária? O que é ser um assentado? Qual a diferença entre ser trabalhador sem-terra e ser assentado? Hoje, sendo assentado, sua vida melhorou ou piorou se comparado à situação anterior? O que o MST dizia sobre o assentamento rural corresponde com o que você está vivendo? Quais eram as promessas feitas pelo MST e que hoje não se cumpriram? O MST foi importante na conquista da terra? O suporte/acompanhamento que o MST dá as famílias assentadas hoje é o mesmo que dava no período das ocupações dos acampamentos? Qual o real papel do MST: é ajudar as famílias a conquistarem a terra ou conquistar a terra e continuar lutando por outros benefícios para as famílias? O que o MST faz hoje para melhorar a vida das famílias assentadas? Você faz parte do MST mesmo sendo assentado? O que o INCRA dizia sobre o assentamento rural corresponde com o que você está vivendo? Por quê? O que é diferente da realidade dita pelo INCRA e que você vive hoje? O que o INCRA tem feito para melhorar a vida das famílias assentadas? O INCRA escuta a opinião dos assentados na hora da elaboração dos projetos para o assentamento? Qual o real papel do INCRA para um assentamento rural? - O DISCURSO NO/DO TERRITÓRIO: A quem pertence esse assentamento: às famílias assentadas, ao INCRA ou ao movimento social? Você tem liberdade de fazer o que deseja em seu lote? O que conquistaram é fruto da luta de vocês ou do MST e do INCRA? Qual o papel da Associação do Assentamento? Você sempre participa das reuniões da associação? Você acha que há necessidade de existir uma associação? Você acha que a associação faz um bom trabalho? Você acha que as famílias do assentamento são mais unidas hoje ou no período do acampamento? Os assentados têm a mesma vontade de mobilização como antes do assentamento? Quem é mais responsável pelos problemas existentes no assentamento: o INCRA, o Movimento social ou as famílias assentadas? Por quê? Por que algumas famílias repassam os seus lotes?

84 83 Nossa preocupação, tomando a descrição como primeira etapa para análise e tratamento dos discursos, não esteve centrada na gramática e nos seus aspectos de orientação e regulação do uso da língua. Não tivemos como preocupação encontrar e identificar a maneira como fala o sujeito, com critérios estabelecidos por sistemas de regras. Não era o que é certo ou errado em termos de norma culta ou padrão. Estivemos unicamente centrados em compreender e explicar o sentido do discurso. Numa perspectiva da palavra enquanto formae-significado 48 (FAIRCLOUGH, 1989). Qualquer aspecto da realidade é construído e traz uma representação ideológica do sujeito enunciador, já que está presente no vocabulário e/ou gramática do discurso (FAIRCLOUGH, 1989). Por isso, é a partir do texto que encontramos as palavras e/ou frases que nos conduziram a uma interpretação dos territórios dos PA. Preocupamo-nos com um vocabulário centrado em palavras e/ou frases conhecidas e enunciadas pelos assentados, as quais foram capazes de emitir as formas de comportamento e as ações dos assentados no processo de uso e apropriação dos PA. Partimos da concepção de que ao enunciar determinadas palavras, os assentados manifestaram por meio do discurso ações e comportamentos coletivos que conduzem a formas ativas ou passivas em torno do território 49. Em síntese, tomamos a descrição como primeira etapa metodológica, pela qual buscamos descrever a(s) palavra(s)/frase(s) que traga(m) significado(s) estabelecido(s) no processo de apropriação e uso de territórios de assentamentos rurais, em Passira-PE. Nossa preocupação é com a relação entre palavra/frase-significado-território. Numa relação entre discurso e território, por meio da territorialidade. Focalizamos uma descrição de determinadas palavras/frases/expressões presentes no texto que apresentassem sentidos ligados às territorialidades ou, mais especificamente, às ações que conduzam os sujeitos coletivos a novas formas de organização do território, possibilitando relações de dominação e resistência, e formas de saber e utilização dos recursos territoriais por meio da autonomia e do autogoverno. 48 Para Fairclough (2001), qualquer texto traz, em si, formas de representação e significação do mundo, considerando a experiência e vivência do sujeito na realidade. Essas formas de representação e significação vão se encontrar nas palavras presentes nos discursos e materializadas no texto. Uma vez que cada palavra enunciada é emitida a partir de relações ideológicas presentes no texto e nas representações do mundo (FAIRCLOUGH, 1989). 49 Entendemos que os discursos levantados pelos assentados podem trazer marcas e traços de territorialidades ativas e passivas nos PA. Essas marcas mantêm relação com a realidade territorial dos PA, carregando e representando aspectos particulares.

85 84 2. Interpretação Após a descrição do discurso, e sua materialização em forma de texto, focalizamos na interpretação como etapa na análise do discurso 50. Do ponto de vista metodológico, faz-se necessário interpretar as relações sociais nas quais são produzidos os discursos. Tais relações atribuem valores. Interpretá-las significa justificar o que foi dito, já que todo o discurso é embutido no social e no espaço, não surgem do nada e mantêm práticas que dão sentido à sua existência. Por isso, todo discurso traz elementos, processos, mudanças e conflitos presentes nas ações e nos comportamentos coletivos. Fato observado a partir dos discursos das famílias assentadas nos PA Independência e Varame I. Para tanto, os discursos na forma de textos dão sinais para o processo interpretativo, materializando as relações sociais e as condições de sua emergência. Eles ativam elementos para o intérprete, o analista do discurso 51. Em outras palavras, o texto é um caminho, uma vereda, que conduz às interações no processo de produção. Fazer uma análise interpretativa é ser conduzido às interações contidas no seu contexto socioespacial e territorial. Como dito na seção voltada à descrição, analisamos um texto pela palavra/frasesignifico-território, isto é, o significado socioterritorial das palavras no discurso. Destacamos as que retratavam o território e as formas de territorialidades. Recorremos e buscamos os subentendidos, o dito nas entrelinhas, ao invés do explicitamente expressado. Ou seja, buscamos os sentidos dentro das palavras dentro do processo de construção e apropriação dos territórios dos PA. 50 A análise do corpus parte da descrição para, posteriormente, ser conduzida a uma interpretação do significado social do discurso ou do significado das relações sociais marcadas no texto (FAIRCLOUGH, 1989). Estas relações de poder e saber justificam determinados discursos. 51 No âmbito da ACD, essa fase da análise interpretativa, tratar-se-ia, enfim, de analisar as interações sociais e os contextos socioespaciais em que os discursos são incorporados (FAIRCLOUGH, 1989). Para isso, Fairclough (1989) identifica quatro (4) níveis ou domínios de interpretação do texto: 1. Superfície do enunciado; 2. Significado da expressão; 3. Coerência local; 4. Estrutura do texto. E dois (2) níveis ou domínios de interpretação do contexto social em que emergem determinados discursos: 1. Situação de contexto e 2. Contexto intertextual. Nele cada nível interpretativo apresenta um procedimento ou uma forma de análise. Ressaltamos que esses procedimentos são caminhos apontados por Fairclough (1989), porém dependem muito da dinâmica contextualizada, pesquisa e dos questionamentos de cada problemática. O autor chama nossa atenção para o fato das ligações entre esses processos. Não há uma dissociação entre eles, e sim um elo que possibilita uma maior interação na interpretação do texto.

86 85 Dessa forma, a concepção de territorialidades ativas que adotamos é fundamental para entendermos essa etapa. O quadro abaixo resume e traz elementos que observamos nos textos analisados (Quadro 2). Quadro 2: Concepções de territorialidades ativas DESCRIÇÃO DA PALAVRA/FRASE/EXPRESSÃO Palavras/Frases/Expressões ligadas ao território e que trazem marcas que caracterizem ações e comportamentos ativos dos sujeitos coletivos no processo de uso, apropriação e construção do território. INTERPRETAÇÃO DO SIGNIFICADO SOCIOTERRITORIAL a) Apropriação concreta e/ou simbólica do espaço; b) Práticas sociais que apresentem capacidade de relações de dominação e resistência no território; c) Práticas de cooperação e comportamentos de caráter coletivo; d) Relações de embates e conflitos entre os sujeitos, a partir de suas ações e discursos; 3. Explicação A última etapa de análise e tratamento dos discursos se constitui com a explicação 52. Esta se constitui como uma etapa metodológica pela qual a relação entre espaço-territóriolíngua se confirma a partir da relação entre as territorialidades ativas e passivas presentes no discurso. Ou seja, discurso como uma prática socioterritorial 53. Aí mostramos a participação dos assentados no processo de uso e apropriação dos territórios dos PA. 52 A explicação é a terceira etapa metodológica da ACD, segundo o modelo teórico-metodológico de Fairclough (1989). Nesta fase, o autor retrata o discurso como uma prática social; ao mesmo tempo, como os processos sociais se dão a partir da sua relação com a realidade. A explicação volta-se ao discurso na prática: Assim, a explicação é uma questão de ver um discurso como parte dos processos de luta social, dentro de uma matriz de relações de poder (FAIRCLOUGH, 1989, p. 163). É nessa fase que Fairclough (1989) mostra que os discursos podem gerar efeitos na estrutura da sociedade. Esta, também, provoca efeitos nos discursos, numa evidente relação dialética, uma vez que o discurso possibilita sustentar e modificar as estruturas sociais (FAIRCLOUGH, 1989). A explicação indica caminhos para observar manutenções ou modificações das relações de poder institucionais e sociais existentes no espaço, uma vez que todo discurso tem determinações e efeitos (FAIRCLOUGH, 1989). Numa perspectiva de entender a língua como constituinte da sociedade, assim como é constituída por ela. 53 Conforme afirma Ramalho e Resende (2011), ao considerar os discursos como práticas sociais, leva-se em conta que os sujeitos agem e interagem no mundo pelos discursos. Defendem as autoras que à medida que agem no mundo, indivíduos fazem uso da estrutura social e ao mesmo tempo a (re)produzem. Maneiras recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais indivíduos aplicam recursos da estrutura para interagirem no mundo pressupõem a existência de (redes de) práticas sociais uma entidade que, em virtude de sua posição, incorpora aspectos tanto de estruturas mais abstratas quanto de eventos concretos. Práticas sociais representam, portanto, uma entidade social intermediária, situada entre estruturas (mais abstratas, e estáveis, em termos de relativa permanência) e eventos concretos ou experienciados por atores (mais concretos e flexíveis).

87 86 O que buscamos explicar é que se de fato as famílias assentadas têm ações e comportamentos capazes de construir novas práticas nos PA, a partir de uma lógica de referência e identidades ligadas ao seu território de trabalho e vida; se são portadoras de práticas, consciência e colocam-se como participantes ativos; com efeito, a preocupação volta-se para o contexto socioterritorial em que se deu o discurso 54. Ou seja, qual a ligação das palavras enunciadas com a situação territorial dos sujeitos. Observamos se há a presença de um discurso ativo, o que manifesta uma forma de territorialidade ativa. Caso não haja caminhos de autonomia e organização do território, observamos um discurso passivo e consequentemente uma territorialidade passiva. Com essa perspectiva, pudemos entender por que determinadas expressões são enunciadas dentro do discurso, ligando-as aos contextos, aos fatos sociais e institucionais, nos quais se estabelecem. Nesse sentido, descrever, interpretar e explicar os discursos permitiu-nos uma análise do processo de inclusão socioterritorial ativa ou não das famílias assentadas nos territórios dos Projetos de Assentamentos Rurais no município de Passira-PE, reafirmando que o discurso não escapa da dimensão espacial, ligando-se fortemente ao território. Mas, também permitiu-nos uma análise que contribuiu para o entendimento da forma o conhecimento do Estado e do MST diz sobre o dever ser do assentado; quais as relações de poder e a interferência delas na organização dos PA; qual a colaboração dos sujeitos assentados dentro dos PA Os interesses de conhecimentos Na presente tese de doutoramento, interessa-nos, portanto, compreender de que forma acontece o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir dos discursos enunciados. 54 A possibilidade de interpretar os valores e os significados socioespaciais das palavras descritas nos conduzirá ao entendimento da situação contextual ou situacional em que emergem determinados discursos, superando o nível da descrição e indo para a interpretação e, em seguida, a explicação do discurso. É importante que fique claro que o contexto situacional dá pistas de organização discursiva e da significação da realidade socioespacial do sujeito. Fairclough (1989) justifica até certo ponto a escolha do arcabouço teórico-metodológico da ACD, para o modo como os espaços sociais (FAIRCLOUGH, 1989) são organizados e/ou ganham significação com os discursos. Para o autor, o discurso é enunciado pelo sujeito em uma realidade espacial a partir de uma série de relações de poder específicas. Ele chama a atenção para o fato de olhar a situação e a realidade em que ocorre o discurso, isso porque o sujeito social está inserido numa dada realidade socioespacial e esta tem influência, condiciona e é condicionada pelo seu discurso.

88 87 A nosso ver, apresenta-se, na realidade em estudo, uma disputa territorial, por meio de discursos e práticas, por pelo menos três atores sociais: o Estado brasileiro, o MST e as famílias assentadas. Entendemos que essa disputa entre tais atores é assimétrica e por isso não possibilita uma inclusão socioterritorial de forma participativa e ativa das famílias assentadas nos PAs Independência e Varame I. Entendemos que o processo de construção dos territórios dos PA fruto do embate entre Estado e MST não significa unicamente assentar famílias. Mas, antes, uma possibilidade de efetiva inclusão socioterritorial contínua ou que deveria ser, logo após o acesso à terra. Assim, as famílias poderiam conduzir de forma ativa a construção dos territórios, a partir de praticas sociais, culturais, políticas e econômicas inovadoras. Dessa forma, assentar significa uma possibilidade real de um novo projeto de território. Principalmente, quando se coloca como beneficiárias, famílias que historicamente têm sido expropriadas e exploradas pela lógica capitalista perversa de produção do espaço. Com isso, há uma preocupação clara de compreender a capacidade que as famílias em epígrafe têm de apropriarem-se e usarem os territórios dos PA, reorganizando-os de forma a atender aos seus interesses coletivos. Para isso, o caminho tomado foi o da análise das territorialidades dessas famílias, na forma de discurso, o que denominamos de territorialidades discursivas. A nossa proposta de estudo busca, assim, compreender o discurso, numa relação indissociável com suas práticas e comportamentos no processo de produção de espaço e apropriação e uso do território. Isso nos leva a repensar a importância do discurso como uma ação indissociável da produção do espaço e, consequentemente, do território. Numa perspectiva de ser um acontecimento que refletirá as ações humanas. Buscamos, enfim, um discurso que ultrapassa a concepção meramente linguística, sendo visto aqui não só como um fenômeno linguístico, mas também social, assumindo um papel importante na produção territorial. Nesse caminho, a contribuição para a abordagem geográfica passa por ter o discurso como mais um elemento para a análise da natureza real do processo de produção do espaço.

89 88 3. A REFORMA AGRÁRIA E OS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS ENQUANTO DISPUTA TERRITORIAL: APROXIMAÇÕES ENTRE OS DISCURSOS E PRÁTICAS DO ESTADO E DO MST 3.1 REFORMA AGRÁRIA: TERRITÓRIO DE DESENCONTROS E DISPUTAS ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS Como já explicitamos anteriormente, o objeto em construção neste estudo é a análise da forma como acontece o processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir de seus discursos. Para isso, é necessário, antes da retomada histórica do debate em torno da RA no Brasil, por parte do Estado e do MST, fazer uma contextualização e caracterização dos PA na realidade em estudo, clarear dois pontos centrais que norteiam a pesquisa: a noção de desencontro histórico entre discursos e práticas sociais e a perspectiva da disputa territorial em torno da RA e dos territórios dos PA. Inicialmente, é importante deixar claro que compreendemos a RA como uma política social e, concomitantemente, territorial que deve existir para atender as verdadeiras necessidades dos pobres do campo, uma vez que eles são bloqueios do acesso à terra como propriedade sua (MARTINS, 2003). Sendo essa uma reforma que possibilite conquistas de frações do território para a vida e trabalho, por meio de políticas de preservação e permanência das famílias camponesas na terra (MARTINS, 2003). Na realidade, a reforma agrária não passa simplesmente pela distribuição de terra, por meio de desapropriações. Ela deve ser uma política social destinada a ressocializar populações marginalizadas. Um conjunto de ações que deve mudar não só aspectos econômicos das famílias dos camponeses, mas também questões políticas e de mentalidade 55 : 55 Segundo Martins (2003), o sujeito real da RA tem dupla personificação, a de assentado sem-terra e de assentado da renda fundiária. Para o sociólogo, o trabalho livre nunca superou as relações de rentismo vividas pelo trabalhador rural. A renda da terra continua ou permanece nas práticas dos sujeitos assentados, uma vez que neste indivíduo falta clareza sobre a complexidade na luta pela terra e pela RA. Essa tese da atração da renda fundiária é uma das argumentações de Martins para o fracasso da reforma agrária. Um fracasso que está muito associado às condições impostas pelo MST. Uma vez que o movimento tem uma grande capacidade de mobilização de multidões ou de massas enormes de camponeses na luta pela terra, criando uma identidade provisória de sem-terra, mas depois de assentados, o movimento não cria opções para que esses trabalhadores permaneçam na terra. A crítica que Martins faz é mostrar que o MST não possibilita uma mudança de mentalidade por parte dos trabalhadores. O que faz com que o assentado passe a aderir a um processo de renda fundária de retalho. Ou seja, sem ter técnicas e condições financeiras adequadas, o assentado usa os mesmos

90 89 O principal objetivo de uma reforma agrária distributiva seria o de reduzir as relações de trabalho ligadas à concentração fundiária e ressocializar as populações deixadas à margem do desenvolvimento econômico e social [...] Desse modo, seu objetivo é o de criar efetivos mecanismos de integração e participação sociais [...] um dos principais aspectos da reforma diz respeito, justamente, à dimensão democrática de sua reinserção social nas oportunidades do presente (MARTINS, 2003, p. 33). Por isso, é fundamental ter o camponês como protagonista na luta pela terra e na construção das políticas e ações em torno da RA. Isso significa que ela não deve se limitar somente a um número de assentamentos e desapropriações, mas ter como preocupação central ampliar a agricultura familiar como um sistema econômico e político e que esteja de forma efetiva nas mãos das famílias que se acham em processo de ressocialização e politizando a luta pela terra 56 : O essencial é que haja um setor ponderável da sociedade reivindicando a ampliação do lugar da agricultura familiar no sistema econômico e que em parte essa agricultura familiar esteja nas mãos de pessoas que ressocializaram na luta pela reforma agrária e nela se politizaram (Id., 2004, p. 104). Essa visão nos possibilita afirmar desde já que o sujeito social de qualquer reforma agrária é o camponês e os membros de sua família. Martins (2003, 2004) nos apresenta uma concepção centrada, portanto, na perspectiva de que este sujeito deve ser o protagonista de reivindicações e de direitos sociais em torno da RA, já a partir dos conflitos em torno da terra. Os verdadeiros beneficiados não são e nem devem ser o Estado, nem os movimentos sociais; mas antes, os camponeses marginalizados e explorados pelo capital. Por isso, para a realização e concretização de qualquer plano governamental de RA, é necessário colocar o camponês no centro do debate, mas não somente colocá-lo, deve-se fazer com que ele seja o construtor-participativo (MARTINS, 2003). mecanismos vivenciados anteriormente para lucrar na terra do assentamento, por meio da renda da terra imposta a terceiros, inclusive a outros assentados: [...] os sem-terra reconstituem uma mediação insidiosa e, frequentemente, aderem à procura de lucro fácil que o aluguel das suas terras a terceiros lhes proporciona, mecanismo este que ele qualifica de renda fundiária de retalho, porque praticada por pobres (MARTINS, 2003). É importante deixar claro que entendemos que a RA deve possibilitar a mudança na mentalidade dos assentados, principalmente, no sentido da construção de ações mais participativas e de autonomia. Porém, entendemos que os trabalhadores rurais participam do movimento sem-terra tendo como objetivo central o acesso a uma nova forma de sobrevivência para depois pensar em segurança e autonomia. Eles buscam primeiramente uma libertação e afastamento da vida anteriormente vivida. Por isso, concordamos com Sabourin (2008), ao afirmar que o assentado usa de várias estratégias para ter acesso à terra, inclusive à renda da terra, porém, esta não é calculada e tem a mesma centralidade do jogo de interesses dos latifundiários: [...] os candidatos e beneficiários da reforma agrária tendem a adotar estratégias enviesadas ou até ilegais para poder ter acesso à terra ou aos apoios públicos no âmbito de estruturas que não correspondem a seu perfil e a suas aspirações (SABOURIN, 2008, p. 171). 56 A perspectiva do camponês como um sujeito expropriado e explorado pelo capital possibilita ver na luta pela terra uma expressão política desse sujeito contra a sua real situação de expropriado, sendo esta luta uma saída à precária inclusão na terra, como uma tentativa de acabar com a submissão ou sujeição imposta pelo capital. Uma expressão política de negação de seu presente. Uma luta que está centrada no esforço de conseguir construir um território camponês de vida e de trabalho (MARTINS, 2003).

91 90 Com base nessa perspectiva, entendemos que a RA é uma questão histórica do tempo presente, uma temporalidade aberta de vários impasses, conflitos e contradições. Mas que se o seu debate e a sua realização passa por um grande desencontro histórico entre o que se fala e o que se faz em termos de concretização de fato: No Brasil, se usa instantemente (e significativamente), em alguns setores preocupados com as questões sociais [...] Isso é bem a indicação de uma duplicidade de protagonismo político: de um lado, o de quem se incomoda com os problemas sociais e fala e, de outro, o de quem precisa de solução para os problemas que vive e supostamente não pode falar por si mesmo (MARTINS, 2003, p. 166). Por isso, a noção de desencontro é entendida aqui como fruto de discursos e ações/práticas em torno do protagonismo político na realização e concretização da RA: Um dos aspectos complicados do problema da reforma agrária no país refere-se ao desencontro histórico entre a questão agrária e o discurso sobre a questão agrária, que aos poucos se inscreveu na consciência nacional (Ibidem, p. 165). Referenciados em Martins (2003), observamos que o debate da RA no Brasil (e digase de passagem, na realidade em estudo) se estabelece em torno do desencontro entre os discursos que contestam e as práticas que possibilitam ganhos dos que podem se beneficiar nesse processo. Um desencontro que se estabelece no antagonismo entre o Estado e o MST, e que as famílias de camponeses ficam nesse entre meio, tornando-se meros expectadores da disputa. Um embate a partir do que se diz e o que se faz, entre o que se propõe como solução e o que supostamente não precisa dessa solução. Um desencontro que se dá basicamente entre o grande discurso ou grande diagnóstico e o pequeno discurso ou pequeno diagnóstico : No geral, o grande diagnóstico dos primeiros ultrapassa o pequeno diagnóstico do efetivo sujeito social de necessidades. Na maioria das vezes, as necessidades imediatas de grupos circunscritos. Nem sempre as transformações profundas implícitas nas primeiras, são inevitáveis em face das mudanças limitadas anunciadas pelas segundas. [...] O que faz com que a prática fundada no pequeno diagnóstico raramente corresponda, de fato, ao projeto histórico anunciado no grande diagnóstico. E, certamente, não correspondem ambos ao diagnóstico das possibilidades históricas efetivas, de que as crises constituem um anuncio e a consciência social viabilizada pelos grupos de mediação constitui um limite de compreensão e uma limitação da ação (Ibidem, p. 172). Para o autor, o grande discurso ligado ao Poder é constituído pelo que é dito e feito em termos de RA pelos agentes de mediação 57, com destaque para o Estado e os 57 Por agentes de mediação, Martins (2004) afirma serem grupos que têm consciência de que os camponeses não sabem que são destituídos social e politicamente.

92 91 movimentos sociais, principalmente, o MST 58. Esses dois agentes tentam protestar e propor soluções aos problemas do campo no Brasil sem ouvir os trabalhadores rurais sem-terra, os verdadeiros protagonistas e vítimas da concentração da terra no Brasil (MARTINS, 2003). Num processo de estamento reivindicante, que fala e reivindica em nome de terceiros, em nome dos pobres (Ibidem, p. 166), pelo que se busca dar a voz a quem não tem voz 59 (Ibidem, p. 166). Enquanto isso, os pequenos discursos ligados aos poderes são constituídos pelos discursos e ações das famílias de camponeses pobres que lutam pela terra e que trabalham nela 60. São os discursos gestados na vivência diária, construídos na caminhada histórica. Esses discursos e ações em torno da RA, traço próprio das mediações, cercam e bloqueiam a imaginação e a criatividade social e política dos mais pobres, impedindo que o sujeito social da RA tenha um projeto social próprio e eficaz. Toda a verbalização que se constrói e tem a RA como centro não é capaz de permitir que as famílias camponesas sejam as protagonistas e as verdadeiras beneficiadas. A mediação que se dá por discursos e práticas sociais gera o problema de não emancipação do trabalhador e impossibilita uma inserção social digna de transformação histórica 61. Elas possibilitam lutas políticas que se espalham pelo Brasil e na realidade em estudo, mas não a emancipação (NAVARRO, 2002). 58 Martins (2004) tece duras críticas às formas de ação do MST, observando que os interesses do movimento não correspondem aos interesses e necessidades das famílias assentadas. Segundo o autor, existe uma dificuldade atual dos movimentos sociais em trazer mudanças reais para a sociedade civil. No tempo da ditadura, o surgimento dos movimentos sociais foi uma novidade e uma expressão social do florecer de novos sujeitos sociais. Esses movimentos sociais se tornaram protagonistas naquele momento histórico. Porém, as atuais demandas e os discursos em torno da reforma agrária não constituem nas verdadeiras necessidades dos pobres do campo. Há um processo em que os que verdadeiramente precisam da reforma agrária são tutelados e não compreendem as ações e vocabulários dos quem buscam resolver os seus problemas. A questão do vocabulário da luta não coincide com a do vocabulário da vida. 59 Numa tentativa de compreensão dos impasses históricos de fora para dentro, os discursos de tutela dos camponeses pobres do campo se constroem como uma necessidade de que alguém fale por eles. Isso faz da luta pela terra e pela reforma agrária uma disputa dos agentes de mediação e não dos próprios trabalhadores rurais. E esse embate se apresenta como desencontro entre ideologia, discurso e necessidade/situação social (MARTINS, 2003). 60 Entendemos que esses discursos são os discursos dos homens lentos. É importante pensar o homem comum como importantes protagonistas da história. O camponês é no seu tempo e no seu modo de vida um sujeito com diferentes momentos históricos e com um conjunto de resíduos de consciência. Por isso, o camponês traz na sua essência uma série de contradições que se combinam e se superam, como também, novos momentos, novas situações e as novas possibilidades. Em outro trabalho, mas dentro da mesma temática, Martins já chamava nossa atenção para o fato seguinte: Desconhecer essas contradições não ajuda nem um pouco a firmar uma legítima bandeira de reinvindicação social. Essas contradições são justamente indicativas de como as pessoas e os grupos sociais, ao longo das gerações, podem se transformar profundamente em direção a um ser humano crescentemente humanizado, emancipado e dotado de grande senso de justiça (MARTINS, 2004, p. 112). 61 Fazendo uma análise a partir do MST, Navaro (2002) mostra que esse movimento tem uma grande capacidade de mobilização de pessoas pobres do campo, porém, não consegue a partir dos territórios dos assentamentos rurais novas formas de emancipação. Centrando sua crítica no modelo de organização dos assentamentos do

93 92 Isso faz com que os assentamentos rurais enquanto materialização da RA e territorialização da luta pela terra das famílias camponesas se constituam em: a. um instrumento de ordem do Estado nas áreas de conflitos e embates da luta pela terra, empreendidas pelas famílias de camponeses em torno dos movimentos sociais e b. um território que cria um intervalo temporário nas aspirações dos trabalhadores rurais durante o período de luta social (MARTINS, 2003). De forma didática e numa tentativa de clarear empiricamente o que estamos afirmando teoricamente, basta tomarmos alguns exemplos, com base nos discursos levantados em campo, para entendermos melhor o desencontro entre o grande e pequeno discurso, a partir dos PA em Passira-PE. Quando os assentados são questionados a quem pertence o território dos assentamentos no qual moram e trabalham com as suas famílias, escutamos as seguintes respostas: Na verdade essa terra é do Governo Federal (INCRA). É um título de posse que você pode explorar, trabalhar, enfim, desfrutar da terra. Agora, esse tipo de posse só tem promessa para que depois de 10 anos... Não sei porque o governo não dá logo de uma vez!... Essa terra é da União! Isso aqui é da União! A gente não tem posse porque não tem documento nenhum. A gente não pode ir no banco, não pode fazer um projeto, um empréstimo, não pode. A gente não tem documento da terra. Isso é certo? Errado! Muito errado! Continuo escravo! De certa forma, continuo escravo. Não é escravo do fazendeiro, mas é agora escravo da associação, que é criada em cada assentamento [...] Eu continuo escravo, não do fazendeiro, mas da União! (Discurso assentado/entrevista pré-teste, Assentado PA Varame I). É do INCRA! Olhe, isso aqui é nosso porque a gente lutou por isso, mas o INCRA deu. [...] A gente tem documento comprovando que somo assentado. Mas comprovando uso campeão não tem. Só pode pegar depois de dez ano [...] temos que pagar 150 reais por ano. [...] Eu tenho uns papel ai que comprava que nos somo assentado [...] Eu tenho como prova que sou assentado! Dono (da terra) não! (Discurso assentado 3, PA Independência). Também, quando questionados sobre quem pode contribuir para melhorar a vida das famílias assentadas (em termos de trabalho e vida), temos como resposta: Tá uma coisa que eu não sei! Acho que só o Governo mesmo! [...] Aqui é tá todo mundo por si! Abandonado! (Discurso assentado/entrevista pré-teste, Assentado PA Varame I). Se questionados com relação ao papel do INCRA e do MST, verificamos uma falta de clareza no processo de luta pela terra e pela RA: O que aconteceu comigo (e os outros assentados): o MST ocupa a terra, correu atrás de cesta básica, pra dá aos assentados (ocupantes) passando fome em baixo de uma barra de lona, pra gente se manter ali e não ir trabalhar e ir embora. Pra gente sigurar MST, o autor afirma que esse movimento não consegue criar caminhos de ações coletivas e de inserção das famílias assentadas a partir de suas ações nos territórios.

94 93 a barra! Mas quando siguremo a barra e o INCRA chego e escolheu as famia, por documento, que noi fumo escolhido por documento, que assentou, que aqui foi vinte e nove, o MST já vai cuidar em outro, em outro acampamento! Não vou jogar muita peda no MST não, que o serviço do MST é esse: é ocupar, é ocupar! E quem assenta é o INCRA! Quando o INCRA assenta, o MST já cumpriu a tarefa dele. O papel deles é esse! (Discurso assentado 3, Assentado do PA Independência). Esses pequenos discursos exemplificam que, na prática, a RA se constitui como esse verdadeiro desencontro entre o que se fala e o que faz, tanto por parte do Estado como do MST. Esses discursos acima deixam claro que os PA em Passira-PE não são vistos como territórios que foram conquistados pelas famílias, mas uma concessão do Estado. Há uma dominação do território por parte do Estado, que em certo ponto é aceito pelo assentado. Ao mesmo tempo, o MST é visto pelos assentados como um sujeito social que tem como papel central auxiliar na conquista da terra. Não há uma consciência de que ele faz parte desse processo ou uma concepção formada e clara da luta pela terra e a continuidade de novas conquistas no território dos PA. O que dificulta a construção de uma identidade de pertencimento com o território. Esses discursos nos fazem questionar: De quem é a responsabilidade pelos territórios dos assentamentos? A Reforma Agrária da maneira como está sendo conduzida está sendo interativa, participativa e possibilitando uma inclusão territorial efetiva para as famílias assentadas? Por isso, de protagonista nos discursos do Estado e do MST, os assentados passam a ser ocupantes de um território, mas não seus verdadeiros donos, sujeitos capazes de transformar assentamento em território de inclusão social, de vida e trabalho mais digno para si e os membros de sua família: Na verdade, a terra que o governo compra, fica mais para não sei pra que, do que para o assentado (Discurso assentado 9, PA Varame I). Nesse sentido, entendemos que o Estado, por meio dos Planos Governamentais de RA, conduz a RA numa tentativa clara de evitar mais conflitos na luta pela terra, contendo-os e sem questionar o regime de propriedade que os causa (MARTINS, 2003, p. 173). Por isso, conduz com procedimentos de intervenção tópica (Ibidem, p. 174), o que não possibilita avanços significativos no processo de inclusão social (e territorial). Como também, o MST muitas vezes não consegue organizar uma pauta específica para as famílias beneficiadas com a reforma agrária em seus PA. Há um discurso questionador das ações do Estado, que tem

95 94 uma pauta nacional em torno do quadro social, político e econômico do país 62, mas que não consegue organizar as reinvindicações a nível mais local, o da vida cotidiana dos PA. Muitas vezes, as ações do movimento limitam-se à luta pela terra, fazendo com que haja poucos avanços na luta pela reforma agrária e no processo de inclusão socioterritorial a partir do território dos PA 63 (SABOURIN, 2008). A segunda noção, nesta discussão, que norteia a pesquisa refere-se-à da disputa territorial em torno da RA. Trata-se de uma disputa que se estabelece em afirmações divergentes ou discursos díspares, por parte do Estado e do MST, e que se materializa nos territórios dos PA, fazendo com que esses territórios sejam frutos dos embates, posicionamentos, referências e temporalidades com relação à RA (FERNANDES, 2012). Para o autor, a experiência brasileira da RA está pautada em duas perspectivas básicas: a revolucionária, defendida pelo MST e a capitalista, defendida pelo Estado: A experiência brasileira de reforma agrária vem sendo analisada a partir de distintas visões: de uma perspectiva revolucionária como uma forma de resistência e enfretamento com o sistema capitalista e de uma perspectiva capitalista de inserção dos assentados no modelo de desenvolvimento do agronegócio. A distância entre estes dois pontos de vista é uma referência para entender porque a desapropriação, regularização e distribuição de quase oitenta milhões de hectares não é e é considerado reforma agrária (FERNANDES, 2012, p. 07). Essas duas perspectivas contribuem para explicar o desenvolvimento da questão agrária no país, porém, caminham em sentidos contrários e não dialogam entre si: Embora os 62 Basta citarmos a carta do MST, construída no VI Congresso Nacional do MST, realizado em fevereiro de 2015, e entregue à presidenta Dilma Rousseff. Nesse documento observamos dez pontos construídos pelo movimento neste congresso e que abordam e apontam de forma específica [...] os problemas sociais do campo, a realidade agrária e a necessidade urgente de fazer mudanças nas políticas agrárias do seu Governo. Além desses pontos, o movimento aponta para problemas que envolvem questões sociais, políticas e econômicas da sociedade brasileira como um todo: A sociedade brasileira padece de graves problemas estruturais, na educação, no sistema tributário, na saúde e no transporte público, que precisam de soluções e que foram denunciados nas mobilizações populares do ano passado. Esses problemas não se resolvem com medidas paliativas. É preciso mexer nos interesses dos bancos que se apropriam da maior parte dos recursos de nossos impostos. Por isso, nos somamos a dezenas de movimentos populares e organizações políticas para lutar por uma reforma do sistema político brasileiro, que hoje é refém dos interesses das empresas financiadoras. Defendemos a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte Soberana e Exclusiva para fazer uma reforma política. 63 A argumentação de Sabourin (2008) está muito próxima da de Martins (2003), quando afirma que o MST tem um discurso com relação à RA, porém não apresenta e não tem uma prática e um modelo alternativo aos projetos de assentamentos: Claro, graças à análise marxista da exploração do homem pelo homem, é possível denunciar a injusta distribuição da propriedade no Brasil e lutar pela reforma agrária, tanto como forma de ruptura dos mecanismos de expulsão de pequenos camponeses de suas terras, quanto de exclusão social dos trabalhadores sem-terra. Mas, qual seria o modelo alternativo? Uma vez obtida a terra, essa crítica não demonstra ter capacidade para propor um modelo social e econômico diferenciado. Os assentamentos são tudo menos uma experiência socialista ou revolucionária (SAOURIN, 2008, p. 172). Para o autor, o MST não tem ferramentas teóricas para analisar criticamente a realidade na qual se encontram os trabalhadores sem-terra: O MST, que não dispõe de ferramentas teóricas para fazer a análise crítica dessa desigualdade que constitui uma alienação dos sistemas de reciprocidade, persiste na retórica marxista e tenta alterar esses comportamentos por meio da mística, da disciplina, da obediência ao centralismo democrático etc (ibidem, p. 173).

96 95 campos de visão destes paradigmas se sobreponham, a maior parte dos espaços de seus modelos explicativos estão separados, não dialogam (Ibidem, p. 07). O que não faz da RA um projeto pronto ou impossível 64 de se realizar, mas com grandes dificuldades de realização, uma vez que dentro de uma disputa: A reforma agrária brasileira não é um projeto finalizado e tampouco um projeto impossível. Ela é uma disputa territorial realizada pela conflitualidade gerada pelo enfretamento de diferentes modelos de desenvolvimento [...] A maior parte das terras (em torno de 85%) que chamamos de reforma agrária não são resultados somente da ação do Estado que as desapropriou e ou regularizou, são também resultados das ações que iniciaram o processo de luta e as conquistaram através da luta pela terra nas ocupações realizadas pelas famílias sem-terra, organizadas em diversos movimentos socioterritoriais, predominantemente no MST (Ibidem, p. 07). Por isso, entendemos que os discursos do Estado, presentes nos Planos Governamentais, com destaque para os I e II PNRA, apresentam-se como uma verbalização da possibilidade real de realização da RA. Mas, as práticas não levam a sua concretização no sentido de uma desapropriação massiva de terras improdutivas e muito menos de um processo de ressocialização de famílias de camponeses pobres, a partir dos territórios dos PA, possibilitando uma nova realidade social, territorial e de mentalidade. Na maioria das vezes, entretanto, esses planos são, unicamente, respostas às ações dos movimentos sociais e não uma política propositiva do governo para resolver o problema, possibilitando a existência de contra-reforma agrária no país (MARTINS, 2003, 2004; OLIVEIRA, 2007). E fazendo com que os territórios dos PA sejam construídos com um forte caráter compensatório 65 (CARVALHO, 2004) e pensados de cima para baixo (FERNANDES, 2012). Já os discursos do MST estão pautados numa RA que se estabelece a partir da luta pela terra. Desde a sua formação, o Movimento Sem-Terra construiu um discurso e uma prática que têm por base lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país (MST, 2010, p. 09). Uma luta centrada na forma de ocupações, como única forma de acesso à terra e de recriação camponesas, e nos assentamentos como espaços de vida e de trabalho, mas acima de tudo da conquista e materialização da RA (MST, 2010). Dessa forma, o movimento possui um discurso e uma prática que foram e são construídos com base na 64 Aqui o autor parte da perspectiva de Martins (2004), ao apresentar a RA como sendo um projeto que se dá num diálogo impossível entre o Estado e os movimentos sociais. 65 Segundo Carvalho (2004), as políticas em torno da reforma agrária no Brasil se constituem como compensatórias, já que são unicamente respostas populistas às ações dos movimentos sociais: O que se depreende das práticas governamentais recentes com relação ao assunto, ao menos desde 1984, é que no limite se exercita uma política compensatória e populista de assentamentos de trabalhadores rurais sem terra como conseqüência dos processos contemporâneos de ocupação de latifúndios pelos próprios sem-terra. (CARVALHO, 2004, p. 114).

97 96 espacialização das ocupações e acampamentos e uma territorialização nos territórios dos PA (FERNANDES, 2012). Ao mesmo tempo em que o seu discurso é pautado numa clara crítica e base de questionamento de qualquer ato do governo/estado com relação à reforma agrária 66 (MARTINS, 2003, 2004). Sem com isso, ter uma prática efetiva em termos de alternativas aos territórios dos PA (SABOURIN, 2008). Dessa forma, os assentamentos rurais são frutos de uma série de discursos e práticas sociais do Estado e dos movimentos sociais em torno da RA. Discursos que não conduzem a uma real inclusão socioterritorial das famílias assentadas como protagonistas na construção dos territórios em tela em Passira-PE. Antes que tais territórios existam de fato, eles são realidades dentro de um quadro de relações de poder, permeando os discursos dos atores sociais e de suas práticas que não condizem com os discursos. Assim, nas próximas seções, retomaremos o quadro histórico de construção da RA no Brasil, a partir dos planos Governamentais, mostrando que há um processo de lutas, embates, avanços e recuos, entre o Estado e os movimentos sociais, a partir de seus discursos e suas práticas. E que toda essa disputa vai ter reflexo direto na realidade que estudamos. É importante deixar claro que a construção dos textos que se seguem tem por objetivo mostrar os desencontros e a disputa territorial entre o Estado e o MST. Com isso, não optamos por separá-los, mas construímos uma redação que parte dos Planos Governamentais em determinados períodos da história recente do país, e colocamos as práticas e a verbalização do MST com relação à luta pela terra e pela RA, numa tentativa de mostrar que ambos os discursos estão em conflito e dentro de um embate. Por isso, tomamos como base os PNRA como discursos do Estado e os Programas de RA do MST de 1984 e 1995, frutos, respectivamente, do I e III Encontro Nacional do Movimento, a Carta da Terra, construída em 2003, e o documento MST: lutas e conquistas Segundo Martins, (2004), a partir do MST, o governo sofre com vários questionamentos de suas ações com relação à reforma agrária:1. Reforma agrária enquanto regularização fundiária. 2. O questionamento de que a ação do governo sofre a impugnação da política de assentamentos rurais. 3. O questionamento ao número de reformas agrárias. 67 É importante destacar que o MST é um movimento social com atuação nacional e tem uma vasta literatura construída e que poderia servir de base para a análise do seu discurso em torno da luta pela terra e pela RA no Brasil. Optamos por esses documentos, por entendermos que eles se constituíram como centrais em seus períodos históricos e por se apresentarem como uma via alternativa às ações e políticas do Estado em termos de RA. O Documento MST: Lutas e Conquistas foi o primeiro a ser lido e constitui como um grande resumo da história do movimento, servindo de ponto de partida para a construção do raciocínio da tese. Também, utilizamos outros documentos, principalmente, notas divulgadas pelo Movimento, que eram como resposta ou posicionamentos contra as ações dos governos. E o livro Brava Gente: A trajetória do MST e a luta pela terra no

98 97 Esses discursos foram escolhidos de forma propositada, pois entendemos que eles têm sua gênese e construção dentro de um embate entre esses sujeitos. 3.2 DISCURSOS E PRÁTICAS EM TORNO DOS PLANOS GOVERNAMENTAIS DE REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL As seções que seguem, buscam retomar alguns dos discursos e das ações em torno da reforma agrária e dos assentamentos rurais nos diferentes períodos de governo no Brasil. Para isso, detivemo-nos nos discursos que embasaram e nas ações que possibilitaram (ou não) a condição das propostas em torno da realização da reforma agrária, a partir dos planos e dos projetos governamentais. Neste sentido, apresentamos, primeiramente, os discursos e as ações em torno do I Plano Nacional de Reforma Agrária, no governo de José Sarney, retomando incialmente, as ações em torno do Estatuto da Terra. Em seguida, fazemos um percurso pelas ações com relação à reforma agrária nos governos de Collor de Mello e Itamar Franco, para então retomar os discursos e as práticas em torno da despolitização camponesa e o aprofundamento das diretrizes neoliberais, a partir dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Esse percurso histórico é finalizado com o debate do discurso da esperança e as práticas da desilusão em torno do II PNRA nos governos do Partido dos Trabalhadores. Ao longo dessa trajetória, apresentamos como contraponto aos discursos do governo toda a verbalização e as práticas do MST com relação à RA. Para isso, apresentamos algumas tabelas e dados a fim de sustentar a hipótese de que os discursos governamentais são repostas às pressões dos movimentos sociais, não se caracterizando como uma diretriz do Estado e uma possibilidade de realização da reforma agrária que inclui de forma participativa e ativa os trabalhadores rurais. Brasil, por entendermos ser um aporte teórico importante e marco de referência para os estudos que têm por base o MST.

99 As políticas governamentais na década de 80, o I PNRA e a gênese do MST e do discurso da RA a partir da luta pela Terra Governos Militares e o Estatuto da Terra No período em que o Brasil era governado pelos militares, a política de desenvolvimento agrícola teve dois objetivos bem claros: reprimir e refrear as ações dos movimentos sociais no campo que cresciam desde o governo de João Goulart, com as Ligas Camponesas espalhadas pelo Nordeste e que ganhavam dimensão nacional; desenvolver o capitalismo nos espaços rurais do Brasil, por meio do incentivo e de uma série de privilégios que possibilitavam a ocupação do campo por empresas nacionais e internacionais, possibilitando com isso uma maior intensificação da concentração fundiária. Para isso, era necessário formular um discurso que possibilitasse disseminar a ideia de realização da reforma agrária (RAMOS FILHO, 2008) e que possibilitasse ações que manteriam o controle do campo pelos militares 68 (OLIVEIRA, 2007). Esse discurso se materializou já no primeiro ano do golpe, pelo Marechal Castelo Branco, na forma da Lei nº 4.504, de 30/11/64, a primeira lei de Reforma Agrária no Brasil 69 (STEDILE, 2012), chamada de Estatuto da Terra 70. Mesmo nascendo no seio de um regime ditatorial, o Estatuto da Terra pode ser considerado como uma lei progressista (STEDILE, 2012), pois trouxe pela primeira vez a institucionalização de questões ligadas a cadastro de todas as propriedades de terra do país, a 68 Como nos mostra Oliveira (2007), o Estatuto da Terra era uma lei que objetivava conter as manifestações no campo, onde a violência aos líderes camponeses era uma marca: Com o golpe militar de 1964 o projeto de reforma agrária de Goulart foi liquidado e procedeu-se a uma verdadeira caçada às lideranças sindicais que militavam nas Ligas Camponesas. Com a repressão, todo o movimento refluiu e parte de seus participantes teve que fugir, mudar de nome, etc. Entretanto, em função de um quadro de pressão social interna e sobretudo externa, coube ao primeiro governo militar do Marechal Castelo Branco ainda em 1964, a tarefa de assinar o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30/11/64) (OLIVEIRA, 2007, p. 120). 69 Segundo argumenta Stedile (2012), o Estatuto da Terra, mesmo tendo sido constituído no regime militar, foi a primeira Lei de reforma agrária no Brasil, fruto de uma demanda histórica e crescente dos camponeses pobres em torno da reforma agrária: Por paradoxal que possa parecer, embora tenha sido gerado no seio de uma ditadura militar, o Estatuto da Terra teve importante significação como resultado de um longo processo de luta de camponeses e de cidadãos comprometidos com a reforma agrária. A demanda por reforma agrária sempre foi um tema sempre presente na história do Brasil, reivindicada tanto pelos camponeses quanto por outros segmentos da sociedade, preocupados com as injustiças do campo. [...] Em 1964, com o golpe militar que destituiu Goulart, assume o governo o marechal Humberto Castelo Branco e em novembro do mesmo ano, edita o Estatuto da Terra (STEDILE, 2012, p. 146). 70 Segundo Ramos Filho (2008), o Estatuto da Terra era uma lei que se constituía num discurso que dissimulava a reforma agrária: Na prática, essa Lei não passou de uma estratégia para dissimular o discurso da reforma agrária (RA) (RAMOS FILHO, 2008, p. 199).

100 99 instituição da desapropriação de terras pelo Estado para fins de reforma agrária, as formas e critérios de pagamentos das áreas desapropriadas, a obrigatoriedade de pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR), além da perspectiva de formação de cooperativas e de ações coletivas em áreas reformadas (STEDILE, 2012). De forma resumida, o Estatuto da Terra foi criado e trazia como discurso básico e objetivo central a realização da reforma agrária no Brasil, por meio da promoção da justiça social e possibilitando novas formas de organização do espaço rural brasileiro. Conforme escrito no seu Art. 16: Art. 16 A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio (ESTATUTO DA TERRA in STEDILE, 2012, p. 126). Com isso, a lei mesmo promulgada dentro de um regime de ditadura militar apresentava um discurso que deixava claro a necessidade de uma modificação na estrutura fundiária do país, onde a reforma agrária, possibilitaria o acesso à terra a milhares de trabalhadores rurais, ao mesmo tempo que garantiria o cumprimento da função social das propriedades rurais, conforme escrito nos Artigos 02 e 18: Art. 2 É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta lei. 1 A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem (ESTATUTO DA TERRA in STEDILE, 2012, p. 120). Art. 18. A desapropriação por interesse social tem por fim: a) condicionar o uso da terra à sua função social; b) promover a justa e adequada distribuição da propriedade; c) obrigar a exploração racional da terra; d) permitir a recuperação social e econômica de regiões; e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência técnica; [...] (ESTATUTO DA TERRA in STEDILE, 2012, p. 127). Porém, todo esse discurso, na prática, se apresentou como uma série de ações que acabaram não saindo do papel, constituindo-se na grande farsa histórica da Reforma Agrária: A realidade passava a mostrar que, uma vez desarticulada a organização popular dos trabalhadores, o Estado, através de sua estrutura burocrática, iria realizar a tão esperada reforma agrária. Grande engano, pois foi o próprio Ministro do

101 100 Planejamento do então governo militar, Roberto Campos, quem garantiria aos congressistas latifundiários que a lei era para ser aprovada, mas não para ser colocada em prática. A história dos 20 anos de governos militares mostrou que tudo não passou de uma farsa histórica, pois, apenas na década de 1980, foi que o governo elaborou o Plano Nacional da Reforma Agrária instrumento definidor da política de implementação da reforma agrária. Com a criação do Estatuto da Terra, tratou logo o governo militar de extinguir a SUPRA e criar o IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, e o INDA Instituto Nacional de desenvolvimento Agrário. Mas, passaram alguns anos e a reforma agrária do Estatuto não saia do papel (OLIVEIRA, 2007, p. 121). Na verdade, o Estatuto da Terra, enquanto política agrícola dos militares, tinha uma proposta de RA que buscava manter a questão agrária nas mãos do Estado, não permitindo o acesso de fato dos camponeses à terra. Para isso, o Estatuto se constituía como um instrumento político dentre tantos outros no país do governo de controle de lutas sociais no campo e incentivo ao desenvolvimento da propriedade capitalista da terra (OLIVEIRA, 2007). Para se ter uma dimensão do controle imposto pelos militares, a realização da dita reforma agrária pelo Estatuto seria realizada por órgãos como o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola (INDA) e o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA). Cada uma destas pastas trataria, respectivamente, de questões de implementação da política agrícola e da agrária. Porém, esses órgãos eram ligados e subordinados à Presidência da República 71, uma vez que todo o corpo técnico era escolhido e subordinado aos interesses do executivo e do legislativo 72. Ao mesmo tempo, não houve uma ação conjunta e integrada entre esses órgãos do Estado responsáveis pela Reforma Agrária. Seus titulares representavam grupos de interesses diversos, um dos quais era ligado a grupos de usineiros 73 (MENDONÇA, 2010). Os governos militares tiveram no Estatuto da Terra uma lei que, apesar de ter sido instituída para atender as demandas sociais, não realizou a RA, mas possibilitou a modernização dos latifúndios, denominada de modernização conservadora (FERNANDES, 1994). Essa modernização representou a tentativa dos militares de transformar os 71 Art. 37. São órgãos 1 O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) é órgão autárquico, dotado de personalidade jurídica e autonomia financeira, com sede na capital da República e jurisdição em todo o território nacional, diretamente subordinado à presidência da República (ESTATUTO DA TERRA in STEDILE, 2012, p. 137). 72 Art. 38. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária será dirigido por uma diretoria composta de cinco membros, nomeados pelo presidente da República, dentre brasileiros de notável saber e idoneidade depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal. 4º Os membros do conselho técnico serão de nomeação do presidente da República, e o secretário executivo, de confiança e nomeação do presidente do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (ESTATUTO DA TERRA in STEDILE, 2012, p. 137). 73 Como afirma Mendonça (2010), o nome Eudes de Souza Leão escolhido para o INDA representava a vitória dos usineiros: [...] os nomes escolhidos demonstravam claramente tal impossibilidade: o presidente do Inda, Eudes de Souza Leão, além de usineiro era um elemento virtualmente oposto a Paulo de Assis Ribeiro, nomeado para o Ibra (MENDONÇA, 2010, p. 42).

102 101 latifúndios espalhados pelo território nacional em empresas rurais capitalistas, possibilitando com isso o desenvolvimento e modernização da agricultura no Brasil. Como afirmou Fernandes (1994), a política agrícola incentivou a dominação do espaço rural brasileiro por grandes empresas nacionais e internacionais: Com o objetivo de acelerar o desenvolvimento do capitalismo no campo, incentivando a reprodução da propriedade capitalista, durante os governos militares pós-64, foram criadas as condições necessárias para o desenvolvimento de uma política agrária, privilegiando as grandes empresas, via incentivos financeiros, que passaram a se ocupar da agropecuária (FERNANDES, 1994, p. 26). Na realidade, reiteramos que o Estatuto da Terra configurou-se como uma lei que possibilitou a ação estratégica dos militares para refrear dos movimentos sociais por meio do controle dos conflitos e das tensões sociais no campo 74 e o fortalecimento dos latifundiários, classe fortemente ligada e articulada em todas as esferas do governo 75. Por isso, não houve, no período do regime militar, questionamento e nem ações que combatessem a propriedade privada no campo do Brasil, condição básica para a correção das distorções dos espaços rurais do país. Respaldada em Lei, a RA dos militares terminou defendendo a propriedade privada (OLIVEIRA, 2007). Ao mesmo tempo, os militares construíram um aparato institucional que, por meio de órgãos estatais, inviabilizaram a reforma agrária, uma vez que modernizava latifúndios e promovia um intenso processo de vendas de terras na Amazônia brasileira 76 : O período de existência dos dois órgãos promotores da contra-reforma agrária dos militares, IBRA e INDA, de 1964 a 1970, esteve marcado por um processo intenso de corrupção, grilagens e venda de terras para estrangeiros. Aliás, este fato ganhou projeção nacional e internacional. Em nível nacional, acabou desembocando, em 1968, na constituição, pelo Congresso Nacional, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as denúncias veiculadas pela imprensa. O resultado da CPI, como se viu, foi a elaboração de um relatório Relatório Velloso e a comprovação do envolvimento de inúmeros brasileiros particulares e funcionários do IBRA e de cartórios públicos na grande falcatrua da venda de terras a estrangeiros, sobretudo na Amazônia. Como se pode observar, os órgãos coordenadores da reforma agrária IBRA e INDA estavam envolvidos nos episódios da venda de terras a estrangeiros, e parte da concessão de recursos internacionais obtidos junto aos organismos financeiros mundiais vinha amarrada à necessidade 74 Segundo argumenta Ramos Filho (2008), o Estatuto da Terra constituiu-se numa lei que possibilitou aos militares o controle dos conflitos e das tensões sociais no campo: Desta forma, tal Lei consagrou-se como um instrumento para o controle dos conflitos sociais e as desapropriações somente corriam com o intuito de amenizá-los. (RAMOS FILHO, 2008, p. 199). 75 Ver Mendonça (2010). 76 Ramos Filho (2008), afirma que o Estatuto da Terra foi uma lei que possibilitou a venda e compra de terras públicas no Brasil: [...] Havia a previsão de ocupação de frentes pioneiras para amenizar as tensões e os conflitos em outras regiões, para tanto, foi utilizado o programa de colonização pública e privada. Apesar de defender a desapropriação por interesse social, contraditoriamente, pregava também a compra, a doação e a venda de terras (RAMOS FILHO, 2008, p. 199).

103 102 de o governo brasileiro promover a reforma agrária uma das razões dos focos de tensão no campo durante o governo João Goulart (OLIVEIRA, 2007, p. 122). Ocupar a Amazônia era o discurso da realização da reforma agrária dos militares, sobre o lema integrar para não entregar. Com isso, os espaços vazios da Amazônia eram ocupados por aqueles que não tinham terra: terra sem homens para homens sem terras (OLIVEIRA, 2007; FERNANDES, 1994). Com tal perspectiva, criaram-se outros órgãos como a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Por meio desses órgãos, foram construídas rodovias, como a Transamazônica e a BR-364, ligando Brasília-Cuiabá-Porto Velho, que possibilitaram o deslocamento de trabalhadores pobres para servir de mão-de-obra barata na exploração de madeira e recursos minerais na região da Amazônia Legal 77. Daí a justificativa das ações pelo enunciado: vamos levar gente sem terra para uma terra sem gente. Uma ocupação das terras Amazônicas pela chamada colonização oficial, conforme o próprio Estatuto da Terra: Art. 55. Na colonização oficial, o Poder Público tomará a iniciativa de recrutar e selecionar pessoas ou famílias, dentro ou fora do território nacional, reunindo-as em núcleos agrícolas ou agroindustriais, podendo encarregar-se de seu transporte, recepção, hospedagem e encaminhamento, até a sua colocação e integração nos respectivos núcleos. Art. 56. A colonização oficial deverá ser realizada em terras já incorporadas ao Patrimônio Público ou que venham a sê-lo. Ela será efetuada, preferencialmente, nas áreas: I ociosas ou de aproveitamento inadequado; II próximas a grandes centros urbanos e de mercados de fácil acesso, tendo em vista os problemas de abastecimento; III de êxodo, em locais de fácil acesso e comunicação, de acordo com os planos nacionais e regionais de vias de transporte; IV de colonização predominantemente estrangeira, tendo em mira facilitar o processo de interculturação; V de desbravamento ao longo dos eixos viários, para ampliar a fronteira econômica do país (ESTATUTO DA TERRA). No caso específico da região NE, a política de incentivo à ocupação da Amazônia proporcionou um processo de esvaziamento, sobretudo com a retirada da força de trabalho e 77 Segundo Stedile (2012), o Estatuto da Terra também foi um instrumento do Estado para legalizar a venda de terras públicas no Brasil e de deslocar os tralhadores sem-terra para outras regiões fora dos centros de conflitos, tirando ou diminuindo a força dos movimentos sociais. Constituindo-se num programa de colonização: [...] serviu como o instrumento jurídico institucional tanto para a venda de terras públicas para grandes empresas quanto para ampliação de projetos oficiais de colonização dirigidos aos camponeses sem terra do Sul e do Nordeste. Com esse propósito, foram abertas novas e extensas rodovias em direção ao Oeste, em particular, a BR -364, ligando Brasília Cuiabá Porto Velho e abrindo o território de Rondônia para ocupação. Posteriormente, a Transamazônica, ligando Teresina a Itaituba, em meio à floresta paraense. E, finalmente, a Cuiabá Santarém, que deveria ligar a BR 364 à Transamazônica, encontrando- -se à altura da Rurópolis Presidente Médici, no Estado do Pará. Essas rodovias foram construídas para levar os contingentes de sem-terra e, ao mesmo tempo, possibilitar o deslocamento da mão de obra barata para a exploração da madeira, de minérios e demais recursos naturais da Amazônia. Como dizia o general Médici, vamos levar gente sem terra para uma terra sem gente. Em essência, até aí, o Estatuto da Terra, que fora concebido no marco de uma política de reforma agrária destinada a impulsionar o desenvolvimento do capitalismo, tem seu uso limitado à privatização de terras públicas e programas de colonização (STEDILE, 2012, p. 151).

104 103 controle dos conflitos existentes na tentativa de reforma agrária, como também, de desmobilização social. Por isso, Oliveira (2007) afirma que: [...] a região nordestina constitui-se como uma região de onde sairia a força de trabalho necessária para ocupar as terras da Amazônia e diminuindo com isso os conflitos sociais e minando qualquer tentativa de reforma agrária: Era necessário então fazer a reforma agrária do Nordeste na Amazônia ou, como preferia dizer o General Médici, [...] vamos levar os homens sem terra do Nordeste para as terras sem homens da Amazônia. PIN e INCRA foram as peças deste jogo (OLIVEIRA, 2007, p. 122). O próprio Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) (Decreto-Lei nº 1.110, de 09/07/70) é fruto desse processo de venda das terras amazônicas. Este foi um órgão criado com o objetivo de auxiliar o processo de colonização da região amazônica por mão-deobra de trabalhadores nordestinos, fazendo com que a reforma agrária passasse a ser sinônimo de colonização 78. Com isso, os militares deram um novo sentido a reforma agrária, ou seja, passaria a ser uma política de colonização que não mexia na estrutura fundiária do país. A preocupação real seria colonizar a Amazônia e ocupar a mão-de-obra revoltada do NE em grandes projetos agrominerais e agropecuários, na chamada Operação Amazônia (OLIVEIRA, 2007). Esse conjunto de ações dos governos militares impediu, portanto, a realização da Reforma Agrária no Brasil, constituindo-se numa contra-reforma agrária ou numa reforma agrária voltada para a Amazônia (OLIVEIRA, 2007): Nascia assim, da estratégia geopolítica da ocupação/exploração da Amazônia a chamada contra-reforma agrária do Estado autoritário, pois, passou-se a chamar de reforma agrária os projetos de colonização implantados na Transamazônica pelo INCRA (OLIVEIRA, 2007, p. 123). Tais ações praticamente possibilitaram o fortalecimento de grandes grupos empresariais no campo brasileiro sem mexer na propriedade da terra. Vários foram os programas criados nos governos militares que incentivaram o processo de concentração fundiária no Brasil, impedindo a realização da reforma agrária: o Programa de Integração Nacional (PIN), o Programa Especial para o Vale do São Francisco (PROVALE), o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLO AMAZÔNIA), o Programa de 78 Segundo afirma Mendonça (2010), com a extinção do INDA e do IBRA é criado em 1972 o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que favoreceu o processo de ocupação da Amazônia por empresas nacionais e estrangeiras, dentro do contexto da modernização da agricultura brasileira. Assim, afirma: A extinção de ambos os organismos em 1972 e sua substituição pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) veio significar um novo sentido a ser dado à reforma agrária no contexto de modernização da agricultura: no lugar da crítica à estrutura fundiária, colocava-se uma nova alternativa por intermédio da ocupação de terras públicas em fronteiras, o que tornava a reforma agrária um equivalente de colonização (MENDONÇA, 2010, p. 72).

105 104 Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (POLONORDESTE), o Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL). Oliveira (2007) destaca, ainda, o Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA) como sendo um exemplo significativo de ações governamentais que caminharam lado a lado com os latifundiários e que impediram qualquer ação de reforma agrária: Como se pode observar, o PIN, o INCRA e o PROTERRA formavam um esquema articulado nos bastidores do governo militar. Ou seja, criava o governo do General Médici um programa que simplesmente contrariava o Estatuto da Terra, que previa a desapropriação através de pagamento com Títulos da Dívida Agrária. Entretanto, através do PROTERRA, passava esta desapropriação a ser feita mediante prévia e justa indenização em dinheiro (alínea a do artigo 3). Estava estabelecido mais um elo da contra-reforma agrária, ou seja, uma reforma a favor dos latifundiários [...] Como se pode verificar, o PROTERRA era parte significativa da estratégia do governo no sentido de apresentar ao mundo financeiro capitalista e à própria sociedade brasileira que era possível fazer reforma agrária sem violência e sem a contrariedade dos latifundiários nordestino (OLIVEIRA, 2007, p. 124). Ao mesmo tempo, além de uma contra-reforma, os militares proporcionaram um processo de militarização da reforma agrária 79 (MARTINS, 1984), a qual se deu a partir da criação de todo um aparato institucional a favor dos latifundiários que possibilitou o agravamento da concentração fundiária e a repressão militar a toda e qualquer luta pela terra (MARTINS, 1984). Com isso, toda e qualquer manifestação a favor da reforma agrária era reprimida pelos militares. Daí a criação das Coordenadorias Especiais em áreas consideradas indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacional, ouvida a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (OLIVEIRA, 2007, p. 27), o que se desdobrou na criação, em 1980, do Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT) e o Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas (GEBAM) (OLIVEIRA, 2007). A atuação desses grupos criava um ambiente de repressão e de intervenção militar nas instituições que tinham a incumbência de solucionar ou apontar caminhos aos vários problemas ligados à reforma agrária nos espaços rurais do país (OLIVEIRA, 2007). A criação desses grupos era uma tentativa do Estado de ter um maior controle dos espaços rurais do país, primeiro de forma militar e depois de forma econômica (FERNANDES, 1994). Nesse caminho, a reforma agrária proposta pelos militares realizou a modernização técnica no campo do país e não mexeu na estrutura fundiária concentrada, 79 Sobre a militarização da questão agrária, ver Martins, 1984.

106 105 gerando uma série de problemas aos trabalhadores pobres e explorados pelos espaços rurais do Brasil: A implantação dessa política agrária a qualquer preço resultou, por um lado, na manutenção dos latifúndios no Nordeste, na criação de inúmeros latifúndios na Amazônia e na disseminação da agroindústria no Centro-Sul e Nordeste, através da monocultura para exportação (soja, laranja, etc.) e da cana de açúcar para produção do álcool. Esse processo intensificou a concentração de terras e a expropriação dos lavradores que, impossibilitados de reproduzir a agricultura familiar, migraram em direção à Amazônia e em maior número para as cidades (FERNANDES, 1994, p. 31). A atuação dos governos militares possibilitou a modernização do campo por várias empresas, mas também o aumento e a expansão dos latifúndios: Durante as duas décadas em que os governos militares estiveram no poder, garantiram a apropriação, por grandes grupos empresariais, de imensas áreas de terras e também o aumento do número e da extensão dos latifúndios. Financiaram as mudanças na base técnica de produção, a partir dos incentivos criados e do crédito subsidiado pela sua política agrícola. Proporcionaram assim a "modernização" da agricultura e a territorialização do capital no campo. Do outro lado, reprimiram toda e qualquer luta de resistência a sua política (Ibidem, p. 32). A consequência direta dessas ações dos militares em torno da execução do Estatuto da Terra foi a não realização da RA, o aumento da pobreza no campo, a forte migração de trabalhadores rurais para as grandes cidades 80 fundiária no país. e o aumento acentuado da concentração Por isso, esse período se caracteriza pela não realização da RA e, por conseguinte, por possibilitar forte concentração de terras, principalmente, a partir da ampliação do número e da área ocupada pelos latifúndios, conforme podemos observar nas tabelas abaixo. 80 Na mesma linha de raciocínio, Mendonça (2010) afirma que a política agrícola dos militares agravou ainda mais os problemas urbanos no país: Essa política agravou não somente a exclusão social no campo, mas também nas cidades, em consequência da intensa migração de contingentes de trabalhadores rurais desapropriados em direção às regiões metropolitanas, vindo a engrossar o contingente de miseráveis urbanos, igualmente desprovidos de direitos mínimos de cidadania (MENDONÇA, 2010, p. 73).

107 106 Tabela 1: Brasil Evolução da concentração fundiária no Brasil 1967/ Estabelecimentos rurais Imóveis Área ocupada % imóveis % área ocupada (ha) ,60% 51,10% (ha) ,40% 48,90% Total % 100% (ha) ,50% 48,60% (ha) ,50% 51,40% Total % 100% (ha) ,20% 43% (ha) ,80% 57% Total % 100% Fonte: Oliveira, 2007; Organizado: Hugo A. Morais. Segundo os dados levantados a partir de Oliveira (2007), com base em informações cadastrais do INCRA, observa-se que, no período de , houve um aumento de propriedades acima de 1000 ha, o que equivale à diminuição de estabelecimentos rurais com menos de 1000 ha. Uma consequência direta desse crescimento no número de latifúndios traduz-se pela ampliação da área ocupada por essas propriedades. Conforme vemos na tabela acima, a área ocupada pelos latifúndios passou de ha em 1967 para , um crescimento de ha, que no mesmo período passou de ha em 1967 para em para Esse caráter concentrador da terra, ainda, pode ser confirmado analisando os dados Tabela 2: Brasil Estrutura fundiária no Brasil Estabelecimentos rurais Imóveis Área ocupada % imóveis % área ocupada (ha) ,60% 50% (ha) ,40% 50% Total % 100% Fonte: Oliveira, 2007; Organizado: Hugo A. Morais. Observa-se que do total de que havia no Brasil, estabelecimentos rurais possuíam mais de 1000 ha. Esses imóveis ocupavam 50% de uma área total de 81 Segundo nos confirma Oliveira (2007), as informações levantadas pelo INCRA em 1992 só foram divulgadas em Porém, o autor adverte que, com a Lei (12/04/90) transferindo do INCRA para a Receita Federal do Ministério da Fazenda, a cobrança do ITR, o que levou a um planejamento e efetivação de um novo recadastramento dos imóveis rurais no Brasil.

108 no país. Se comparado aos imóveis com menos de 1000 ha, confirmamos a estrutura fundiária extremamente concentrada. Isso porque, os imóveis com menos de 1000 ha representavam um total de (97,6%) e ocupavam praticamente a mesma área 82. Com esse caráter concentrador, a luta pelo acesso à terra empreendida pelos camponeses em torno dos movimentos sociais só aumentou 83. O que possibilitou a gênese e a formação de vários movimentos socioterritoriais no país, destacando-se o movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Uma gênese pautada no discurso da reforma agrária a partir da luta pela terra MST: gênese e o discurso em torno da luta pela terra e pela Reforma Agrária A luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil é muito antiga, marcando a história do país. Vários foram os conflitos estabelecidos no território nacional e que retrataram bem o quadro intenso de embates. Desde o período colonial, com a escravidão, e ao longo da sua formação territorial e econômica, o Brasil é marcado pelo sonho e desejo da população pobre do campo de ter um pedaço de terra para morar e produzir. Vários são os exemplos das tentativas dessa população de conquistar o pedaço de chão. Até hoje temos marcas da permanência das questões mal resolvidas referentes aos diversos conflitos, mantidos e agravados, sobretudo, pela violência do Estado brasileiro. Basta vermos que, em diversas partes do país, no final do século XIX e início do século XX, houve vários movimentos de características messiânicas que eram vistos e interpretados pelo Estado como um misto de fanatismo religioso ou como movimentos pré-políticos, à maneira de misticismo e localismo camponês sem importância ou poder político. Conforme Martins (1995), esses exemplos podem ser citados, nos eventos da: Revolta das Trombas e Formoso, em Goiás; Guerrilha de Porecatu e conflitos nos municípios de Pato Branco, Francisco Beltrão e Capanema, no Paraná; as Ligas Camponesas e a sindicalização no Nordeste. Sem 82 Essa forte concentração de terras presente no país no período da ditadura militar, não é muito diferente se comparado a dados mais recentes, mesmo em governos mais populares, como os do Partido dos Trabalhadores (PT). 83 É válido destacar que com a chegada do MST e a espacialização da luta pela terra no cenário nacional, aumentou também, a mão de ferro do Estado como forma de controlar as diversas formas de insurgência e de resistência contra o governo e a sua política de desenvolvimento agrícola. Com isso, cresceu o número das mortes e conflitos nos vários espaços do país. O que faz com que Oliveira (2007) afirme que a violência tem sido a principal característica da luta pela terra no Brasil (OLIVEIRA, 2007, p. 136).

109 108 citar a Guerra de Canudos no Nordeste da Bahia e, no Sul do país, a Guerra do Contestado. (MARTINS, 1995). Ao mesmo tempo, todos esses movimentos sofreram duras perseguições, num verdadeiro combate contra os camponeses que lutavam pela terra e pela RA. Uma condição fruto da ação e da atuação da elite ruralista e do Estado brasileiro. Todas as lutas foram travadas e trazem como características principais um processo marcado pelo etnocídio e genocídio (OLIVEIRA, 2007), sendo a luta pela terra a parte da história (triste) do país: Os conflitos sociais no campo brasileiro e sua marca ímpar a violência, não são uma exclusividade apenas do século XX. São, marcas constantes do desenvolvimento e do processo de ocupação do país (OLIVEIRA, 2007, p. 135). Um dos poucos momentos em que o Estado tomou uma posição em favor dos camponeses e da reforma agrária pôde ser observado no governo de João Goulart ( ). Numa tentativa de evitar e conter maiores conflitos entre os camponeses em torno das Ligas Camponesas e de vários movimentos sociais do campo, o Estado começou a atuar no sentido de pensar num conjunto de leis que resolvesse os embates estabelecidos. Com isso, o Presidente Jango assinou uma série de Leis que apontavam para a RA no país: Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962; Lei Delegada nº 11, de 11 de outubro de 1962; Estatuto do Trabalhador Rural, que passava a permitir a implantação do sindicalismo rural (Lei nº de 2 de março de 1963). Além da realização de vários discursos em defesa da reforma agrária. Dentre eles, o histórico discurso no Comício da Central do Brasil, proferido em 13/3/1964. Esses posicionamentos de Jango levaram à tomada de poder no Brasil pelos militares, conduzindo o país a 21 anos de ditadura militar. Em Pernambuco, observava-se a atuação do governador Miguel Arraes no sentido de buscar alternativas, dentre elas o Acordo do Campo, para os problemas enfrentados pelos camponeses, o que possibilitou o aumento e a valorização das lutas dos movimentos sociais no estado. Assim, confirma Dabat (2003): No caso particular de Pernambuco, em consonância com tendências nacionais no governo João Goulart, o governo do Estado, com Miguel Arraes, esforçava para exercitar uma autoridade legalista e moderna num âmbito difícil onde movimentos sociais tomavam vulto (DABAT, 2003, p. 105). O MST é, assim, mais um dos muitos movimentos sociais que foram gestados nesse processo histórico da luta pela terra empreendida pelos camponeses nos vários espaços do país. Desde a sua gênese, de 1979 a 1984, e o início do seu processo de territorialização pelo

110 109 Brasil, em , o MST traz na sua essência a luta pela terra como o caminho necessário para se enfrentar os latifúndios e para a realização da reforma agrária. Não há um único fator que explique a gênese e formação do MST. De fato, o movimento é fruto de um contexto político e econômico específico, de forte endurecimento do Estado contra as organizações camponesas e de políticas de desenvolvimento agropecuário que impossibilitariam avanços da qualidade de vida dos camponeses pobres do país. O movimento tem na sua origem e formação um processo histórico de lutas e resistências empreendidas pelos camponeses contra o capital em vários estados do país. Daí a sua origem ser em vários estados de forma simultânea (STEDILE, 2005). Não havendo uma única ação ou momento, mas [...] um conjunto de momentos e um conjunto de ações que duraram um período de pelo menos quatro anos (FERNANDES, 1999, p. 40). Dentre os fatores históricos bem evidentes e que justificam a gênese do MST em muitos estados de forma simultânea, podemos destacar as transformações na agricultura brasileira com a modernização dolorosa, a luta pela democratização e contra o regime militar. Não é um movimento fruto de uma vontade do camponês, mas de um contexto político e histórico do país: Não podemos desvincular o surgimento do MST da situação política do Brasil naquela época. Ou seja, o MST não surgiu só da vontade do camponês. Ele só pôde se constituir como um movimento social importante porque coincidiu com um processo mais amplo de luta pela democratização do país. A luta pela reforma agrária somou-se ao ressurgimento das greves operárias, em 1978 e 1979, e à luta pela democratização da sociedade (STEDILE, 2005, p. 22). Toda a política de repressão às organizações camponesas impostas pelos militares, a partir da década de 70, do século XX, as transformações na agricultura brasileira, por meio da mecanização do campo, desencadeada pelos pacotes tecnológicos, possibilitaram a consolidação da forte concentração fundiária e um processo intenso de marginalização, expulsão do campo e resistência do camponês: [...] os camponeses expulsos pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas duas portas de saída o êxodo para as cidades e para as fronteiras agrícolas. Isso obrigou-os a tomar duas decisões: tentar resistir no campo e buscar outras 84 Segundo Fernandes (1999), a gênese do MST seria todos os processos e ações interligados que possibilitaram a formação do MST: De 1979 a 1984 aconteceu o processo de gestação do MST. Chamamos de gestação o movimento iniciado desde a gênese, que reuniu e articulou as primeiras experiências de ocupações de terra, bem como as reuniões e os encontros que proporcionaram, em 1984, o nascimento do MST ao ser fundado oficialmente pelos trabalhadores em seu Primeiro Encontro Nacional, realizado nos dias 21 a 24 de janeiro, em Cascavel, no estado do Paraná. Em, 1985, de 29 a 31 de janeiro, os sem-terra realizaram o Primeiro Congresso, principiando o processo de territorialização do MST pelo Brasil (FERNANDES, 1999, p. 40).

111 110 formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam. É essa a base social que gerou o MST. Uma base social disposta a lutar, que não aceita nem a colonização nem a ida para a cidade como solução para os seus problemas. Quer permanecer no campo e, sobretudo, na região onde vive (STEDILE, 2005, p. 17). Por isso, o próprio caráter contraditório do desenvolvimento do capitalismo no campo do Brasil explica o processo de surgimento do Movimento Sem-Terra. A mesma estrutura fundiária concentradora que exclui e explora, gerou o seu opositor (OLIVEIRA, 2007). Da mesma forma que o processo de expansão do capitalismo concentra a terra e possibilita a existência do mecanismo da renda da terra, essa estrutura cria e recria o camponês, mesmo que de forma precária e marginalizada, e, contraditoriamente, possibilitou o surgimento do MST e de outros movimentos socioterritoriais que lutam pela terra: Os camponeses, expulsos do campo e impedidos do acesso à terra, passaram a contestar a estrutura fundiária vigente. Organizados a partir das comunidades eclesiais de base das pastorais sociais, passaram a ocupar as grandes propriedades improdutivas. Dessa forma, nasceram as ocupações de terra pelos movimentos dos sem terra, que depois, em 1984/5, unificaram-se formando o MST. Portanto, a modernização da agricultura excludente em sua essência, gerou o seu oposto, a luta dos camponeses sem terra do Brasil pelo acesso à terra. As contradições aprofundadas no período do governo militar, geraram a base social para a luta pela reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 159). Daí porque podemos afirmar que se constituindo como parte histórica das lutas camponesas na busca do direito à terra e a melhores condições de vida e de trabalho 85, o próprio MST, enquanto movimento socioterritorial, é fruto do processo de expansão contraditória do capital no campo desencadeada pelos governos militares no Brasil: Este século passado, foi um século por excelência da formação e consolidação do campesinato brasileiro enquanto classe social. É por isso, que este camponês não é um camponês que na terra, entrava o desenvolvimento das forças produtivas impedindo, portanto, o desenvolvimento do capitalismo no campo. Ao contrário, ele praticamente nunca teve acesso à terra, é pois, um desterrado, um sem terra que luta para conseguir o acesso à terra. É no interior destas contradições que tem surgido os movimentos sócio-territoriais de luta pela terra, e com ela os conflitos, a violência (OLIVEIRA, 2007, p. 134). Nesse sentido, o MST é fruto da lógica desigual do capitalismo no campo do país: [...] o MST não é resultado de uma proposta política de um partido, não é fruto de uma proposta da Igreja, nem do movimento sindical. Embora tenha recebido apoio da conjugação dessas forças políticas. O MST é uma realidade que surgiu da lógica desigual do modo capitalista de produção. O Movimento é fruto dessa realidade e não das instituições (FERNANDES, 1999, p. 274). 85 Como afirma Oliveira (2007), o MST é mais um dos vários movimentos sociais que lutaram e lutam pela terra no país. É uma parte da história do campesinato no Brasil. Porém, este é o movimento mais organizado: O MST é parte desta luta do campesinato brasileiro, mas o MST é sem dúvida alguma, o principal desses movimentos, porque, é aquele que tem uma organização mais sólida, de caráter nacional (OLIVEIRA, 2007, p. 140).

112 111 E é a partir da década de 1980 que as ações e mobilizações dos camponeses contra o processo de exploração imposta pelo capital, ganham novos contornos. Pois, o MST conseguiu unir em torno da luta pela terra e pela RA milhares de camponeses numa verdadeira mobilização de expropriados para entrar na terra dominada pelo latifúndio, uma luta de negação do seu presente, da sua realidade: Não se está diante de um processo de luta para não deixar a terra, mas sim, diante de um processo de luta para entrar na terra. Terra que tem sido mantida improdutiva e apropriada privadamente para servir de reserva de valor e/ou reserva patrimonial às classes dominantes. Trata-se, pois, de uma luta de expropriados, que na maioria das vezes, experimentaram a proletarização urbana ou rural, mas que resolveram construir o futuro baseado na negação do presente. Não se trata, pois, de uma luta que apenas revela uma nova opção de vida para esta parcela pobre da sociedade brasileira, mas revela muito mais, revela uma estratégia de luta acreditando ser possível hoje, a construção de uma nova sociedade. Uma nova sociedade dotada de justiça, dignidade e cidadania (OLIVEIRA, 2007, p. 139). Constituindo-se numa luta para entrar, mas também, para permanecer na terra: [...] teimosamente os camponeses lutam no Brasil em duas frentes, uma para entrar na terra, para se tornarem camponeses proprietários, e em outra frente, lutam para permanecerem na terra como produtores de alimentos fundamentais à sociedade brasileira. São, portanto uma classe em luta permanente, pois os diferentes governos não lhes têm considerado em suas políticas públicas (OLIVEIRA, 2007, p. 134). Dessa forma, desde a gênese e sua formação, o MST faz da luta contra o capital, uma luta pela terra. Lutar para entrar e permanecer na terra eram o caminho necessário para se enfrentar os problemas vividos pelo camponês 86. Sendo a RA uma conquista que se alcançaria 86 É importante destacar que o MST traz na sua trajetória histórica de luta pela terra e pela RA, a necessidade da conscientização do camponês do seu processo de exploração e da necessidade de lutar para a conquista da terra. Nesse processo de gestão e organização do MST, é importante destacar a atuação ideológica da Igreja Católica através da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A CPT foi fundamental na constituição do movimento, uma vez que por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) houve um processo de socialização do camponês na luta pela terra. As CEB permitiram uma reflexão e conscientização do camponês com relação ao processo de exploração imposta pelo capital, a partir da modernização do latifúndio (FERNANDES, 1999). A atuação da Igreja foi fundamental para um processo de conscientização da luta pela terra empreendida pelo movimento (FERNANDES, 1999). De acordo com o Coordenador Nacional do MST, João Pedro Stedile (2005), a CPT teceu um papel decisivo na luta pela terra a ser desenvolvida pelo movimento. Essa pastoral social da Igreja aplicou a Teologia da Libertação na prática, conscientizando e mostrando aos camponeses a necessidade da luta pela terra: A igreja parou de fazer um trabalho messiânico e de dizer para o camponês: Espera que tu terás terra no céu. Pelo contrário, passou a dizer: Tu precisas te organizar para lutar e resolver os teus problemas aqui na Terra. A CPT fez um trabalho muito importante de conscientização dos camponeses (STEDILE, 2005, p. 20). Referências que estão presentes no debate do primeiro congresso do movimento: No campo, a ditadura militar reprimiu as organizações dos camponeses, seus líderes foram assassinados, presos ou exilados, e sufocou o debate e a elaboração teórica sobre a questão agrária no Brasil. O governo militar impôs uma política de modernização da agricultura, para atender a demanda urbano-industrial e do mercado externo, sem fazer reformas na estrutura fundiária. Modernização que aprofundou a exclusão social, aumentando o êxodo rural, as desigualdades tecnológicas e nas relações sociais no campo. Nesse contexto, cresceram as lutas populares em defesa da Reforma Agrária, pela reorganização sindical e contra o governo militar. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), surgida em 1975, foi muito importante na retomada das lutas e na organização dos camponeses. Além disso, mesmo com toda a repressão do regime militar, a luta pela terra continuou ocorrendo em todas as regiões do país (Fonte:

113 112 no Brasil no momento em que o camponês tivesse consciência dos seus problemas e os da sociedade: A luta pela terra se transforma em luta pela reforma agrária e, em consequência, num projeto político dos trabalhadores se estes, na sua luta, adquirirem consciência social para mudar a sociedade (STEDILE, 2005, p. 119). Por isso, o desafio do MST sempre foi massificar a luta pela terra (STEDILE, 2005). Massificar significa incorporar várias famílias dentro da mesma bandeira, buscando com que estas passassem a ter consciência da necessidade de lutar pela terra e por novos direitos, como escola, casa, trabalho, dignidade. Num processo de ressocialização e de libertação: O maior desafio é massificar a solução para isso, porque são milhões de pessoas envolvidas. O que o movimento faz é organizar alguns milhares. [...] Acreditamos que, se massificamos a luta, a solução se torna mais rápida, porque obriga o Estado também a ser mais rápido. [...] massificar significa incorporar enormes contingentes populacionais, envolver milhões. É libertá-los, quer dizer, construir a dignidade para todos (Ibidem, p. 120). Por isso, o movimento é fundado no Primeiro Congresso Nacional, realizado em Curitiba-PR, de 29 a 31 de janeiro de Esse Congresso buscou reunir todos os trabalhadores que lutavam pela terra e pela RA no Brasil e definir os objetivos e a formalização de como deveria ser o MST (STEDILE, 2005). Neste congresso, o movimento apresenta um documento, como Plataforma dos Objetivos Gerais, contendo os seguintes princípios gerais e práticos: Princípios gerais 1 Lutar pela reforma agrária já. 2 Lutar por uma sociedade igualitária, acabando com o capitalismo. 3 Reforçar a luta dos sem terra com a participação dos trabalhadores rurais, arrendatários, meeiros, assalariados e pequenos proprietários. 4 Que a terra esteja nas mãos de quem nela trabalha, tirando o seu sustento e de sua família. 5 O Movimento dos Sem Terra deve sempre manter sua autonomia política. Princípios práticos 1 Unir-se na luta pela conquista da terra. 2 Articular as nossas lutas através de encontros, visitas e trocas de experiências. 3 Fortalecer o Movimento no nível estadual e nacional. 4 Sensibilizar a opinião pública para os nossos direitos. 5 Unir a luta do campo, da cidade e dos irmãos indígenas. 6 Ampliar o Movimento nos municípios e regiões onde ainda não está organizado. 7 Buscar apoio das entidades, sindicatos, igrejas e denunciar os que não assumem a luta. 8 Divulgar as lutas e conquistas. 9 Envolver e pressionar os sindicatos para que assumam, junto conosco, a luta e ajudar os novos sindicatos e também derrubar as diretorias pelegas. 10 O acesso à terra deve ser através da pressão e da luta. 11 Não queremos terra por crédito fundiário, por BNH rural ou outros projetos e fundos de terra, que só desviam as verdadeiras soluções para nossos problemas.

114 Os que conquistam a terra, trabalhar, cuidar e mostrar que quer a terra para trabalho e não para negócio. 13 Os que conquistam a terra devem continuar apoiando o Movimento, inclusive materialmente. 14 Em todas as conquistas de terra, deve-se discutir formas alternativas de posse e cultivo da terra. 15 Somos contra a colonização do Norte e exigimos reassentamento dos sem terra nos Estados de origem (PROGRAMA DE REFORMA AGRÁRIA DO MST in STEDILE, 2012, p. 178). Esses princípios deixam claro que o Movimento afirmava ser a RA uma ação em que o camponês tenha acesso à terra como propriedade sua, passando a ser um desafio que deveria estar presente na agenda do país. Ao mesmo tempo, buscava-se consolidar a organização do MST nacionalmente, dando uma unidade aos camponeses e às lutas isoladas pelo país, tornando-se de fato um movimento de massas. Numa concepção clara de que sem a luta pela terra, a RA e as mudanças sociais não sairiam no país: Foi o MST, no entanto, que cristalizou a luta de massas como uma necessidade. Esse negócio de assembleia, de abaixo-assinado para o governo, de audiência, isso não resolve, era o que pensávamos. Poderia até ser um aprendizado pedagógico para as massas, mas se não houvesse luta de massas a reforma agrária não avançaria [...] O movimento era para lutar por terra, mas decidimos fazer também a luta pela reforma agrária e por mudanças sociais, porque vivíamos o clima das lutas pela democratização do país (STEDILE, 2005, p. 50). Mas de que forma lutar pela terra? Como organizar os camponeses dispersos nas cidades e no campo? Como organizar e massificar a luta pela terra e realizar a RA nas várias regiões do país? Numa tentativa de organizar a luta, a estratégia básica dos sem-terra foi a da ocupação de terras improdutivas, públicas e particulares, em que a RA só sairia a partir do momento em que ocorressem ocupações: [...] reforma agrária somente iria avançar se houvesse ocupação, luta de massas. Sabíamos que, mesmo com o novo governo, civil agora, não dava para ficar esperando pela boa vontade das autoridades. O povo deveria pressionar. Essa era nossa garantia (Ibidem, p. 51). As ocupações de terras públicas e privadas improdutivas através dos acampamentos e, posteriormente, com a formação de assentamentos, seriam uma das principais estratégias do MST (e de outros movimentos sociais) para chamar a atenção da sociedade e do Estado com relação à necessidade de ações que visem agilizar o processo de RA no país (GOHN, 2003). Centrados nessa estratégia, desde a sua gênese, com a sua massificação a nível nacional, o movimento colocou as ocupações como forma de luta possível e caminho para a

115 114 realização da RA no Brasil, num processo claro de espacialização e territorialização da luta pela RA (FERNANDES, 1999). Sendo essa uma ação determinadora: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, desde sua gênese, tem sido a principal organização no desenvolvimento dessa forma de luta. É impossível compreender a sua formação, sem entender a ocupação da terra. O MST nasceu da ocupação da terra e a reproduz nos processos de espacialização e territorialização da luta pela terra. Em cada estado onde iniciou a sua organização, o fato que registrou o seu princípio foi a ocupação. Essa ação e sua reprodução materializam a existência do Movimento, iniciando a construção de sua forma de organização, dimensionando-a (FERNANDES, 1999, p. 10). A ocupação foi a forma de acesso à terra, bem como a condição básica para criação e recriação do camponês enquanto classe social. Foi a estratégia encontrada de unir o camponês na luta contra a exploração e expropriação do capital: [...] luta pela terra é uma luta constante contra o capital. É a luta contra a expropriação e contra a exploração. E a ocupação é uma ação que os trabalhadores sem-terra desenvolvem, lutando contra a exclusão causada pelos capitalistas e ou pelos proprietários de terra. A ocupação é, portanto, uma forma de materialização da luta de classes (Ibidem, p. 271). Daí por que todo o discurso do MST foi construído em torno de uma luta em que a ação se daria pelo enfrentamento direto ao latifúndio. Basta ver alguns lemas que permeiam essas ações 87 : Terra para quem nela trabalha (1979/83), Terra não se ganha, terra se conquista (1984), Ocupação é a única solução (1986), Ocupar, Resistir, Produzir (1989) 88. Essas palavras de ordem estabelecidas constituíram e constituem a base para as ações do MST. Era o caminho que justificaria o processo de acesso à terra pelo camponês e de conscientização e construção de uma nova sociedade, por meio da RA. As conquistas que passam pelo enfrentamento à concentração fundiária da terra, por meio de um programa de desapropriações rápidas para milhões de famílias sem-terra, e da conscientização do sujeito sem-terra dos seus problemas e os que a sociedade enfrentam, refere-se ao processo que: A luta pela terra se transforma em luta pela reforma agrária e, em consequência, num projeto político dos trabalhadores se estes, na sua luta, adquirirem consciência social para mudar a sociedade (SETEDILE, 2005, p. 119). 87 Concordamos com Oliveira (2007), quando afirma que se faz necessário entender as palavras de ordem do MST, ou seja, os seus discursos, para se entender as suas ações em torno da luta pela terra e pela RA no país. Ou conforme afirma Stedile (2005), essas palavras refletem os períodos do MST: As palavras de ordem retratam bem esses períodos do MST (STEDILE, 2005, p. 55). 88 A própria palavra de Resistir é empregada aqui como uma tentativa de fortalecer a ideia de construção de uma nova sociedade a partir dos territórios dos assentamentos e de resistência na luta pela aterra: Ocupar, resistir e produzir fortaleceu o sentimento de que tínhamos de gerar uma nova sociedade nos assentamentos, organizar a produção, ter um modelo para a agricultura [...] O Congresso Nacional de maio de 1990 refletiu um pouco esse sentimento. Não mudamos a palavra de ordem, mas nos agarramos mais no resistir. Percebemos que a luta de massas iria ser mais dura, que seria o período de construir organicamente melhor os assentamentos (STEDILE, 2005, p. 52).

116 115 Por isso, podemos afirmar que o discurso da luta pela terra e pela RA se constitui numa prática com o MST. Nacionalizando essa luta, o movimento conseguiu aglutinar e unir várias pessoas pobres do campo em torno de uma única causa, dando sentido aos seus anseios e às suas lutas. A pressão pela RA se faz pelo enfrentamento direto ao latifúndio, num processo em que os territórios dos PA tornam-se frações do espaço conquistado pelas famílias que lutam e participam do movimento. Com base nessa concepção, o MST atuou e atua no país questionando as propostas de RA apresentadas nos Planos Governamentais, a partir de um processo de espacialização e territorialização da luta pela terra O I Plano Nacional de Reforma Agrária: o discurso da Reforma Agrária possível Em 1985, com o fim dos governos militares, é chegada a fase da Nova República no Brasil, período que se caracterizou como de transição democrática com a posse do primeiro presidente civil do Brasil, após o regime militar. O início da Nova República tem como vice-presidente José Sarney, logo após a morte do então presidente eleito, Tancredo Neves. Naquele período, o cenário nacional em termos das lutas pela terra e pela reforma agrária se caracterizava pelos grandes conflitos. Só para ter uma dimensão dos problemas sociais do campo no Brasil, envolvendo questões ligadas a conflitos pela terra, no primeiro ano da Nova República, houve no campo 768 conflitos (Tabela 3), herança da política agrícola dos militares que impedia o acesso à terra por parte dos trabalhadores rurais. Destacaram-se os conflitos por terra, bem como aqueles relativos aos bóias-frias, agrotóxicos, garimpo, sindical, trabalhista, seca e outros. Só os conflitos pela terra somavam 636 casos, representando 83% do total. Tabela 3: Brasil Assassinatos e prisões em conflitos do campo 1985 Conflitos Número Assassinatos Prisões Conflitos por terra Demais conflitos Total Fonte: CPT, 1985; Organizado: Hugo A. Morais. Além desses conflitos, nesse mesmo período, tem-se a formação e o início do processo de territorialização do MST em escala nacional, extrapolando a região Sul e espalhando-se pelas regiões Sudeste e Nordeste (FERNANDES, 1999). Foi em 1985 que o MST realizou o

117 116 seu primeiro Congresso Nacional e deu início à sua consolidação como um dos movimentos mais territorializados do país: Já em Janeiro de 85, ocorreu na Cidade de Curitiba/PR, o 1 Congresso Nacional dos Sem terra, com a participação de doze estados do Brasil, sendo que no final de 3 dias de estudo e discussão foi tirado o Documento principal do Congresso, aprovado pelos 1500 delegados presentes onde contém as propostas dos sem terra de todo o país para a Reforma Agrária drástica e radical. Este congresso muito contribuiu para o avanço e divulgação do Movimento na opinião pública, e principalmente no trabalho de articulação e organização dos municípios e nos Estados. [...] A nível nacional o Movimento Sem Terra está praticamente consolidado em 14 estados, sendo que em cada estado o Movimento tem uma estrutura de organização própria, sem ser rígida, imposta de cima pra baixo, mas surgida de acordo com as necessidades e características das lutas desenvolvidas (MST, 1986, p. 05). Dentre os discursos do movimento, a ocupação de terras era vista como única forma de possibilitar o camponês ter acesso à terra e realizar a RA. Um discurso que dava unidade e possibilitava a formação e organização de acampamentos e assentamentos: Ocupação é a única solução (1985) e Ocupar, resistir, produzir (1989 a 1994) (STEDILE, 2005). Só em 1986, já se somavam quarenta e dois acampamentos em onze estados do país (MST, 1986). Assumindo os compromissos de Tancredo Neves, Sarney traz um novo discurso com relação à Reforma Agrária, anunciando a sua realização por meio do I Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), durante o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado entre 25 e 27 de maio de 1985, em Brasília, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). O I PNRA foi apresentado como uma proposta de um plano de RA que acalmaria as tensões sociais e possibilitaria uma ação rápida para atender as necessidades e as aspirações de milhões de trabalhadores rurais: Chegou agora o momento da ação. E essa necessidade de atender a aspiração da Nação não decorre apenas do imperativo constitucional, do compromisso formal da Aliança Democrática e da opção que fez o Governo por uma firme ação no campo social. Trata-se, como afirmou o Presidente José Sarney, de resgatar uma dívida social para com milhões de trabalhadores do campo e, também, de oferecer uma resposta ao desafio do Brasil ao seu próprio destino (MINISTÉRIO DA REFORMA E DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 1985). Este primeiro PNRA tinha como proposta realizar uma reforma agrária justa e de interesse dos trabalhadores rurais sem terra, não muito diferente da do Estatuto da Terra. Para

118 117 isso, contaria com a participação de vários segmentos da sociedade civil, principalmente, com representantes dessa classe 89 : A Reforma Agrária é um anseio de toda a sociedade, que reclama justiça social e oportunidades livres e iguais de trabalho, bases essenciais do projeto de consolidação da democracia em nosso País. Um projeto de Reforma Agrária com esse significado e dimensão não pode se restringir à atuação sistemática do Estado nem só aos próprios beneficiários diretos. Exige a participação ativa e permanente de todos os setores sociais. Dessa forma, é imprescindível que seja estimulada e garantida a participação das diferentes instituições, sindicatos, associações, grupos e movimentos através de canais que a viabilizem democraticamente, objetivando constante interação com os trabalhadores assentados (MINISTÉRIO DA REFORMA E DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 1985). Com isso, esperava-se que a RA saísse do discurso e se constituisse em uma prática, figurando-se como prioridade do governo: A Reforma Agrária figura como uma das prioridades absolutas no contexto da política de desenvolvimento do País, caracterizando-se como programa da área social orientado para atender a população de baixa renda, migrantes ou moradores de zonas de tensão social e, de um modo geral, os produtores rurais. Os objetivos deste Plano foram estabelecidos em consonância com as diretrizes gerais de ação do Governo da Nova República (MINISTÉRIO DA REFORMA E DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 1985). Isso era colocado para acontecer com base na realização dos seguintes objetivos: Geral: Promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, adequando-a às exigências de desenvolvimento do País através da eliminação progressiva do latifúndio e do minifúndio, de modo a permitir o incremento da produção e da produtividade, atendendo, em conseqüência, os princípios de justiça social e o direito de cidadania do trabalhador rural. Específicos: a) contribuir para o aumento da oferta de alimentos e de matérias-primas, visando ao atendimento prioritário do mercado interno; b) possibilitar a criação de novos empregos no setor rural, de forma a ampliar o mercado interno e diminuir a subutilização da força de trabalho; c) promover a diminuição do êxodo rural, procurando atenuar a pressão populacional sobre as áreas urbanas e os problemas dela decorrentes; d) contribuir para aumentar os benefícios sociais proporcionados pelas inversões públicas direta ou indiretamente relacionadas com o desenvolvimento do setor rural; e) promover a paz social no meio rural, mediante a erradicação dos focos de tensão (MINISTÉRIO DA REFORMA E DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 1985). Inicialmente, o I PNRA objetivava assentar 3 milhões de famílias sem terra em dez anos e um total de sete milhões ao término de 15 anos (OLIVEIRA, 2007). Desse total, 1,4 milhão de famílias deveriam ser assentadas em quatro anos ( ), da seguinte forma: 89 Conforme argumenta Feliciano (2003), a proposta em torno do I PNRA foi formulada a partir de grupos de ações que tinham como objetivos garantir e atender as necessidades das famílias dos trabalhadores rurais. No Congresso da CONTAG foi construído o 1º roteiro com as contribuições dos grupos de ação para a proposta da RA. Roteiros que apresentam fortes críticas aos latifundiários: Essa forma de organização garantiria a participação e o atendimento das necessidades dos trabalhadores rurais. Por outro lado, se declarava totalmente contra os grandes proprietários, fazendo com que a reação dos conservadores contra a proposta de Reforma Agrária viesse a florescer. Ainda mais depois que a proposta foi lançada em um Congresso de Trabalhadores Rurais (FELICIANO, 2003, p. 40).

119 mil (1985), 300 mil (1986), 450 mil ( ) e 550 mil ( ), encontra-se nas regiões Norte e Nordeste os maiores números de assentamentos e de áreas desapropriadas (Tabela 4). Tabela 4: Metas do I PNRA 1985/1989 Região do Brasil Famílias beneficiadas (mil) Área (ha) Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul Total Fonte: Oliveira, 2007; Organizado: Hugo A. Morais. A conquista dessas metas se daria por meio da desapropriação de terras que não estivessem cumprindo com a sua função social: As desapropriações serão pagas mediante indenização: Os objetivos fixados pelo PNRA serão alcançados, principalmente, através de desapropriações para fins de assentamentos rurais, atendendo à determinação legal que impõe como dever do Poder Público a extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que contrariem a sua função social (art. 13 do Estatuto da Terra) (MINISTÉRIO DA REFORMA E DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 1985). Todo esse discurso possibilitou uma série de expectativas entre os movimentos sociais e grupos de apoiadores do PNRA, com destaque para: CONTAG, MST, Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Campanha Nacional pela Reforma Agrária (CNRA) formada pela Comissão Pastoral da Terra, ABRA, Conselho Indigenista Missionário, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Instituto Brasileiro de Pesquisas Socio- Econômicas (IBASE) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Porém, como afirmou Mendonça (2010), assim como havia acontecido com o Estatuto da Terra, o I PNRA era de fato uma tentativa de conter a violência crescente no campo do Brasil, principalmente, pelas questões ligadas as ocupações de terras no país 90. Com isso, o PNRA: 90 Conforme observa Mendonça (2010), o I PNRA nada tinha de tão especial ou diferente do Estatuto da Terra. Inclusive José Gomes da Silva, um dos redatores do Estatuto da Terra, foi um dos responsáveis pela elaboração do PNRA: Capitaneado por José Gomes da Silva, um dos redatores do antigo Estatuto da Terra e fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), o recém-criado Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (Mirad) deu início aos trabalhos de 17 grupos de ação, destinados a esboçar a proposta do PNRA. [...] o PNRA nada tinha de excepcional ou revolucionário. No entanto, procurou resgatar um aspecto fundamental do já finado Estatuto da Terra: a preocupação em neutralizar alguns setores de grandes proprietários mediante o fio condutor da penalização da propriedade especulativa, desapropriando o que foi definido como terras improdutivas (MENDONÇA, 2010, p. 91).

120 119 [...] visava conter a violência que grassava no mundo rural brasileiro vitimando dezenas de trabalhadores abatidos sob a pecha de invasores da propriedade privada na mesma proporção em que crescia a capacidade de organização e mobilização dos homens do campo [...] (MENDONÇA, 2010, p. 91) É diante dessa conjuntura histórica de mobilizações e pressões sociais vindas do campo que o governo Sarney lança a proposta do I PNRA. E de forma até estratégica, pois o lançamento da proposta se dá num congresso de trabalhadores, fazendo crer que a RA se constituía como uma das prioridades 91 : No documento, a reforma agrária aparecia consignada como uma das prioridades do novo governo e era igualmente explorado ao máximo o potencial reformista daquele documento que lhe embasara: o antigo Estatuto da Terra, do governo Castelo Branco, reapropriado e ressignificado para a nova conjuntura histórica (Ibidem, p. 93). E para solucionar esses problemas da violência e atender as demandas sociais dos trabalhadores rurais, o I PNRA apontava as desapropriações e o assentamento de milhares de famílias de camponeses sem-terra como uma das prioridades, fazendo valer a questão da função social da terra. Ao mesmo tempo, o Plano governamental conferia ao Estado o direito de desapropriar terras que não estivessem cumprindo a sua função social 92. A forma diferencial do I PNRA com relação a ações anteriores seria a forma de obtenção de terras para RA. Essa obtenção não se daria por colonização, mas pela desapropriação por interesse social: Assim, o principal instrumento de obtenção de recursos fundiários previstos pelo PNRA consistiu na figura jurídica da desapropriação por interesse social, o que faria toda a diferença com relação aos planos anteriores. [...] Diferentemente dos esboços reformistas anteriores, o PNRA previa mecanismos tais como a colonização, a regularização fundiária e os tributos tão somente como complementares, e não como alternativas centrais para a obtenção de terras (Ibidem, p. 93). O que possibilitava indicações de mudanças na estrutura fundiária: A proposta previa, ainda, a participação das entidades representativas dos trabalhadores em todas as fases do processo, além de resgatar a tese, presente no Estatuto da Terra, da seleção de áreas prioritárias de reforma agrária, isto é, 91 Mendonça (2010) afirma que a o lançamento da proposta do PNRA no Congresso da CONTAG indicava um caminho e uma possibilidade real de ações significativas em termos de modificações na estrutura fundiária do país, principalmente, com o crescimento da cena política da democratização. 92 Mendonça (2010) deixa claro que a forma diferencial do I PNRA com relação a outras ações anteriores seria a forma de obtenção de terras para reforma agrária. Essa obtenção não se daria por colonização, mas pela desapropriação por interesse social: Assim, o principal instrumento de obtenção de recursos fundiários previstos pelo PNRA consistiu na figura jurídica da desapropriação por interesse social, o que faria toda a diferença com relação aos planos anteriores. [...] Diferentemente dos esboços reformistas anteriores, o PNRA previa mecanismos tais como a colonização, a regularização fundiária e os tributos tão somente como complementares, e não como alternativas centrais para a obtenção de terras (MENDONÇA, 2010, p. 93).

121 120 sinalizando a possibilidade de transformações fundiárias em áreas mais amplas e não apenas ações pontuais junto a focos de conflito (Ibidem, p. 94). A possibilidade de mexer ou alterar a estrutura fundiária do país era uma possibilidade inaceitável para alguns setores da sociedade. Por isso, essa proposta do I PNRA sofreu uma série de pressões, principalmente, da classe dos latifundiários do país, em torno da União Democrática Ruralista (UDR) 93. A UDR afirmou-se como um movimento dos latifundiários contra a proposta do PNRA e das ideias da CONTAG, do MST e, principalmente, contra o camponês. Segundo Mendonça (2010), esta foi uma forma de agremiação de classe que impediu qualquer tentativa de realização da RA no governo de Sarney. Assim, foi definida: [...] uma agremiação política que veio transgredir todas as regras do convívio democrático, mediante a criação de milícias privadas e de grupos de resistência e solidariedade na defesa da classe no que, aliás, diferiu em muito das demais entidades classistas. O processo de enfrentamento das iniciativas governamentais de reforma agrária na conjuntura da transição democrática pressupôs, ademais, um embate entre as agremiações focalizadas, envolvendo duas questões específicas: a) a disputa pelo monopólio da representação legítima do conjunto da classe proprietária rural e b) a disputa pelo envolvimento de atores diversos, mesmo que não ligados à grande propriedade, como bases de sustentação e respaldo político de sua atuação (Ibidem, p. 26). Essa organização política dos latifundiários era uma tentativa clara de inviabilizar a realização das metas do PNRA. E é a partir das reações da reação dos latifundiários que há um recuo do governo com relação ao I PNRA. Isso porque a UDR apresentou discursos agressivos com relação às propostas de RA e teve ações fortes, a partir dos deputados e senadores que compuseram a bancada ruralista no Congresso Nacional e que estavam ligados aos proprietários de terra, no sentido de diminuir as propostas do governo 94 : A UDR foi fundada em agosto de 1985, em Goiânia, durante um leilão de gado para arrecadar dinheiro entre os latifundiários, para lutarem contra a reforma agrária do I PNRA e contra o avanço do movimento dos camponeses sem-terra. Foi por isso que dados divulgados pelo MIRAD, em 1987, revelavam que esta organização tinha sistematicamente orientado os latifundiários desapropriados a ingressarem com ações na justiça, visando, no mínimo, embargar judicialmente a reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 127). Com a força e uma intensa atuação no Congresso Nacional, a UDR conseguiu barrar as propostas do I PNRA, impedindo a realização da RA e fazendo do plano um discurso que 93 Sobre a origem, organização, objetivos e atuação da UDR no processo de impedimento da realização RA no I PNRA e nos impasses com relação ao tema na Constituinte de 1985, ver Mendonça (2010). 94 Daí o porquê do fracasso da RA na Nova República. A atuação da UDR o confronto direto não só ao governo, mas aos camponeses sem-terra. Um confronto em defesa dos interesses dos latifundiários: O motivo: a falta de vontade política e a prevalência da defesa dos interesses dos latifundiários organizados na UDR - União Democrática Ruralista (OLIVEIRA, 2007, p. 126).

122 121 na prática não se concretizou; constituindo-se num documento mais retrógrado do que o Estatuto da Terra, principalmente nos pontos que tratam da desapropriação de terras e com a presença de arrendatários e/ou parceiros: O I PNRA já trazia retrocessos em relação ao Estatuto da Terra, como por exemplo, o artigo (artigo 2, 29, do Decreto n ) onde está expresso que se evitará, sempre que possível, a desapropriação de latifúndios. Outro ponto, foram os imóveis que tivessem grande presença de arrendatários e/ou parceiros, onde as disposições legais fossem respeitadas. Dessa forma, o I PNRA já apareceu trazendo distorções em relação ao Estatuto da Terra (Ibidem, p. 126). Essa vitória da Bancada Ruralista fez com que o I PNRA fosse sepultado de vez. O Plano foi aprovado pelo presidente Sarney em outubro de 1985, mas com grandes modificações nas ações e propostas originais. Inclusive, com a extinção do Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD), recriando-se o INCRA, através do Decreto nº , de 26/06/1989, vinculado ao Ministério da Agricultura 95. Essas ações do governo federal impossibilitaram a realização da Reforma Agrária e estabeleceram o fracasso das metas. Conforme aponta Oliveira (2007): Os números referentes ao primeiro ano do Plano (85/86) traziam já, o fracasso da reforma agrária da Nova República de José Sarney. Havia sido atingido apenas 5% das metas das famílias assentadas e da área desapropriada. [...] Norte apenas 18% das terras previstas foram desapropriadas; no Nordeste, 6%; no Sudeste, 4%; no Sul, 10%, e no Centro-Oeste. 12%. Depois de dois anos, menos de 10% das metas do I PNRA tinham sido implantadas (Ibidem, p. 126). Com isso, o governo de Sarney chegou ao seu final com um total de famílias assentadas, o que representou um percentual de 6,4% da meta estabelecida pelo I PNRA, e uma área de 4,8 milhões de hectares (1,5% do total estabelecido). As regiões Norte e Nordeste detinham o maior número de famílias assentadas, conforme observamos na tabela abaixo. O I PNRA termina igual ao Estatuto da Terra, ou seja, como discursos que não se materializaram na prática. 95 A recriação do INCRA foi segundo Oliveira (2007) uma forma de mostrar que o I PNRA terminou igual aos governos militares: [...] reforma agrária da Nova República terminava institucionalmente da mesma forma como os governos militares a tinham tratado, no âmbito do Ministério da Agricultura (OLIVEIRA, 2007, p. 129).

123 122 Tabela 5: Brasil Famílias assentadas no I PNRA 1985/1989 Região do Brasil Famílias assentadas (mil) Norte Nordeste Centro-Oeste Sul e Sudeste Total Fonte: Oliveira, 2007; Organizado: Hugo A. Morais. Vale ainda destacar que a atuação da UDR foi tão intensa que teve reflexos e prejuízos profundos para a classe de camponeses. A própria Constituição Federal foi aprovada em 1989 sem grandes avanços na questão da Reforma Agrária 96. O debate em torno da carta constitucional envolveu vários setores da sociedade, dentre eles o dos trabalhadores rurais com relação ao tema da Reforma Agrária 97 : [...] luta cada vez mais organizada dos trabalhadores passou a ser travada na Constituinte, onde se buscava uma resposta política da sociedade brasileira em geral, em relação ao Estado, aos latifundiários, e à reforma agrária em particular (Ibidem, p. 128). As disputas entre os trabalhadores e os latifundiários se mostraram tão intensas entre seus representantes, fazendo do Congresso Nacional um espaço de lutas: O plenário do Congresso Nacional tornou-se, durante a Constituinte, um espaço de lutas por excelência. De um lado pelo avanço em direção a uma Reforma agrária ampla, geral e irrestrita, de outro pelo recuo cada vez maior na proposta reformista em marcha no governo Sarney (Ibidem, p. 128). O resultado final dessas disputas foi um grande retrocesso com relação ao tema, uma vez que houve uma vitória dos latifundiários: A chamada "bancada ruralista, com o apoio declarado da UDR, venceu a batalha parlamentar, e a Constituição de 1988 passou a conter uma legislação mais reacionária do que o próprio Estatuto da Terra (Ibidem, p. 128). Essa vitória da UDR e a derrota dos trabalhadores camponeses podem ser materializadas no texto da constituinte, principalmente, nos artigos 185 e 186, quando 96 Com relação à atuação da UDR e à construção da Constituinte, ver na Revista ABRA, Ano 18 - Nº 2 - Agosto/Novembro 1988 os seguintes artigos de José Graziano da Silva: Reforma agrária na Constituição Federal de 1988: Unia avaliação crítica; Ao vencedor as batatas - As implicações da Vitória da UDR na Constituinte; 97 Segundo Oliveira (2007), a atuação da UDR foi tão forte na Constituinte que os ruralistas impuseram grandes derrotas aos trabalhadores: A ampliação das ações da UDR ocorreu durante a Constituinte de Os ruralistas conseguiram barrar no plenário do Congresso Nacional a proposta de uma Reforma Agrária ampla, geral e irrestrita, e inscreveu na nova Carta constitucional uma legislação mais retrógrada que o próprio Estatuto da Terra dos militares de 1964 (OLIVEIRA, 2007, p. 127).

124 123 abordam, respectivamente, a questão das desapropriações de terra para fins de Reforma Agrária e a função social da terra: Art São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade produtiva. Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Art A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Esses artigos, ao tratarem das desapropriações e da função social da terra, abriram muitos precedentes aos latifundiários, como questões que envolviam pontos relativos aos requisitos para desapropriação, as formas de indenização dos latifundiários, além das formas de avalição do não-cumprimento da função social da terra 98 (FELICIANO, 2003) As políticas governamentais na década de 90, a RAM e o discurso contra o neoliberalismo Governos Collor, Itamar e o discurso desenvolvimentista de FHC O início dos anos 1990 é marcado pela eleição de Fernando Collor de Mello, sendo este o primeiro presidente eleito em eleição direta após a ditadura militar. A chegada de Collor ao poder do executivo traz o discurso de assentar, entre 1990 a 1994, 500 mil famílias de camponeses sem-terra. Porém, uma das primeiras atitudes do novo governo foi a nomeação de Antonio Cabreae para Ministro da Agricultura, uma pessoa de família de latifundiários e 98 Como apontou Feliciano (2003), o debate em torno da produtividade da terra, gerado pela bancada ruralista, possibilitou um atraso nos processos de desapropriação: Com esta confusão estabelecida, a bancada ruralista no Congresso conseguiu alterar e dificultar os processos de desapropriações, pois o termo propriedade produtiva abriu margem para várias interpretações, implicando dificuldades de ordem legal, agronômica e operacional (FELICIANO, 2003, p. 45). Também, a forma de desapropriação se daria por um pagamento justo e por indenização prévia: As discussões no Congresso chegaram à conclusão de que o processo de desapropriação deveria passar pelo pagamento prévio das indenizações, com preço justo, sem definir critérios de fixação, diferentemente do Estatuto de 1964, que estabelecia o pagamento posterior das indenizações (FELICIANO, 2003, p. 45).

125 124 ligado à UDR. Por isso, até sofrer a cassação/renúncia, o governo somente assentou próximo de 30 mil famílias (OLIVEIRA, 2007). Na verdade, o projeto governamental de Collor estava alicerçado numa perspectiva de abertura econômica do país, através de um amplo programa de privatizações e redução do poder do Estado, além da repressão e criminalização dos movimentos sociais: Foi o pior governo que tivemos, não só pela corrupção que ele simbolizou, mas sobretudo pela forma como tratou as organizações sociais e as questões sociais do país (STEDILE, 2005, p.54). No pouco tempo de mandato na presidência da República, Collor conseguiu reprimir o MST e afetar a luta pela terra com a diminuição na territorialização dos assentamentos em todo o país. As ações do governo se davam por meio de invasões em secretarias estaduais do movimento e com a prisão de várias lideranças. Além do uso da violência contra os camponeses envolvidos em ocupações de terra, por meio da Polícia Federal: O governo Collor, além de não fazer a reforma agrária, resolveu reprimir o MST. Acionou a Polícia Federal, o que é uma agravante, pois não é uma tropa de choque, é repressão política pura. O agente da Polícia Federal é um sujeito mais preparado, mais sedimentado. Não batiam mais nas nossas canelas, batiam na cabeça. Essa repressão nos afetou muito, muita gente foi presa. Começaram a fazer escuta telefônica. Tivemos, no mínimo, quatro secretarias estaduais invadidas pela Polícia Federal (Ibidem, p. 69). Além da pressão imposta, houve todo um processo de desmantelamento da máquina e das políticas públicas para a agricultura, finalizando financiamentos e créditos, além de instituições que davam assistência técnica, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agrícola (EMBRAPA). Afetando diretamente o MST: Vamos agora para o segundo período, que foi de 1990 a De maneira geral, foi um período de crise do movimento. A partir de sua vitória eleitoral, Collor acabou com as políticas públicas para a agricultura, com o crédito, com a Emater, que poderia dar assistência técnica, e com a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa). No início de seu governo houve um desmantelamento geral. O Banco do Brasil quase foi à falência. Isso gerou uma crise ainda maior na agricultura, que já vinha numa crise de lascar. É lógico que essa crise afetou também os assentamentos e o próprio movimento como tal (Ibidem, p. 103). Com a saída de Collor por um processo de impeachement, o vice-presidente Itamar Franco assume o posto e traz uma postura mais branda se comparado à do seu antecessor (RAMOS FILHO, 2008), constituindo-se num alívio muito grande para o MST (STEDILE, 2005). Sendo reconhecido pelo MST como um político muito importante, por ser mais aberto ao diálogo e por apoiar a RA:

126 125 O presidente Itamar Franco, em função das circunstâncias que o levaram a ocupar o cargo, se viu obrigado a nos receber em audiência. Foi um reconhecimento político muito importante para a nossa luta. A partir disso, se abriram portas no governo, até então inacessíveis para o MST (Ibidem, p. 106). A eleição do sociólogo, professor universitário e político Fernando Henrique Cardoso (FHC) para presidente da república foi alcançada com um forte discurso de combate à inflação, a partir da possibilidade de controle monetário com o plano real, e da necessidade de um novo projeto nacional-desenvolvimentista, calcado na inserção do país na economia internacional: A estratégia para a definição de um novo modelo de desenvolvimento passa, no curto prazo, por três políticas, embora nelas não se esgote. É preciso garantir a estabilidade do ambiente econômico. Isto significa não só a estabilidade da moeda, mas também a definição de regras básicas sobre investimentos e a redefinição dos esquemas de financiamento. É preciso dar indicações claras sobre quais são nossas prioridades em matéria de política econômica: que setores vão constituir os pólos de expansão, que setores estarão abertos ao capital estrangeiro e como se montará a infra-estrutura para a sustentação de novos investimentos nacionais e internacionais. É preciso, ainda, formular uma política clara em relação às regras negociadas internacionalmente, porque em paralelo ao processo de globalização existe um outro processo, que é o da uniformização legal de normas internacionais relativas a investimentos e comercialização. Nenhum país pode mais passar ao largo deste último processo, que abrange desde normas sobre propriedade intelectual até normas sobre a preservação do meio ambiente. Face a ele, trata-se de preservar os interesses nacionais, num processo de negociação bilateral ou multilateral, em todos os foros necessários. Em suma, o programa do Governo Fernando Henrique propõe um modelo economicamente sustentado, em que o Brasil encontre formas próprias de manter, a longo prazo, o seu processo de desenvolvimento; um modelo ambientalmente sustentável, em que as preocupações com a ecologia estejam efetivamente presentes em todas as decisões; um modelo de participação ativa na vida internacional, de abertura para o mundo, que conduza o Brasil a procurar no sistema internacional oportunidades para a realização dos interesses nacionais e, fundamentalmente, um modelo de justiça social onde o direito à vida com dignidade seja garantido (CARDOSO, 2008, p. 03). Toda proposta e programa de governo estavam alicerçados nesse discurso desenvolvimentista, caminho necessário para solucionar os vários problemas enfrentados pelo país, a partir de ações que ouvissem e atendessem aos anseios da sociedade: O projeto de desenvolvimento que apresentamos aqui é a nossa resposta a esse desafio. Não uma resposta tecnocrática, fria e acabada. Mas sim, o resultado aberto a novas contribuições de um esforço coletivo de repensar o Brasil de um ângulo democrático e social, ouvindo a sociedade e procurando responder aos seus anseios (Ibidem, p. 01). (grifo nosso) Porém, com a eleição de FHC abriu-se um espaço, novamente, para o avanço do projeto neoliberal no país, a partir do aumento da dependência externa, privatização do Estado nacional e de medidas antipopulares, principalmente, quando o assunto foi à questão agrária e

127 126 as ações para solucionar os problemas dos trabalhadores rurais sem-terra espalhados pelo Brasil 99 (ALENTEJANO, 2004). Ao assumir o poder, Fernando Henrique encontra esse cenário nacional de muito anseio da população, principalmente, dos camponeses que espalhados pelo campo, encontravam-se envolvidos na luta pela terra e pela RA, por meio dos movimentos socioterritoriais, com destaque para o MST. Só para ter uma dimensão dos problemas sociais que envolviam as questões ligadas aos conflitos no campo, de 1990 a 1994 houve conflitos de terras, segundo dados do CPT. Porém, só no primeiro ano de mandato, 1995, o governo FHC viveu com uma realidade de 440 conflitos de terra, representando 23% dos conflitos dos quatro anos anteriores. Em termos de ocupações de terra, entre 1990 a 1994, ocorreram no Brasil 438 ocupações que envolveram famílias de camponeses (Tabela 6). Só em 1995, houve 186 ocupações, 42% do percentual anterior, envolvendo famílias, representando um aumento de 53% com relação ao período de 1990/94. Crescimento que segue no ano de Com ocupações que chegaram a 450, envolvendo famílias sem-terra. Tabela 6: Brasil Ocupações de terra e famílias envolvidas 1990/ Ocupações de terra Pessoas envolvidas Fonte: DALUTA; Organizado: Hugo A. Morais. A chegada de FHC ao cargo de presidente da república se deu num cenário em que o MST se apresentava como o catalisador das pressões populares para solucionar os problemas da questão agrária no Brasil. O MST era o movimento social que pressionava mais fortemente o governo por mudanças na estrutura fundiária, encabeçando grande parte das ocupações no país, sendo visto pelos camponeses como o movimento capaz de auxiliar na conquista pelo acesso à terra (OLIVEIRA, 2007). Daí porque se pode afirmar que a ascensão de FHC à presidência da nação veio acompanhada da necessidade urgente de ações que atendessem aos anseios e resolvessem a questão do não acesso à terra por parte de milhares de camponeses pobres. Principalmente, 99 Alentejano (2004) cita cinco características que caracterizam o governo FHC como anti-popular e neoliberal, com relação não só à reforma agrária: 1. Aumento da dependência externa, 2. Privatizações à custa do Estado, 3. Prioridade dada ao sistema financeiro, 4. Aumento das desigualdades sociais, resultado do aumento da lucratividade das empresas e empobrecimento dos trabalhadores e a 5. política anti-popular e o aumento do desemprego.

128 127 depois do fracasso das metas estabelecidas pelo I PNRA e da não continuidade do plano pelos governos Collor e Itamar. Esse crescente número de conflitos e de ocupações de terras no campo obrigava o governo a cumprir o seu discurso de campanha: Queremos uma sociedade solidária e mais justa, livre das inseguranças econômicas e sociais que a têm infelicitado. Queremos uma nação unida para trabalhar, crescer e eliminar as brutais desigualdades sociais e regionais, com cidadãos aptos a resolver seus próprios problemas e ajudar a resolver os do país (CARDOSO, 2008, p. 01). E foi diante desse quadro social tão desfavorável que FHC construiu de fato discurso sobre a RA, porém, fazendo uso de práticas e estratégias contrárias ao que era dito. Daí porque podemos afirmar desde já que, nos seus dois mandatos, FHC apresentou um discurso de como fazer a RA; mas, na prática, mostrou ações do não fazê-la. Afirmamos isso, uma vez que o governo Fernando Henrique, ao se utilizar de uma série de estratégias para refrear as ações dos movimentos sociais 100, inviabilizou a realização da RA, não trazendo soluções aos problemas do campo, mas, antes, aprofundaram-nos (OLIVEIRA, 2007). Numa tentativa de minimizar os efeitos dessa tensão social, o governo utilizou-se de meios que se constituíam como respostas duras e, na maioria das vezes, com o uso da violência, em torno das ações dos movimentos (OLIVEIRA, 2007). Fazendo com que os mandatos não houvessem uma política propositiva de solucionar o problema do campo no Brasil: A pressão social feita pelos movimentos sociais com a ampliação das ocupações pressionou o governo FHC a ampliar os assentamentos. Este fato mostra que a reforma agrária antes de ser uma política propositiva do governo é a necessidade de resposta à pressão social (Ibidem, p. 142). Na realidade, ao encontrar um quadro social muito difícil, o governo FHC em nenhum momento buscou soluções efetivas para enfrentar os reais problemas da pobreza, das desigualdades e do não acesso à terra de milhares de famílias. Antes, aprofundou os problemas existentes. As formulações governamentais para tentar solucionar as questões ligadas aos conflitos e às ocupações de terra nas várias regiões do país eram verdadeiramente uma tentativas de acuar o MST, usando, para isso, a tática de enfraquecimento direto (ALENTEJANO, 2000, 2004). O que possibilitou o avanço das perspectivas neoliberais (ALENTEJANO, 2000, 2004) no país. 100 Oliveira (2007) aponta pelo menos cinco estratégias usadas pelo governo FHC para diminuir a força de atuação do MST.

129 128 Por isso, do conjunto das estratégias, destacamos duas bem claras e evidentes, constituindo-se em práticas do não fazer, associada a discursos do fazer RA: a primeira foi as ações e tentativas de frear (OLIVEIRA, 2007), acuar (ALENTEJANO, 2000) e isolar (FERNANDES, STEDILE, 2005) os movimentos sociais, a partir do processo de despolitização da luta camponesa 101 (FELICIANO, 2013; RAMOS FILHO, 2008), possibilitando não uma política efetiva de RA, mas antes uma política compensatória de assentamentos (ALENTEJANO, 2000, 2004); essa primeira estratégia une-se à segunda, que se constituiu por meio de discursos, acompanhados de uma série de ações, que inviabilizaram a RA por meio das desapropriações de terras, e possibilitaram a realização da Reforma Agrária de Mercado 102, aos moldes do Banco Mundial FHC, a despolitização da luta camponesa e a Reforma Agrária de Mercado Logo no início de seu governo, FHC apresenta um discurso de realização da RA que possibilitaria profundas transformações no campo, a partir de um conjunto de ações de forma pacífica e com respeito às leis, assentando 100 mil famílias ao final de quatro anos 103 : 101 A expressão despolitização da luta camponesa é vista nesses autores como uma forma de ação do governo FHC de impedir os avanços das lutas pela terra e pela Reforma Agrária no Brasil, empreendidas pelo MST. Partimos basicamente da afirmação de Feliciano (2003), uma vez que este autor entende que essa despolitização da luta camponesa é uma tentativa de tirar o foco do real problema da luta pela terra empreendida pelo movimento social e diminuir a força de suas ações. Segundo o autor, essa despolitização foi empreendida pelo governo FHC e se deu de três formas ou por três caminhos, denominados de: espaço legal, institucional e imaginativo. Assim, fala o autor: A partir da presidência de Fernando Henrique Cardoso, iniciou-se uma luta política de tentativa de supressão do movimento camponês (em especial o MST), tentando ao máximo dirimir sua força enquanto classe presente na sociedade capitalista. O caminho estrategicamente adotado pelo governo federal transitou pelo processo de despolitização da luta camponesa. Esse processo foi criado a partir de três espaços: legal, institucional e imaginativo (FELICIANO, 2003, p. 61). Cada um desses espaços apresentava ações e discursos em torno da construção de uma imagem negativa do movimento e da impossibilidade de realização da reforma agrária via desapropriações de terras. 102 Reforma Agrária de Mercado (RAM) é uma expressão usada para denominar uma série de medidas e projetos feitos pelo governo FHC para realização da reforma agrária que não tinha na desapropriação de terras improdutivas o objetivo principal. Antes, a RAM era uma política agrícola baseada nas propostas do Banco Mundial, por meio da formação de um mercado de terras que se daria por empréstimos aos trabalhadores rurais para a compra de imóveis rurais. É importante que fique claro que essa denominação de Reforma Agrária de Mercado é dada pelos movimentos sociais e pelo próprio Banco Mundial. Essa perspectiva de RA foi implementada na Colômbia, África do Sul, Guatemala, Filipinas e Brasil. No Brasil teve projetos pilotos implementados nos estados de PE, BA, CE, MA e norte de MG. Para entender melhor o processo de construção da RAM no Brasil, ver Ramos Filho (2008). 103 Conforme observa Ramos Filho (2008), na prática, essa ação (discurso) de FHC em uma nova política agrícola, sem retomar as metas estabelecidas pelo I PNRA é o seu verdadeiro sepultamento : Na prática, o programa de reforma agrária foi lançado em 24 de março de 1995, em ato público, no município cearense de São João do Jaguaribe, confirmando a meta de campanha de assentar, até 1998, 280 mil famílias. Ao mesmo tempo em que o governo se vangloriava de apresentar uma meta audaciosa, pois a marca de famílias assentadas por ano nunca superou a marca de 20 mil famílias. Desta maneira, verifica-se que, efetivamente, as metas do I PNRA

130 129 O Governo Fernando Henrique vai enfrentar essa questão, com vontade política e decisão, dentro do estrito respeito à lei. Com o aumento substancial dos assentamentos a cada ano, o objetivo é atingir a cem mil famílias no último ano do governo. Essa é uma meta ao mesmo tempo modesta e audaciosa, já que os assentamentos nunca superaram a marca anual de 20 mil famílias [...] Executar a reforma agrária estabelecida pela Constituição/ com paz e estrito respeito à lei. Adotar uma política agrária realista e responsável, com o assentamento de 40 mil famílias no primeiro ano; 60 mil, no segundo ano; 80 mil no terceiro ano e 100 mil famílias no quarto ano. (CARDOSO, 2008, p. 43). (grifo nosso) Porém, esse discurso de uma RA com paz e justiça no campo resultou em ações não tão pacíficas e nem tão justas. E essa contradição entre o discurso do fazer e a prática do não fazer RA no governo FHC pôde ser vista logo no primeiro ano de mandato, 1995, persistindo ao longo dos dois mandatos, a partir das constantes tentativas de repressão às práticas de luta dos camponeses, por meio de respostas duras e violentas, e com utilização de força policial, às ocupações de terra 104. Por isso, o governo de FHC é marcado por ter dois aspectos importantes para se entender a forma como foi conduzida a RA e a sua relação com os movimentos sociais e especialmente com o MST: 1. o discurso de passividade do governo não era real e muito menos suas ações seriam pacíficas quando o assunto fosse conter as práticas de ocupações de terra do MST 105 : Enquanto a política do MST era de colocar a nu a terra improdutiva e a grilagem de terra pelos latifundiários, a resposta foi a violência policial ou a criminalização das lideranças (OLIVEIRA, 2007, p. 143); 2. E o uso da repressão policial mostraria como o governo via a questão da luta pela terra no Brasil e de que lado ele se encontrava, dos ruralistas e latifundiários 106 (OLIVEIRA, 2007). estavam enterradas e com uma pá de cal em cima. Tampouco, foram envidados esforços para a elaboração de outro Plano Nacional de Reforma Agrária (RAMOS FILHO, 2008, p. 212). 104 Segundo Stedile (2005), a repressão com uso da força policial é uma das táticas de qualquer governo para isolar os movimentos sociais, e foi usada no governo de Fernando Henrique: Se a cooptação e a divisão não funcionam, vem a repressão. A burguesia sempre atuou assim na história da luta de classes. O MST tem de estar preparado para isso, independentemente das nuanças que a política oficial tem. Isso é o governo FHC (STEDILE, 2005, p. 146). 105 Segundo nos mostra Oliveira (2007), o governo FHC além de entrar para a história da questão da luta pela terra no Brasil por usar de forma explícita a violência contra o camponês: Este governo entrou para a História, marcado por um tipo de violência que não havia acontecido de forma explícita no Brasil: quem passou a matar os camponeses em luta pela terra, foram as forças policiais dos Estados (OLIVEIRA, 2007, p. 141). Essa perspectiva também é apresentada por Feliciano (2003) que afirma o real posicionamento do governo com relação à luta pela terra: Esses dois episódios de extrema violência no campo ficarão marcados na memória, como referência de luta e resistência camponesa. Assim como o governo de Fernando Henrique Cardoso também ficará marcado como o governo responsável pelo massacre mais violento no final do século XX (FELICIANO, 2003, p. 57). 106 Oliveira (2007) deixa bem claro que a posição do governo era de defender os latifundiários: O massacre de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás são os exemplos ocorridos no governo FHC. Estes dois massacres representavam a posição das elites latifundiárias brasileiras em não ceder um milímetro sequer em relação à questão da terra e da reforma agrária. O apoio dos ruralistas à base de sustentação política do governo FHC, tem

131 130 O exemplo mais significativo dessa atuação do Estado brasileiro junto aos movimentos sociais pode ser visto nos dois maiores massacres da história recente do país. O primeiro, em Corumbiara, ocorrido em 15/07/1995, no município de Corumbiara, Estado de Rondônia, e o segundo, em Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará. Com esses massacres na região amazônica, o governo FHC demonstrava claramente como seria a atuação do governo em torno da RA e das ações do MST 107 (RAMOS FILHO, 2008). Por isso, além dessas ações repressivas e carregadas de violência do Estado contra os camponeses sem-terra, o governo ainda tentou, dentro do processo de despolitização da luta camponesa, cooptar a opinião pública 108, por meio de uma tática propagandística (ALENTEJANO, 2000) pela qual se usava um discurso perverso, mentiroso e contrário às ações do MST, divulgando realizações positivas e números que confirmariam a realização da RA. Conforme argumenta Oliveira (2007), o governo FHC usou da estratégia de criar na mídia uma visão negativa da imagem do MST: A ação na mídia mobilizou o governo, os movimentos e a opinião pública. Reportagens procurando impingir caráter satânico as lideranças do MST, contrapropaganda organizada a partir de grandes órgãos de imprensa, denúncias nunca provadas, formação de equipe de jornalistas, realização de pesquisas de opinião pública sobre o MST, produção de material virtual via Internet, etc. Estas ações geraram na mídia um conjunto significativo de notícias que visavam principalmente tido como contrapartida duas práticas políticas pelo governo: a primeira, posição repressiva aos movimentos sociais e a segunda, no plano econômico, prorrogando não se sabe até quando, as dívidas destes latifundiários que não às pagam (OLIVEIRA, 2007, p. 141). 107 Diante desses massacres e da péssima visão no cenário internacional, o governo teve que correr atrás do prejuízo, criando o Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF) na tentativa de resolver a questão dos conflitos de terra e da RA numa tentativa de amenizar os problemas criados com a atuação da polícia. Ao mesmo tempo, o posicionamento do MST seria de ter no governo FHC um inimigo, não ficando parado e respondendo a essas ações com uma Marcha numa tentativa de colocar a RA na agenda política do país: Passados 12 meses dos massacres, o MST realizou a Marcha Nacional por Emprego e Justiça, que chegou a Brasília, em abril de A violência praticada pelos latifundiários e a resistência dos sem terra recolocaram, na agenda política da sociedade, a questão agrária e a urgência de uma RA no país (RAMOS FILHO, 2008, p. 214). 108 Com relação ao uso da mídia no governo FHC, Feliciano (2003) argumenta, afirma e denomina esse uso de espaço imaginativo. Para o autor, o uso institucional dos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, colaborou para a construção de uma imagem negativa que ligava os movimentos sociais a desordem, a violência e baderna. Assim, afirma: [...] o governo federal apóia, se utiliza e constrói com todo engajamento o espaço imaginativo. O entendimento sobre imaginativo passa pela construção, uso e divulgação de informações que muitas vezes são manipuladas para se chegar a uma ideia de mundo rural ideal. É pelo espaço imaginativo que as ações do espaço legal e institucional ganham vitalidade e visibilidade. É por ele que atualmente basta preencher um cadastro e esperar para ser assentado ou então formar uma associação e comprar a terra do proprietário latifundiário comprometido com a reforma agrária. O uso governamental dos meios de comunicações é o principal veículo de formação desse espaço imaginativo. Por outro lado, esse mesmo espaço serve para garantir a construção de imagens e vinculações depreciativas do movimento camponês, como o atraso do mundo rural, a violência, a desordem, suas irregularidades e fragilidades internas etc. (FELICIANO, 2003, p. 62).

132 131 desmontar a imagem de apoio que a população tinha formado sobre o MST e a reforma agrária após a Marcha à Brasília (OLIVEIRA, 2007, p. 143). Do ponto de vista histórico, o discurso da RA do governo FHC pode ser tomado como uma estratégia de resposta antipopular com relação à Reforma Agrária, mas acima de tudo, de negação do discurso do MST. Já do ponto de vista estratégico, esse discurso era (e o foi) uma possibilidade de ampliar as concepções neoliberais e fazer dos assentamentos rurais uma política precária e compensatória 109 (ALENTEJANO, 2000). Afirmamos isso, uma vez que, no III Congresso Nacional dos Sem-terra, realizado em 1995, o movimento atualizou seu discurso por meio da substituição das suas palavras de ordem, passando de Ocupar, Resistir e Produzir, usadas desde do final da década de 1980, para Reforma agrária: uma luta de todos. Essa mudança no plano discursivo do MST era uma tentativa de ampliar e reafirmar que a luta pela terra e pela RA deveria ser de todos os brasileiros, não só dos trabalhadores rurais. Isso aconteceu num nítido posicionamento contrário à política de terras e à tendência neoliberal do governo FHC. Nesse Congresso, o movimento reafirma a luta pela terra como ação central, mas acrescenta a luta contra o neoliberalismo: A luta contra o neoliberalismo do governo FHC. Nossa reflexão nos levou à conclusão de que, para conquistar a reforma agrária, tinha de mudar o plano neoliberal. Ou seja: a reforma agrária depende das mudanças no modelo econômico. Para ela avançar, é necessário que toda a sociedade a abrace como uma luta legítima dos sem-terra, dos pobres do campo, com reflexos positivos para a própria sociedade. Foi ali, então, que sistematizamos a palavra de ordem A reforma agrária é uma luta de todos (FERNANDES; STEDILE, 2005, p. 55). A própria nota lançada pelo MST, após o Congresso traz a confirmação desse discurso de luta contra o neoliberalismo: A primeira metade da década de 1990 se caracterizou pela adoção das políticas neoliberais em nosso país. A privatização das estatais, a desnacionalização da economia e o incentivo ao consumismo de produtos importados foram impostos no imaginário da população como sinônimos de modernização do país e ingresso no seleto grupo dos países desenvolvidos. A crise e a desestruturação dos países socialistas do Leste Europeu sinalizavam as transformações em curso no cenário internacional que, certamente, influenciariam as lutas populares em nosso país (MST, 3º Congresso Nacional (1995) Reforma Agrária, uma luta de todos). 109 Conforme argumenta Alentejano (2000), as ações do governo FHC eram uma tentativa de desvalorização da agricultura familiar no país, incentivando para isso, a importação de produtos e a efetivação de políticas compensatórias aos miseráveis do campo. Daí porque o governo ao invés de realizar a maior reforma agrária do mundo, realizou uma precária política de assentamentos rurais.

133 132 Com isso, o discurso do governo se constitui como uma negação ao discurso e das ações do MST e uma ampliação do seu caráter neoliberal na condução da política pública 110. A materialização desse discurso pôde ser vista a partir do documento Reforma agrária: Compromisso de todos, lançado em Abril de Neste, percebe-se claramente uma verbalização e um conjunto de ações que tentavam fazer da RA uma política com agenda real e efetiva do Estado 112. O documento apontava as diretrizes e as formas de como o governo federal iria conduzir as questões e as políticas de desenvolvimento do campo brasileiro. Segundo constava, o governo afirmava estar realizando uma grande reforma agrária no país e que era capaz de solucionar os problemas existentes no campo. Conseguindo colocar o tema no debate central da política nacional e da opinião pública, reunindo representantes e interessados, com destaque: o próprio governo, os movimentos sociais e os proprietários de terra. Possibilitando com isso um consenso sobre a questão agrária no país, ao apresentar sete pontos sobre a temática: Em agosto de 1996, o Conselho do Programa da Comunidade Solidária realizou uma reunião sobre a reforma agrária. Participaram os ministros da Política Fundiária e da Agricultura, um representante dos proprietários rurais e os dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, além de conselheiros do Programa da Comunidade Solidária. Não obstante a persistência de divergências entre trabalhadores, proprietários de terra e governo, a discussão deixou nos participantes a convicção de que o processo de profundas transformações em curso no meio rural era irreversível. Mais do que isto, os três setores lograram redigir um documento, inédito em discussões sobre os conflitos no campo, contendo sete pontos de consenso sobre a reforma agrária: a) uma política de desenvolvimento rural é necessária e deve integrar a reforma agrária com o fortalecimento da agricultura familiar; b) o processo de reforma agrária exige a ação articulada dos diversos órgãos e dos três níveis de governo (federal, estadual e municipal), bem como dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; c) a execução da reforma agrária precisa de procedimentos burocráticos mais ágeis e eficientes e do aumento da capacidade administrativa do governo; d) a realização efetiva da reforma agrária exige a alocação e a liberação oportuna dos recursos orçamentários e financeiros, 110 A negação do discurso do outro é uma das estratégias dentro do processo de exclusão do discurso, apontado por Foucault (2011). Dentro do quadro das relações de poder, o discurso é esse acontecimento que é usado como uma das formas de desqualificar as ações e o discurso do outro. Ao mesmo tempo, o discurso é uma articulação de poder, saber e de práticas sociais presentes no espaço. 111 Esse documento foi lançado e contou com o apoio institucional de vários ministérios do governo FHC: Casa Civil da Presidência da República, Câmara de Política Social, Ministério das Relações Exteriores, Ministério Extraordinário de Política Fundiária, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Conselho do Programa Comunidade Solidária Ministério do Planejamento e Orçamento. 112 Segundo Feliciano (2003), esse documento é uma tentativa de resposta às várias ações dos movimentos sociais espalhados no campo e foi lançado dias antes da chegada em Brasília de milhares de camponeses participantes da Marcha pela Reforma Agrária. Assim diz o autor: Em abril de 1997, dias antes da chegada de milhares de camponeses a Brasília, participantes da Marcha pela Reforma Agrária, que protestavam contra a impunidade no episódio do Massacre de Eldorado dos Carajás, o presidente, em nota oficial e publicada nos jornais de maior circulação no país deixou claro quais seriam os princípios norteadores na questão agrária para o futuro (FELICIANO, 2003, p. 69).

134 133 para o cumprimento das metas fixadas pelo governo; e) a legislação agrária brasileira precisa ser atualizada e os processos jurídicos acelerados; f) o desenvolvimento sustentável dos assentamentos é condição imprescindível para o sucesso da reforma agrária; g) todo esse processo exige parcerias entre os diversos atores governamentais e não-governamentais (CARDOSO, 1997, p. 04). Inclusive, apontava ser a RA uma questão não só econômica, mas também, social e moral: A questão agrária não é, portanto, apenas econômica. Ela é sobretudo social e moral. E só poderá ser resolvida mediante a integração dos esforços das três instâncias de governo e de um compromisso efetivo de toda a sociedade (CARDOSO, 1997, p. 05). Sendo o governo federal o grande responsável por trazer para debate um tema tão difícil e de vários conflitos existentes até então, conseguindo, com isso, superar preconceitos e resistências: Hoje, além de figurar com destaque na agenda social do Brasil, a reforma agrária começa a superar velhos preconceitos e derrubar resistências. Pela primeira vez, há um consenso, na opinião pública brasileira, de que é preciso fazê-la. Tradicional bandeira das esquerdas, a luta por justiça social no campo, desde que travada dentro da lei, conta hoje com o apoio dos demais setores da sociedade. Essa talvez seja a maior vitória já obtida pela causa da reforma agrária no Brasil, capaz de tornar irreversível o processo de desconcentração fundiária (Ibidem, p. 16). (grifo nosso) E com essa perspectiva, FHC afirmava categoricamente que estava realizando a RA, inclusive, apresentando números que apontavam para a superação das metas estabelecidas no início do mandato. Passando de 100 mil para mais de 280 mil famílias assentadas. Tais números eram, segundo o governo, a confirmação e materialização de que seu discurso se realizava na prática: A adesão da sociedade, buscada pelo governo e impulsionada com vigor pelos movimentos sociais organizados em defesa do direito à terra, tornou possível ao atual governo não só cumprir, mas superar, ligeiramente, as metas para 1995 e 1996 (Ibidem, p. 16). Somente nos dois primeiros anos de mandato, 1995/1996, segundo apontou o documento, o INCRA desapropriou e adquiriu cerca de hectares de terras, assentando nesse período famílias, sendo em 1995 e em Esse total constituiria quase a metade de todas as famílias assentadas no período de 1964/1994, que corresponderia a famílias. O próprio documento afirmava que até o ano de 1998, final do mandato de FHC, estava previsto assentar cerca de 285 mil famílias, sessenta mil famílias a mais que no período de 1964/1994. O que faria com que o governo de Fernando Henrique realizasse a maior RA da história do Brasil: A análise dos números apresentados até aqui indica, finalmente, que - cumpridas as metas a que se propôs - o governo Fernando Henrique, em apenas quatro anos, terá

135 134 assentado cerca de 60 mil famílias a mais do que o total de famílias beneficiadas pela reforma agrária em toda a história do Brasil (Ibidem, p. 18). E ao final desse 1º mandado, são revelados novos dados pelo INCRA que mostravam que a meta buscada pelo governo realmente foi conseguida. Isso porque, nos anos seguintes, de 1997/98, foram assentadas famílias, sendo em 1997 e em 1998, conforme a tabela. (Tabela 7). Isso totalizava mil famílias assentadas em quatro anos da presidência de FHC Tabela 7: Brasil Famílias assentadas no Governo Fernando Henrique Cardoso 1995/1998 Região /UF N famílias assentadas Amazônia AC AM AP PA RO RR TO NORDESTE AL BA CE MA PB PE PI RN SE CENTRO-OESTE MT MS GO DF SUDESTE ES MG RJ SP SUL PR RS SC BRASIL Fonte: INCRA, 2014; Organizado: Hugo A. Morais.

136 135 Diante desse discurso e números apresentados pelo governo federal, a RA de fato estava acontecendo, com consenso e sem problemas. E não haveria justificativa para as ações dos movimentos sociais e, principalmente, do MST. Porém, a análise desses dados mostra como estava sendo feito de fato a maior RA do mundo. As informações revelam que a grande maioria dos assentamentos ocupava a parte da região Amazônica, uma vez que do total de famílias assentadas, 37,6% eram assentadas nessa região. Assentamentos que eram fruto de regularização fundiária e não de desapropriações de terra, contrariando o discurso do documento governamental. Alguns estudiosos da questão agrária no Brasil afirmam que esses dados têm várias incoerências com relação ao problema da terra e da reforma agrária no governo FHC. Feliciano (2003) afirma que os dados oficiais divulgados pelo governo FHC devem ser analisados com muita cautela. O autor deixa claro que o INCRA usava da tática de considerar como ações de realização da RA as regularizações fundiárias, os projetos de colonização, reassentamento de populações ribeirinhas e não as desapropriações de terras improdutivas, fruto da pressão e das ações de ocupações do MST. O governo usou de uma espécie de matemagia para a divulgação da realização da RA (FELICIANO, 2003). Com relação à mesma questão, Ramos Filho (2008) afirma que houve por parte do governo federal uma tentativa de construção do um território imaterial dos assentamentos rurais e da RA, por meio de um discurso de superação de metas 113. Na verdade, o governo FHC tinha a clara intenção de capturar e confundir a opinião pública e de despolitizar as ações dos movimentos sociais criando números que mascaravam as ações em torno da RA (RAMSOS FILHO, 2008). Ao mesmo tempo, cabe questionar esse discurso de consenso em torno do tema. E todo questionamento se torna válido, uma vez que o período que segue ao lançamento do documento é marcado por um aumento da luta pela terra no país, por meio de um crescimento 113 Para Ramos Filho (2008), o governo FHC mascarou os números da reforma agrária usando a mídia para divulgar essas informações, criando um discurso de realização da RA e despolitizando a luta dos camponeses: [...] diante da situação alarmante, o governo construiu, através da mídia, um território imaterial com intenção de confundir/capturar a opinião pública a seu favor, divulgando os controversos números da maior reforma agrária do mundo contemporâneo, que estava em curso no Brasil. FHC ancorava o seu discurso na superação das metas estabelecidas, durante a campanha eleitoral de [...] governo somente agia a reboque da luta dos trabalhadores, promovendo uma política de assentamentos rurais e não ação sistemática, ampla e massiva, com planejamento de início e final, com centralidade no ataque à estrutura fundiária concentradora, características inerentes a um verdadeiro programa de reforma agrária. Buscava-se, com este conjunto de medidas, despolitizar a luta camponesa (RAMOS FILHO, 2008, p. 217).

137 136 no número de ocupações (Tabela 8). No período de ocorreu um total de ocupações de terra, sendo 500 ocupações em 1997 e 792 em O que equivale a 654 ocupações a mais, se comparado aos dois primeiros anos de mandatos FHC (1995/1996). Esse total representou um aumento no número de famílias presentes na luta pela terra. Entre , foram famílias envolvidas em ocupações, um acréscimo de , representando 44% a mais. Tabela 8: Brasil Ocupações de terra e famílias envolvidas 1995/ Ocupações de terra Famílias envolvidas Fonte: DALUTA, 2014; Organizado: Hugo A. Morais. E essa tentativa de buscar isolar o MST, por meio de uma desmobilização da luta pela terra, através da repressão policial, da política compensatória de assentamentos e pela divulgação dos números irreais do processo de RA, veio acompanhada de discursos e ações que buscaram a realização de uma Reforma Agrária de Mercado (RAM), sob os moldes de uma perspectiva neoliberal, a partir do Banco Mundial. Processo que se inicia no final do primeiro mandato e prossegue no segundo. No mesmo documento, Reforma agrária: Compromisso de todos, observa-se um discurso em que a RA não deveria ser uma política limitada à distribuição de terras aos pobres do campo, mas deveria privilegiar a agricultura familiar, promovendo para isso a inserção da parcela da população ao mercado, possibilitando o aumento dos empregos, dos salários, da produção no meio rural: Em tempos de globalização de mercados, de sofisticação tecnológica e de alta competitividade, limitar-se a distribuir terras entre os pobres do meio rural teria efeito contrário ao pretendido: ao invés de levar justiça social, garantiria a reprodução da pobreza no campo. Assim, além de promover políticas de reforma agrária, o novo governo teria que privilegiar a agricultura de base familiar e formular uma estratégia para a geração de mais e melhores empregos na área rural, com aumento de produção, de produtividade e do salário real dos trabalhadores (CARDOSO, 1997, p. 15). (grifo nosso). Esse discurso de inserção da RA dentro do contexto global era uma forma de mostrar um novo caminho de encarrar os problemas históricos e enraizados dentro da realidade rural do país. Ao mesmo tempo, o governo atualizaria a política agrícola com a modernidade,

138 137 superando perspectivas e reinvindicações com cunho de atraso e não contextualizadas 114, reformando a própria reforma agrária 115 : Trata-se, na verdade, de reformar a reforma agrária: substituir a velha visão restrita, fundada apenas no distributivismo, por um conjunto articulado de políticas públicas, sintonizadas com as exigências dos novos tempos. A busca determinada de novas soluções para um velho problema poderá, efetivamente, modificar a estrutura agrária brasileira e contribuir para a redução das desigualdades, no meio rural (Ibidem, p. 15). Com isso, a RA no governo FHC seria reformada e passaria a ser feita aos moldes e com o apoio do mercado, por meio de uma linha de financiamento de terras. A proposta presente no discurso governamental era substituir a forma tradicional de realização da RA, por meio de desapropriações, para conduzir a um mecanismo de compra e venda de terras: Esse programa, negociado com o Banco Mundial - BIRD, vai funcionar nos moldes de uma carta de crédito cooperativo e será a experiência-piloto de um novo modelo de política fundiária, integrada ao mercado e sem depender do governo em todas as etapas do processo, principalmente na execução, como ocorre hoje. A fórmula é simples: um grupo de agricultores sem terra identifica a área que deseja, faz um processo sumário para aquisição da gleba e apresenta-o à unidade técnica do estado. Se aprovado, o grupo receberá o financiamento para a compra da terra, com prazo de pagamento de 20 anos. Para isso, o INCRA fará convênios com o Banco do Brasil e bancos regionais, como o do Nordeste, que vai operar o programa no primeiro momento (Ibidem, p. 21). Para a realização dessa reforma, aos moldes do mercado, foi criada uma série de programas de apoio, numa tentativa de articular vários ministérios e órgãos do governo para dar viabilidade econômica, tanto à reforma agrária quanto aos assentamentos rurais: [...] o grande desafio da reforma agrária hoje está em garantir a viabilidade econômica do assentamento (CARDOSO, 1997, p. 19). Dentre os programas de apoio, destacaram-se: o 114 O discurso de exclusão e de tentativa de enfraquecimento dos movimentos sociais por parte do governo federal mais uma vez se manifesta aqui. Uma vez que ao considerar a necessidade de contextualização da luta pela terra, desvaloriza e muito menos compreende a importância e o papel moderno do MST na luta pela terra e pela RA no Brasil. Conforme nos mostra Oliveira (2007), a importância e o papel do MST na construção de uma nova sociedade se dá pela visibilidade que dá a luta pela terra e pela possibilidade de fazer com que milhares de trabalhadores rurais sem-terra espalhados pelo país, possam pensar em cidadania. Assim, afirma: [...] a história da questão agrária no Brasil tem revelado que na atualidade o MST é a face moderna do Brasil, é a parte deste país que está em luta. É o Movimento que, por mais estranho e extemporâneo que muitos possam achar, pois se trata de um Movimento da cidade para o campo. É um movimento que contradiz o movimento geral da marcha do campo para a cidade, mas é também, um movimento que busca a construção de uma nova sociedade (OLIVEIRA, 2007, p. 146). 115 Essa perspectiva de FHC nega a desapropriação como um dos caminhos para a realização a RA: Se trabalharmos na expectativa de que o governo está fazendo apenas uma política de assentamento, mesmo assim essa política é reduzida aos casos de conflitos. Portanto, se não houver conflito, não há assentamento. Não é nem mesmo uma política de assentamento do tipo clássico, em que são ocupados espaços vazios, como foi a política de colonização do regime militar. Não é também uma política de fomento agrícola em novas regiões nem uma política social. Nisso a direita tem razão quando critica o governo Fernando Henrique dizendo que é ele quem estimula a violência... É verdade (STEDILE, 2005, p. 140).

139 138 Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA), Projeto Lumiar, Projeto Emancipar, Roda Viva, Ouvidoria Agrária Nacional, Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Programa de Acesso Direto à Terra, Programa de atendimento ao cidadão Pode Contar e Cartilha do Cidadão. Dentre esses programas, o que retratou bem a perspectiva neoliberal na condução da política de RAM, foi o Projeto-piloto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza, conhecido como Projeto Cédula da Terra (PCT) 116. O PCT deixou bem claro o quadro dos discursos e das ações em torno da RA no governo FHC, por apresentar um aspecto central: um discurso que versava em torno da eliminação da pobreza no campo e da realização da RA via mercado. O PCT tomava por base a tentativa de eliminação da pobreza do campo e tinha como público alvo trabalhadores sem-terra (assalariados, parceiros e arrendatários) e agricultores (proprietários ou não). Porém, a RA se daria sem desapropriações, antes se basearia na compra e venda de terras: A fórmula é simples: um grupo de agricultores sem terra identifica a área que deseja, faz um processo sumário para aquisição da gleba e apresenta-o à unidade técnica do estado. Se aprovado, o grupo receberá o financiamento para a compra da terra, com prazo de pagamento de 20 anos. (CARDOSO, 1997, p. 21). Para sua realização, o programa contaria com um financiamento de 150 milhões, sendo 90 milhões com recursos do Banco Mundial, sendo o Banco da Terra o órgão institucional que possibilitaria o empréstimo 117 : Esse programa, negociado com o Banco Mundial - BIRD, vai funcionar nos moldes de uma carta de crédito cooperativo e será a experiência-piloto de um novo modelo de política fundiária, integrada ao mercado e sem depender do governo em todas as etapas do processo, principalmente na execução, como ocorre hoje (Ibidem, p. 21). Segundo o próprio Ministro Raul Jungmann, o Cédula da Terra tinha na formação de um mercado de terras, por meio da compra e vendas, o seu objetivo central e caminho da realização da RA. Por isso, através de cartas de créditos haveria a possibilidade de o trabalhador ter acesso à terra por meio de sua compra. A 116 Com o Projeto de Assentamento São José, no estado do Ceará, tem-se o embrião do Cédula da Terra, passando em seguida para outros estados da federação, tais como: Bahia, Minas Gerais, Maranhão e Pernambuco. 117 Lei complementar nº 93, de 4 de fevereiro de 1998, que criou o Banco da Terra ou Fundo de Terras e de Reforma Agrária, cujo no Artigo 1 define o objetivo central do banco que é financiar programas de reordenação fundiária e de assentamento rural.

140 139 [...] fórmula é simples: selecionar trabalhadores rurais sem terra organizados, entregar-lhes uma carta de crédito para que negociem a compra diretamente com os proprietários e, em seguida, financiar-lhes insumos, habitação e infra-estrutura -tudo de acordo com um projeto desenvolvido por eles próprios (Raul Jungmann, então ministro do Desenvolvimento Agrário. Reportagem a Folha de São Paulo, em 30 de janeiro de 1998). Esse discurso do governo fez com que a própria concepção de RA, enquanto ação de desapropriação, passasse a ser vista como uma política ligada unicamente ao mercado. Nessa perspectiva, o próprio camponês passou a ser visto como um cliente e não como um beneficiário da política pública: Sua clientela será composta por trabalhadores sem terra, meeiros, arrendatários, parceiros etc., além de minifundiários cujas terras não sejam suficientes para sustentar suas famílias. Todos terão 20 anos para pagar o financiamento, com até três anos de carência, a juros favorecidos. Poderão, ainda, optar pela equivalênciaproduto (Raul Jungmann, então ministro do Desenvolvimento Agrário. Reportagem a Folha de São Paulo, em 30 de janeiro de 1998). (grifo nosso). Esses discursos retratavam bem a tentativa do governo FHC de fazer da RAM uma alternativa mais viável e segura com relação à RA via desapropriações de terras 118 e dos interesses do MST: Orientado por um conselho integrado por representantes dos trabalhadores, das cooperativas e do governo, o novo fundo terá múltiplos impactos sobre a questão fundiária brasileira. Ao operar diretamente com Estados e municípios, fundações e ONGs, ele permitirá efetiva descentralização, o que trará maior velocidade à reforma agrária. [...] As críticas que afirmam que o fundo é o fim das desapropriações como instrumento de reforma agrária são totalmente improcedentes. Primeiro, as desapropriações continuarão sendo a ferramenta principal de nossa ação. Segundo, por meio do Banco da Terra, o poder público não estará comprando terras, mas financiando-as para interessados - e é preciso que estes existam para que o programa possa existir (Raul Jungmann, então ministro do Desenvolvimento Agrário. Reportagem a Folha de São Paulo, em 30 de janeiro de 1998). (grifo nosso). Para Pereira (sem data), a RAM foi o caminho tomado pelo governo federal para redefinir o papel do Estado enquanto agente social da política pública. Ao mesmo tempo, o Estado possibilitaria e estimularia a realização da RAM, por meio da dinamização do mercado de terras como instrumento principal da RA (PEREIRA, sem data). Esse discurso estava muito atrelado e próximo do Banco Mundial. Para este, a realização de uma RA por meio de desapropriações de terra seria algo a ser repudiado e 118 Os defensores da RAM apontavam alguns princípios básicos, e viam na formação de um mercado de terras um caminho mais viável do que uma RA com desapropriações, uma vez que possibilitaria: a) promover um mercado de terras por meio da compra e venda de terras, criando um modelo de transição voluntária de acordo com os interesses dos compradores e vendedores, b) a RA se realizaria não pela seleção de terras do Estado, mas pela demanda de famílias que têm uma determinada terra como fruto de interesse e negociação; c) a autosseleção seria a possibilidade de caminhos mais autônomos para os beneficiados, já que a terra seria selecionada pelos demandantes e não pelo Estado, d) a descentralização seria um caminho de desburocratização e diminuição do papel do Estado no processo de seleção e aquisição de terras (PEREIRA, sem data).

141 140 inaceitável, já que esta era um círculo vicioso que se estabelecia a partir da distribuição de terras onde há conflito: O modelo de reforma agrária através da distribuição de terras pelo governo é um círculo vicioso: a terra é redistribuída onde há conflitos sociais e os conflitos sociais pressionam o programa de redistribuição de terras do governo (BANCO MUNDIAL, 2003a, p.127) (PEREIRA, ANO, p. 116). Ao invés de uma RA com desapropriações, o discurso do governo a favor de uma RAM, era uma tentativa clara de dar uma reposta às ocupações de terras promovidas pelo MST, desligando a conexão ente ocupações e desapropriações : Ademais, o governo federal e o Bird consideravam necessário diminuir a pressão provocada pelas ocupações de terra, majoritariamente organizadas pelo MST, introduzindo um mecanismo que pudesse disputar a adesão de trabalhadores semterra. Selecionou-se, então, uma região com a maior concentração de pobreza rural do país onde o Bird já operava há mais de 20 anos, a fim de que a implementação do PCT obtivesse resultados rapidamente [...] Segundo o cálculo dos seus operadores, a introdução da RAM desligaria a conexão entre ocupações e desapropriações e permitiria às agências do Estado tão somente financiar e intermediar a compra e venda entre trabalhadores e proprietários de terra. O objetivo, portanto, era priorizar a RAM em detrimento da desapropriação (PEREIRA, sem data, p. --). Com isso, a RAM foi tomada como uma alternativa mais viável. O governo deixou claro sua tentativa de criar um mecanismo de terras no país por meio da criação de créditos fundiários e pela substituição de qualquer perspectiva de uma RA por desapropriação, respondendo duramente as ações e discursos do MST. Isso numa postura que favoreceu os latifundiários que deixavam de serem penalizados por manterem terras improdutivas, passando a ser beneficiários da política agrária 119 (FELICIANO, 2003). Dentre as ações de aprofundamento da RAM, o governo aprova as Medidas Provisórias n , de , e a MP n Essas MPs eram medidas coercitivas as ações dos movimentos sociais (OLIVEIRA, 2007). Representavam as verdadeiras ações e formulações governamentais na investida de tentativa clara de acuar o MST, usando, para isso, a tática de enfraquecimento do movimento, pelas vias legais (FELICIANO, 2003). Com isso, as estratégias de punição aos sem-terra e aos seus líderes pelo cumprimento da lei 120 (FELICIANO, 2003). Essa postura do governo FHC é uma ação clara de frear os movimentos sociais, por meio de um processo de judiciarização da luta pela 119 Conforme Feliciano (2003), a posição do governo FHC foi uma tentativa de favorecer os latifundiários: É visível nesse projeto que o Governo Federal pretende substituir a realização da Reforma Agrária, pelo mecanismo do mercado de terras. A desapropriação de terras como medida punitiva ao latifúndio e às propriedades improdutivas acaba sendo abandonada (FELICIANO, 2003, p. 76). 120 A este processo de criar leis para impedir as ações dos movimentos sociais, Feliciano (2003) denominou de espaço legal (FELICIANO, 2003).

142 141 terra, proporcionando uma relação desigual entre camponês e famílias acampadas e que lutam pelo acesso à terra 121 (FERNANDES, 2007). Basta observar o que diz a MP n , no Artigo 2º, que trata das vistorias de imóveis rurais e da punição de excluir da RA qualquer trabalhador que participasse de ocupações: 6º O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel. 7º Na hipótese de reincidência da invasão, computar-se-á em dobro o prazo a que se refere o parágrafo anterior. 8º A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos (Medida Provisória, n ). Após a aprovação dessas Medidas, observa-se uma queda intensa no número de ocupações no país e de famílias envolvidas (Tabela 9). Tabela 9: Brasil Ocupações de terra e n de famílias 1999/ Ocupações de terra Famílias envolvidas Fonte: DALUTA, 2014, CPT, 2000, 2001, 2002; Organizado: Hugo A. Morais. Com isso, o governo FHC, ao final do seu segundo mandato, não resolveu os problemas agrários no país e ainda conseguiu: 1. criminalizar e refrear as ações dos movimentos sociais no campo; 2. e não apresentar uma política efetiva de RA, o que acarretou numa precarização dos PA criados e uma grande confusão com relação aos dados da RA 122. Porém, mesmo com um quadro tão desfavorável com relação à luta pela terra, o MST continuou sendo o maior movimento social. Só para se ter uma dimensão dessa afirmativa, segundo dados obtidos junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 2000 e 2002, atuaram 121 A respeito do processo de judiciarização da luta pela terra, ver o artigo de Bernardo Mançano Fernandes, intitulado: A judiciarização da luta pela reforma agrária in GEOUSP Revista de pós graduação em Geografia. São Paulo: Departamento de Geografia da FFLCH-USP, A não apresentação de um quadro que representasse o número total de famílias assentadas se justifica, uma vez que o uma das grandes consequências da tática da balburdia imposta pelo governo FHC foi a confusão dos números com relação a RA. Fato já afirmado por Fernandes (2003): Todavia, no seu segundo mandato, quando criminalizou as ocupações e os movimentos camponeses entraram em refluxo e, por consequência, diminuíram as ocupações de terra, também diminuiu o número de assentamentos implantados. Para garantir as metas da propaganda do governo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário clonou assentamentos criados em governos anteriores ou criados por governos estaduais e os registrou como assentamentos criados no segundo mandato de FHC. Essa tática criou uma balbúrdia, de modo que em 2003 nem mesmo o INCRA consegue afirmar, com certeza, quantos assentamentos foram implantados de fato (FERNANDES, 2003, p. 03).

143 142 no Brasil 47 movimentos socioterritoriais (Quadro 3) em 23 Estados da federação: Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Quadro 3: Brasil Movimentos Socioterritoriais 2000/2002 Sigla ACUTRMU ANTEP ASA AST ATP ATUVA CAA CCL CETA CLST CONTAG COOTERRA CPT CUT FAF FERAESP FETAEG FETAEMA FETAEMG FETAGRI FETAPE LCC LCO LCPNM LOC MAB MAST MBUQT MCC MLST MLSTL MLT MSST MST MSTR MT MTB MTB MTRST MTRSTB MTRUB RACAA SUL STR STRRPM UFT Nome Associação Comunidade Unida dos Trabalhadores Rurais Associação dos Trabalhadores Desempregados Sem Terra Associação Santo Antônio Associação de Sem Terra Associação Terra e Paz Associação dos Trabalhadores Unidos da Vila Aparecida Centro de Agricultura Alternativa Centro de Cidadania e Liderança Coordenação Estadual de Trabalhadores Assentados Caminho de Libertação dos Sem Terra Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Cooperativa dos Lavradores na Luta pela Terra Comissão Pastoral da Terra Central Única dos Trabalhadores Federação da Agricultura Familiar Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de SP Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Goiás Atua no Maranhão Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de MG Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de MS/ PA Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Pernambuco Liga Camponesa Corumbiara Atua em MG Atua em MG Liga Operária Camponesa Movimento dos Atingidos por Barragens Movimento dos Agricultores Sem Terra Movimento Brasileiros Unidos Querendo Terra Movimento Camponês de Corumbiara Movimento de Libertação dos Sem Terra Movimento de Libertação dos Sem Terra de Luta Movimento de Luta pela Terra Movimento Social dos Sem Terra Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais Movimento dos Trabalhadores Movimento dos Trabalhadores no Brasil Movimento Terra Brasil Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Brasileiros Movimento dos Trabalhadores Rurais Urbanos Rede de Assistência dos Acampados e Assentados do Sul da Bahia Sindicato dos Trabalhadores Rurais Atua em MG União Força e Terra

144 143 USST União dos Santanenses Sem Terra Fonte: CPT, 2000 a 2002; Organizado: Hugo A. Morais. Em 2000, das famílias ocupando terras no país, o movimento contava com (62,59%). Mesmo com a diminuição das ocupações em 2001 e 2002, o MST obtivera a participação de (68,69%) e (78,09%) de um total de e , respectivamente. Esses dados deixam claro o embate que existia entre os discursos e as práticas do Estado e do MST O discurso da esperança e as práticas da não reforma agrária: o II PNRA Nessa seção, finalizaremos o percurso histórico em torno dos discursos e ações governamentais com relação à RA e aos PA no Brasil, trazendo um debate centrado no II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) do governo de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Buscaremos mostrar que o II PNRA se caracterizou pelo discurso da esperança e da possibilidade de realização da RA. Porém, as práticas do governo Lula se caracterizaram pelo processo da não RA, possibilitando, ao mesmo tempo, a valorização do agronegócio. O que fez do II PNRA uma grande frustação histórica, principalmente para os movimentos sociais e as famílias de camponeses sem terra, não obstante a mídia oficial tenha passado a ideia de uma harmonia entre o PT e o MST O discurso de esperança e a disputa territorial no governo Lula O início de 2003 é marcado pela chegada de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da República. Depois de disputar e sair perdedor em três eleições (1989,1994 e 1998), Lula chega ao poder com uma correlação de forças e alianças políticas feitas entre o PT e outros partidos de esquerda, bem como da direita política do país, numa tentativa clara de conseguir governabilidade 123 necessária. 123 Como afirma Oliveira (2007), a chegada de Lula à Presidência da República é marcada por uma coligação de forças que visava a governabilidade : Muitas foram as composições e concessões para que fosse garantida a tal da governabilidade (OLIVEIRA, 2007, p. 146).

145 144 A vitória de Lula aconteceu num momento em que o país enfrentava grandes problemas estruturais em torno do desemprego, privatizações, perda e eliminação de vários direitos trabalhistas. Ao mesmo tempo, Lula e o PT representavam naquele momento a esperança e a possibilidade de novas mudanças sociais, econômicas e políticas no quadro nacional (FERNANDES, 2003). Uma esperança real, principalmente, para as classes trabalhadoras. Não por uma simples opção política pela esquerda, mas por ser um partido que, desde a sua fundação em 1984, trazia um discurso e um conjunto de ações muito próximas aos interesses dos trabalhadores 124, expectativa que se renovou ainda com mais força para os camponeses do país. Principalmente, para aqueles milhares que estavam envolvidos na luta pela terra e pela RA em torno do MST e demais movimentos sociais. Desde as lutas pela redemocratização do país, o partido já dava atenção e apresentava caminhos e soluções aos problemas enfrentados pelos camponeses pobres espalhados no campo. O próprio Programa de Governo do PT, de 1989, trazia a Reforma Agrária como questão importante e necessária para a agenda nacional: 1) A reforma agrária é indispensável para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Visa, antes de mais nada, romper o monopólio da terra e lançar as bases de um novo padrão de desenvolvimento para a agricultura e toda a economia brasileira. Além disso, ela representa a possibilidade de incorporar à cidadania milhões de trabalhadores rurais, quebrando o poder exercido pelos grandes proprietários. É uma decisão política, tendo em vista uma redistribuição de terra, renda, poder e direitos. 2) Nosso objetivo principal é assegurar terra para quem nela trabalha, impedindo a especulação e a retenção improdutiva do fértil solo brasileiro. Os beneficiários diretos da reforma são os atuais posseiros, parceiros, minifundistas e trabalhadores sem terra, e as áreas atingidas serão basicamente os 165 milhões de hectares aproveitáveis e mantidos ociosos pelos grandes proprietários. [...] 3) [...] Respeitaremos a vontade dos trabalhadores organizados, estimulando sua autodeterminação e seu controle direto sobre o processo de mudança. Serão assentados de preferência os trabalhadores da região desapropriada, evitando-se deslocamentos. A ocupação se fará no âmbito de processos coletivos e organizados, para garantir maiores ganhos econômicos, sociais e de consciência e impedir a depredação do ambiente. 6) Como complemento à política econômica de distribuição de renda, a prioridade do novo modelo agrícola será a produção voltada para o mercado interno. Alimentar adequadamente toda a população e abastecer as indústrias brasileiras com matérias- 124 Basta vermos o Art. 47 do Regimento interno do partido que já versava em torno de ações dos seus parlamentares na busca da defesa e da luta pelos direitos dos trabalhadores: Art São atribuições das bancadas parlamentares: a) promover o entrosamento da atividade partidária no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais com as lutas e as manifestações dos trabalhadores; b) participar das lutas e movimentos dos trabalhadores; c) denunciar, nos parlamentos, as arbitrariedades e as violências contra os trabalhadores, defendendo os seus direitos de expressão, e de organização e autonomia; e d) tomar a iniciativa de projetos de lei e outras medidas institucionais, visando a consolidação das conquistas dos trabalhadores, bem como a sua ampliação segundo o espírito do Programa do Partido (REGIMENTO INTERNO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1984).

146 145 primas é a grande meta, que não é incompatível com a busca de excedentes exportáveis. 7) Lançando mão de multas, desapropriações, cortes de crédito e outros mecanismos, o governo exigirá o cumprimento dos direitos trabalhistas em todo o território nacional. 10) Serão eliminados os subsídios e incentivos fiscais que beneficiem grandes produtores agrícolas de produtos exportáveis e os próprios exportadores. [...] O governo alterará a política exportadora de produtos agrícolas de forma articulada com as modificações que pretende introduzir na economia brasileira. Fazendo cessar a evasão de divisas hoje destinadas ao pagamento da dívida externa, faz-se cessar também a necessidade de exportar a qualquer custo. 12) Criaremos um fórum nacional que, dotado de inquestionável legitimidade, encaminhe ampla discussão sobre a Amazônia, passando a exercer influência decisiva sobre a estratégia de ocupação e sobre a avaliação de obras que tenham apreciável impacto social e ambiental. [...] Suspenderemos a política de incentivos fiscais e faremos auditoria nos financiamentos e vantagens concedidos, cancelando os projetos que resultem em desmatamentos extensivos. Demarcaremos as terras indígenas e implantaremos as reservas extrativistas, apoiando a formação de cooperativas para beneficiamento da borracha, castanha, óleos e essências vegetais, de forma compatível com a preservação da ecologia regional (PROGRAMA AGRÁRIO PT, 2012, p. 181). Desde a sua origem, o partido apresentou, em termos políticos e estruturais, vontade de luta pelos direitos trabalhistas 125. A própria fundação do partido representou a possibilidade de abrir espaço para unir e agregar a luta de vários trabalhadores, inclusive a dos camponeses. O que fortalecia, e muito, a ação do MST, uma vez que, mesmo estando e atuando em campos distintos, ambos tiveram e traziam a mesma essência: Essas distintas forças políticas nasceram quase que concomitantemente em espaços políticos diferentes, interativos e autônomos. Cada qual com sua estrutura organizativa e além de suas origens formadas no seio das lutas de classes, tinham em comum pelo menos um princípio: a defesa dos direitos e dos interesses dos trabalhadores [...] Com a fundação do Partido dos Trabalhadores criou-se um espaço para reunir os projetos políticos dos diferentes segmentos da classe. Na década de 1980, os movimentos camponeses, a Comissão Pastoral da Terra, juntamente com o PT, recolocaram na pauta política a questão da reforma agrária. A retomada desta luta representava igualmente a intensificação do enfrentamento entre camponeses e latifundiários. Esta luta fora interrompida com o golpe militar de 1964 (FERNANDES, 2003, p. 01). Por isso, a vitória de Lula foi uma referência simbólica para a possibilidade real visando ao avanço na RA no país, rompendo o atraso patrimonialista 126 (CARVALHO 125 A luta pela democracia e por novos direitos dos trabalhadores foram fundamentais para impulsionar o surgimento de alguns partidos no país, dentre eles o PT: Na década de 1980, as lutas populares dos movimentos e dos sindicatos pelas conquistas dos direitos e pelo restabelecimento da democracia constituíram-se nas bandeiras de lutas que transformaram o PT em um dos mais importantes partidos brasileiros (FERNANDES, 2003, p. 01). 126 O paralelo feito por Carvalho Filho (2004) mostra que o governo Lula foi um símbolo de esperança para novas mudanças sociais, econômicas e políticas. E o MST representou e representa a outra esperança pela capacidade de mobilização dos pobres do campo na luta contra a pobreza e miséria: É oportuno salientar que o Governo Lula tornou-se uma síntese internacional da esperança de mudança social, econômica e política das sociedades do terceiro mundo. Num outro sentido o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) representa para os movimentos e organizações sociais do campo e da cidade em todo o mundo uma outra esperança: a do sujeito social ativo capaz de motivar e mobilizar os pobres para a superação da miséria e da

147 146 FILHO, 2004). O que enchia de esperança os camponeses, não por uma simples coincidência, mas uma opção política pela semelhança de interesses 127 (SABOURIN, 2008). Uma vez que era chegado à presidência da República um partido e uma pessoa que personificava as lutas dos sem-terra, que traziam na sua história e nas suas origens uma forte ligação com os embates em torno da luta pela terra e pela reforma agrária. Assim, confirma a nota da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, em junho de 2003: Caros amigos do MST. Estimados companheiros e companheiras, queremos enviar essa carta especial para que você conheça o documento que a direção nacional do MST entregou à Presidência da República. São algumas reflexões no intuito de contribuir com o Governo Federal para a elaboração urgente de um Plano Nacional de Reforma Agrária, como determina a lei. O Presidente da República construiu sua trajetória política defendendo a Reforma Agrária. Tem amizade e aliança histórica com o MST. Recebeu-nos com seriedade, amizade e generosidade, como é de praxe dos estadistas. Mas também nos recebeu como presidente eleito pelo MST e pelo povo mais pobre de nosso país. E como parte de nossa aliança histórica, vestiu mais uma vez o nosso boné. Deve estar cansado de usar nosso boné, pois vem usando desde Por outro lado, o MST, ao longo de seus vinte anos de existência, já foi recebido, desde 1984, pelo presidente eleito Tancredo Neves, pelo presidente empossado, José Sarney, por Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, todos em várias oportunidades. Só não fomos recebidos, e nem quisemos, pelo presidente expulso legalmente Fernando Collor. Então qual o motivo para tanta ojeriza da imprensa burguesa, da direita parlamentar e dos fazendeiros? Eles perderam as eleições, mas achavam que era de brincadeirinha, que iam seguir fazendo o que quisessem para manter seus privilégios, como em outras áreas econômicas estão conseguindo. E agora, estão percebendo que de fato a Reforma Agrária não só é um compromisso histórico, mas será uma prioridade do governo federal. Agora, a Reforma Agrária tem o apoio da sociedade, das igrejas, dos trabalhadores rurais sem terra, através de todas as suas entidades, alguns governos estaduais e do Governo Federal (MST, (grifo nosso). Em artigo publicado, o próprio João Pedro Stedile, coordenador Nacional do movimento, fala da esperança em termos de realização da Reforma no governo Lula: pobreza e para a construção de uma sociedade mais justa e equânime [...]O Governo Lula e o MST são referências simbólicas de esperanças maiores e universais: romper com o atraso patrimonialista que impede a liberação das energias sociais e pessoais dos nossos povos (CARVALHO FILHO, 2004, p. 16). 127 Conforme afirmou Sabourin (2008), entre os vários atores e suas concepções, dentro dos debates políticos e sociológicos sobre a Reforma Agrária, alguns grupos se assemelham em termo de seus interesses. Por isso, há um confronto entre grupos e interesses, onde muitos desses se aproximavam e se afastavam devido a posições e concepções com relação ao tema. Dentre os quais se destacavam de um lado os de tendência a defender a inviabilidade da RA, com posicionamento totalmente contrário, formado pela oligarquia fundiária e pelo setor da agricultura patronal,grande parte da classe política e empresarial brasileira ; e o grupo dos defensores de um projeto de desenvolvimento tendo por base a RA como alternativa viável. Esse era formado em 2002 pelos movimentos sociais, os sindicatos de trabalhadores, pastorais sociais da Igreja católica e partidos de esquerda, com destaque ao PT: O debate sobre a política de reforma agrária no Brasil se assemelha às discussões sobre o projeto de sociedade, o desenvolvimento rural, o lugar da agricultura na sociedade e o futuro da agricultura familiar. O debate político, muitas vezes, limita-se ao confronto entre grupos de interesse e também provoca alianças inesperadas. [...] Há ainda uma [...] constituída pelos que defendem a reforma agrária por convicção social, ideológica e econômica. Esta área reúne os movimentos sociais e os sindicatos de trabalhadores rurais, as organizações dos sem-terra, a Igreja católica e os partidos de esquerda, dentre eles, o Partido dos Trabalhadores (PT) (SAUBORIN, 2008, p. 164).

148 147 A vitória do presidente Lula nas eleições mudou a correlação de forças da luta pela reforma agrária no Brasil. Pelos compromissos históricos do PT, sua liderança e como partido de esquerda, temos agora um governo federal que apoia a reforma agrária, ao contrário do que foi o governo de Fernando Henrique Cardoso. Portanto, a disputa se situa em outro plano (STEDILE, 2004, p. 31). Porém, é importante destacar que não somente as raízes históricas contribuiriam para encher de esperança os camponeses, mas pelo fato do presidente Lula e do PT apresentarem um discurso de esperança em torno de um novo Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), mostrando ser a RA uma política necessária e capaz de ser realizada, bastando somente coragem política do presidente 128. Na campanha eleitoral de 2002, a RA era colocada, dentro do programa de governo, como política pública fundamental para o desenvolvimento do país: [...] fruto de um longo acúmulo dos partidos da Coligação Lula Presidente e produto de um amplo diálogo com todos os segmentos partidários e sociais envolvidos na temática rural, define o papel essencial da Reforma Agrária num novo momento da retomada do crescimento previsto em nosso Programa de Governo. Reafirmar o compromisso com a Reforma Agrária é, antes de tudo, um compromisso de construção de uma nação moderna e soberana (PARTIDO DOS TRABALHADORES, PROGRAMA VIDA DIGNA NO CAMPO, 2002, p. 03) (grifo nosso). No documento Vida Digna no Campo: Desenvolvimento Rural, Política Agrícola, Agrária e de Segurança Alimentar, o PT reconhecia as lutas históricas empreendidas pelos camponeses, criticando, inclusive, a forma como foram implementados os assentamentos rurais no país e a postura de repressão e desmobilização aos movimentos sociais, imposta pelo governo FHC, em parceria com a mídia: Na temática agrária, após o longo período de imobilismo, o governo FHC passou a implementar uma política celular de assentamentos, tangido pelas pressões dos movimentos sociais organizados e pelos desdobramentos políticos internos e internacionais de Corumbiara e, posteriormente, de Eldorado de Carajás. [...] O governo adotou também um conjunto de ações sistemáticas de intimidação, repressão e de desmobilização dos movimentos sociais organizados traduzidas em medidas legais, normativas e política de comunicação de massa tentando estigmatizar como ilegais e ilegítimas as pressões dos trabalhadores (PROGRAMA VIDA DIGNA NO CAMPO, 2002, p. 09) (grifo nosso). Esse documento apresentava e colocava a necessidade de um plano nacional de RA que possibilitasse a democratização no acesso à terra, e voltada para a soberania alimentar da população, consolidando a agricultura familiar: 128 Em entrevista à Revista Caros Amigos, Lula já havia afirmado que a RA era possível, bastava vontade política do executivo: Não se justifica num país, por maior que seja, ter alguém com 30 mil alqueires de terra! Dois milhões de hectares de terra! Isso não tem justificativa em nenhum país do mundo! Só no Brasil. Porque temos um presidente covarde, que fica na dependência de contemplar uma bancada ruralista a troco de alguns votos. Luis Inácio Lula da Silva (Revista Caros Amigos, novembro de 2000).

149 148 A implantação de um Plano Nacional para a Reforma Agrária é fundamental para o país, pois irá gerar postos de trabalho no campo, contribuir com as políticas de soberania alimentar, combate à pobreza, e com a consolidação da agricultura familiar. A reforma agrária é também fundamental para dinamizar as economias locais e regionais. A democratização do acesso a terra pressupõe também medidas que ampliem o acesso aos atuais mini-fundiários e seus filhos e filhas, criando condições para sua viabilidade econômica. Esta é uma luta histórica e será uma prioridade estratégica do nosso governo (PROGRAMA VIDA DIGNA NO CAMPO, 2002, p.13) (grifo nosso). Esses posicionamentos sinalizam não somente para a construção do plano em epígrafe a nível nacional, mas também verbalizava a perspectiva das desapropriações como principal mecanismo de obtenção de terras, atendendo aos anseios e expectativas dos camponeses e, principalmente, do MST e dos demais movimentos sociais que ocupavam vários imóveis improdutivos no país: O ponto de partida será a realização de um programa efetivo de reforma agrária, contextualizado ao programa econômico sob o controle do Estado, via instrumento de desapropriação, complementado pelos demais instrumentos convencionais, incluindo política auxiliar de crédito fundiário para regiões e setores específicos. Com a participação da sociedade civil será elaborado Plano Nacional de Reforma Agrária. Serão objetivos operacionais do programa de reforma agrária: 1. Promover o estabelecimento de zonas reformadas, priorizando a desapropriação por interesse social como instrumento de arrecadação de terras improdutivas (PROGRAMA VIDA DIGNA NO CAMPO, 2002, p. 18) (grifo nosso). Por isso, todo o clima de euforia, a partir dos discursos formulados e ditos pelo Partido dos Trabalhadores em torno da possibilidade de realização da RA encheu de entusiasmos os movimentos sociais 129 (CARVALHO FILHO, 2004). O MST via, portanto, no PT um partido que tem origem popular e que trazia um discurso da esperança, reforçando e construindo um novo horizonte: Agora, a Reforma Agrária tem o apoio da sociedade, das igrejas, dos trabalhadores rurais sem terra, através de todas as suas entidades, alguns governos estaduais e do Governo Federal (DIREÇÃO NACIONAL DO MST). Porém, a vitória de Lula também foi marcada por uma conjuntura histórica, política e econômica bem específica. Estabelecida numa disputa territorial, material e imaterial, por posicionamentos e modelos contrários com relação à concepção de agricultura e a forma de 129 Conforme Carvalho Filho (2004), foram poucos ou de forma isolada os momentos da história do país em que houve uma possibilidade de se ter uma conjuntura que se coloca na agenda nacional o debate em torno da RA, favorecendo a classe dos trabalhadores rurais possibilitando uma modificação real na estrutura fundiária. Dentre eles, destacam-se o período de redemocratização e a eleição de Lula, em que se pode-se lançar a experiência de se construir dois planos nacionais de reforma agrária.

150 149 como se realizaria a RA 130 (FERNANDES, 2012). Isso em um contexto da continuidade e avanço das políticas neoliberais, processo que se dava desde a década de Por isso, essa conjuntura justificava a existência e a formulação de uma série de discursos, paralelamente, em torno do mercado e da integração das políticas públicas como caminhos a serem tomados pelo Estado 131. O que explicava que muitas ações e programas de governo do PT, dentre eles o da RA, se deram dentro de uma via do mercado. Caminho que não interpretava a realidade do país a partir das contradições e dos conflitos 132, mas dentro de uma visão em que o capital e suas relações superam os embates e trariam soluções aos problemas existentes no campo 133 (FERNANDES, 2012). Daí, o governo ter vivido um grande dilema e um conflito interno. Ter que possibilitar o avanço do agronegócio, já que era pressionado pelo setor ruralista e pela mídia 134, forçandoo a ter uma perspectiva de desenvolvimento do campo e, consequentemente, da RA, centrada nos interesses do capital como caminho inevitável. E, simultaneamente, teria que apresentar respostas e trazer soluções às ocupações de terra promovidas pelo MST e demais movimentos 130 Segundo nos mostra Fernandes (2012), a disputa territorial em torno da RA, a faz um projeto inacabado dentro do quadro social, político e econômico do país, e um enfrentamento de vários modelos: A reforma agrária brasileira não é um projeto finalizado e tampouco um projeto impossível. Ela é uma disputa territorial realizada pela conflitualidade gerada pelo enfretamento de diferentes modelos de desenvolvimento (FERNANDES, 2012, p. 07). 131 Para Fernandes (2012), o pressuposto de incorporação do desenvolvimento do campo pelo capital e pela via do mercado foi incorporado por setores da economia e pela mídia. Essa incorporação influenciou o processo de visão do campo, das relações e dos sujeitos presentes, criando novos discursos e, inclusive, novos movimentos sociais que carregavam na sua essência essas concepções (FERNANDES, 2012, p. 04). 132 Ao contrário do paradigma da questão agrária (PQA), que entende que o capital de forma contrária e desigual, cria e recria relações não-capitalistas de produção no campo, esse discurso em torno da integração do mercado no campo aparece no Brasil, a partir da década de 1990, vinculado a uma corrente chamada Paradigma do Capitalismo Agrário. Essa perspectiva pode ser vista em ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. 3.ed. São Paulo: EDUSP, Essa perspectiva neoliberal tem reflexos importantes não só na forma como se observou a questão agrária, mas também, o sujeito na sua luta e embates. O que fez com que o campesinato passasse a ser uma classe subalterna e menos necessária (FERNANDES, 2012). Daí, vários debates que colocaram o sepultamento da agricultura camponesa e da figura do camponês (OLIVERA, 2007). 134 O próprio pensamento neoliberal não aceitava a convivência dos movimentos sociais no campo do Brasil, o que resultava no uso da mídia na tentativa da despolitização. O avanço dessa perspectiva fazia com que o agronegócio passasse por uma nova fase de acumulação e fosse visto por seus defensores como a única atividade viável e possível para solucionar os problemas que existem no campo (OLIVEIRA, 2007). Isso o impulsionava e valorizava-o ainda mais, ao mesmo tempo que decretava a impossibilidade de qualquer RA que não fosse nesse sentido. Por isso, os discursos incorporados pela classe empresarial e pela mídia no país eram no sentido de superação do sujeito camponês, substituindo as noções deste e de agricultura camponesa, por agricultor e agricultura familiar (OLIVEIRA, 2007). Inclusive, a mídia no governo Lula se tornou um espaço de debate político intenso, lançando críticas e construindo uma imagem negativa dos programas do governo. O próprio Programa Fome Zero, que era o carro-chefe do PT e que tinha como objetivo principal implementar uma política de segurança alimentar no país, acabando com a fome e suas causas estruturais que estavam no centro da reprodução da pobreza, miséria e exclusão social, sofria duras críticas (OLIVEIRA, 2003).

151 150 sociais que atacavam diretamente a forte concentração fundiária bem como o avanço e intensificação do neoliberalismo. Esse dilema e contradição entre apoiar o agronegócio e, ao mesmo tempo, os camponeses estavam presentes no próprio discurso de campanha para primeiro mandato ( ). A partir do programa Vida Digna no Campo, observamos essa conjuntura histórica de grande disputa territorial (material e imaterial): A agricultura é um dos pilares fundamentais do nosso programa de governo, pois este setor é essencial para garantir a segurança alimentar de nosso povo, para a geração de empregos e de renda, para reduzir nossa dependência externa [...] As políticas para agricultura familiar devem se desenvolver em paralelo àquelas orientadas para a agricultura empresarial. A agricultura empresarial gera empregos, renda e excedentes exportáveis. A agricultura familiar, além da produção de alimentos básicos de qualidade, também promove a ocupação soberana do nosso território; preserva tradições culturais do nosso país; mantém as pessoas em sua terra natal; pode contribuir na defesa de nosso meio-ambiente [...] Uma agricultura pujante é sempre capaz de produzir todos os alimentos necessários para o mercado interno e ainda contribuir fortemente para um novo programa de incentivo às exportações, desde que estimulada adequadamente com financiamento permanente para a frota e para a produção. (PROGRAMA VIDA DIGNA NO CAMPO, 2002, p. 03) (grifo nosso). O mesmo embate esteve presente, posteriormente, no II PNRA: O cenário de retomada do crescimento econômico e de expansão das exportações agrícolas, combinado com as metas do Programa Fome Zero de inclusão de 44 milhões de pessoas no Programa Bolsa-Família em 4 anos, projeta uma ampliação da demanda por alimentos e produtos agrícolas que deverá ser suprida pela produção da agricultura familiar e dos assentamentos de Reforma Agrária (II PNRA, 2003, p. 07). Só para se ter uma noção da disputa territorial estabelecida entre MST e demais movimentos sociais contra os latifundiários e o agronegócio, basta retomarmos o discurso em torno das ações na luta pela terra e pela RA, a partir do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, em Abril de Neste encontro, várias entidades e movimentos sociais que atuavam no campo 135 construíram uma plataforma política e apresentaram ao governo um programa unitário, em torno da Via Campesina, intitulado: Carta da Terra em defesa da reforma agrária e da agricultura familiar 136. Este constituiu-se num documento que apresentava pontos em torno 135 Dentre os grupos que assinaram o documento, estavam: Contag, MST, Fetaf-SUL, CPT, Cáritas, ANMTR, MPA, MAB, CNBB, CMP, Conic, Condsef, Pastorais Sociais/CNBB, MNDH, MTL, Abra, Abong, APR, Aspta, Capoib, Centro de Justiça Global, Cese, Cimi, Cnasi, Deser, Esplar, Fase, Fazer, Feeab, Fian-Brasil, Fisenge, Ibase, Ibrades, Idaco, Ieclb, Ifas, Inesc, MLST, PJR, Rede Brasil, Rede Social de Justiça, Renap, Sinpaf e Terra de Direitos. 136 Tomamos esse documento como referência do discurso do MST, uma vez que a partir das mudanças e da expansão do capital internacional e do pensamento neoliberal no Brasil, várias organizações camponesas e

152 151 dos caminhos e mudanças necessários no campo, por meio de novas atitudes com relação à agricultura familiar e à RA. A Carta verbalizava em torno da implementação de políticas públicas de desenvolvimento rural e de uma melhor qualidade de vida à população do campo, a partir da democratização do acesso à terra, do direito ao trabalho sem exploração, da produção de alimentos. Para isso, fazia-se necessário à construção de um plano nacional de RA que fosse uma alternativa para um desenvolvimento sustentável e solidário e que deveria alterar radicalmente o atual modelo de desenvolvimento agropecuário, excludente, predatório e concentrador de terra, renda e poder (STEDILE, 2005, p. 233). Esse programa constava com os seguintes objetivos: 1 a desapropriação dos latifúndios como o caminho constitucional para garantir a função social da terra; uma legislação que limite o tamanho das propriedades rurais através de emenda constitucional e o confisco integral de todas as terras onde houver trabalho escravo, exploração de trabalho infantil, cultivo de plantas psicotrópicas e daquelas usadas para práticas de contrabando ou adquiridas mediante práticas ilegais; 2 o respeito aos direitos humanos no campo, combatendo todas as formas de violência e o fim da impunidade; o reconhecimento e a demarcação das terras das comunidades indígenas e das áreas de remanescentes de quilombos; a criação de reservas extrativistas; a formulação de políticas públicas que respeitem a organização sociocultural e as formas de apropriação e uso dos recursos naturais dos índios e quilombolas e de populações como os ribeirinhos, seringueiros, quebradeiras de coco e outras; 3 o planejamento da produção familiar que leve em consideração as diversidades regionais, sua viabilidade e sustentabilidade econômica, social e ambiental com linhas de crédito de custeio e investimento acessíveis, com programas de seguro agrícola e de serviços de assistência técnica pública, gratuita e de qualidade e com garantia de preços mínimos justos e de comercialização da produção; 4 a implantação de agroindústrias populares nos municípios do interior, nas diversas formas cooperativas e associativas, para as quais sejam destinados prioritariamente os recursos públicos, para melhorar a renda das famílias e promover um processo de interiorização do desenvolvimento e da economia solidária; 5 a produção de sementes pelos próprios agricultores e agricultoras, inclusive com incentivos às iniciativas populares de resgate das sementes crioulas, como forma de garantir as sementes como patrimônio da humanidade. Para tanto, combatem o patenteamento de seres vivos e a liberação da produção comercial e uso de sementes movimentos sociais, inclusive o MST, passaram a promover um intercâmbio nacional e internacional, buscando a união e da unidade da luta empreendida pelos camponeses. O que representa para o MST uma perspectiva de construção de um novo discurso com relação a RA e, principalmente, sobre o camponês do século XXI e alguns eixos fundamentais para o desenvolvimento do campo, como: [...] o respeito à diversidade e à biodiversidade que inclui todos os bens da natureza, os ecossistemas, as culturas dos povos, enfim, todas as formas de vida vegetal, animal, as relações humanas e econômicas, os hábitos e culturas, sendo ela nossa própria forma de vida como campesinato (LAZZARETTI, 2007, p. 196). Porém, ainda segundo Lazzaretti (2007), é válido destacar que o MST não modificou os seus discursos internos e as palavras de ordem com relação à luta pela terra: [...] o MST, aderindo à Via camponesa, não modificou de maneira sensível seu discurso interno, suas palavras de ordem e seus conteúdos de educação e formação das bases. Em particular, não houve uma reflexão ampla e interna sobre o que poderia ser o modelo camponês moderno para o século XXI (Carvalho, 2005) como isso aconteceu em outros movimentos integrantes da Via campesina Brasil (em particular o MPA e a PJR) (LAZZARETTI, 2007, p. 197).

153 152 transgênicas, indutoras de monopólio que destrói a soberania dos agricultores e são nocivas ao meio ambiente e à saúde humana; 6 o desenvolvimento e a disseminação de novas técnicas agrícolas não agressivas ao meio ambiente, implantando sistemas agropecuários sustentáveis que eliminem o uso de agrotóxicos; a preservação dos recursos hídricos e a democratização do acesso a fontes e mananciais de águas como bens públicos e patrimônio da sociedade; 7 a melhoria e o fortalecimento do sistema previdenciário baseado na seguridade social, pública e universal, permitindo o acesso e a permanência dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no regime geral da Previdência Social, garantindo uma vida digna à população do campo; 8 a implementação das diretrizes operacionais para a educação básica aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação nas escolas no campo, localizadas prioritariamente nos projetos de assentamentos, comunidades e distritos rurais, reforçando a utilização de práticas educativas que tenham como referência a terra e a água, a organização e a cultura do campo, facilitando o acesso às escolas, combatendo o analfabetismo e garantindo o direito de todos à educação de qualidade em todos os níveis; 9 a garantia de igualdade de oportunidades e direitos para mulheres e jovens que corrijam discriminações decorrentes de práticas e sistemas sociais injustos, buscando sua inclusão social a partir de ações afirmativas para que seu potencial organizativo e suas habilidades produtivas sejam aproveitados na construção de alternativas de desenvolvimento e de soberania; 10 a elaboração de políticas públicas específicas para cada região do país, sobretudo para as que sofrem com condições climáticas adversas, com ênfase ao desenvolvimento de políticas de convivência com o semiárido brasileiro, especialmente o nordestino (onde se concentra o maior número de agricultores e agricultoras familiares) que, submetido ao esgotamento dos recursos naturais, a práticas clientelistas históricas e a tecnologias inadequadas, fica à mercê de programas compensatórios, fazendo-se urgente uma política de desenvolvimento sustentável para o mesmo (STEDILE, 2005, p. 233). Também, em julho de 2003, com sete meses de governo, o MST apresenta à Presidência da República uma proposta para a RA de base popular, com dezenove (19) pontos que abordavam os seguintes temas: terra, assentamentos, educação, direitos humanos, combate à impunidade e preocupações em geral. Este documento caminhava muito próximo da Carta da Terra, principalmente, na necessidade urgente de construção e implementação de um Plano Nacional de RA: A - TERRA: 1- Agilizar a elaboração e implantação de um Plano Nacional de Reforma Agrária, que contemple o assentamento de 1 milhão de famílias de trabalhadores rurais sem terra no período de 2003 a 2006; 2- garantir o imediato assentamento das 120 mil famílias que estão acampadas em todo território nacional; 3- fortalecer o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) como organismo de reforma agrária, com recursos financeiros e humanos; 4- preservar o Imposto Territorial Rural (ITR) como um imposto complementar da reforma agrária, vinculado à Receita Federal; e 5- determinar a desapropriação das fazendas que não cumprem a função social, que tenham trabalho escravo, ligadas ao contrabando, com plantações de psicotrópicos, que não cumprem as leis trabalhistas, que promovem agressões ao meio ambiente e as terras públicas griladas (roubadas). Determinar que os bancos estatais e o INSS (Instituto Nacional de Segurança Social) coloquem imediatamente à disposição da reforma agrária todas as áreas hipotecadas aos cofres públicos. B - ASSENTAMENTOS:

154 Criar um programa de crédito especial para reforma agrária, nos moldes do Procera, desburocratizado, que estimule a cooperação, a agroindústria, a agroecologia e dê condições para estruturar o desenvolvimento econômico e social das famílias assentadas; 2- desenvolver um programa de assistência técnica com equipes multidisciplinares e que tenha como referência um técnico para cada 100 famílias, sob a organização dos assentados; 3- implantar um programa de agroindústria cooperativada em assentamentos da reforma agrária - vide proposta anexo; 4- estimular a implantação de um novo modelo tecnológico, baseado na agricultura orgânica, na multiplicação das sementes pelos agricultores e produção de seus insumos; e 5- garantir condições para a implantação de infra-estrutura básica em todos os assentamentos, como: estradas, energia elétrica, habitação, saneamento básico, atendimento à saúde, cultura e lazer C - EDUCAÇÃO: 1- Associar a reforma agrária a um programa massivo de educação no campo; 2- intensificar a campanha pela erradicação do analfabetismo nas áreas de assentamentos, sendo necessário alocar mais recursos financeiros ao MEC (Ministério das Educação e Cultura) para essa finalidade; 3- promover um programa de capacitação profissional envolvendo 20 mil jovens e adultos das áreas de assentamentos e acampamentos; e 4- fortalecer o Programa Nacional de Educação nas Áreas de Reforma Agrária (Pronera) e destinar ainda em 2003 R$ 30 milhões (cerca de US$ 10 milhões) para essa finalidade. D - DIREITOS HUMANOS E COMBATE À IMPUNIDADE: 1- Aprovar Projeto de Emenda Constitucional que transfere para a esfera Federal a competência para investigar e processar os crimes contra os direitos humanos; e 2- determinar a abertura de inquérito pela Polícia Federal contra os fazendeiros que utilizam milícias armadas, incitam a violência e o crime, e mantêm vinculação com o narcotráfico e contrabando de armas. E - PREOCUPAÇÕES GERAIS: 1- Manifestamos nossa posição contrária à liberação do plantio e comercialização dos produtos transgênicos; 2- manifestamos nossa posição contrária à implementação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e defendemos a integração soberana entre todos os países Latino-americanos e Caribenhos; e 3- defendemos um novo modelo agrícola voltado para a geração de emprego, produção de alimentos para o mercado interno, soberania alimentar, e a valorização da vida no campo; (MST; Fonte: A pressão em torno do problema agrário não ficou somente no discurso. A cobrança do MST e dos demais movimentos sociais também foi exercida por ações que visavam à construção de uma política de RA que tivesse de fato a capacidade de intervenção na estrutura agrária concentrada no país e que permitisse novos horizontes à população camponesa 137. Por isso, retomou-se com mais intensidade as ocupações dos latifúndios, crescendo o número de acampamentos no país. 137 Para os movimentos sociais, com destaque para o MST, a realização da RA de forma massiva e ampla se daria por meio de uma política de assentamentos rurais que teriam como base a desapropriação dos latifúndios e que possibilitassem um processo emancipatória e novas formas de resistência e autonomia dos camponeses (FERNANDES, 2012).

155 154 Só para se ter uma dimensão da retomada da luta empreendida no campo, em 2001/2002, ainda no governo FHC, como já mostramos, as ocupações de terra tinham chegado a um patamar de 378, com a participação de famílias. Somente em 2003, no primeiro ano de mandato do PT, houve 391, envolvendo famílias sem-terra 138 (CPT, 2003). Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 2001 e 2002, havia no Brasil 129 acampamentos, nos quais famílias estavam acampadas, sendo, respectivamente, e para cada ano. Desse total, (76,11%) das famílias estavam em acampamentos coordenados pelo MST (Tabela 10). Já no primeiro ano de mandato do PT, havia 284 acampamentos em 21 estados da federação. As famílias que se encontravam acampadas, principalmente, próximas às estradas e rodovias federais e/ou estaduais e em fazendas, passaram para , um aumento de (Gráfico 1). Ao mesmo tempo, com apoio do MST, esse número somente apresentou crescimento, passando de entre 2001 e 2002, para , um aumento percentual de mais de 100%. Tabela 10: Brasil Acampamentos 2001/2003 Anos Acampamentos N de famílias N de famílias no MST Total Fonte: CPT, 2001, 2002, 2003; Organizado: Hugo A. Morais. 138 Os números das ocupações e das famílias envolvidas só cresciam mesmo com a existência das MP das ocupações, aprovadas em 2001, pelo então presidente Fernando Henrique. Porém, mesmo não sendo revogadas por Lula, é importante destacar que não houve por parte do governo uma criminalização dos movimentos sociais. Assim, afirmou Ramos Filho (2008): Ao longo do primeiro mandato, Lula não revogou a MP das Ocupações, criada no governo FHC, mas não promoveu ações ao seu cumprimento e de criminalização dos movimentos socioterritoriais camponeses (RAMOS FILHO, 2008, p. 234).

156 155 Gráfico 01: Brasil Número de famílias acampadas por Estado Fonte: CPT, 2003; Organizado: Hugo A. Morais. Por isso, a pressão política exercida a partir das ocupações de terra do MST foi no sentido de chamar a atenção do governo Lula para a situação da classe de trabalhadores rurais e da necessidade de se ter um novo modelo de desenvolvimento rural no país, passando, incondicionalmente, pela RA. Porém, a falta de compreensão dos governos anteriores com relação aos problemas no campo, além dos interesses de defesa da classe de proprietários de terra, fez com que toda forma de relação estabelecida entre os movimentos sociais e o governo Lula se desse sob pressão 139 (CARVALHO FILHO, 2004). Naquele momento histórico, o Estado foi refém de um contexto de fortes conflitos sociais existentes no campo e de uma disputa territorial intensa, entre o MST e o agronegócio. Isso fez com que o governo Lula tomasse a posição de um grande conciliador sem tomar partido (CARVALHO FILHO, 2004), levando-o a se colocar em certos momentos a favor 139 Conforme Carvalho Filho (2004), essa incompreensão dos governos no Brasil com relação aos conflitos no campo fazem com que as políticas em torno da RA sejam construídas por meio de fortes pressões sociais que veem do campo: Nesse particular há uma grave incompreensão do conflito social no campo por parte do governo. O processo continuado de não cumprimento de promessas e acordos por parte dos governos anteriores decorrentes das negociações sobre as reivindicações dos movimentos e organizações sociais e sindicais de luta pela terra, acrescido das ações de contra-reforma agrária, forjou uma nova forma de relação da sociedade civil organizada do campo com o governo: toda negociação será sempre sob pressão. E pressão aqui significa denúncias públicas de não cumprimento de acordos, mobilizações de massa, caminhadas e ocupação de prédios públicos e de latifúndios (CARVALHO FILHO, 2004, p. 16).

157 156 dos movimentos sociais 140 ; em outros sendo mais conveniente com os empresários do agronegócio e com a estrutura social, política e econômica estabelecida pelos mesmos. O que fez com que o discurso em torno do II PNRA apresentasse grandes fragilidades. O governo não tinha uma estratégia de RA que possibilitasse trazer soluções aos conflitos no campo e caminhos que possibilitassem a transformação da estrutura socioeconômica existente. Daí, a sustentação de um plano que se justificava na Lei e não na marra, como verbalizava o presidente: "A lei será cumprida ao pé da letra. Chamamos a atenção dos semterra e também dos proprietários rurais [...] Na marra ninguém faz nada". E essa fragilidade tem reflexos diretos na forma como foi lançado o II PNRA e como se deu a condução da RA no Governo Lula, possibilitando que farsa e história caminhassem lado a lado: [...] de há muito neste país, história e farsa, farsa e história se confundem aos olhos dos mortais (OLIVEIRA, 2007, p. 154) O Plano Plínio e a sua derrota Diante desse quadro tão intenso de disputa territorial entre o MST e demais movimentos sociais contra o agronegócio, a Presidência da República tomou ações no sentido de colocar a RA como agenda do governo, por meio do discurso de sua realização. Para isso, nos oito primeiros meses de mandato, o governo Lula abriu espaço para que movimentos sociais, com destaque para o MST e a CPT, participassem da construção de políticas e formas de assistência a assentamentos com situações precárias. Inclusive, indicando nomes para compor o quadro institucional do INCRA 141. Também, nesse período, começava a elaboração do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). 140 A conjuntura histórica e política em torno do II PNRA é marcada por três fatores distintos do primeiro Plano. Primeiro, a existência de movimentos sociais fortes e organizados nos vários espaços do país impossibilitou a construção de uma política de reforma agrária com uma capacidade de intervenção forte na estrutura agrária concentrada no país. O segundo aspecto refere-se aocontexto político e econômico trazido pela globalização da economia mundial. Esse processo de mundialização do capitalismo possibilitou o avanço de perspectivas neoliberais no país, o que teve implicações diretas na organização e relações de trabalho no campo, refletindo inclusive na forma como o Estado conduziu a RA. O terceiro aspecto é a eleição de um presidente que tem nas suas origens e no seu partido claro comprometimento com as causa populares e com a RA (CARVALHO, 2004). 141 Dentre os nomes indicados, estava o de Marcelo Rezende à presidente do INCRA. Essa indicação representava uma inserção maior dos movimentos sociais da Via Campesina na representação política dentro do MDA e do INCRA.

158 157 Esse era um momento em que se tentava resolver o problema agrário por meio de diálogo, buscando soluções reais à situação dos camponeses: Durante os primeiros oito meses de 2003, o INCRA tratou os conflitos fundiários como problema a ser resolvido com a implantação de uma política de reforma agrária. Desse modo, procurou solucionar os conflitos por meio do diálogo e da busca de soluções, procurando romper com as medidas repressivas criadas pelo governo FHC (FERNANDES, 2003, p. 05). Trata-se de um dos pontos ao qual chamamos a atenção em termos de avanços do governo Lula com relação aos governos anteriores: a não criminalização e repressão aos movimentos sociais (CARVALHO FILHO, 2004). A Presidência da República apresentou no início de seu mandato uma atitude de maior diálogo com relação aos movimentos que lutavam pela terra e RA no país, permitindo que os mesmos participassem da elaboração de propostas e metas: [...] houve colaboração por parte dos movimentos no sentido de acordar com o governo um conjunto de metas que significassem uma política fundiária aceitável (CARVALHO FILHO, 2006, sem página). E dentro dessa tentativa, formou-se uma equipe com pesquisadores e intelectuais de universidades e instituições ligadas a pesquisas em torno do problema agrário, coordenadas pelo economista Plínio de Arruda Sampaio. Esse grupo tinha como objetivo construir um plano que possibilitasse a realização da RA e que trouxesse soluções para o tamanho da envergadura do problema. Tal plano ficou conhecido como O Plano Plínio, o qual e tinha como objetivo principal assentar hum milhão de famílias: O objetivo principal da Proposta era iniciar um processo que, de fato, levasse o governo Lula a uma política com potencial de impacto significativo na desconcentração fundiária do País e, assim, confrontasse as forças do latifúndio que sempre impediram políticas desse tipo (CARVALHO FILHO, 2004, p. 337). Na proposta elaborada pela equipe, foram levantadas as seguintes metas: Meta 1 Dotar um milhão de famílias de trabalhadores pobres do campo com uma área de terra suficiente para obter, com seu trabalho, uma renda compatível com uma existência digna. Essa meta seria cumprida em quatro anos (2004 a 2007), com duzentas mil famílias assentadas anualmente, nos três primeiros anos, e quatrocentas mil no último ano do Plano Plurianual de Investimentos (PPA). Meta 2 Assegurar às famílias beneficiárias das ações de reforma agrária e dos agricultores familiares uma renda bruta mensal equivalente a três salários mínimos e meio, composta de renda monetária e valor de autoconsumo. Meta 3 Criar 2,5 milhões de postos de trabalho permanentes no setor reformado. Meta 4 Consolidar os assentamentos de reforma agrária já constituídos, mas que ainda não atingiram a meta de renda fixada para os novos assentamentos. Meta 5 Regularizar os quilombos.

159 158 Meta 6 Regularizar a situação dos agricultores ribeirinhos desalojados para a construção de barragens. Meta 7 Reassentar, fora do perímetro das áreas indígenas, posseiros com posses de até 50 ha, atualmente estabelecidos naquelas áreas. Meta 8 Efetuar o levantamento georeferenciado do território nacional, a fim de sanear definitivamente os títulos de propriedade de terras do país. Meta 9 Atender aos assentados e aos agricultores familiares das áreas de reordenamento fundiário e desenvolvimento territorial com assistência técnica, extensão rural e capacitação. Meta 10 Levar, por meio do Plano de Safra, o crédito agrícola e a garantia de preços mínimos aos assentados e agricultores familiares. Esta meta é fundamental para viabilizar o nível de renda prevista. A eficácia da política depende também de outra sugestão da proposta, qual seja, assentar e atuar adensando os agricultores assentados e atuais agricultores familiares em territórios, constituindo áreas reformadas (CARVALHO FILHO, 2004, p, 338). Ao mesmo tempo, a desapropriação de terras seria o instrumento principal somada a uma política agrícola dirigida diretamente aos assentados e aos camponeses. Com essa perspectiva, a RA tornar-se-ia massiva e eficiente (CARVALHO FILHO, 2004). O Plano também contaria com um orçamento definido para ser investido na implementação e estruturação dos PA. Destacavam-se os investimentos na obtenção de terras e na construção de moradias: O Plano estima os investimentos específicos na Reforma Agrária para a obtenção de terras, construção da moradia e implantação do assentamento. Essas são as ações que demandam recursos orçamentários, seja para novos assentamentos, a base de R$ 24 mil por família assentada, seja para antigos assentamentos, onde se investirá para sua recuperação. Nesse último caso, não haverá gastos nas categorias de obtenção e construção de moradia, mas tão-somente para completar adequadamente sua implantação. Esse investimento terá uma parcela que será paga em vinte anos pelo assentado terra e moradia, e outra não ressarcível os gastos de implantação, que são de responsabilidade do Estado e se caracterizam como investimentos de usufruto coletivo (Ibidem, 2004, p, 339). Além de ter apresentado uma perspectiva de maior integração entre o Plano e outras políticas sociais do governo, no sentido de garantir aos assentados uma possibilidade de criar estratégias de sobrevivência e de possibilitar uma renda mínima para as suas famílias: [...] o Plano contempla um conjunto de ações conexas à Reforma Agrária no âmbito do Plano de Safra e das políticas sociais, cujo objetivo central é garantir aos novos assentados, assim como aos antigos beneficiados pela nova estratégia, a obtenção de uma renda bruta familiar de 3,5 salários mínimos equivalente ao ano (Ibidem, 2004, p, 339). Porém, como em política vale tudo 142, a RA não foi feita com uma canetada só e O Plano Plínio e suas metas não foram colocadas em prática pelo governo Lula. No seu lugar foi apresentado à sociedade: 142 Segundo Oliveira (2007), a tentativa de construção do II PNRA com a participação dos movimentos sociais e sob a coordenação de Plínio de Arruda Sampaio foi uma forma de mostrar que quando o assunto é a reforma

160 159 [...] um plano muito menos generoso que a Proposta no que diz respeito ao número de famílias assentadas. Essa timidez implica impacto muito menor na concentração fundiária. O documento fonte destas informações não apresenta previsão de custos e estimativas de tamanho de lote. Também não esclarece sobre a preferência que deve ser dada aos trabalhadores acampados, que no caso da Proposta deveriam ser assentados no primeiro ano de vigência do Plano. O documento governamental dá ênfase às ações de regularização e crédito fundiário. Na Proposta, essas ações são consideradas apenas como complementares. A regularização não é instrumento básico de reforma agrária, embora possa ser utilizada para regularizar pequenas posses em áreas reformadas (Ibidem, 2004, p, 338). Esse fato fez com que a esperança na RA, construída e verbalizada pelo governo Lula, se tornasse frustração: De início, houve esperança na concretização da aspirada reforma agrária. Foi encomendada uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). [...] A proposta não foi aceita. Em seu lugar o governo anunciou o II PNRA. Mais tímido em suas metas, significou o abandono da pretensão de instalar um processo de alteração da absurda estrutura agrária brasileira. Mesmo assim, houve colaboração por parte dos movimentos no sentido de acordar com o governo um conjunto de metas que significassem uma política fundiária aceitável. Nova frustração (CARVALHO FILHO, 2006, sem página). Uma frustação ainda maior para os movimentos sociais e para o MST que sofreram com duras derrotas. Dentre elas, a saída de Marcelo Rezende da presidência do INCRA. Sua demissão representava o início não somente da derrota do Plano Plínio, mas também o fim da participação dos trabalhadores do campo com relação à elaboração de propostas junto ao governo (OLIVEIRA, 2007). Ao mesmo tempo, essa demissão representou de forma simbólica que o governo Lula não faria a Reforma Agrária tal qual enunciada: Logo no início de seu mandato, a demissão de Marcelo Rezende, o superintendente do Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária (Incra), a pedido dos ruralistas, anunciava que os inimigos das mudanças sociais eram poderosíssimos no governo Lula. Homem de confiança da Comissão Pastoral da Terra e do MST, sua demissão anunciava o que o tempo deixaria absolutamente comprovado: o governo Lula não faria a reforma agrária (SAMPAIO JR, 2013, p. 225). Tais ações representavam a incapacidade do governo de enfrentar o latifúndio que bloqueava qualquer tentativa de uma Reforma Agrária que buscasse desconcentrar a estrutura fundiária no país 143 (SAMPAIO JR, 2013). Atitudes que sinalizavam que houve um agrária no Brasil, o Estado entende esse tema a partir da concepção do vale tudo : A experiência da participação na equipe de Plínio de Arruda Sampaio no segundo semestre de 2003, para elaborar o primeiro documento que deveria ser o II PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária foi muito importante para que se pudesse reforçar a consciência de que em política vale tudo. No governo de FHC do PSDB não foi diferente, no governo Sarney do I PNRA também não foi diferente. Aliás, na ditadura militar, também não foi diferente (OLIVEIRA, 2007, p. 163). 143 Segundo Sampaio Jr. (2013), o Estado brasileiro é incapaz de enfrentar o latifúndio e de impedir qualquer tentativa dessa classe de bloquear a realização da RA: O bloqueio à reforma agrária confirma as interpretações

161 160 desavergonhado abandono do Plano Plínio constituiria a total e definitiva ruptura com a Reforma Agrária de cunho popular (SAMPAIO Jr, 2013). O que necessariamente forçava o governo a apresentação de outro plano que rebaixava e não colocava em prática as metas estabelecidas anteriormente: Depois de rebaixar as metas propostas pela equipe técnica, o governo abandonou completamente a reforma agrária (Ibidem, 2013, p. 222). A própria correlação de forças e as alianças feitas pelo PT com a direita política do país, contrariando a bandeira histórica do partido em defesa dos trabalhadores 144, impossibilitaram a realização do Plano Plínio e confirmou a tendência do governo Lula em repetir os mesmos erros do governo FHC: da dualidade com relação a RA e agricultura camponesa, uma vez que apresenta um discurso de apoio, mas tem práticas que não conduzem à Reforma: A dualidade da política agrícola brasileira introduzida pelo segundo governo Cardoso foi assim mantida, institucionalizada e até exacerbada, pelo menos nos discursos (SABOURIN, 2007, p. 716); e de conceber a RA como sendo uma política compensatória, a partir da [...] prática da não reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 174). Por isso, um novo plano, intitulado de II Plano Nacional de Reforma Agrária: paz, produção e qualidade de vida no meio rural (II PNRA), foi elaborado pela equipe de técnicos de Miguel Rosseto, então ministro do Desenvolvimento Agrário e representante da classe patronal. que enfatizavam a total falta de disposição do Estado para enfrentar o latifúndio. O fracasso de todas as iniciativas de impulsionar a desconcentração da estrutura fundiária não deixa margem a dúvidas. A decisão de não fazer a reforma agrária responde a uma razão de Estado. Fechando os espaços para uma solução socialmente construtiva para a questão agrária, a burguesia reitera a importância estratégica do latifúndio como uma das bases fundamentais do padrão de acumulação e dominação do capitalismo brasileiro (SAMPAIO JR, 2013, p. 225). 144 Conforme afirma Ramos Filho (2008), essa forte coalisão política inviabilizou o Plano, sendo este substituído por uma proposta mais tímida e de princípios conceituais neoliberias: Todavia, as alianças políticas formadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e setores conservadores ligados a partidos de direita como, por exemplo, o Partido Liberal (PL), manteve a correlação de forças verificada durante o governo FHC. A formação do governo Lula é contraditória, pois o PT, partido governista, defendeu durante anos a bandeira da reforma agrária em defesa dos movimentos de luta pela terra. O governo capitulou frente às pressões do setor ruralista e rejeitou o documento, substituindo-o por uma proposta mais tímida, de formulação teórico-conceitual alinhada com princípios liberais (RAMOS FILHO, 2008, p. 226).

162 O II Plano Nacional de Reforma Agrária: o discurso do desenvolvimento territorial sustentável e dos territórios de produção e qualidade de vida O II Plano Nacional de Reforma Agrária: paz, produção e qualidade de vida no meio rural foi lançado em 2003, na Conferência da Terra, em Brasília, evento que reuniu vários movimentos sociais e entidades da luta pela terra 145. A proposta governamental pode ser vista por duas perspectivas: uma, pelas metas quantitativas e qualitativas; e outra, pelos princípios e dimensões de concepção da RA. Dentre as metas de caráter qualitativo e quantitativo, para o período entre , o II PNRA estabeleceu onze (11) no total: META novas famílias assentadas META famílias com posses regularizadas META famílias beneficiadas pelo Crédito Fundiário META 4 Recuperar a capacidade produtiva e a viabilidade econômica dos atuais assentamentos META 5 Criar novos postos permanentes de trabalho no setor reformado META 6 Implementar cadastramento georreferenciado do território nacional e regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais META 7 Reconhecer, demarcar e titular áreas de comunidades quilombolas META 8 Garantir o reassentamento dos ocupantes não índios de áreas indígenas META 9 Promover a igualdade de gênero na Reforma Agrária META 10 Garantir assistência técnica e extensão rural, capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas as famílias das áreas reformadas META 11 Universalizar o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas reformadas. (II PNRA, 2003, p. 38). As metas acima destacadas retratariam o compromisso do governo com a realização de uma grande RA massiva e de qualidade que possibilitasse: [...] produzir uma profunda transformação no meio rural brasileiro e impulsionar um novo padrão de desenvolvimento com igualdade e justiça social, democracia e sustentabilidade social (II PNRA, 2003, p. 38). Diante de tais metas, o II PNRA verbalizava em torno da afirmação de ser a RA um compromisso do governo: A reforma agrária é mais do que um compromisso e um programa do governo federal. Ela é uma necessidade urgente e tem um potencial transformador da sociedade brasileira (Ibidem, p. 05). Uma transformação que passaria pela compreensão e 145 Como o I PNRA, o II Plano foi lançado em Brasília, em um evento que reuniu vários movimentos sociais que lutavam pela terra e pela RA. Seguindo o mesmo roteiro de apresentação e propostas em torno da temática que acalmaria as tensões sociais e possibilitaria uma ação rápida para atender as necessidades e as aspirações de milhões de trabalhadores rurais. Porém, nesse caso, como já assinalamos, o contexto de lançamento do II PNRA conta com movimentos sociais mais fortes e organizados, principalmente o MST, se comparado a década de 1980, quando estava no seu processo incial de expansão nacional da luta pela terra em torno das ocupações e acampamentos.

163 162 reconhecimento da realidade no campo, e que se apresentava por meio da sua diversidade social, política e econômica, além das especificidades e potencialidades de cada região. Com isso, o objetivo central seria possibilitar a construção de um espaço rural com paz, produção e justiça social: O meio rural brasileiro precisa se tornar, definitivamente, um espaço de paz, produção e justiça social. A reforma agrária é uma ação estruturante, geradora de trabalho, renda e produção de alimentos, portanto, fundamental para o desenvolvimento sustentável da nação (Ibidem, p. 05). Um processo que se daria em torno da necessidade urgente de transformação da sociedade por meio da RA, possibilitando a construção de um projeto de nação moderna e soberana (II PNRA, 2003). Promovendo transformações e gerando emprego, renda, seguridade alimentar, justiça social: A Reforma Agrária é reconhecida como condição para a retomada do crescimento econômico com distribuição de renda e para a construção de uma nação moderna e soberana. Ela promove a geração de empregos e renda, a ocupação soberana e equilibrada do território, garante a segurança alimentar, promove e preserva tradições culturais e o meio ambiente, impulsiona a economia local e o desenvolvimento regional (Ibidem, 2003, p. 07). Com uma perspectiva de retomar a trajetória do I PNRA 146, a proposta do governo apresentava um discurso baseada em uma visão de RA ampla e massiva, a partir da democratização do acesso à terra e de ações que conduziriam a novas formas de estrutura produtiva, fortalecimento das comunidades mais pobres e construindo novos padrões de vida, comercialização, assistência técnica e relações de preservação da natureza. Para isso, seria necessário: [...] a democratização do acesso à terra, desconcentrando a estrutura fundiária, e ações dirigidas a impulsionar uma nova estrutura produtiva, fortalecendo os assentados da Reforma Agrária, a agricultura familiar, as comunidades rurais tradicionais e superando a desigualdade de gênero. Esta profunda mudança no padrão de vida e de trabalho no meio rural envolve a garantia do crédito, do seguro agrícola, da assistência técnica e extensão rural, de políticas de comercialização, de agroindustrialização, de recuperação e preservação ambiental e de promoção da igualdade (Ibidem, p. 08). O público alvo ou os beneficiados dessas ações giravam em torno de 50 milhões de pessoas. Esse universo constituía um grupo que tinha acesso à terra como possibilidade real e 146 O II PNRA afirma ser uma retomada do que se buscou no plano governamental passado: Trata-se de um plano que integra um Programa de Governo e um Projeto para o Brasil Rural que busca retomar a trajetória anunciada pelo I Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborado em 1985 como uma das expressões do projeto de redemocratização do país (II PNRA, 2003, p. 08)

164 163 que não exercia uma condição social e econômica que lhe possibilitasse qualquer forma de autonomia: Este público é formado por: trabalhadores rurais sem terra, público potencial de novos assentamentos; atuais assentados, que necessitam de infra-estrutura e apoio à produção; um imenso setor da agricultura familiar que ainda não acessa os mecanismos do Plano Safra; posseiros, marcados pela insegurança jurídica em relação ao domínio da terra que lhes restringe o acesso às políticas agrícolas e os expõe a ameaças de despejo; populações ribeirinhas; comunidades quilombolas, que demandam o reconhecimento e a titulação de suas áreas; agricultores que ocupam terras indígenas, que precisam ser reassentados; extrativistas, que lutam pela criação e reconhecimento de reservas extrativistas; agricultores atingidos por barragens; juventude rural; mulheres trabalhadoras rurais; entre outros pobres do campo. Estes setores serão objeto de instrumentos diferenciados e apropriados às suas especificidades e às características de cada região (Ibidem, p. 17). Estimava-se cerca de 200 mil pessoas na dura realidade dos acampamentos sem-terra: As cerca de 200 mil famílias acampadas e mobilizadas, testemunhando a gravidade da situação do campo, onde se somam o desemprego e a dificuldade de acesso à terra, compõem um grupo considerado demanda emergencial da Reforma Agrária e que é prioridade do II PNRA (Ibidem, p. 17). Esses objetivos estavam centrados em torno dos princípios e dimensões em que concebiam a RA como uma ação pública focando no fortalecimento da agricultura familiar, a partir de uma perspectiva do desenvolvimento territorial sustentável. Por isso, o plano governamental verbalizava em torno de ser a RA uma ação pública que teria por base um arranjo territorial entre a sociedade e o Estado: O Plano Nacional de Reforma Agrária representa uma inovação em relação ao modelo implementado nos últimos anos ao se orientar para fazer dos assentamentos espaços de produção e qualidade de vida integrados ao desenvolvimento territorial [...] O PNRA orienta-se para a promoção da viabilidade econômica, da segurança alimentar e nutricional, da sustentabilidade ambiental para garantir o acesso a direitos e a promoção da igualdade objetivos integrados a uma perspectiva de desenvolvimento territorial sustentável (Ibidem, p. 15). O discurso em torno de uma RA enquanto arranjo territorial pode ser inserido dentro das concepções do Desenvolvimento rural sustentável do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Por isso, é importante abrir um parêntese para apresentar a concepção de RA do MDA, uma vez que essa noção é fundamental para a compreensão dos PA como espaços de produção e qualidade de vida e territórios sustentáveis, a partir da perspectiva do desenvolvimento territorial rural. O discurso do MDA verbalizava em torno de uma RA como uma política de correção de desigualdades sociais impostas pela forte concentração fundiária:

165 164 A reforma agrária, agindo decisivamente em regiões onde a estrutura fundiária denote a presença de anomalias incompatíveis com o princípio da destinação social da propriedade rural, é o elemento central de uma política de correção das desigualdades sociais (MDA, 2003, p. 14). Nessa perspectiva, a RA seria uma ação pública abrangente que buscaria a integração territorial, a partir da criação de territórios sustentáveis em articulação com a agricultura familiar: Presentemente entende-se que ela tem de ser pensada e instalada segundo uma visão integradora no âmbito territorial, já que o êxito da reforma agrária não pode ser medido apenas em termos de famílias assentadas, mas, principalmente, na contribuição dessas famílias ao desenvolvimento da região onde elas estão inseridas, expresso em termos de melhoria sustentada dos indicadores de qualidade de vida, e dos efeitos positivos da integração das áreas reformadas ao contexto geral dos territórios (Ibidem, p. 14). A abordagem do desenvolvimento rural sustentável dentro do contexto da RA dar-seia com territórios que se apresentariam como instrumentos do desenvolvimento, articulando conjuntamente a agricultura familiar e o reordenamento agrário (MDA, 2003). Com isso, o foco seria o território na sua articulação com as políticas públicas, as demandas sociais e as potencialidades locais: Na abordagem territorial o foco das políticas é o território, pois ele combina a proximidade social, que favorece a solidariedade e a cooperação, com a diversidade de atores sociais, melhorando a articulação dos serviços públicos, organizando melhor o acesso ao mercado interno, chegando até ao compartilhamento de uma identidade cultural, que fornece uma sólida base para a coesão social e territorial, verdadeiros alicerces do capital social (Ibidem, p. 30). Dentro dessa perspectiva, as políticas públicas deveriam ser abrangentes e duradouras, como também deveriam estimular a capacidade dos territórios em desenvolver ações de autonomia e autogestão: A abordagem territorial dirige o foco das políticas para o território, destacando a importância das políticas de ordenamento territorial, de autonomia e de autogestão, como complemento das políticas de descentralização (Ibidem, p. 30). Por isso, as políticas de desenvolvimento territorial deveriam conjugar as quatro dimensões do desenvolvimento: [...] econômica, em que se destaca a competitividade territorial; sociocultural, na qual sobressai a eqüidade e o respeito pela diversidade; ambiental, na qual se enfatiza o conceito de administração e gestão da base de recursos naturais; políticoinstitucional, em que ressalta o conceito de governabilidade democrática e a promoção da conquista e do exercício da cidadania (Ibidem, p. 30).

166 165 Essas concepções do MDA estão fortemente presentes no discurso do II PNRA, uma vez que este verbalizava em torno da necessidade de um novo modelo de reforma agrária, pelo qual se daria uma intervenção fundiária e o desenvolvimento territorial: O PNRA orienta-se para a promoção da viabilidade econômica, da segurança alimentar e nutricional, da sustentabilidade ambiental para garantir o acesso a direitos e a promoção da igualdade objetivos integrados a uma perspectiva de desenvolvimento territorial sustentável (II PNRA, 2003, p. 15). Processo de desenvolvimento que passaria pelo fortalecimento da agricultura familiar. Nesse sentido, o plano afirmava categoricamente que a tríade estrutura fundiária concentrada, políticas agrícolas e pacotes tecnológicos excludentes eram as causas da não realização da RA no Brasil, constituindo-se em modelos que impediam o desenvolvimento do camponês em suas várias dimensões. Reconhecia que um dos fatores para a pobreza e a exclusão social no campo representava-se pela forte concentração fundiária no país. Uma estrutura que impossibilitava o não acesso à terra a milhares de camponeses, gerando um quadro de não cidadãos em suas várias dimensões e as mais variadas e precárias formas de trabalho que se reproduzem na área rural: A elevada concentração da estrutura fundiária brasileira dá origem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em um modelo agrícola inibidor de um desenvolvimento que combine a geração de riquezas e o crescimento econômico, com justiça social e cidadania para a população rural [...] Os pobres do campo são pobres porque não têm acesso à terra suficiente e políticas agrícolas adequadas para gerar uma produção apta a satisfazer as necessidades próprias e de suas famílias. Falta título de propriedade ou posse de terras, ou estas são muito pequenas, pouco férteis, mal situadas em relação aos mercados e insuficientemente dotadas de infra-estrutura produtiva. São pobres, também, porque recebem, pelo aluguel de sua força de trabalho, remuneração insuficiente; ou ainda porque os direitos da cidadania saúde, educação, alimentação e moradia - não chegam. O trabalho existente é sazonal, ou o salário é aviltado pela existência de um enorme contingente de mão-de-obra ociosa no campo (Ibidem, p. 11). Esse processo era fruto de um acesso histórico de políticas públicas que beneficiavam os estabelecimentos mais capitalizados, voltados, principalmente, para a produção de monocultura de exportação, o que fazia com que a agricultura familiar sofresse com políticas compensatórias: Diante dessa inevitabilidade da modernização e do progresso só restariam aos pobres do campo políticas sociais de caráter compensatório e à agricultura familiar seguir na sua luta inglória pela sobrevivência, impactada pela incapacidade de produzir excedentes (Ibidem, p. 13).

167 166 Porém, mesmo diante dessas adversidades, o II PNRA reconheceu e destacou que a pequena agricultura familiar (camponesa) apresenta um ótimo desempenho econômico e é um setor gerador de empregos: [...] enquanto a agricultura familiar gera, em média, uma ocupação a cada oito hectares utilizados, a patronal demanda 67 ha para gerar uma única ocupação. Na região Centro Oeste a agricultura patronal chega a demandar 217 ha para gerar uma ocupação. Não é difícil imaginar o impacto sobre o emprego e a emigração que uma universalização deste modelo traria ao País. Se o padrão de ocupação da agricultura patronal fosse universalizado para todo o campo brasileiro mais de 12 milhões de ocupações desapareceriam do meio rural brasileiro. A mesma simulação para a agricultura familiar apresenta dados bem diferentes, gerando um saldo positivo de mais de 26 milhões de ocupações. A capacidade de a agricultura familiar gerar postos de trabalho e sua eficiência produtiva contestam a visão que sobrevaloriza os efeitos das economias de escala na agricultura. Reforçando esta visão a experiência internacional mostra que a elevação da renda da população rural de países semiperiféricos tem um potencial distributivo e contribui para a ampliação de um mercado interno de massas (Ibidem, p. 14). Por isso, verbalizava-se em torno da necessidade um fortalecimento do setor da economia do país, uma vez a agricultura familiar gerava uma ocupação equilibrada do território nacional e impulsionava atividades econômicas e o desenvolvimento territorial (II PNRA, 2003). O grande avanço em termos da RA seria conjugar o fortalecimento da agricultura familiar, a partir de um desenvolvimento territorial que teria por base a recuperação e a construção de novos assentamentos rurais (II PNRA, 2003). Nesse sentido, os PA seriam territórios que materializariam as ações em torno da RA, constituindo-se como territórios de produção e qualidade de vida, a partir da integração no sentido do desenvolvimento territorial: O Plano Nacional de Reforma Agrária representa uma inovação em relação ao modelo implementado nos últimos anos ao se orientar para fazer dos assentamentos espaços de produção e qualidade de vida integrados ao desenvolvimento territorial (Ibidem, p. 15). O território do assentamento seria o espaço de inserção social por meio de uma série de políticas agrícolas e sociais que possibilitassem a permanência na terra e condições de trabalho digno: Isso requer colocar à disposição das famílias assentadas e das demais beneficiárias do Plano os meios indispensáveis à exploração econômica da terra e para que obtenham renda suficiente para viver com dignidade, tais como: crédito; assistência técnica; apoio à comercialização e à agregação de valor; construção de infraestrutura produtiva, econômica e social, como água, saneamento básico, energia, via de escoamento da produção; além de outras políticas públicas que garantam a universalização do acesso a direitos fundamentais (Ibidem, p. 15).

168 167 Tratar-se-ia de um território sustentável, por meio de uma integração produtiva e uma viabilidade econômica. Nos novos projetos de assentamento busca-se combinar viabilidade econômica com sustentabilidade ambiental, integração produtiva com desenvolvimento territorial, qualidade e eficiência com massividade. Pretende-se, assim, criar as condições para que o modelo agrícola possa ser alterado, introduzindo-se maior preocupação com a distribuição de renda, a ocupação e o emprego rural, a segurança alimentar e nutricional, o acesso a direitos fundamentais e o meio ambiente (Ibidem, p. 10). Uma viabilidade econômica fruto da ação do Estado que estabeleceria a concentração espacial dos beneficiados e uma integração dos territórios dos assentamentos, possibilitando a constituição de sistemas locais de produção (II PNRA, 2003). Territórios, portanto, que possibilitariam não somente moradia, mas também unidades produtivas que promoveriam e desencadeariam transformações em escalas local e regional, constituindo em cadeias produtivas locais: [...] efeito da distribuição de terra, da universalização da assistência técnica e da implementação de projetos produtivos sustentados e adaptados às realidades locais terá efeitos diretos profundos nas áreas reformadas. Gradualmente, essas áreas se diferenciarão como pólos prósperos de desenvolvimento rural e, na medida em que seus efeitos transbordarem para as comunidades do entorno, dotarão as ações de Reforma Agrária de uma dimensão massiva. Por meio desta articulação territorial serão exploradas as diversas formas de agregar valor, como a inserção soberana em cadeias produtivas regionais; a interação com os mercados locais, regionais e externos; a promoção comercial de seus produtos; a criação de redes de comércio justo e atividades rurais não agrícolas. A partir do II PNRA a criação e o desenvolvimento dos novos assentamentos passarão a se orientar por um projeto regional produtivo associado a um plano de desenvolvimento territorial, definido conjuntamente com os beneficiários e acompanhado pela assistência técnica. Significará uma oportunidade para ampliar a oferta de alimentos na região e para promover a diversificação produtiva, tanto em função da matriz tecnológica proposta produção agroecológica como em função da destinação dos seus produtos e subprodutos alimentos e geração de energia. Ao integrar-se aos arranjos produtivos locais, os assentamentos contribuirão para a expansão das cadeias produtivas existentes ou para a formação de novas cadeias, dinamizando o desenvolvimento dos municípios e das regiões (Ibidem, p. 21). Esse discurso em torno do desenvolvimento territorial passava por ações de desconcentração de terras que se dariam a partir da desapropriação como instrumento principal (II PNRA, 2003). O próprio Plano não ignorava o que a Constituição apresenta em termos da necessidade da função social da terra: Reafirma-se a necessidade de avanços na ordem constitucional estabelecida pela Constituição Federal em 1988, no que diz respeito à proteção ao direito de propriedade e ao próprio contorno jurídico do Programa de Reforma Agrária abrigado pelo capítulo III, Título VII, da CF. Entretanto, o PNRA priorizará a

169 168 apresentação à sociedade brasileira de propostas de modificações infraconstitucionais e de normas visando agilizar o processo de obtenção de terras, de implantação de assentamentos e o cumprimento constitucional da função social da propriedade (Ibidem, p. 36). Traz, portanto, um discurso em torno da desapropriação de terras por interesse social como caminho para a realização da RA e da construção de novos assentamentos rurais. Esse instrumento seria complementado com outros, como a redistribuição de terras, regularização de posses e reordenamento agrário: A centralidade está no instrumento de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária dos latifúndios improdutivos que, entretanto, deverá se combinar com outros instrumentos disponíveis, como é caso da arrecadação de terras públicas e devolutas, da aquisição por meio do Decreto 433/1992, da regularização fundiária e do crédito fundiário (Ibidem, p. 19) (grifo nosso). As desapropriações representariam 71% das terras obtidas pelo governo para a RA: [...] o Plano prevê que 71% destas terras serão obtidas de forma onerosa pelo Governo Federal, com a utilização dos instrumentos da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária e da compra e venda, e 29% corresponderão ao instrumento de destinação de terras públicas (Ibidem, p. 19). Com isso, o plano previa assentar mil novas famílias, no período de , totalizando 520 mil em 2007 (Tabela 11). Tabela 11: Brasil Metas do II PNRA 2003/2007 Ano Famílias assentadas Fonte: II PNRA, Ao mesmo tempo, as regularizações fundiárias se dariam a partir de um processo de recadastramento dos imóveis rurais no país e atualização do Cadastro de Terras do INCRA: Por isso, o Plano Nacional de Reforma Agrária tem como uma de suas prioridades a constituição do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais CNIR de uso múltiplo com a utilização de imagens de satélite e do georeferencimanto de todos os imóveis rurais, que resultará progressivamente num novo mapa fundiário do país e em referência obrigatória para a formulação e implementação de políticas de desenvolvimento rural (Ibidem, p. 23). Com as regularizações, haveria possibilidade de combater as irregularidades com relação à grilagem de terras e permitir o acesso à terra pelos pequenos agricultores:

170 169 Por meio de uma integração do INCRA com os órgãos estaduais será executado um amplo processo de regularização fundiária visando regularizar as pequenas posses de boa fé e a arrecadação e incorporação de terras devolutas ao patrimônio público, seguida de sua destinação para o assentamento de trabalhadores rurais, e também promover ações anulatórias sobre ocupações de terras com registros irregulares (Ibidem, p. 23). Processos presentes nas áreas de maior fragilidade de ocupação camponesa e, principalmente, nas de maiores conflitos: A prioridade de implantação do programa de regularização fundiária levará em conta, entre outros fatores, a densidade de pequenas posses na região, a previsão de obra ou intervenção pública capaz de instabilizar as pequenas posses (como é o caso da transposição de águas do São Francisco ou o asfaltamento da BR 163), a disposição do respectivo governo do estado em formar parceria para a implantação do projeto e a existência de conflito motivado por questões fundiárias (Ibidem, p. 23) Do discurso da esperança ao da frustação: a prática da não reforma agrária no Governo Lula O II PNRA verbalizava claramente a mudança do discurso do PT em termos de RA. Discurso que passou da crítica ao latifúndio no país, presente nas suas origens, para outro mais ameno e conciliador, de caráter desenvolvimentista e base liberal 147 (FERNANDES, 2003). O novo Plano Nacional de Reforma Agrária no governo Lula somente vem confirmar o novo discurso do partido, apresentando a vitória do agronegócio com relação à RA. Mudança que direcionou e possibilitou o avanço e o aprofundamento do processo de expansão do capitalismo e do agrobusiness no campo e, consequentemente, da não realização da RA 148 (OLIVEIRA, 2011). Por isso, faz-se relevante trazermos para a análise, alguns pontos que caracterizam e confirmam a tendência da não reforma agrária, bem como das ações que se constituíram como respostas ao MST e aos movimentos sociais. 147 Essa mudança de discurso do PT com relação às suas origens é algo que não seria novidade, já que no programa de governo em 2002 apresenta apresentava essa tendência, uma vez que o programa não tocava em pontos centrais para a realização da RA, como aponta Fernandes (2013): [...] não inclusão do número de famílias que poderão ser assentadas até 2006; não mencionar a estrutura fundiária concentrada e abolir a crítica ao sistema latifundista. Com um discurso ameno e conciliador, a ênfase do texto do programa do governo de 2002 é desenvolvimentista e contém dois objetivos principais: a recuperação dos assentamentos implantados e a implantação de novos assentamentos, acompanhados das políticas básicas: crédito, infra-estrutura, educação, capacitação técnica e comercialização (FERNANDES, 2013, p. 05). 148 Conforme afirma Oliveira (2011), um dos princípios básicos da RA no governo Lula seria não fazê-la nas áreas de domínio do agribusiness e, fazê-la apenas nas áreas onde ela possa ajudar o agribusiness (OLIVEIRA, 2011).

171 170 O II PNRA verbalizava em torno da afirmação de ser a RA um compromisso do governo. Tendo como objetivo de construir um espaço rural com paz, produção e justiça social, por meio de um fortalecimento da agricultura familiar enquanto setor que ocupa o território nacional de forma equilibrada e possibilita o avanço de atividades econômicas (II PNRA, 2003). Para isso, a base seria a geração de emprego e renda e da garantia de uma segurança alimentar: Gera emprego e renda, garante a segurança alimentar e abre uma nova trilha para a democracia e para o desenvolvimento com justiça social. A reforma agrária é estratégica para um projeto de nação moderno e soberano (II PNRA, 2003, p. 05). Numa primeira leitura, esse discurso mostra-se com objetivos claros de fazer da RA uma proposta de modificação da realidade rural do país e da agricultura familiar um setor forte e valorizado. Aparentemente, constituía-se de fato numa proposta com envergadura para o problema, beneficiando, principalmente, milhares de camponeses brasileiros que sofriam com o processo histórico de exclusão e marginalização: [...] os agricultores familiares, as comunidades rurais tradicionais, as populações ribeirinhas, os atingidos por barragens e outras grandes obras de infra-estrutura, os ocupantes não índios das áreas indígenas, as mulheres trabalhadoras rurais e a juventude rural, e outros segmentos da população que habita os municípios rurais que não se dedicam às atividades não agrícolas, porém a elas diretamente ligados, num universo que chega a cerca de 50 milhões de pessoas (Ibidem, p. 10). Porém, o simples fato de verbalizar em termos de segurança alimentar ao invés de soberania alimentar tem um peso enorme na forma de conceber a RA, e nas práticas que permitem essa segurança. Isso porque, a soberania alimentar está associada a um domínio do processo de produção, circulação e distribuição dos alimentos produzidos na agricultura de base camponesa (MARQUES, 2011). Ela é fruto da luta do camponês contra o agronegócio, o domínio da propriedade da terra e das estruturas de poder de caráter local, mas principalmente, da valorização da prática de produção camponesa em detrimento do regime alimentar coorporativo 149 (MARQUES, 2011). 149 Conforme argumenta Marques (2011), a luta camponesa é uma luta contra o capital e a grande propriedade que tenta impor à sociedade um regime alimentar corporativo : Hoje a luta camponesa tornou-se uma luta internacional em torno da bandeira da soberania alimentar, não se trata mais apenas de uma luta contra a grande propriedade e as perversas estruturas de poder local, mas de uma luta contra o regime alimentar corporativo (MARQUES, 2011, p. 13).

172 171 Segundo argumentou Marques (2011), o problema da questão agrária no Brasil hoje está associado ao processo de globalização neoliberal que conduz o mundo a um avanço dessa forma de regime alimentar aplicado pelas empresas multinacionais à sociedade: A questão agrária hoje resulta sobretudo da consolidação do regime alimentar corporativo e do avanço do processo de estrangeirização da terra, sob o domínio de grandes corporações transnacionais que se territorializam por meio de alianças com capitais locais e de acordos com o Estado (MARQUES, 2011, p. 12). Esse processo, além de possibilitar o domínio das terras do país pelas empresas estrangeiras, ainda gera um processo de exploração do camponês: [...] a relação entre o processo de expropriação em larga escala do campesinato sob o regime alimentar corporativo e a criação de uma força de trabalho excedente disponível para outros setores da economia (Ibidem, p. 04). Ao contrário da segurança alimentar, a soberania alimentar é um dos princípios básicos almejados pelos movimentos sociais e, principalmente, pelo MST, enquanto condição para a existência e realização da RA. Para o movimento, o território do Projeto de Assentamento Rural (PA), enquanto materialização da RA, é um local de vida, trabalho e produção de alimentos por essência: Buscamos em cada assentamento desenvolver uma mentalidade e uma atitude de Soberania Alimentar, compreendendo que a nossa primeira tarefa é produzir alimentos e eliminar a fome (MST, 2010, p. 21). Por isso, quando na apresentação da proposta governamental, o II PNRA verbaliza em torno da segurança alimentar, o governo colocava-se dentro de uma relação de distanciamento com os camponeses. Isso porque, o seu alcance só seria possível quando a RA estivesse associada a demais programas sociais, dentro de um processo de crescimento e expansão de produtos agrícolas para exportação: O cenário de retomada do crescimento econômico e de expansão das exportações agrícolas, combinado com as metas do Programa Fome Zero de inclusão de 44 milhões de pessoas no Programa Bolsa-Família em 4 anos, projeta uma ampliação da demanda por alimentos e produtos agrícolas que deverá ser suprida pela produção da agricultura familiar e dos assentamentos de Reforma Agrária (II PNRA, 2003, p. 07). Aí se estabelece a contradição presente nesse discurso. Expansão de exportações agrícolas é um processo claro de valorização do agronegócio e desvalorização do camponês, uma vez que é o mercado e são as relações estabelecidas entre os latifundiários e os empresários no campo que conduzem o trabalhador rural à condição de classe de subalternos (FERNANDES, 2012).

173 172 Essa mudança de discurso é tão evidente que basta retomarmos, mais uma vez, a posição do partido na campanha, e veremos que a concepção de RA mudou no curto espaço de tempo, de uma eleição à elaboração de um plano nacional: A implantação de um Plano Nacional para a Reforma Agrária é fundamental para o país, pois irá gerar postos de trabalho no campo, contribuir com as políticas de soberania alimentar, combate à pobreza, e com a consolidação da agricultura familiar. (PROGRAMA VIDA DIGNA NO CAMPO, 2002, p.13) (grifo nosso). Se comparado ao discurso anterior, do período de fundação do partido, há de fato uma radical mudança na concepção de RA, o que confirma essa mudança de discurso. Nas suas origens, o PT apresentava um programa em que a Reforma se daria com base numa política voltada para o mercado interno, garantindo a soberania alimentar, sendo esta uma ação incompatível com qualquer prática ou cenário favorável à exportação de produtos agrícolas: Como complemento à política econômica de distribuição de renda, a prioridade do novo modelo agrícola será a produção voltada para o mercado interno. Alimentar adequadamente toda a população e abastecer as indústrias brasileiras com matériasprimas é a grande meta, que não é incompatível com a busca de excedentes exportáveis (PROGRAMA AGRÁRIO PT, 2012, p. 183). Inclusive, o partido cortaria os subsídios e incentivos fiscais a produtores e produtos exportáveis, fazendo alterações na política exportadora do país: Serão eliminados os subsídios e incentivos fiscais que beneficiem grandes produtores agrícolas de produtos exportáveis e os próprios exportadores. [...] O governo alterará a política exportadora de produtos agrícolas de forma articulada com as modificações que pretende introduzir na economia brasileira. Fazendo cessar a evasão de divisas hoje destinadas ao pagamento da dívida externa, faz-se cessar também a necessidade de exportar a qualquer custo (PROGRAMA AGRÁRIO PT, 2012, p. 185). Porém, no discurso atual, o Plano associava a [...] expansão das exportações agrícolas, combinado com as metas do Programa Fome Zero [...] (II PNRA, 2003, p. 07), fazendo da RA uma ação de caráter compensatória e assistencialista, reduzindo-a a uma política de autoconsumo (OLIVEIRA, 2003). De fato, o Programa Fome Zero, carro-chefe do governo Lula, tinha como objetivo principal implementar uma política de segurança alimentar no país, que buscaria acabar com a fome e suas causas estruturais que estavam no centro da reprodução da pobreza, miséria e exclusão social no Brasil: Combater a fome, portanto, é também combater a miséria e a espiral descendente na qual ela enreda toda a sociedade, com impacto direto nas esferas da saúde, da segurança, da escolaridade, da produtividade, da infância e da juventude. Portanto, para romper com este círculo vicioso, é fundamental começar a partir da garantia de um direito básico, que é o direito à vida - a alimentação (

174 173 O programa contaria com propostas de políticas estruturais, específicas e locais de combate à fome 150, e a RA constaria como parte, tendo como objetivo básico: garantir a função social da propriedade; distribuição e ampliação das fontes de renda; e incentivo ao autoconsumo alimentar ( Porém, o programa parecia apenas reconhecer a RA como uma política compensatória, uma vez que não era vista como uma possibilidade de ampliar a produção e a oferta de alimentos no país, mas somente para a produção de autoconsumo (OLIVEIRA, 2003). Ao mesmo tempo, o próprio Programa Bolsa Família, desdobramento do Fome Zero, foi criado e se constituiu com um forte viés assistencialista/compensatório, uma vez que ao tentar garantir a segurança alimentar 151 de populações de baixa renda, tem como objetivo básico aumentar o poder de consumo por meio de um dinheiro, o que consequentemente possibilitaria um grande processo de despolitização e desmobilização da população rural 152 (OLIVEIRA, 2010). Da forma como foram pensados e conduzidos, esses programas faziam da RA uma política compensatória, por meio de forte tendência à redução da agricultura camponesa a uma condição de marginal ou periférica, transformando o camponês em cidadãos de segunda classe, dependentes da ajuda alimentar e social 153 (SABOURIN, 2007, p. 739). 150 As políticas estruturais do Programa Fome Zero seriam todas as ações que objetivavam atingir as causas do problema da fome e da pobreza, como a má distribuição de renda, educação e desemprego. Foram elas: Geração de Emprego e Renda, Previdência social universal, Incentivo à Agricultura Familiar, Intensificação da Reforma Agrária, Bolsa Escola e Renda Mínima e Segurança e qualidade dos alimentos. 151 Dentre os objetivos do programa, o primeiro é: Combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional ( ). 152 Ao analisar os dados da luta pela terra, Oliveira (2010) argumenta que houve certo reflexo em termos das ações dos movimentos sociais e um aumento dos recursos em torno de políticas compensatórias, como bolsa família. Essas ações do governo possibilitaram uma diminuição das lutas sociais em torno da RA, uma vez que houve uma queda no número de ocupações e de acampamentos. 153 Conforme argumenta Sabourin (2007), os programas sociais do governo Lula reduzem e prendem as populações rurais aos contextos do mercado capitalistas, gerando uma dependência muito grande aos supermercados, as firmas alimentares e reduzindo os laços de proximidade, tornando-os consumidores e não mais produtores: Esses enfoques (previdência, aposentadoria rural, bolsa- alimentação, bolsa-família) reduzem o econômico ao princípio do acesso das populações rurais pobres (rural poors) ao mercado capitalista e mantêm sua dependência dos supermercados e das firmas agroalimentares, já não como produtores, mas como consumidores. Um exemplo dessa visão aconteceu na primeira fase do projeto Fome Zero no marco do Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar (MESA). A ação principal de ajuda alimentar no meio rural foi justificada pelo efeito induzido de dinamização da produção familiar e da economia local pela injeção de ajuda, já não in natura (cestas básicas), mas em dinheiro, como tinha acontecido com a aposentadoria rural. Mas, os 50 reais mensais distribuídos às famílias pobres, diferentemente das pensões, não vieram em dinheiro, mas na forma de um cartão magnético de uso limitado aos supermercados conectados às redes bancárias. Essa medida só fez aumentar a compra de alimentos e produtos manufaturados provenientes da agricultura empresarial e não da produção local ou dos circuitos de proximidade (SABOURIN, 2007, p. 739).

175 174 Por isso, quando o II PNRA apontava no sentido de garantir a segurança alimentar, enquanto uma necessidade urgente, confirmava-se a negação da RA de base popular e que caminhasse de acordo com os interesses dos camponeses. Na verdade, com o plano, houve por parte do governo direcionamento e valorização do agronegócio, enquanto modelo de desenvolvimento que fortalece o latifúndio e a negação da agricultura camponesa. Uma valorização que está presente de forma implícita no discurso. Isso porque, a própria relação com os movimentos sociais sofreu mudanças. De acordo com a proposta governamental, o Plano seria fruto de um vantajoso processo de diálogo democrático entre a sociedade e, principalmente, com os movimentos sociais: O II Plano Nacional de Reforma Agrária PNRA foi elaborado a partir de um profícuo e democrático diálogo com distintos setores sociais, em particular com as entidades de representação dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, atualiza e amplia o Programa Vida Digna no Campo (II PNRA, 2003, p. 08). Reconhece ser fruto de uma tentativa de resposta às pressões dos movimentos e das demandas sociais vindas do campo: A Reforma Agrária é urgente não apenas pela gravidade da questão agrária expressa pelos conflitos no campo e por uma forte demanda social, mas, principalmente, pela sua contribuição à superação da desigualdade e a exclusão social de parte significativa da população rural (II PNRA, 2003, p. 07). Inclusive, afirmando e reconhecendo ser os movimentos um sujeito ativo no processo de construção da RA: Mas o sucesso do PNRA depende, ainda, da ativa participação dos movimentos e entidades da sociedade civil, ampliando o reconhecimento e a legitimidade social da Reforma Agrária (Ibidem, p. 10). Porém, esse dito diálogo e participação podem ser questionados em alguns aspectos. Com a demissão de Marcelo Rezende, os movimentos sociais deixaram de participar do governo. Ao mesmo tempo, possibilitar a expansão das exportações agrícolas é garantir que haja um aumento da barbárie no campo. No Brasil, o agronegócio é um dos grandes, se não o principal, responsáveis por expulsar o camponês e por gerar boa parte da violência existente nas várias regiões do país, principalmente, na região da Amazônia Legal, constituindo-se num verdadeiro agrobanditismo (OLIVEIRA, 2009). A partir do momento em que o governo Lula apoiou o agronegócio 154, enquanto modelo de desenvolvimento do 154 Esse apoio foi tão grande que o presidente Lula chegou verbalizar publicamente que os usineiros no Brasil são heróis nacionais : Os usineiros de cana, que há dez anos eram tidos como se fossem os bandidos do

176 175 espaço rural do país 155, permitiu a continuidade da violência no meio rural brasileiro, através das disputas territoriais travadas entre o camponês, quilombolas, povos indígenas 156, revelando um quadro de uma luta e conflitos sem fim por terra (OLIVEIRA, 2009). Outro aspecto com relação à mudança no discurso do PT e, consequentemente, da não reforma agrária, presente no II PNRA, refere-se à forma como se daria a obtenção das terras. O Plano verbalizava em torno da desapropriação por interesse social como caminho para a realização da RA, instrumento que seria complementado com outros, como a redistribuição de terras, regularização de posses e reordenamento agrário: O instrumento prioritário de obtenção de terras para o assentamento de famílias é a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, complementada pela compra e venda (Decreto 433); destinação de terras públicas; obtenção de áreas devolutas; e outras formas de obtenção (devedores, dação em pagamento) (II PNRA, 2003, p. 19) (grifo nosso). Se comparado ao I PNRA, à proposta governamental do PT não avança na clareza com relação a alguns pontos. O II PNRA não apresentou o orçamento previsto e de onde viriam os recursos para a realização das ações em torno das desapropriações, regularizações, a construção de toda a infraestrutura, etc., bem como sobre quais as áreas prioritárias para as ações de desapropriação. Inclusive, vale lembrar que a alegação de falta de recursos foi decisiva na não aceitação da meta de assentar hum milhão de famílias, conforme visava o Plano Plínio 157. agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool. E por quê? Porque têm políticas sérias. E têm políticas sérias porque quando a gente quer ganhar o mercado externo, nós temos que ser mais sérios, porque nós temos que garantir para eles o atendimento ao suprimento (Fonte: Segundo Oliveira (2009), esse modelo de desenvolvimento econômico adotado no Governo Lula, a partir do MDA, faz da Amazônia Legal uma área de forte disputa territorial entre agrobanditismo, o campesinato e os povos indígenas. Os dados, apresentados pelo autor, com relação à forte violência na região, é uma prova clara que o Estado brasileiro está entregando o patrimônio nacional aos interesses dos grileiros, madeireiros e pecuaristas. Além de destinar a terra da reforma agrária ao agronegócio (OLIVEIRA, 2009). 156 Mais uma vez o partido contraria o discurso de fundação. Passando de um crítico ao latifúndio a defensor de um modelo de desenvolvimento junto com o agronegócio: [...] Nenhuma tolerância haverá com o atual quadro de violência que domina regiões inteiras do país. Todos os crimes do latifúndio serão apurados (PROGRAMA AGRÁRIA AGRÁRIO DO PT, 1989, p. 183). 157 Carvalho Filho (2004) já chamava a atenção para o fato de uma maior transparência do II PNRA com relação aos recursos, justificando que a não aceitação do Plano Plínio é fruto do contingenciamento de recursos e do sucateamento do INCRA (CARVALHO FILHO, 2004).

177 176 Esse contingenciamento de recursos somou-se ao sucateamento, ao quadro insuficiente de funcionários, as constantes greves e a corrupção dentro do INCRA 158. Esses fatos fizeram desta instituição um órgão incapaz de realizar um novo recadastramento dos imóveis rurais no país, não atualizando o Cadastro de Terras no Brasil (OLIVEIRA, 2007), o que confirma que tanto o MDA 159 como o INCRA se constituíram entraves administrativos e jurídicos para a realização das desapropriações (SABOURIN, 2007). Ao mesmo tempo, houve no governo Lula ações que favoreceram um processo de regularização 160 e o acesso ao crédito fundiário em detrimento das desapropriações. Contrariando o discurso proposto no II PNRA ao afirmar que a regularização visava [...] as pequenas posses de boa fé e a arrecadação e incorporação de terras devolutas ao patrimônio público, seguida de sua destinação para o assentamento de trabalhadores rurais, e também promover ações anulatórias sobre ocupações de terras com registros irregulares (II PNRA, 2003, p. 23). Daí por que esse caráter complementar e integrado da compra e venda de terras de propriedades improdutivas, a partir do Decreto 433, ganhou dimensões maiores. Conforme está disposto no Artigo 2 do referido decreto, caberia ao INCRA adquirir imóveis rurais, por meio de compra e venda, para fins de RA e implementação de assentamentos de trabalhadores rurais, em áreas de forte tensão social 161. Porém, a compra do imóvel se dá a partir de um preço e de uma forma de pagamento previamente acordada entre o INCRA e o proprietário, abrindo espaço para várias manobras dos latifundiários em seu favor 162. Com a manutenção das prerrogativas desse Decreto-Lei, o 158 Segundo Oliveira (2007), o INCRA é um dos órgãos por onde passaram boa parte dos grileiros do país (OLIVEIRA, 2007, p. 163). 159 Ao analisar as políticas públicas em torno da agricultura familiar no Governo Lula, Sabourin (2007) afirmou que dentre as dificuldades, as operacionais encontradas pelo residiam na falta de um corpo técnico suficiente para a realização das atividades (SABOURIN, 2007). 160 O próprio debate em torno das modalidades de acesso à terra, por meio de redistribuição ou por vias de mercado, era presente no governo Lula e no PNRA. Inclusive, a própria nomenclatura das secretarias encarregadas dessas atividades davam exemplos claro desse processo: O Plano de Reforma Agrária foi confiado à Secretaria de Reorganização Agrária (SRA) (a palavra reforma desaparece) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) que tutela o Instituto Nacional de Colonização e de Reforma Agrária (Incra). O principal debate no seio do governo em torno das modalidades de reforma agrária se limitou a uma polêmica entre acesso à terra por redistribuição (após a expropriação) ou acesso à terra pelo mercado (por meio de crédito fundiário e de assistência técnica privada e paga pelos agricultores ao término de dois anos) (SABOURIN, 2008, p. 152). 161 Art. 2º A aquisição imobiliária de que trata este Decreto ocorrerá, preferencialmente, em áreas de manifesta tensão social para o assentamento de trabalhadores rurais, visando atender à função social da propriedade. (Redação dada pelo Decreto nº 2.614, de 1998). 162 Segundo argumenta Sabourin (2008), os fracassos em torno da RA e do II PNRA estão associados a certas práticas do INCRA e dos movimentos, em certas colusões, que beneficiam os latifundiários. Para o autor, a

178 177 II PNRA criava uma forma de premiação ao latifúndio. Isso porque o proprietário do imóvel iria receber uma indenização pela terra improdutiva, após valorização no mercado. Além do mais, a aquisição de terras para a implementação dos novos assentamentos passaria por um processo de resgate do investimento feito pelo governo, cabendo ao camponês assentado ter que pagar pela terra, após três anos no assentamento rural: O dispêndio do governo federal com a aquisição de terras para Reforma Agrária pode ser dilatado, pois seu principal instrumento, a desapropriação por interesse social, é resgatável em até 20 anos, e os beneficiários começam a ressarcir o valor da terra nua, em geral, a partir do terceiro ano da sua entrada no assentamento. Mas os gastos de implantação dos assentamentos são imediatos e impactam, ano a ano, o orçamento corrente do MDA (II PNRA, 2003, p. 19). Além do mais, as desapropriações deixaram de ser o instrumento principal de realização da RA, uma vez que se reafirma a tendência e a inspiração 163 neoliberal em muitas políticas complementares que davam continuidade a ações de linhas de crédito, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). Previsto no II PNRA, o PNCF foi um dos principais programas, estabelecendo inclusive como terceira meta quantitativa, o ingresso de 130 mil famílias assentadas, no período de , constituindo-se em [...] um mecanismo de acesso à terra por meio do financiamento da aquisição de imóvel rural e de investimentos básicos e comunitários em projetos apresentados pelos beneficiários [...] (II PNRA, 2003, p. 25). Em outras palavras, seria uma linha de financiamento em áreas onde não haveria possibilidade de desapropriação por interesse social. Esse programa subdividiu-se em três linhas: Combate à Pobreza Rural, voltado para os trabalhadores rurais do semi-árido nordestino; Nossa Primeira Terra, que atenderia um própria ocupação de certas fazendas no NE e no CO é fruto de acordos estabelecidos entre os latifundiários e os movimentos sociais, com benevolência do INCRA: [...] nos estados do Nordeste e do Centro-Oeste encontramse vários assentamentos em fazendas falidas cuja ocupação foi negociada. Certos proprietários entraram em contato com os movimentos dos sem-terra até financiando o transporte dos futuros ocupantes via intermediários especializados. Depois a indenização é também negociada entre o Incra e o proprietário. Assim, entre os beneficiários da reforma agrária, além dos meeiros ou moradores da fazenda, não é raro encontrar o antigo gerente, capataz ou até um dos filhos do ex-proprietário. São, muitas vezes, eles que se apropriam das melhores terras, da casa da fazenda e dos postos de dirigentes da associação ou da cooperativa do assentamento e os que asseguram os contatos com o Incra e os políticos locais (SABOURIN, 2008, p. 160). 163 Conforme Sabourin (2008), os programas do governo Lula sofreram inspirações neoliberais, principalmente aqueles que tratavam de segurança alimentar, reforma agrária e agricultura camponesa, reafirmando que o governo não tinha uma proposta clara para o enfrentamento ao modelo neoliberal. Por isso, as ações do governo no tocante ao desenvolvimento rural perpassam a perspectiva neoliberal: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PDSTR) e Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).

179 178 público de jovens entre 18 e 24 anos; e o Consolidação da Agricultura Familiar, que tinha por base os agricultores familiares com terra insuficiente para a manutenção da renda familiar. Os recursos para a realização desses programas viriam do Banco Mundial, no caso dos dois primeiros, e do Fundo de Terras e da Reforma Agrária para o último. Ao mesmo tempo, os beneficiários dessas três linhas de crédito teriam mais facilidade de acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf A). Porém, cabe questionar até que ponto as linhas desse programa fogem da concepção de RAM adotada pelo governo FHC? Ou de que forma isso não era um mercado de terras? Tendo por base o estudo de Ramos Filho (2008) com relação à realidade da RA no Estado de Sergipe, pode-se afirmar que o governo Lula deu continuidade ao mercado de terras do governo FHC, com inspiração nas diretrizes do Banco Mundial, conseguindo, inclusive, ampliar o número de famílias beneficiadas com essa perspectiva de RAM (RAMOS FILHO, 2008). Mesmo com um discurso de ser um instrumento complementar à desapropriação de terras, a RA no II PNRA ganhou dimensão de caráter mercantil (RAMOS FILHO, 2008). Conforme afirma o autor, sendo um documento que avançou com relação à questão agrária, o II PNRA, de forma contraditória, deu continuidade às linhas de financiamento para compra de terras no período de 2003 a 2006, possibilitando um quantitativo de famílias beneficiadas em 18 estados da federação. Valor que não alcançou a meta estabelecida. Porém: Comparado com o governo Cardoso, verifica-se que o governo Lula, em termos absolutos e relativos, atingiu mais famílias com a RAM que seu antecessor, ampliando-a (RAMOS FILHO, 2008, p. 235). Conforme Mendonça e Resende (2004), tais linhas de financiamento denominadas de Combate à Pobreza Rural, Nossa Primeira Terra e Consolidação da Agricultura Familiar já existiam no governo FHC sob o nome de Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário de Combate à Pobreza. Houve, assim, somente uma mudança de nome, o que mostra claramente que o II PNRA mantem a concepção de mercantilização da reforma agrária como central, abrindo mão, inclusive, de promover a desconcentração fundiária: [...] o Cédula da Terra, o Banco da Terra e o Crédito Fundiário do governo FHC estão contidos no atual Programa Nacional de Crédito Fundiário do MDA. Esses mesmos programas somente mudaram de nome, passando a se chamar Combate à Pobreza, Nossa Primeira Terra e Consolidação da Agricultura Familiar. Ou seja, são os mesmos programas apenas com pequenas modificações, mas a concepção central da mercantilização da terra permanece igual. De acordo com essa concepção, o

180 179 Estado abre mão da sua obrigação de promover a desconcentração fundiária através da redistribuição da terra (MENDONÇA e RESENDE, 2004, p.75). Os contratos com as três linhas de crédito e, principalmente, com o PRONAF iriam beneficiar aqueles agricultores mais capitalizados e articulados com a rede bancária, fato não muito característico do quadro social e político da maioria dos trabalhadores rurais no Brasil, novamente, no Norte e Nordeste (SABOURIN, 2007). Isso mostra que não houve, no governo Lula, uma posição clara com relação à RA. Clara no sentido de ser transparente com a sociedade e com os movimentos sociais, principalmente, com o MST. Antes, por meio do MDA/INCRA, repetiu-se a mesma estratégia de FHC e de presidentes anteriores: associar o discurso do fazer RA com as práticas do não fazê-la, tornando, o II PNRA uma grande frustação. E essa confirmação pode ser retratada, ainda de forma mais objetiva, na forma como o governo avaliou as ações em torno do II PNRA, no documento Desenvolvimento Agrária como Estratégia: MDA Balanço Basta analisarmos as contradições e as farsas presentes no documento. Divulgado em janeiro de 2007, como um balanço das ações realizadas, o governo Lula tentou retomar um discurso da esperança ao afirmar que o MDA realizou a RA no país, tendo implementado o II PNRA, dando sequência às ações para [...] democratizar o acesso à terra, gerar postos de trabalho no campo, garantir soberania alimentar, combater a pobreza, proteger o meio ambiente e garantir direitos a todos aqueles que vivem nas áreas rurais do País (MDA, 2007, p. 10). Esse discurso é acompanhado da afirmação de ter sido garantido todo um conjunto de políticas públicas para a construção de um espaço rural com paz e justiça no campo, dentro da perspectiva do desenvolvimento territorial sustentável: Políticas como a defesa da agricultura familiar (que produz a maioria dos alimentos consumidos pela população) e das comunidades rurais como fator de redução da pobreza e da exclusão nas cidades, como condição para a melhoria da segurança alimentar e para a construção de um padrão de desenvolvimento que tenham a vida humana e a defesa da natureza como fatores inegociáveis (Ibidem, p. 15). Nesse mesmo documento, o governo verbaliza que colocou na agenda nacional o debate da questão agrária, buscando a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável, respeitando a natureza e a grande diversidade do quadro social do país: Hoje, quando falamos de Desenvolvimento Rural também estamos falando de quilombolas, de povos indígenas, de igualdade de gênero, de produção de fontes alternativas de energia, apenas para citar alguns exemplos. Esses temas não integram essa agenda de um modo isolado e setorial, mas, sim, no contexto do debate sobre a

181 180 necessidade de construção de um modelo sustentável de desenvolvimento para o Brasil (Ibidem, p. 10). Do mesmo jeito que afirmava ter propostas e atitudes diferentes, retomou o debate da questão agrária no país, principalmente, com os movimentos sociais, garantindo-os maior diálogo e participação na organização das políticas públicas, concepção e ação muito diferente dos planos de governos anteriores: A retomada dessa discussão no Brasil ocorre hoje de um modo distinto daquele verificado em outras épocas, quando os governos eram os principais protagonistas do debate sobre a questão agrária. Os trabalhadores rurais e suas organizações passaram a ter uma participação crescente na discussão e construção de políticas públicas. Essa novidade surgiu também como resposta a um outro efeito negativo do atual modelo de globalização: o déficit democrático e a destruição dos espaços de diálogo e discussão (Ibidem, p. 15). Afirma que toda a conquista em torno da RA foi fruto da sensibilidade do governo em buscar assentar o maior número de famílias a partir da ampliação significativa dos recursos para a obtenção e regularização de terras: O crescimento progressivo do número de famílias assentadas decorreu, entre outras coisas, de um grande aumento nos recursos destinados para a obtenção de terras. Nestes últimos quatro anos, foram aplicados mais de R$ 4 bilhões na obtenção e regularização de terras (Ibidem, p. 10) (grifo nosso). E de forma categórica, traz a afirmativa de ter assentado famílias, conforme estabelecido pelo II PNRA. Ou seja, no primeiro mandato, o governo Lula assentava um percentual de 95,35% das 400 mil famílias da meta um (1). Fato que inclusive colocava o plano governamental como responsável por realizar a maior RA da história se comparado aos governos anteriores: De janeiro de 2003 a dezembro de 2006, 381 mil famílias foram beneficiadas pelo II PNRA, atingindo 95,35% da meta estabelecida no início de sua implementação. A força desse número fica evidente quando comparamos com o que foi feito em anos anteriores. De 1995 a 1998, foram assentadas famílias; de 1999 a 2002, foram famílias. [...] A área envolvida neste processo atinge os 30 milhões de hectares, número superior ao das superfícies somadas de Suíça, Portugal, Bélgica, Dinamarca e Holanda. (Ibidem, p. 10) (grifo nosso). Em termos anuais, os dados do MDA/INCRA apresentavam números expressivos com relação às famílias assentadas. (Tabela 12).

182 181 Tabela 12: Brasil Famílias assentadas no Governo Lula 2003/2007 Ano Famílias assentadas Metas Fonte: Oliveira, 2011; Organizado: Hugo A. Morais. Porém, mais uma vez, o governo apresentava um discurso que não foi posto em prática de forma efetiva. Ao verbalizar um investimento que gira em torno de R$ 4 bilhões na obtenção e regularização de terras (MDA, 2007, p. 10), o governo contraria o discurso do II PNRA. Isso porque, ao englobar dentro da mesma contabilidade as propriedades desapropriadas, a compra e venda de terras públicas e a regularização fundiária, o MDA/INCRA reduziam e distorciam a concepção de RA como uma ação com base nas desapropriações. Se tomarmos por base as concepções de Oliveira (2007), entenderemos que a RA não é um processo de regularização fundiária, mas um processo de modificação da estrutura latifundiária, por meio da promoção da democratização do acesso à terra para a produção do camponês, beneficiando um maior número de sem-terras (OLIVEIRA, 2007, 2011). Por isso, ela acontece quando os assentamentos criados promovem ações de desapropriação de grandes propriedades improdutivas, compra de terra e retomada de terras públicas 164 (OLIVEIRA, 2006, p. 26). Nesse sentido, as ações e o que foi divulgado no balanço do MDA/INCRA em termos de regularização fundiária, reorganização fundiária e medidas de reassentamentos não podem ser consideradas como RA. Existe uma diferença em cada uma dessas ações (OLIVEIRA, 2011). Por isso, os dados apresentados pelo governo traziam informações que não condiziam com a realidade. Os números mascaravam a forma como foi conduzido o II PNRA. As metas estabelecidas pelo Plano são bem claras e mostravam como se dariam as ações do governo. A reforma agrária se realizaria a partir da criação de novos assentamentos (Meta 1) e demais metas representadas pelas regularizações fundiárias, os reordenamentos fundiários, os reassentamentos da população atingida por barragens seriam ações complementares ao processo de construção da RA. 164 É importante colocar também que autores como José de Souza Martins (2000) defendem que a regularização fundiária mesmo não desconcentrando a propriedade da terra, também contribui para diminuir a pobreza e a miséria no campo. Isso porque diminui a fluxo do êxodo rural, impedindo inclusive o avanço do agronegócio.

183 182 Essa é a prática discursiva do MDA, divulgar dados que não são reais, fazendo uma somatória, como sendo representativos da realização da meta 1, criando a falsa ilusão de realização da RA 165 : Isto quer dizer que desde 2003, o MDA/INCRA vem faltando com a verdade para com a sociedade brasileira, e mais ainda, para com os movimentos sociais e sindicais que lutam pela reforma agrária. Quando se divulga um dado total que é produto da soma de metas desiguais, tenta-se passar para todos que estes dados referem-se ao cumprimento da Meta 1, os assentamentos novos reivindicados pelos movimentos sociais (OLIVEIRA, 2007, p. 162). Tomemos aqui também, o exemplo dado por Fernandes (2006). Ao analisar os dados do governo, para o período de 2003 a 2005, observou que famílias foram assentadas. Porém, deste total (25%) o foram em terras desapropriadas, sendo em 2003, 8.521, 2004, e em 2005, um total de Segundo o autor, para atender as metas estabelecidas no II PNRA, o governo cria um processo de autofagia, ou seja, assentando famílias em assentamentos antigos, já existentes, outras em terras públicas, ou em terras compradas, num verdadeiro processo de precarização da política de RA. Os dados reais referentes às ações do governo Lula, a partir do II PNRA, confirmam que o número de famílias assentadas não condiz, de fato, com o discurso de realização da maior reforma agrária do Mundo. O governo nem ao menos conseguiu realizar as metas estabelecidas, como também, penalizou milhares de famílias de camponeses sem-terra que permaneceram envolvidas em ocupações e acampadas debaixo das lonas pretas 166 (Tabela 13). Tabela 13: Brasil - Relação número de assentados e ocupações Governo Lula 2003/2007 Ano Famílias assentadas % da Meta 1 Famílias em ocupações ,08% ,83% ,61% % ,96% Fonte: OLIVEIRA, 2007; DALUTA, 2014; Organizado: Hugo A. Morais. 165 Conforme Oliveira (2006), a farsa dos dados e resultados apresentados pelo INCRA era tão grande que se comparado ao período de FHC, a capacidade de inflar dados da reforma agrária do MDA/INCRA foi aperfeiçoada, pois o balão está mais alto (OLIVEIRA, 2006, p. 23). 166 Se tomarmos como referência o Banco de Dados da Luta pela Terra no Brasil (DALUTA), observamos que há uma discrepância bem maior com relação ao numero de famílias assentadas e as envolvidas em ocupações. Em 2003, foram (10,26%) famílias assentadas para ocupantes de terra; em 2004 foram (23,44%) para ; em 2005 tivemos (63,30%) para ; 2006 foram assentadas 79,10% das famílias ocupantes de terras, totalizando ; e em 2007, chegou-se a um patamar de famílias postas em PA, o que representou 45,25% das famílias ocupantes de terra no país.

184 183 Por isso, esse discurso de desenvolvimento territorial, a partir de um processo de intervenção e desconcentração da estrutura fundiária, e das desapropriações e de novos assentamentos, condiz com a essência neoliberal das práticas do governo. Verbalizando em torno da realização da RA, o governo Lula em nenhum momento a realizou, bem como agravou ainda mais a situação no campo do país por substituir a política oficial de RA do II PNRA para a de regularização fundiária, principalmente, no seu segundo mandato. Isso aconteceu, favorecendo o processo de grilagem e privatização das terras públicas do país, na Amazônia 167 (OLIVEIRA, 2009). Ao usar a estratégia discursiva, a partir da farsa dos dados, o MDA/INCRA passou a inventar a RA, num processo de esvaziamento da mesma, enganando a sociedade e os movimentos sociais (OLIVEIRA, 2007). A guerra de números se tornou uma forma do governo não confirmar a incapacidade e a falta de uma política pública efetiva para enfrentar o agronegócio (SABOURIN, 2007) MST, discursos e a permanência da luta pela terra O II PNRA não trouxe uma solução efetiva para a RA no país, pelo menos no sentido de ser massiva e que atendesse as expectativas dos movimentos sociais. Os números dos PA lançados ano a ano pelo governo Lula reafirmaram a disputa territorial, no campo prático, mas também discursivo, entre o Estado e o MST. Em vários momentos, o movimento criticou as ações e realizações divulgadas pelo governo através do MDA e INCRA. Em uma dessas críticas, com o título, Reforma Agrária: Por um Brasil sem Latifúndio!, lançado na impressa, questiona-se dados divulgados pelo governo 168 : 167 Conforme argumenta Oliveira (2009), as ações do governo Lula em torno da MP 422, transformada em Lei , em março de 2008, impossibilitava que as terras públicas e devolutas do INCRA, com até 15 módulos fiscais, fossem destinadas a RA. Com isso, o governo adotava a regularização fundiária como política pública em substituição à reforma agrária e fazia dos grileiros das terras de até 1500 hectares na Amazônia falsos posseiros (OLIVEIRA, 2009). Já com a MP 458, Lei , 25/06/2009, que dispõe sobre a regularização fundiária e ampliação da grilagem em terras ocupadas da União (OLIVEIRA, 2009). Com isso, o governo Lula no seu segundo mandato legitimou, por meio dessas MPs, o processo de grilagem de terras públicas aumentando as dimensões das áreas ocupadas a serem legalizadas. Isso permitia um processo de venda das terras Amazônicas, transformando a irregularidade da grilagem em uma regularidade. A materialização desse processo se deu com Programa Terra Legal, uma vez que por meio desse programa as informações básicas das terras devolutas eram mascaradas e passavam pelo processo de regularização fundiária. 168 Para Stedile, Coordenador Nacional do MST, o governo Lula foi patético com relação à RA. Priorizando os projetos de colonização e não desconcentrando as terras no país: O desempenho desses quatro anos é patético.

185 184 NOTA À IMPRENSA E À SOCIEDADE Em relação aos dados anunciados nesta quinta-feira (22) pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra sentese na obrigação de esclarecer a sociedade que: 1. Assim como a política econômica do Governo Lula, a política de Reforma Agrária nada tem de original e repete os mesmos passos do Governo FHC: inflaciona os verdadeiros números de assentamentos utilizando a prática de contabilizar a reposição de lotes em assentamentos antigos como novos assentamentos; em deixar famílias vivendo em assentamentos precários no norte do país em terras públicas, que beneficiam principalmente grileiros. No intuito de provar que estaria fazendo a reforma agrária. Reforma agrária é desconcentrar a propriedade da terra e resolver os problemas dos pobres do campo. 2. A falta de originalidade repete-se na submissão às políticas do Banco Mundial para área agrícola, mantendo a fracassada política do Banco da Terra, rebatizado de Crédito Fundiário, uma premiação aos latifundiários improdutivos que têm suas terras compradas à vista, enquanto milhares de agricultores iludidos endividam-se para pagá-las. Hoje, mais de 40 mil famílias encontram-se em situação de inadimplência em Estados como Ceará, Pernambuco e Bahia, em projetos antigos com o mesmo receituário. 3. Lamentavelmente, o que o Ministro comemora hoje é uma política que não desconcentra a propriedade da terra e não distribui renda, premiando o latifúndio e que assemelha-se mais aos projetos de colonização da Amazônia do Regime Militar, do que qualquer coisa que pudesse ser chamada de Reforma Agrária. 4. Por outro lado, esperávamos que o Governo explicasse porque quase 200 mil famílias, de pobres do campo, ainda vivem nos acampamentos em beiras de estrada e em latifúndios improdutivos. E que esperam as meras estatísticas organizadas por eles. Enquanto isso, vivem sob condições precárias debaixo de barracos de lona e sem qualquer assistência para produção. 5. Finalmente, achamos que o Ministro Miguel Rossetto deva acatar a sugestão que o Presidente do INCRA, Rolf Hackbart, defendia quando era assessor da Câmara dos Deputados: que seja formada uma comissão de auditoria dos assentamentos, formada pela CNBB, OAB, jornalistas e servidores do Incra (CNASI) para ir visitar in loco esses assentamentos, e atestar as condições em que estas famílias se encontram. (MST, 2002). Em outra nota, o MST afirma que o MDA no governo Lula repetia os mesmos métodos inerentes ao período de FCH, ao inventar números em torno da RA: A Coordenação Nacional do MST contesta os dados da Reforma Agrária apresentados pelo governo Lula e afirma que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) repete métodos do governo Fernando Henrique Cardoso [ ]. O MDA anuncia nesta quinta-feira que foram assentadas mais de 115 mil famílias em 2005, número que ultrapassa a meta anual. O Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Lula prevê o assentamento de 400 mil famílias até o final de De acordo com nota do MST... o governo Lula inclui nos números da Reforma Agrária famílias que receberam terras de assentamentos antigos. Na maioria dos casos, as terras foram reutilizadas depois da desistência de outros trabalhadores por causa da falta de condições de vida, produção e terras agricultáveis. Foram aumentados também os dados de assentamentos na região amazônica, que têm estrutura precária e estão em terras públicas, preservando os grileiros da região. O MST pede formação de uma comissão, com a participação de movimentos sociais, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dos servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e jornalistas para visitar os assentamentos anunciados e fazer uma auditoria nos dados apresentados. O governo sustenta que foram assentadas 36 mil famílias, em 2003, e 81 mil, em Estudo do Parece que 50% de todas as famílias que teriam sido assentadas se encontram na região amazônica. São, na verdade, projetos de colonização, em sua maioria em terras públicas. No fundamental não afetam o latifúndio, não contribuem para a desconcentração de terras. Não se trata de reforma agrária (Fonte: Brasília, 22 de dezembro de 2005).

186 185 pesquisador e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, calcula que foram assentadas 9 mil famílias, em 2003, e 35 mil, em (Fonte: acessado no dia 02/03/2016 às 17:50hs.) É importante destacar que o posicionamento tomado pelo movimento em questionar as ações do governo, não seria (como não foi) passado despercebido. Sofrendo, inclusive, duros ataques (OLIVEIRA) por parte do MDA: 1. O Ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e o Presidente do INCRA, Rolf Hackbart, anunciaram hoje que o Brasil superou a meta de assentamentos prevista no Segundo Plano Nacional de Reforma Agrária. Trata-se do melhor desempenho da Reforma Agrária em toda a nossa história. É, acima de tudo, uma vitória do país, que começa a superar uma longa história de concentração fundiária e pobreza no campo. 2. Em Nota à Imprensa e à Sociedade, a Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tenta confundir a opinião pública negando as informações prestadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA. Alheio ao que realmente está acontecendo no campo brasileiro, o MST discorda dos números sem fundamentar sua discordância, faz uma crítica leviana sobre os critérios de contabilização de assentados e procura estabelecer com o Governo um debate sem nenhuma seriedade, baseado em slogans vazios de conteúdo, informações e argumentos falsificados. 3. Como bem sabe o MST, a crítica que era feita ao processo de contabilização do governo anterior era a de que os números anunciados não se referiam as famílias efetivamente assentadas e sim a uma pretensa capacidade das áreas destinadas à reforma agrária. Este procedimento foi afastado com a revogação da portaria 80 do Incra, no primeiro ano deste governo. Desde então, os números contabilizados referem-se a famílias na terra, em projeto de assentamento promulgado, em área de propriedade definitiva do Incra, com todos os direitos de assentado garantidos. O que na linguagem técnica do órgão chama-se RB homologada (relação de beneficiários). 4. Este é um tipo de debate que não ajuda a Reforma Agrária. De fato, em 2005, a meta de 115 mil famílias assentadas prevista no PNRA foi superada. São mais de 115 mil mulheres e homens, com nome, sobrenome e CPF, que passaram a ter seu lote de terra para viver e produzir com dignidade. Gente real que não possuía terra e agora possui; que não produzia e agora produz. Se o MST não vê, ou não sabe, é porque está longe destas terras e desta gente. 5. O MST critica genericamente o assentamento em terras públicas na Região Norte do país. Estamos assentando sim, em terras públicas no norte do país. E podemos fazer isto porque estamos combatendo a grilagem nestas terras. Recuperando terras que estavam ilegalmente nas mãos de grileiros e destinando-as para a Reforma Agrária. Sim, fizemos projetos de assentamento, no norte do país, no Pará, na terra pública que estava grilada e pela qual deu a vida a Irmã Dorothy. É uma pena que o MST não compreenda a importância desta luta e deste trabalho. 6. O MST afirma que a Reforma Agrária que estamos fazendo não desconcentra a propriedade da terra. Não fundamenta esta afirmação. Não pode fazêlo. Vamos aos fatos, eles falam por si: em três anos de governo, 16,3 milhões de hectares de terras foram destinadas para a Reforma Agrária e 240 mil agricultoras e agricultores sem terra foram assentados. 7. O MST acusa o Governo de submissão às políticas do Banco Mundial por manter um programa de crédito fundiário. Neste caso, trata-se de desinformação ou má fé. O Programa de Crédito Fundiário é um programa distinto do programa de Reforma Agrária, destinado a um outro público, que tem condições de financiar a compra de terra. São agricultores familiares, minifundiários, que querem ter um pedaço a mais de terra e pagar por ela, ou jovens que não pretendem abandonar o campo e necessitam de terra para plantar. Este programa é uma reivindicação de movimentos como a Contag, a Fetraf, e diversos outros. Suas terras, por Lei, não podem ser objeto da reforma agrária uma vez que são inferiores a 15 módulos fiscais e, por isto mesmo, não passíveis de desapropriação. 7. O Brasil persiste como um dos países com maior concentração fundiária do mundo. A Reforma Agrária é uma tarefa histórica, de caráter

187 186 civilizatório, que este país não foi capaz de resolver a contento. Esta situação, no entanto, está mudando. A Reforma Agrária começou a caminhar a passos largos. Ainda há muito a ser feito. Muito trabalho pela frente. Um trabalho a ser realizado em conjunto pelo Governo e pela sociedade. Um trabalho que não pode ser interrompido nem dificultado pelo debate maniqueísta, pobre e marcado por interesses particulares ou de grupos (Fonte: acessado dia 02/03/2016 às 17:33hs). E ao final do segundo mandato de Lula ( ), o movimento fez um balanço das ações do governo, apontando a conjuntura desfavorável com relação à RA e em favor do agronegócio: Com a eleição do presidente Lula, em 2002, havia uma grande expectativa dos semterra por todo o país de que, enfim, aconteceria a reforma agrária. No entanto, ainda que o presidente Lula seja um histórico defensor da reforma agrária, a situação da agricultura tem se agravado para os pequenos agricultores e assentados. O modelo agrário-exportador se acentuou, dividindo nosso território em sesmarias de monoculturas, como soja, cana-de-açúcar e celulose, além da pecuária extensiva. A aquisição de terras por estrangeiros também atinge níveis nunca antes registrados. Incentivado pelo governo, o agronegócio tem como lógica a exploração da terra, dos recursos naturais e do trabalho, por meio do financiamento público. Não produz alimentos para o povo brasileiro, deteriora o ambiente, gera poucos empregos e utiliza grandes extensões de terra para a monocultura de exportação, baseada em baixos salários, no uso intensivo de agrotóxicos e de sementes transgênicas. Num contexto de crise econômica mundial, não tem condições de produzir alimentos para a população ou criar postos de trabalho para os agricultores (MST, 2010, p. 10). Esses posicionamentos discursivos, só fizeram reafirmar as ações do MST em torno da luta pela terra ao longo do segundo mandato do presidente Lula ( ) e do primeiro da presidenta Dilma Rousseff ( ). A crítica ao discurso do MDA e INCRA em torno da realização da RA só fez justificar as ocupações como única forma de acesso à terra pelos camponeses. Por isso, mesmo com a tendência à diminuição das ações dos demais movimentos socioterritoriais, o MST continuou sendo o maior em atuação no campo, reafirmando a significativa conflitualidade presente no espaço rural brasileiro. Só para se ter uma dimensão da capacidade de mobilização do movimento, entre 2003 e , segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), atuaram no Brasil 126 movimentos socioterritoriais (Quadro 4) em 24 Estados da federação: Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins. 169 O período histórico tomado como referência tem por base o lançamento do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).

188 187 Quadro 4: Brasil Número e movimentos socioterritoriais que realizaram ocupações por ano 2003/2014. Ano Movimento socioterritorial Quantidade 2003 ASPROJA, CETA, CONTAG, CPT, FERAESP, FETAEG, FETAEMG, FETAPE, FETARN, FETRAF, GRUPO XAMBRÊ, LCPCO, LCPNM, MAB, MAST, MLST, MLST, MLTRST, MMA, MSO, MSST, MST, MTAA, MTB, MTL, MTR, OLC, OTC, SAF, SIMPRA, STF, STL, STR, UAPE, VIA CAMPESINA ACRQBC, ADT, ARTS, CETA, CONTAG, CPT, CUT, FAF, FETACRE, FETADEF, FETAEG, FETAEMG, FETAERJ, FETAES, FETAG, FETAGRI, FETRAF, LCPCO, LCPNM, LCPR, MAB, MAST, MLST, MLT, MOVIMENTO INDÍGENA, MOVIMENTO QUILOMBOLA, MPA, MPT, MSONT, MST, MTB, MTL, MTRSTP, MTV, MUST, OLC, OTC, SINTRAF, STR ACRQBC, AMPA, CETA, CONTAG, CPT, FAF, FETAEG, FETAEMG, FETAEP, FETAERJ, FETAG, FETAGRI, FETAPE, FETRAF, FETRAF, FST, MOVIMENTO INDÍGENA, LCPNM, LCPR, MAST, MCNT, MLST, MLT, MOVIMENTO QUILOMBOLA, MPA, MST, MSTR, MTL, MTR, OAC, OLC, SS, STR, TUPÃ 3E ACRQ, CONLUTAS, CONTAG, CPT, CUT, FAF, FETAEMG, FETAES, FETAET FETAGRI, FETAPE, FETRAECE, FETRAF, FRUTO DA TERRA, FUVI, LCP, LOC, MAB, MAST, MBUQT, MLST, MLT, MOVIMENTO INDÍGENA, MOVIMENTO QUILOMBOLA, MST, MTAA, MTD, MTL, SS, STR, STR, TUPÃ 3E, VIA CAMPESINA ACRQ, ASTECA, ASTST, CETA, CONLUTAS, CONTAG, CPT, CTV, CUT, FAF, FERAESP, FETAEG, FETAEMA, FETAG, FETAGRI, FETAPE, FETRAECE, LCP, MAST, MLST, MLT, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MPA, MPA, MST, MTB, MTL, OI, OLST, SER, SINTRAF, SS, STR, UNITERRA, VIA CAMPESINA AST, CETA, CONTAG, CPT, FETAEMG, FETAES, FETAG, FETAG, FETAGRI, FETRAF, LCP, LCPCO, MAST, MLST, MLT, MOVIMENTO QUILOMBOLA, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MPA, MST, MTB, MTD, OI, OLST, SINTRAF, STR, UNASFP, UNITERRA, VIA CAMPESINA, AMIGREAL, ASPARMAB, AST, CETA, CONTAG, CPT, CUT, FAF, FETAGRI, FETRAF, LCP, LCPNM, MAB, MAST, MLST, MLT, MMC, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MOVIMENTOS QUILOMBOLAS, MST, MTD, MTL, MTST, OI, SER, SINTRAF, SS, STR, TERRA LIVRE, UNITERRA, VIA CAMPESINA ABUST, CETA, CODEVISE, CONTAG, CPT, CUT, FAF, FERAESP, FETAEMG, FETAG, FETAGRI, MCP, MLST, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MOVIMENTOS QUILOMBOLAS, MST, MSTR, MTR, OI, STR, TERRA LIVRE, VIA CAMPESINA ATR, CETA, CONTAG, CUT, FERAESP, FETAEMG, FETAPE, FETRAF, 21

189 188 MAB, MLST, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MOVIMENTOS QUILOMBOLAS, MST, MTD, MTST, OI, SS, STR, TERRA LIVRE, UNITERRA, VIA CAMPESINA ATR, CETA, CPT, CUT, DIOCESE, FETAG, FETAGRI, FETRAF, LCP, MATR, MCR, MLST, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MOVIMENTOS QUILOMBOLAS, MRC, MST, MTL, MTTDS, OI, SINTRAF, STR, TERRA LIVRE, VIA CAMPESINA, VT ATR, CPT, CUT, FAF, FETAGRI, FETRAECE, FETRAF, FLTDC, FTL, MAB, MAST, MATR, MBST, MLBT, MLT, MOQUIBOM, MOVIMENTOS INDÍGENAS, MOVIMENTOS QUILOMBOLAS, MPP, MST, MTAA, MTL, MVTC, OI, STR, STR, TERRA LIVRE, VIA CAMPESINA, VT CETA, CPT, FETAGRI, FNL, MOVIMENTO INDÍGENA, LCP, MAB, MBST, MLST, MLT, MNU, MPA, MPST, MST, MTO, MTR, OI, MOVIMENTO QUILOMBOLA, STR, TERRA LIVRE, VT. 21 Fonte: CPT, 2003 a 2014; Organizado: Hugo A. Morais Desse total de organizações camponesas, o MST ganhou destaque por apresentar o maior número de ocupações, estando presente em das que ocorreram, percentual de 57,03% no período. A partir dessa problematização, o movimento reuniu a maior quantidade de camponeses que buscavam exercer o seu direito de inserção territorial. Das famílias envolvidas na luta pela terra, o MST tinha em torno de suas ações (68,99%) (Tabela 14), além de estar presente e atuando em todos os anos analisados, não havendo intervalo na luta pela terra. Tabela 14: Brasil - Número de ocupações e famílias no MST /2014 Região/UF Ocupações Famílias Ocupações MST Famílias MST NORTE 367 (10,20%) (10,61%) 75 (20,43%) (36,05%) AC AM AP PA RO RR TO NORDESTE (41,60%) (41,49%) 907 (60,62%) (72,13%) AL BA CE MA PB PE PI RN SE CENTRO-OESTE 396 (11,01%) (15,76%) 147 (37,12%) (66,93%)

190 189 DF GO MT MS SUDESTE 940 (26,14%) (20,16%) 663 (70,53%) (72,99%) ES MG RJ SP SUL 397 (11,04%) (11,96%) 259 (65,23%) (83,30%) PR RS SC BRASIL (100%) (100%) (57,03%) (68,99%) Fonte: CPT, 2003 a 2014; Organizado: Hugo A. Morais. No Brasil, as regiões Nordeste e Sudeste se destacaram como as que apresentavam o maior número de ocupações, sendo, respectivamente: (41,60%) e 940 (26,14%). Também, a maior quantidade de famílias envolvidas na luta pela terra, totalizando (41,49%) e (20,16%). Só no SE houve 663 ocupações desencadeadas pelo movimento, representando 70,53%. No NE, o percentual é um pouco menor, sendo 60,62%, mas com um número de ocupações na cifra de 907 imóveis. Em termos de famílias envolvidas, e representam o número exato no SE e NE. Se somado, essas famílias são 44,64% no Brasil, para o período de 2003 a O maior número de ocupações do MST esteve nos estados de São Paulo e Pernambuco, com respectivamente, 488 e 386 para cada estado federado. Em São Paulo, esse número representou 75,30% do total no Estado e 51,91% na região SE. Já em Pernambuco o percentual de ocupações chegou a 64,76% a nível estadual e 25,80% regional. Somando as ocupações de ambos, o número de famílias envolvidas representa 21,09% no Brasil. Pernambuco se destaca com (27,26% para a região NE) e São Paulo com (48,52% para o SE). Se tomarmos o quadro mais recente da luta pela terra, em 2014, observamos uma tendência à diminuição dos movimentos socioterritoriais que atuam no Brasil (Quadro 5), totalizando 21. Porém, também aí, ainda temos o MST como sendo aquele que se encontra mais especializado (Tabela 15), atuando em 18 Estados da federação: Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

191 190 Quadro 5: Brasil Movimentos socioterritoriais e lugares de atuação 2014 Sigla Nome Estados CETA Coordenação Estadual de Trabalhadores BA Assentados CPT Comissão Pastoral da Terra PB FETAGRI/PA Federação dos trabalhadores na Agricultura PA FNL Frente Nacional de Luta Campo e Cidade SP ÍNDIOS Movimento Indígena BA, MS, PR, RS, SC, SP, TO LCP Liga dos Camponeses Pobres MG, PA MAB Movimento dos Atingidos por Barragens RS MBST Movimento Brasileiro dos Sem Terra DF MLST Movimento de Libertação dos Sem Terra AL MLT Movimento de Luta pela Terra PR MNU Movimento Negro Unificado SC MPA Movimento dos Pequenos Agricultores BA MPST Movimento Popular dos Sem Terra SP MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra AL, BA, CE, DF, ES, GO, MT, MG, PA, PB, PR, PE, RN, RS, SC, SP, SE, TO MTD Movimento dos Trabalhadores Desempregados BA MTR Movimento dos Trabalhadores Rurais MG OI Organização Independente MG, SC, SP, TO QUILOMBOLAS Movimento Quilombola BA, MG, SC STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais AC, CE, PB, RO TERRA LIVRE Movimento Popular do Campo e da Cidade GO VT Via do Trabalho AL Fonte: CPT, 2014; Organizado: Hugo A. Morais. Tabela 15: Brasil - Número de ocupações e famílias no MST 2014 Região/UF Ocupações Famílias Ocupações MST Famílias MST NORTE AC AM AP PA RO RR TO NORDESTE AL BA CE MA PB PE PI RN SE CENTRO-OESTE DF

192 191 GO MT MS SUDESTE ES MG RJ SP SUL PR RS SC BRASIL Fonte: CPT, 2014; Organizado: Hugo A. Morais. O MST não só se destaca por apresentar o maior número de ocupações, já que esteve presente em 96 (46,86%) das 205 que ocorreram neste ano. Mas também por mobilizar a maioria das famílias que se colocaram à disposição de ocupar imóveis improdutivos, totalizando das , um percentual de 75,71%. Em 2014, a capacidade de mobilização do movimento foi tão intensa que, com exceção da região Sudeste que contou com 42,47% de participação, as demais regiões chegaram a contar com um percentual superior a 70%: a região Sul contou com 94,50%; o Centro-Oeste teve um percentual de 85,38% das famílias para um total de 5.631; na região Norte, foram famílias, representando 81,72%; e no Nordeste foram 77,25% das Há casos que em certos estados, as únicas ocupações que aconteceram contaram com a atuação do MST, como são os casos do: Ceará, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. E nessa disputa territorial, por meio dos discursos e ações, o MST reafirma a RA como sendo fruto da luta pela terra empreendida pelos camponeses, sendo a ocupação o alicerce, a base, o motor da luta pela terra: As ocupações de terra se tornaram ferramenta de expressão camponesa e de contestação do autoritarismo (MST, 2010, p. 09). Sem ocupação não há reforma agrária, uma vez que ela é uma prática que força o Estado a fazer cumprir a lei da função social da terra: Sem elas, não há reforma agrária [...] são o principal instrumento dos trabalhadores rurais para que a lei seja cumprida. (MST, 2010, p. 18). O que torna inquestionável o papel do MST no processo de mobilização das famílias de camponeses. Dessa forma, qual o sentido e desdobramentos da ocupação para as famílias que se colocam à disposição de lutar pela terra e pela RA? Essa questão se faz pertinente, pois para se compreender o processo de inserção socioterritorial das famílias assentadas na construção dos Projetos de Assentamentos Rurais em Passira-PE, a partir dos PA Independência e

193 192 Varame I, é necessário entender de que forma o discurso do MST passa a existir e fazer parte do cotidiano das mesmas Ocupações como forma de acesso à terra: sentidos e desdobramentos na espacialização e territorialização da luta pela terra e pela RA As ocupações se tornaram fundamentais no processo de luta pela terra e pela Reforma Agrária. Por meio de discursos e das ações em torno das ocupações, o movimento conseguiu unir famílias pobres e marginalizadas que acreditam na possibilidade de transformação da sua condição de vida (MST, 2010). Isso porque, no entendimento do movimento social, sem ocupação não tem como haver desapropriação dos latifúndios: Onde não tem o MST, não tem desapropriação. Onde o movimento é mais fraco, menor é o número de desapropriações, de famílias beneficiadas (STEDILE, 2005, p. 115). Sendo esta a principal forma de pressão para a realização da Reforma Agrária: [...] as ocupações de terra continuam a ser a principal forma de pressão de massas que os camponeses têm para, de forma prática, fazer a reforma agrária avançar e terem acesso direto à terra para trabalhar. Trabalho, escola para seus filhos e a oportunidade de produzir (STEDILE, 2005, p. 117). Desse modo, a ocupação é um instrumento à cidadania, ação que possibilita o processo inicial de inclusão socioterritorial. Para que haja ocupação, é necessário haver famílias participando, tornando-se a base das novas comunidades criadas: A ocupação dá sentido de unidade às pessoas, para lutarem por um mesmo objetivo. Passar pelo calvário de um acampamento cria um sentimento de comunidade, de aliança. Por isso, é que não dá certo ocupação só com homem (STEDILE, 2005, p. 115). Nesse aspecto, as famílias que compõem o corpo social dessas ações apresentam um histórico de forte ligação com a agricultura: Os acampamentos dos sem-terra são formados por famílias de camponeses que vivem como trabalhadores rurais, arrendatários, bóias-frias, meeiros e querem ter a própria terra para plantar (MST, 2010, p. 17). E que depositam nas ocupações a possibilidade real de mudança de vida, constituindo-se como um espaço de esperança: [...] enxergam na organização dos trabalhadores rurais uma alternativa para a conquista da terra, para melhorar a sua condição de vida, ter sua casa, uma horta para plantar e trabalhar, dar educação, lazer e garantir saúde para a família (MST, 2010, p. 17).

194 193 Segundo o MST, os espaços criados nas ocupações são de luta, resistência, solidariedade e com possibilidade de mudança: As famílias passam a viver nos acampamentos, nas beiras de estradas ou em áreas abandonadas, enfrentando dificuldades no seu dia a dia para morar, dormir, descansar e comer. No entanto, encontram um refúgio na organização coletiva de uma comunidade, onde todos enfrentam os mesmos problemas juntos. Nesse processo, percebem que essa é a melhor maneira de enfrentá-los. Mesmo anos embaixo da lona preta, resistem por conta da perspectiva de conseguir a terra, entrando em um programa de reforma agrária (MST, 2010, p. 17). Nessa perspectiva, cabe indagar qual os sentidos e desdobramentos para essas famílias a participarem as ocupações? Com base nas reflexões feitas por Fernandes (2000), entendemos que a ocupação é uma ação de famílias camponesas em torno do MST e de outros movimentos sociais no que concerne ao processo de luta pela terra, contra o capital e o processo de exploração imposta pela renda da terra: [...] a luta pela terra é uma luta constante contra o capital. É a luta contra a expropriação e contra a exploração. E a ocupação é uma ação que os trabalhadores sem-terra desenvolvem, lutando contra a exclusão causada pelos capitalistas e ou pelos proprietários de terra (FERNANDES, 2000, p. 280). A ocupação é uma forma de materialização da luta contra a exploração sofrida e vivenciada historicamente: A ocupação é, portanto, uma forma de materialização da luta de classes (FERNANDES, 2000, p. 280). É uma ação de intervenção e tentativa de modificação da realidade: A ocupação é uma forma de intervenção dos trabalhadores no processo político e econômico de expropriação (FERNANDES, 2000, p. 281). Fruto de um processo de espacialização e territorialização da luta contra o capital, a ocupação torna-se uma forma de recriação do camponês sem-terra através da resistência (FERNANDES, 2000). Isso porque, com a ação de ocupar latifúndios improdutivos, tem-se a territorialização do camponês e consequentemente a desterritorialização do capital 170. Constituindo-se como única forma de acesso à terra como propriedade sua e possibilidade de modificação da vida, através da conquista de direitos básicos de cidadania 171 : 170 Segundo afirma Fernandes (2000), o sem-terra ocupa a terra onde o capital se territorializou, gerando um processo de conflito e embate com o capital: Os sem-terra ocupam terras, predominantemente, em regiões onde o capital já se territorializou. Ocupam latifúndios propriedades capitalistas terras de negócio e exploração - terras devolutas e ou griladas. As lutas por frações do território os assentamentos representam um processo de territorialização na conquista da terra de trabalho contra a terra de negócio e de exploração (FERNANDES, 2000, p. 286). 171 Segundo Fernandes (2000), as ações de ocupações se constituem como um desafio para o Estado e é uma forma de resistência e de defesa dos interesses dos trabalhadores, uma vez que é uma ação que visa

195 194 A ocupação é um processo socioespacial e político complexo que precisa ser entendido como forma de luta popular de resistência do campesinato, para sua recriação e criação. A ocupação desenvolve-se nos processos de espacialização e territorialização, quando são criadas e recriadas as experiências de resistência dos sem-terra (Ibidem, p. 281). Por isso, Fernandes (2000) parte da concepção de que a ocupação de terras é uma forma de organização camponesa, pela qual, meio das ações do MST, as famílias camponesas constroem um novo desafio de vida, novas experiências, a partir do embate contra o Estado e o latifundiário: Primeiro é preciso dizer que a ocupação é uma ação decorrente de necessidades e expectativas, que inaugura questões, cria fatos e descortina situações. Evidente que esse conjunto de elementos modifica a realidade, aumentando o fluxo das relações sociais. São os trabalhadores desafiando o Estado, que sempre representou os interesses da burguesia agrária e dos capitalistas em geral (Ibidem, p. 281). É uma ação que o camponês toma como necessária para a sua sobrevivência e a da sua família. É o momento de avaliar o presente e o passado, de agir para mudar o seu mundo, tornando-se uma forma de socialização, de conquista de terra e de reinserção. Ao mesmo tempo, é uma forma de organização de resistência que se dá a partir das necessidades, permitindo a construção de práxis e a formação de consciência e de identidade: Assim, por meio da ocupação da terra os trabalhadores se ressocializam, lutando contra o capital e se subordinando a ele, porque ao ocuparem e conquistarem a terra se reinserem na produção capitalista das relações não capitalistas de produção (Ibidem, p. 280). É com as ocupações que se inauguram novas questões, dúvidas e embates: Quando um grupo de famílias começa a se organizar com o objetivo de ocupar terra, desenvolve um conjunto de procedimentos que toma forma, definindo uma metodologia de luta popular. Essa experiência tem a sua lógica construída na práxis. Essa lógica tem como componentes constitutivos a indignação e a revolta, a necessidade e o interesse, a consciência e a identidade, a experiência e a resistência, a concepção de terra de trabalho contra a de terra de negócio e de exploração, o movimento e a superação (Ibidem, p. 282). Por isso, dentro da perspectiva de Fernandes (2000) e da própria realidade em estudo, entendemos que é através das ocupações que se iniciam, de fato, as modificações na histórica de exploração dos camponeses, por meio de uma consciência social da necessidade de lutar pela terra e por novos direitos, como escola, casa, trabalho, dignidade: A organização de uma sobretudo à busca por direitos básicos: A ocupação é, então, parte de um movimento de resistência a esses processos, na defesa dos interesses dos trabalhadores, que é a desapropriação do latifúndio, o assentamento das famílias, a produção e reprodução do trabalho familiar, a cooperação, a criação de políticas agrícolas voltadas para o desenvolvimento da agricultura camponesa, a geração de políticas públicas destinadas aos direitos básicos da cidadania (FERNANDES, 2000, p. 282). Por isso, criminalizar as ocupações é aceitar a exploração imposta pelos latifundiários aos camponeses.

196 195 ocupação decorre da necessidade de sobrevivência. Acontece pela consciência construída na realidade em que se vive. É, portanto, um aprendizado em um processo histórico de construção das experiências de resistência (Ibidem, p. 282). Essas ações representam um processo de elaboração de espaços de recriação dos camponeses, uma vez que não se consegue entender as atividades humanas fora dos seus espaços de referência e existência. É no e a partir desses espaços que os camponeses reproduzem-se e transformam permanentemente suas vidas, existências, coisas, objetos, trabalhos e a si mesmos. Fato que nós podemos perceber em relatos de dois camponeses hoje assentados: Eu tô é atrás de um pedaçinho de terra para eu viver, trabalhar e comer. [...] Lutar por um pedaçinho de terra para o nosso pão de cada dia não é defeito não. (Discurso assentado 01, PA Independência). Me chamaram quando eu morava na rua, nessa época. Aí chegou dois caras do movimento, quando ele chegou, aí falou que era do movimento e eu perguntei como que é isso: é para invadir o terreno da Independência alí? Aí eu falei tá certo, eu vou, tô precisando de um terreno para trabalhar, aí eu acompanhei (Discurso assentado 03, PA Independência). O conteúdo destas falas possibilita interpretações, fazendo-nos vislumbrar que os sentidos das ocupações para o camponês se dão pela possibilidade real de mudança de vida, a partir de um processo de interação, conscientização e formação política. O que nos faz concordar com Feliciano (2006) quando afirma que os sujeitos, nesse processo, buscam recriar-se enquanto classe, mas também desenvolver práticas de autogestão e liberdade: A ocupação de terras é uma forma de luta da classe camponesa na busca da criação, recriação e reprodução do modo de vida baseado principalmente na autogestão e na liberdade (FELICIANO, 2006, p. 103). Por isso, as ocupações, enquanto materialidade, imaterialidade e forma de luta, são apropriadas e usadas pelo conjunto de camponeses que se organizam segundo suas relações sociais cotidianas e a partir de ações intencionais em torno do MST, numa perspectiva de mudança real de sua vida e a partir de uma consiciência de mudança e sobreviência. Daí a importância e o papel fundamental do trabalho de base do movimento, uma vez que o camponês passa a ter contato direto com os discursos e as práticas de luta pela terra e pela RA. Segundo Fernandes (2000), o trabalho de base e, consequentemente, a formação da consciência política (da necessidade de sobreviência) camponesa, é resultado da

197 196 espacialização da luta pela terra. É um processo que se dá nas comunidades locais e que se estabelece a partir da construção de experiências, da troca de informações dos indivíduos nos seus locais de vida: A espacialidade é um processo contínuo de uma ação na realidade, é o dimensionamento do significado de uma ação. Desse modo, as pessoas do próprio lugar iniciam o trabalho de base porque ouviram falar, viram ou leram sobre ocupações de terra, ou seja, tomaram conhecimento por diferentes meios: falado, escrito, televisivo etc. E assim iniciam a luta pela terra construindo suas experiências (FERNANDES, 2000, p.282). É nesse trabalho de base que vários camponeses e suas famílias passam a dividir experiências com seus pares e a vivenciar juntos a possibilidade de modificar seu quadro (histórico) de exploração e expropriação imposta pelo capital. Esses encontros permitem a construção de um processo de formação de uma nova mentalidade, uma possibilidade de reflexão e a formação de uma consciência e leitura vivida 172. Por isso, os acampamentos, enquanto materialização das ocupações, são realidades em transformação da vida do trabalhador. Refletindo a organização do movimento e traduzindo ações e os processos de espacialização e territorialização: Os acampamentos são espaços e tempos de transição na luta pela terra. São, por conseguinte, realidades em transformação. São uma forma de materialização da organização dos sem-terra e trazem em si, os principais elementos organizacionais do movimento. Predominantemente, são resultados de ocupações. São, portanto, espaços de lutas e de resistência. Assim sendo, demarcam nos latifúndios os primeiros momentos do processo de territorialização da luta. As ações de ocupar e acampar interagem os processos de espacialização e territorialização (Ibidem, p. 293). A ocupação é um espaço interativo da constituição política e do aprendizado 173. Pois há a formação da consciência da luta, a partir das trocas de experiências e da formação subjetiva da possibilidade de transformação e construção de um novo destino. O espaço é, assim, o encorajamento para participar das ocupações, num processo em que os sujeitos decidem onde, como e quando vão ocupar a terra, a partir da sua realidade. Inclusive, num processo de mostrar à sociedade sua real situação de vida: As ocupações, passeatas e atos públicos revelam para a sociedade a condição de exclusão vivida pelos sem terra (PEDON, 2009, p. 208). 172 Segundo afirma Fernandes (2000), este trabalho de base se dá de forma distinta, de acordo com o tempo, lugares e experiências. Constituindo-se por meio do espaço comunicativo (primeiras informações) e interativo (espaço da experiência antes e depois da ocupação e que se estabelce nas práticas de organização social). 173 Com a ocupação, as famílias podem organizar-se de diversa formas. Existem várias experiências, dentre elas: a de dividir a terra em lotes e começar a trabalhar individual ou coletivamente, a de ocupar as margens de rodovias (FERNANDES, 2000). Essas formas de organização mostram que já na ocupação inicia-se o processo de novas práticas e métodos de organização dos espaços de vida e de trabalho.

198 197 Daí, concordamos com Sauer (2003), quando este afirma que a luta pela terra é delimitada geograficamente numa estrutura espacial que possibilita modificações dentro do quadro social, político e econômico, abarcando um conjunto de transformações no campo e redistribuindo a propriedade da terra, o poder, bem como redirecionando e democratizando a participação da população. Sendo, assim, para o camponês uma possibilidade real de alcançar terra, emprego e renda, criando, inclusive, melhores condições de vida no meio rural 174 (SAUER, 2003). Isso porque é no local de vida que começa o entendimento de todo o processo de organização e das representações do cotidiano: A estrutura espacial (entendida como resultado de processos sociais, inclusive de embates pelo poder) é parte fundante da construção e representação da vida cotidiana. A luta pela terra materializa esta importância porque é, explicitamente, a busca por um lugar, geograficamente localizado e delimitado (SAUER, 2003, p. 19). Nessa perspectiva, o desdobramento principal das ocupações é a construção de uma experiência socioespacial que resulta da ação coletiva, a partir da organização e mobilização para a construção de um processo de inclusão socioterritorial, a partir dos territórios dos PA. O que permitirá não só a constituição de uma consciência de resistência e de superação da expropriação vivenciada anteriormente 175, mas também, da continuidade da luta por novas conquistas no/e a partir dos territórios. Daí porque a ocupação é fruto da espacialização e/ou espacialidade da luta pela terra empreendida por famílias camponesas a partir das ações dos movimentos sociais (e vice-versa) (FERNANDES, 2000). Nesse sentido, os territórios dos PA representam a materialização do discurso e das ações da luta pela terra empreendida por famílias de camponeses em torno dos movimentos sociais, principalmente do MST. Constituindo-se como frações da luta pela terra, da espacialização e territorialização desta: Do ponto de vista dos movimentos sociais o assentamento é a terra conquistada e, portanto, o lugar da luta e resistência. Do ponto de vista do Estado o assentamento é um projeto social resultado da política de reforma agrária, em que o mesmo intervém numa determinada área para regularizar problemas de ordem fundiária. Por essas definições o assentamento é uma fração do território, é um trunfo na luta pela terra. (FERNANDES, 1998, p. 21) 174 Sauer (2003) argumenta que: A democratização do acesso à propriedade da terra mais do que uma simples política social compensatória de combate à pobreza rural representa a possibilidade da construção de identidades e cidadania no meio rural (SAUER, 2003, p. 16). 175 Conforme Fernandes (2000), as conquistas de algumas famílais a partir da territorialização da luta pela terra são difundidas e especializadas para outras. Isso serve de base para ações futuras e o encorajamento e possibilidade de participação de novas famílias de camponeses: Experiências espacializadas agilizam a organização porque os grupos de famílias trabalham desde as experiências vividas e avaliadas. Nesse sentido, o começo de uma luta tem como referências outras lutas e conquistas. Assim, ao consumarem suas conquistas, territorializando-se, terão suas lutas relatadas na espacialização do movimento. Dessa forma, vão construindo suas histórias, suas existências (FERNANDES, 2000, p. 291).

199 198 Pensamento também compartilhado por Feliciano (2006) quando este último disse que os assentamentos são como pontos de partida e de chegada da luta pela terra: O assentamento é o ponto de chegada da luta camponesa no acesso à terra e é ao mesmo tempo, seu ponto de partida em um processo contínuo de luta para a afirmação de sua sobrevivência e reprodução enquanto classe social (FELICIANO, 2006, p. 119). Ou ainda, como diz Girardi (2008), ao afirmar ser os territórios dos PA repostas à luta pela terra empreendida pelos camponeses. Com efeito: [...] a luta pela terra e a conseqüente criação de assentamentos é uma forma de recriação do campesinato. As ocupações constituem um momento da luta pela terra. Como resposta às ações dos movimentos socioterritoriais, os governos criam assentamentos rurais que, em princípio, constituem a conquista da terra. Os assentamentos significam uma nova etapa da luta: o processo pela conquista da terra. Ainda é necessário conquistar condições de vida e produção na terra; resistir na terra e lutar por um outro tipo de desenvolvimento que permita o estabelecimento estável da agricultura camponesa (GIRARDI, 2008, p. 274). Ou, segundo Oliveira (2001), o assentamento é o território de quem luta e lutou por direitos e novas formas de trabalho: Acampamentos e assentamentos são novas formas de luta de quem já lutou ou de quem resolveu lutar pelo direito à terra livre e ao trabalho liberto (OLIVEIRA, 2001, p. 194). Constituindo-se em territórios que têm por base a inclusão a partir da coletividade ou das ações coletivas: A terra que vai permitir aos trabalhadores donos do tempo que o capital roubou e construtores do território comunitário e/ou coletivo que o espaço do capital não conseguiu reter à bala ou por pressão reporem-se/reproduzirem-se no seio do território da reprodução geral capitalista (OLIVEIRA, 2001, p. 194). Por isso mesmo, além de frações da luta pela terra, os PA são territórios que possibilitam dominação do camponês, a partir de uma nova caminhada para as famílais que tragam em sua história os processos de expropriação e exploração impostos pelo capital. Esses territórios trazem na sua constituição a unidade camponesa, tornando-se não só um espaço de produção e trabalho, mas também um local de formação de uma coletividade, fortalecida a partir das sociabilidades: As áreas agrícolas reformadas não podem ser apenas lugares de produção e trabalho. Assentamento é um espaço para o conjunto de famílias camponesas viver, morar, estudar e garantir um futuro melhor à população. São conquistados direitos sociais que não são garantidos a todo o povo brasileiro: trabalho, casa, escola e comida (MST, 2010, p. 21). Por isso, a questão central dos PA é colocá-los como espaços construídos dentro de um processo carregado de intecionalidades, de relações conflituosas, dos processos diferentes

200 199 dos predominantes; mas, principalmente, da leitura das terriotorialidades políticas 176 e dos discursos presentes. Mesmo sendo fruto da espacialização e territorialização dos movimentos sociais, tornando-se: [...] a grande contribuição do MST para a sociedade brasileira (MST, 2010, p. 21), os PA são territórios que existem e libertam o camponês, enquanto classe social, a partir do próprio cotidiano das famílias: [...] Os assentamentos caminham no sentido da resolução das necessidades das famílias, criando condições para o trabalho, para a produção e moradia, ou seja, organizam a economia e as dimensões da vida social, educacional e cultural das famílias assentadas (MST, 2010, p. 21). Nessa perspectiva, pensar os PA é articular não só as ações dos movimentos sociais, especificamente, o MST, mas também a capacidade das famílias de serem sujeitos políticos capazes de organizar social e territorialmente os assentamentos, tornando-os territórios com espaços de vida própria (PORTO-GONÇALVES, 2005). Isso para que tais territórios possam, pois, ser usados e praticados pelos camponeses, num processo constante de interação, conscientização e formação política, além de conflitos internos 177, pois nem sempre há consenso. Nesse sentido, os PA Independência e Varame I em Passira-PE passam a ser da analisados agora, a partir da retomada do contexto do camponês e das lutas pela terra em Pernambuco e, em particularmente, em Passira, além da retomada dos discursos das famílias assentadas em seu cotidiano. 176 Como aponta Bitoun (1993), as ações dos movimentos sociais acontecem no campo do conflito e das ações políticas, sendo necessário fazer uma leitura política dos territórios e das territorialidades desses movimentos, como forma de observar o que as territorialidades estão promovendo de diferente, de novo. 177 Como nos aponta Bitoun (1993), as ações dos indivíduos políticos, agindo nos movimentos sociais, constituem manifestações na sociedade por meio das quais, através de relações e campos de poder e conflitos, os espaços vão ganhando novas existências e sentidos de organização. Essas novas organizações são resultado das intencionalidades de cada um dos atores sociais ao construírem seus territórios. Ao mesmo tempo, cada território passa a existir e acontecer, concomitantemente, enquanto realidade material e imaterial territorializada. Essas ações vão ser diversas e carregadas de intencionalidades, como resultado da relação entre os indivíduos e o movimento, como também da relação entre sujeito e objeto.

201 O CAMPONÊS, A LUTA PELA TERRA E OS ASSENTAMENTOS RURAIS DE REFORMA AGRÁRIA EM PERNAMBUCO E EM PASSIRA 4.1 O CAMPONÊS E A CULTURA DA EXPLORAÇÃO E SUBORDINAÇÃO PELA RENDA DA TERRA De maneira geral, entendemos que o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, no Brasil, possibilita o crescimento de uma grande massa de camponeses despossuídos com precária inclusão. Uma precária inclusão que se manifesta em várias escalas, criando uma classe social de pobres do campo que sobram e que vivem à margem do desenvolvimento econômico e social do país. Fato constatado nas tabelas 15 e 16 ao mostrarem o crescimento da massa de camponeses participantes e com significativa expressão em Pernambuco. Para que se possa entender a presença desse camponês no espaço agrário do Brasil, é necessário compreendê-lo como fruto de uma formação social do desenvolvimento do modo de produção capitalista (OLIVEIRA, 1990, 2007). Um desenvolvimento articulado com a sua reprodução ampliada, ou seja, com as relações sociais não-capitalistas de produção 178. Uma expropriação e exploração que ocorrem de maneira diferenciada, uma vez que o capital, ao expandir-se em todos os espaços, destacando-se aqui os rurais, não o faz de modo harmônico e homogêneo, mas, sim, estabelecendo trocas diferenciadas entre capital e 178 Partindo da perspectiva de Oliveira (1990, 2001, 2007), as relações de produção constituem um conjunto de relações estabelecidas entre os homens e a sociedade, a partir de um determinado nível ou grau de desenvolvimento em que se encontram. É esse nível de desenvolvimento que deixa patente o grau de complexidade, bem como o de interdependência entre os vários atores sociais envolvidos no processo de construção das condições materiais e imateriais de existência. No capitalismo, a relação entre as várias classes e os vários grupos sociais acontece no âmbito da separação dos trabalhadores com relação aos seus meios de produção. Nesse contexto, os trabalhadores rurais que, despossuídos dos seus próprios meios de produzir e tendo unicamente a sua força de trabalho como condição de propriedade, não têm outra alternativa que a da disponibilização da sua força de trabalho como uma mercadoria a ser vendida para quem a quiser. Assim, o capitalismo gera uma relação de compra e venda da força de trabalho, fazendo com que haja classes de proprietários dos meios de produzir, compradoras de trabalho, e os proprietários do trabalho, vendedores da mercadoria. Ao comprar a força de trabalho, o capitalista adquire a força necessária para criar mercadorias, na perspectiva da produção de capital. E ao apoderar-se desse trabalho, através do pagamento de um salário que constitui apenas parte do esforço completo do trabalhador na produção de determinadas mercadorias (relação tipicamente capitalista), o capitalista apodera-se do resultado deste trabalho, fazendo dos trabalhadores uma propriedade econômica sua. Assim, a liberdade do trabalhador passa a ser uma liberdade baseada na sujeição. O trabalhador é livre para vender sua força de trabalho a quem achar melhor, porém está sujeito à exploração do capitalista, baseada no cálculo do seu lucro. Ao mesmo tempo, dialeticamente, o trabalhador depende dessa sujeição, já que depende do salário para se reproduzir e existir socialmente. Por isso, força de trabalho passa a ser, segundo Oliveira (1990), uma mercadoria especial. Com efeito, as relações capitalistas de produção são baseadas nas relações sociais de trocas desiguais entre capital e força de trabalho. Trocas que acontecem em relações desiguais e contraditórias, uma vez que o trabalhador é livre, mas depende ou se submete, na maioria das vezes de forma alienada, a formas de exploração do capital.

202 201 trabalho. Ao mesmo tempo, o camponês não pode ser entendido como uma classe resultante da expropriação e exploração a partir da mera apropriação formal e real do trabalho pelo capital, o que Martins (1995) denomina como sujeição formal e sujeição real. Não há, para o camponês, uma subordinação aos moldes do trabalhador urbano-industrial, mas formas específicas típicas de uma expansão capitalista que se adéqua às particularidades do campo no Brasil (OLIVEIRA, 1990, 2001, 2007). Por isso, o capital reproduz o trabalho assalariado no campo brasileiro, divorciando o trabalhador dos seus meios de produção e tendo o salário como mediador dessa relação desigual entre capital e trabalho. Ao mesmo tempo em que se tem a reprodução ampliada desigual e contraditória, aquelas das relações tipicamente não-capitalistas, as quais se baseiam na exploração do trabalhador não se referindo necessariamente ao salário, mas que permeiam produção e reprodução de relações do tipo familiar (não necessariamente capitalistas). Desse modo: [...] a contradição que move a lógica do capital, certamente, é o móvel revelador do desenvolvimento desigual e combinado do campo brasileiro este campo que ao mesmo tempo abre espaço para o avanço do trabalho assalariado, igual e contraditoriamente, abre espaço ao avanço do trabalho familiar (OLIVEIRA, 2001, p. 16). Assim, o capital se desenvolve no campo a partir da contradição e desigualdade que se estabelecem através da reprodução das relações capitalistas que se acham ao lado das relações não-capitalistas de produção. E a agricultura camponesa constitui um dos mais significativos exemplos das contradições do desenvolvimento do capital no Brasil. Ao mesmo tempo, o discurso do Estado mascara a sujeição do camponês. Nessa perspectiva, apontada por Oliveira (1990, 2001, 2007), também, presente em Martins (1995, 1997), a subordinação do camponês ao capital não pode deixar de ser considerada no âmbito do processo de sujeição da renda da terra ao capital. É a sujeição da terra ao capital, através da apropriação da renda da terra, uma das principais formas do capitalismo utilizar as relações de trabalho e produção camponesa para fazer capital. Trata-se, também, de um dos principais mecanismos de subordinação do trabalho camponês. Essas relações se estabelecem através do momento em que o capital se apropria da terra, transformando-a, também, em mercadoria, para extrair dela uma renda. Como explica Martins (1995), a terra não pode ser confundida com capital. A terra em si não gera a exploração do trabalhador como no processo de assalariamento tipicamente

203 202 capitalista. A terra é um instrumento de trabalho, do qual se extrai dela o fruto desse trabalho. Porém, nas mãos dos capitalistas, a terra se torna uma ferramenta para a exploração e dominação do camponês. Nesse sentido, a terra passa a ser um obstáculo ao trabalhador rural, uma vez que, para o acesso a ela ou sua exploração, ele tem que pagar ao proprietário ou se submeter às suas vontades. Daí a separação entre o trabalhador e o seu meio de vida terra, a sujeição da terra e a do trabalhador pelo capital: Assim, através da separação parcial entre trabalhador e os meios de produção de que ele necessita para trabalhar, o capital cria as condições para se apropriar do seu trabalho, para fazer com que o trabalho apareça como parte do capital quando é comprado pelo capitalista. Assim como o capital pode se apropriar do trabalho, também pode se apropriar da terra; pode fazer com que ela, que nem é produto do trabalho nem do capital, apareça dominada por esse último. Mas, assim como o capitalista precisa pagar um salário para se apropriar da força de trabalho do trabalhador, também precisa pagar uma renda para se apropriar da terra. Assim, como um trabalhador cobra um salário para que a sua força de trabalho seja empregada na reprodução do capital, o proprietário da terra cobra uma renda para que ela possa ser utilizada pelo capital ou pelo trabalho (MARTINS, 1995, p. 160). O capitalista, na figura do latifundiário, não permite que o camponês entre em suas terras para realizar suas plantações, impedindo a sua reprodução e a de sua família. E, por conseguinte, a possibilidade de sua existência enquanto sujeito livre. Porém, quando se permite a entrada dos trabalhadores, através de alguma forma de pagamento pelo uso da terra, o capitalista poupa gastos e usufrui da renda que se obtém através do trabalho desses terceiros: A terra é esse obstáculo. Sem a licença do proprietário da terra, o capital não poderá subordinar a agricultura. Como o capital tudo transforma em mercadoria, também a terra passa por essa transformação, adquire preço, pode ser comprada e vendida, pode ser alugada. A licença para a exploração capitalista de terra depende, pois, de um pagamento ao seu proprietário. Esse pagamento é a renda da terra (Ibidem, p. 160). O pagamento do camponês ao proprietário, através de dinheiro ou parte da sua produção, pela utilização da terra, constitui uma das formas do capital apropriar-se do trabalho e produção camponesa, subordinando-os aos seus interesses. Trata-se, assim, de uma sujeição que se materializa pelo esforço do trabalhador rural ao trabalhar numa terra que não lhe pertence. Enfim, uma sujeição, simultaneamente, física, financeira e moral Segundo Paulino (2003), as relações econômicas no Brasil têm por base uma sustentação em formas rentistas, uma extração do excedente social do trabalhador através de formas de tributos sociais, a renda da terra no caso em epígrafe.

204 203 Nessas condições, o camponês divorcia-se da terra, tornando-se um expropriado (MARTINS, 1995). Um sujeito impossibilitado de ter uma propriedade para a sua existência e a de sua família na sociedade. É justamente por isto que um dos caminhosao referido acesso acaba sendo o da própria submissão ao capital, pela proletização ou subordinação nas fazendas. Do que resultam relações de trabalho como parceria, arrendamento, trabalho alugado, morada. Ou seja, relações de trabalho não tipicamente capitalistas, mas que, apesar de gerarem a subordinação do camponês aos interesses do capitalista, ao mesmo tempo, garante-lhes a sobrevivência. Na tentativa de explicar tais processos de subordinação das relações de trabalho não-capitalistas, tem-se a acrescentar que: Um fazendeiro que desenvolve pecuária de corte invernada no oeste de São Paulo precisa ter sempre boas condições as pastagens de suas propriedades e manter um conjunto de trabalhadores assalariados para cuidar do rebanho. [...] Nem sempre isso ocorre. Muitas vezes, esse fazendeiro, ao invés de destinar uma parte do seu capital para realizar a tarefa de refazer o pasto, arrenda a terra a camponeses semterra ou com pouca terra na região, para que eles façam o trabalho por ele. Esse arrendamento pode ser de várias formas, entre elas a de dividir parte da produção obtida no solo durante uma colheita de algodão, amendoim, milho, etc. o fazendeiro entra com a terra e por isso recebe a metade, ou um terço ou um quarto ou uma porcentagem previamente estipulada da produção obtida. Também, pode cobrar uma quantia em dinheiro pela cessão da terra. No primeiro caso, temos a parceria e, no segundo, a renda em dinheiro (Ibidem, p. 160). Por essa razão, mesmo não sendo capital em si, a terra passa a atuar como se o fosse, uma vez que não se separa, neste caso, o capitalista do proprietário da terra. É através dela que se estabelece a expropriação e a sujeição do trabalhador com relação aos meios de produção 180. Enquanto o lavrador luta pela terra de trabalho, a grande empresa capitalista luta pela renda da terra (MARTINS, 1995). 180 Martins (2010) já apontava essa tendência nas relações nas fazendas de café em São Paulo, através do regime do colonato. O autor mostrou as transformações ocorridas com a renda capitalizada a partir do fim do tráfico negreiro e da Lei de Terras de O objetivo foi mostrar que a Lei de Terras e a legislação subseqüente codificaram os interesses combinados de fazendeiros e comerciantes instituindo a continuidade do padrão da exploração da força de trabalho, mesmo com o fim do cativeiro do trabalhador. Segundo o autor, a renda capitalizada deixa de ser extraída a partir do trabalhador escravo para sê-lo a partir da propriedade da terra. Com o fim do tráfico negreiro e o preço muito caro do escravo nas transferências interprovincianas, estimulou-se a imigração de colonos europeus (resolução do problema da mão-de-obra). Ao mesmo tempo, impossibilitou-se a ocupação legítima, sem pagamento, das terras devolutas, recriando novas condições de sujeição do trabalho que desapareceriam com o fim do cativeiro negro. A propriedade da terra passou a ser a nova forma de sujeição do trabalhador livre, através de uma nova sujeição do trabalho na terra e aos interesses do capital: a coerção no imaginário de ascensão social e da renda territorial capitalizada. Nessas condições, o regime do colonato foi adotado em vários esquemas de relacionamentos entre colonos e fazendeiros. Foram várias formas disfarçadas de trabalho constituindo o regime do colonato: As relações de produção instituídas na fazenda de café, com o advento do trabalho livre, [...] não eram relações integralmente e caracteristicamente medidas pelo salário em dinheiro [...] (MARTINS, 2010, p. 60). Dessas concepções, Martins (1997) formulou o seu pensamento afirmando que a Questão Agrária do Brasil começa de fato com o fim da escravidão e com a Lei de Terras de Uma união da posse e do domínio das terras pelos proprietários. O novo regime da propriedade criava uma força de trabalho livre, que tem posse da sua força de trabalho e que poderia escolher a quem se submeter. Uma

205 204 Nessa perspectiva, também para Oliveira (2001), a terra nas mãos do camponês constituir-se-ia instrumento de trabalho; enquanto que para os capitalistas constituir-se-ia instrumento de dominação ou exploração camponesa, tornando-se neste caso equivalente ao capital, impondo ao lavrador a exploração capitalista: [...] o camponês nunca possui ou perdeu a propriedade da terra, ao recusar a condição de proletário, procura abrir acesso à terra através do pagamento de seu uso. Pagando em produto, através das muitas formas de parceria (meação, terça, quarta, percentagem, etc.) ele transfere para o proprietário da terra renda em produto, renda camponesa, portanto. Pagando em dinheiro, ele torna-se dinheiro, ele torna-se em rendeiro, transferindo para o proprietário da terra renda em dinheiro, renda camponesa da terra. Muitas vezes, é através do pagamento em trabalho que ele abre acesso à terra, transferindo para o proprietário dias de trabalho, renda em trabalho, renda camponesa da terra também, portanto. O proprietário da terra, por sua vez, é bom esclarecer, pode apenas ser um consumidor dessas rendas ou então, convertêlas em capital, através da metamorfose dessas fontes de renda camponesa em capital (OLIVEIRA, 2001, p. 62). Nesse processo de apropriação da renda da terra pelo capital, o camponês se diferencia internamente devido a várias possibilidades de acesso à terra, a partir das diferentes formas de exploração. Daí surgem várias modalidades de camponeses, tais como: camponesesproprietários, os camponeses-parceiros, os camponeses-rendeiros e os camponeses-posseiros (OLIVEIRA, 2001). De maneira semelhante, também Andrade (1986), quando trabalhou as lutas camponesas que aconteciam no Nordeste do Brasil, já apontava a existência de dificuldades no que concernia ao entendimento da contradição do campo brasileiro, principalmente a partir do caso do camponês e dos seus conflitos. No estudo dessas questões, o autor utilizou a expressão camponês como sinônimo de trabalhador rural pobre, o qual compreendia tanto os indivíduos completamente expropriados da terra, como aqueles que disporiam de pequenas porções de terra, mas mantendo, em certos períodos do ano, sua força de trabalho a serviço dos grandes e médios proprietários. Com efeito: [...] vêm distinguindo entre a grande multidão de habitantes e trabalhadores do campo duas categorias, a daqueles que já foram expropriados da terra e dos utensílios de trabalho e vivem exclusivamente da venda de sua força de trabalho, que seriam os assalariados, e aqueles que ainda têm o controle de pequenas porções de terra, como os proprietários, arrendatários ou meeiros e que cultivam-nas visando o auto-abastecimento e a venda do excedente. Estes ainda complementam a renda trabalhando, nos períodos de paralisação dos trabalhadores em suas pequenas liberdade necessária para se subordinar ao capital. Porém, essa nova forma de trabalho, diferenciada do escravo, era cativa do mesmo jeito. Isso porque impedia de ter a posse livre da terra. Sua posse só poderia acontecer mediante a compra. Como os colonos não tinham recursos, o jeito era a submissão nas fazendas. O objetivo das autoridades legislativas brasileiras, atreladas às elites rurais da época, era criar mecanismos que impedissem a grande massa de pobres terem acesso à terra, possibilitando, manter o controle do campo. Como também tratavase de uma forma de criar uma grande massa real e verdadeira de despossuídos (MARTINS, 1997, p. 67).

206 205 explorações, para os grandes e médios proprietários, sem vinculação empregatícia (ANDRADE, 1986, p. 6). Assim, especificamente para a região Nordeste do Brasil, Andrade (1986), ao trazer exemplos variados, como os de moradores de engenhos e das fazendas no Nordeste, os agriculturas que recebiam sítios para plantar o seu roçado, os parceiros e pequenos arrendatários, os foreiros, o trabalhador de condição entre outros, mostrou o camponês como sendo um subordinado aos interesses dos proprietários, uma grande massa ou clientela de dependentes dos proprietários (ANDRADE, 1986, p. 16). Percebe-se, então, a preocupação em mostrar que, mesmo com diferenças entre as relações estabelecidas entre os camponeses e a terra, nos vários espaços e tempos do campo brasileiro, estas relações estão baseadas na subordinação do camponês pela terra. Formas de subordinação que se constituem como normas impositivas ao camponês, determinando sua condição de vida: Não lhes sendo permitido cultivar terras do proprietário, dispunham para sobreviver apenas sua força de trabalho, da qual se apropriava o proprietário, sem lhes pagar férias, repouso remunerado, décimo terceiro salário e salário mínimo (ANDRADE, 1986, p. 18). Concepções parecidas podem ser vistas em Wanderley (1985 e 1996), segundo a qual os camponeses se constituíram enquanto uma classe de trabalhadores submetidos aos interesses do capital, personificado no capitalista e na sua grande propriedade. É o camponês um agente submisso aos interesses do capital, uma força de trabalho que tem que se submeter aos seus desígnios. Nas hipóteses desta autora, a grande propriedade capitalista utiliza a força de trabalho camponesa, explorando a sua base familiar, no interior da grande propriedade. Essa precária forma de acesso à terra pelo camponês não o liberta, uma vez que o vínculo só se dá a partir da grande propriedade que o explora. Nesse sentido, assumindo as características históricas e particulares dos processos históricos do Brasil, o trabalhador rural é de fato um sujeito constituinte de uma classe social bloqueada. Nas palavras da própria autora: [...] no Brasil, a grande propriedade dominante em toda a história, se impôs como modelo socialmente reconhecido. Foi ela quem recebeu aqui o estímulo social expresso na política agrícola, que procurou modernizá-la e assegurar sua reprodução. Nesse contexto, a agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e subalterno na sociedade brasileira. Quando comparado ao campesinato de outros países, foi historicamente um setor bloqueado, impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social específica de produção (WANDERLEY, 1996, p. 8).

207 206 No bojo das várias precariedades ou formas diferenciadas de submissão do campesinato no Brasil, destacam-se os seguintes pontos: [...] submeter-se à grande propriedade ou isolar-se em áreas mais distantes; depender exclusivamente dos insuficientes resultados do trabalho no sítio ou completar a renda, trabalhando no eito de propriedades alheias; migrar temporária ou definitivamente (Ibidem, p. 10). Com isso, os camponeses ocupam os espaços mais precários do país. Trata-se de uma precariedade estrutural que impede o desenvolvimento de suas potencialidades, apresentando na maioria das vezes condições de vida com os mínimos vitais e sociais (WANDERLEY, 1996). Por isso, entendemos que o camponês como um sujeito que sofre um processo histórico de exploração pelo capital, tornando-se um desenraizado da terra, uma classe social formada por indivíduos excluídos. Uma precária inclusão não só política, mas também econômica e social 181. E que se estabelece nas várias esferas da sociedade, colocando-os no lugar social de retardatário no cenário político, de pobres não incluídos no cenário da história nacional (MARTINS, 1995, p. 25). Nessa perspectiva, a luta pela terra se constitui como uma expressão política contra a sua real situação de expropriado, sendo esta luta uma saída à precária inclusão na terra, como uma tentativa de acabar com a submissão ou sujeição imposta pelo capital. Uma expressão política de negação de seu presente. Uma luta que está centrada no esforço de conseguir construir um território camponês de vida e de trabalho, nos assentamentos rurais O camponês do Agreste pernambucano Tomando como exemplo a reflexão feita em seu mais célebre trabalho, A Terra e o Homem no Nordeste, Andrade (2005), ao estudar a estrutura das propriedades e as relações de trabalho no Agreste de Pernambuco, e ao apresentar as condições de trabalho e vida do camponês da região, já afirmava que as condições de trabalho e vida do homem agrestino eram bastantes diferenciadas, mantendo forte ligação com a cultura de subordinação frente 181 Andrade (1986), ao tentar classificar o camponês de acordo com as suas lutas sociais, afirmou que as classes ou grupos de direita no país, em meados do século XX, qualificavam o camponês como rurícola. Assim, diz o autor: Os grupos de direita, contestando a propriedade do termo camponês, apresentaram para substituí-lo o termo rurícola, que não obteve maior aceitação. (ANDRADE, 1986, p. 6)

208 207 aos grandes proprietários locais. Isso devido à forma de acesso à terra e as relações que se estebelecem nessa região. Como afirmou o autor, o Agreste é uma região onde a pequena propriedade tem muita importância, uma vez que a maior parte dos estabelecimentos rurais é constituido por uma extensão inferior a vinte hectares. O que faz com que os pequenos proprietários de terra tenham uma condição de vida bem inferior à dos médios e grandes. Porém, para os pequenos donos de sítios a não disponibilidade de técnicas e recursos financeiros suficientes gera uma produção diminuída, obrigando-os a disponibilizarem sua força de trabalho como cortadores de cana na Zona da Mata. Segundo Andrade (2005), o corumba é um pequeno agricultor ou trabalhador semterra da região dos Agrestes que migra de forma sazonal para a região da Zona da Mata canavieira do estado a fim de servirem de mão-de-obra nas usinas de cana-de-açúcar. Sua estadia na região canavieira sempre esteve associada ao período de corte da cana e ao de chuvas no Agreste. Assim, relata o autor sobre as grandes migrações em direção à região canavieira: Engaja-se, assim, no grande exercícito formado pelos trabalhadores sem terra que, a partir de setembro, migram para a região da Mata, voltando à gleba em março, com as primeiras chuvas (ANDRADE, 2005, p. 168). Como nos fala Garcia Júnior (1983), esses indivíduos trabalham cortando cana, juntando bastante dinheiro, mas com a mente voltada para os roçados no Agreste. Também conhecidos como trabalhadores do sul, o trabalho desses indivíduos está ligado à necessidade de complementar a renda familiar, principalmente nos períodos em que ocorre a diminuição do trabalho nos seus pequenos roçados. Assim, diz o autor: A imagem do corumba na Zona da Mata referenda esse fato, pois são vistos como pessoas que trabalham muito (tanto intensamente como em longas jornadas), mas têm o pensamento voltado para os agrestes : quando batem as primeiras chuvas, voltam para as suas casas para botarem roçado (GARCIA Jr, 1983, 72). Ainda conforme Andrade (2005), o camponês do Agreste tem como uma de suas principais ocupações o trabalhando alugado aos grandes fazendeiros da região. Essa forma de trabalho submete-os a formas de exploração e subordinação: Não conhecendo os processos técnicos de conservação do solo e não dispondo de dinheiro para adquirir adubos, têm eles uma produção mínima, sendo a renda auferida insuficiente para a manutenção da família. O sitiante complementa o seu orçamento trabalhando alugado, como camarada, diriam no sul do País, para os grandes e médios proprietários vizinhos [...] (ANDRADE, 2005, p. 168).

209 208 Na maioria dos casos, a subordinação desses sujeitos ao capital se estabeleceu (e em certa media ainda se estebelece) pelo pagamento da renda da terra, fazendo do camponês um rendeiro : A utilização do restolho de cultura na alimentação dos animais leva o fazendeiro a manter relações economicas com grande número de agricultores; são os rendeiros, uma vez que quase sempre eles não residem na propriedade do fazendeiro, mas em cidades, vilas e povoações próximas ou até em suas pequenas propriedades, pois muitos desses agricultores lavram terra alheia, mas possuem uma chão de terra, um minifúndio onde moram com suas famílias. [...] Em alguns casos. O proprietário reserva áreas de piores solos para ceder pela palha, com a condição de que a terra seja devolvida em outubro ou novembro, impedindo, assim, a cultura do algodão que é sempre colhida a partir de dezembro. O pagamento da renda da terra é, às vezes, feito em moeda e às vezes em algodão (Ibidem, p. 175). Diantre dessa condição, Andrade (2005) afirma ser a preocupação central do camponês, o processo de exploração e o auto-abastecimento familiar. Muitos agrestinos plantam em seus pequenos sítios e nas terras cedidas pelos proprietários para prover as necessidades do lar. Em algumas áreas da região a propriedade é dividida por pequenos proprietários que se dedicam à cultura de tubérculos, como a mandioca, ihame, cará e batata (Ibidem, p. 175). Essas formas de relações de trabalho e de produção criaram (e criam) grandes massas de camponeses despossuídos que não tem acesso a um pedaço próprio de terra para trabalho, o que contribui para mantê-los sob processos muito desfavoráveis de trabalho e existência. Por tal motivo, esses trabalhadores ficaram mais suceptíveis a abraçarem os discursos em torno da luta pela terra formulados da parte do MST e demais movimentos sociais. 4.2 A LUTA PELA TERRA E A ORGANIZAÇÃO DOS CAMPONESES EM PERNAMBUCO As Ligas Camponesas: a gênese da luta pela terra A luta pela terra em Permanbuco se constitui, portanto, como uma expressão política do camponês contra a sua real situação de expropriado. Sendo esta uma saída para superar a precária inclusão socioterritorial, buscando acabar com a submissão ou sujeição imposta pelos latifundiários. Uma luta centrada no esforço do trabalhador rural e de sua família em conseguir construir seu território de vida e trabalho, a fim de libertarem-se, enfim, das

210 209 condições de exploração, expropriação e marginalização social, econômica e política impostas. Nesse sentido, é importante retomar algumas das tentativas postas em prática de organização das massas no estado, numa perspectiva de mostrar que a existência do MST em Permanbuco é fruto de uma continuidade no processo de formação histórica da região. As Ligas Camponesas, neste estado e no NE, se constituem como sendo o primeiro movimento ou organização camponesa de massa em favor dos trabalhadores rurais e em defesa da RA no país 182, e, ao mesmo tempo, embrião do movimento sem terra. Assim, afirma Stedile (2005) sobre tal fato: O MST nasceu no Sul em função de um conjunto de fatores, que tem suas raízes nas condições objetivas do desenvolvimento da agricultura. Mesmo assim nós do MST nos consideramos herdeiros e seguidores das Ligas Camponesas, porque aprendemos com sua experiência histórica e ressurgimos com outras formas (STEDILE, 2005, p. 18). Segundo nos apresenta Andrade (2005), as Ligas Camponesas representaram uma forma de resistência do campesinato contra o agravamento econômico e social sofrido pelo camponês em Pernambuco e no Nordeste: O agravamento contínuo da crise, as dificuldades de vida cada dia maiores levara os trabalhadores rurais a atitudes de revolta, de desespero, como ocorreu no já famoso Engenho Galiléia (ANDRADE, 2005, p. 305). Foi uma tentativa de sair da pobreza e da miséria impostas pelas classes hegemônicas: A miséria levou o trabalhador rural a tomar conhecimento de sua força, a não esperar pelos doutores, a exigir os seus direitos. Passou o medo dos proprietários e dos feitores e, organizados por políticos de esquerda como Julião, ou por sarcedotes católicos como Antônio Melo, passam os trabalhadores rurais a exigir maior compensação pelo seu trabalho. Agitam-se, esperneiam, são perseguidos, reagem e exigem a cota correspondente à sua participação na produção, desejam melhores dias (Ibidem, p. 317). Conforme o autor, as Ligas Camponesas surgiram como uma organização de massa que teve sua origiem no Engenho da Galileia, em 1954, em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata do estado. Este movimento recebeu o título de Sociedade Agrícola e Pecuária dos 182 Conforme observa Oliveira (2007), o surgimento das ligas camponesas estavam associado às atuações do PCB no NE. O PCB tentava reunir e organizar os trabalhadores rurais brasileiros em prol da reforma agrária: Com o final da década de 40, os anos 50 e o início da década de 60 foram marcados por este processo de organização, reivindicação e luta no campo brasileiro. No Nordeste esse processo ficou conhecido com a criação das Ligas Camponesas, cuja luta pela terra e contra a exploração do trabalho marcou significativamente sua ação (OLIVEIRA, 2007, p. 104).

211 210 Plantadores de Pernambuco, constituído por trabalhadores rurais na condição de foreiros 183 que estavam sendo pressionados pelo senhor de engenho a deixarem seus sítios. Com o apoio do então deputado Francisco Julião, que passou a defender os camponeses dos males do cambão e do forro, os trabalhadores rurais passaram a atuar cobrando do Estado e dos latifundiários os direitos que foram perdidos ou que nunca tiveram. Por isso, o papel de Julião ao longo da existência e atuação das Ligas foi: [...] despertar a grande massa camponesa para a luta, para a tomada de consicência de sua força e de suas necessidades, evitando que as tentativas de soluções aos problemas agrários fossem elaboradas de cúpula, por intelectuais políticos que quase sempre desconhecem a realidade camponesa (ANDRADE, 2005, p. 307). Conforme argumentou Andrade (2005), uma das preocupações de Julião era mostrar as necessidades de luta do camponês pela terra. O trabalhador rural tinha que se unir para conquistar a terra como propriedade sua e para fins de trabalho. Assim, afirmava o deputado: o pedaço de terra que se dá ao trabalhador rural é como o galho de embaúba que se joga a quem se está afogando no rio (Ibidem, p. 312). Dessa forma, nas décadas de 1950 e início de 1960, as Ligas reuniram vários trabalhadores pobres do NE 184, ligados à produção de cana-de-açúcar, e que sofriam processo de exploração intenso ao qual já nos referimos anteriormente. Com isso, segundo afirma Dabat (2003), as Ligas representaram nesse período a capacidade de organização dos camponeses em Pernambuco e no Nordeste e, especialmente, na zona canavieira: [...] o surgimento das Ligas Camponesas demonstrava a capacidade dos trabalhadores rurais da região em se organizarem (DABAT, 2003, p. 112). Eles passaram, então, a reivindicar a extensão de direitos básicos que beneficiavam os trabalhadores urbanos, como: trabalho, saúde, escolarização entre outros. Porém, no centro das reinvindicações, aparecia o debate em torno da Reforma Agrária, ao questionar as condições sociais e econômicas, além dos males impostos por conta do latifúndio 185. Por 183 Foreiro é o indivíduo que pagava foro ao proprietário da terra. 184 Segundo Dabat (2003), nas vésperas do Golpe Militar de 1964, as Ligas Camponesas tinham cerca de 30 a 35 mil membros somente em Pernambuco e uma estimativa de 80 mil trabalhadores associados em todo o Nordeste. 185 Muito próximo da perspectiva de Dabat está o pensamento de Medeiros (1993) quando afirma que o debate e a discussão com relação aos problemas do campo entre os vários setores da sociedade na década de sessenta giravam era em torno do poder os latifundiários e os males trazidos pelo latifúndio a classe de trabalhadores rurais. Por isso, a luta das Ligas Camponesas, encabeçada por Francisco Julião, estava centrada, também, na questão na luta contra o latifúndio e na possibilidade de realização da reforma agrária: Partindo de análise semelhante à feita pelo PCB sobre a situação do campo, Julião acreditava que a reforma agrária, quebrando o poder do latifúndio e introduzindo o campesinato como ator político crucial, constituía o primeiro passo para

212 211 isso, como afirma a historiadora, os camponeses, sob a liderança de Francisco Julião, lutavam por direitos básicos, mas, principalmente, contra as formas de exploração ditas feudais : Essas organizações reivindicavam também a abolição de formas ditas feudais de exploração da mão-de-obra. Tal qualificativo designava, de fato, todos aqueles tipos de remuneração da força de trabalho que não fossem simples assalariamento com pagamento feito exclusivamente em espécies. Não havíamos feito a Revolução Francesa no campo. Ainda havia reminiscências feudais e semi-feudais, dizia o principal dirigente das Ligas Camponesas, Francisco Julião, justificando seu uso do Código Civil em vez das obras de Marx (DABAT, 2003, p. 113). Em torno das Ligas, a professora Dabat (2003), afirmou: [...] organizaram-se fortes efetivos de canavieiros e pequenos produtores da região de PE e do NE, forçando as autoridades e a opinião pública a tomar uma aguda consciência dos problemas sociais e econômicos dessas populações. Sua miséria apavorante era bem conhecida. Mas a emergência da mobilização coletiva dessas massas adotava contornos políticos [...] (Ibidem, p. 114). Segundo nos afirma Oliveira (2007), foi a partir das Ligas que a luta pela terra e o debate em torno da Reforma Agrária no Brasil ganhou dimensão nacional, gerando uma série de oposições e inimigos contrários aos trabalhadores rurais e forçando o Estado a pensar em políticas públicas para os mesmos 186 : Foi, portanto, com as Ligas Camponesas, nas décadas de 40 a 60, que a luta pela reforma agrária no Brasil ganhou dimensão nacional. Nascidas muitas vezes como sociedade beneficente dos defuntos, as Ligas foram organizando, principalmente no Nordeste brasileiro, a luta dos camponeses foreiros, moradores, rendeiros, pequenos proprietários e trabalhadores assalariados rurais da Zona da Mata, contra o latifúndio [...] As Ligas Camponesas tornaram-se, pois, o primeiro movimento social de luta pela reforma agrária que ensaiou uma organização de caráter nacional [...] O movimento das Ligas Camponesas tem, portanto, que ser entendido, não como um movimento local, mas como manifestação nacional de um estado de tensão e injustiças a que estavam submetidos os camponeses e trabalhadores assalariados do campo e as profundas desigualdades nas condições gerais do desenvolvimento capitalista no país (OLIVEIRA, 2007, p. 106). Esse mesmo pensamento é compartilhado por Sabourin (2008) quando afirma que as reivindicações das Ligas vieram a ser o primeiro desencontro entre camponeses e o Estado com relação à luta pela terra e a RA no Brasil, uma vez que até aquele momento inexistiam políticas públicas mínimas para os trabalhadores rurais: uma revolução socialista no país. Não seria, pois, possível contar com o apoio de nenhum segmento da burguesia a essa luta (MEDEIROS, 1993, p. 07). 186 O avanço das ligas e dos movimentos sociais do campo fez com que as elites no Brasil ficassem em posição de confronto e que o Estado começou a atuar no sentido de pensar num conjunto de leis que resolvesse os conflitos. Com isso, o Presidente Jango assinou uma série de Leis que encaminhavam para a Reforma agrária no país: Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962; Lei Delegada nº 11, de 11 de outubro de 1962; Estatuto do Trabalhador Rural, que passava a permitir a implantação do sindicalismo rural (Lei nº de 2 de março de 1963). Além da realização de vários discursos que em defesa da reforma agrária. Dentre eles, o histórico discurso no Comício da Central do Brasil, proferido em 13/3/1964. Esses posicionamentos de Jango levaram a tomada de poder no Brasil pelos militares, conduzindo o país a 21 anos de ditadura militar.

213 212 Os primeiros movimentos organizados em defesa da reforma agrária foram as ligas camponesas do Nordeste, estendidas à maioria dos estados do Brasil a partir de 1945, com o apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nessa época, a luta pela terra vinha inserida num conjunto de reivindicações sobre os direitos elementares do trabalho, da saúde, da previdência, da escolarização, com base no direito à organização autônoma dos grupos sociais. Desde o início, as ligas reuniram trabalhadores assalariados das usinas de cana-de-açúcar, moradores, meeiros e pequenos arrendatários de estatuto muito precário. Todas essas categorias eram, de fato, regularmente expulsas de sua terra de trabalho ou expelidas da sua fonte de trabalho segundo as necessidades dos patrões e proprietários [...] Este vai ser o primeiro desencontro ao não se desenvolver, nesse momento, políticas públicas minimamente favoráveis à reforma agrária (SABOURIN, 2008, p. 153). A atuação das Ligas polarizou as posições e atraiu várias correntes de esquerda, com destaque para o Partido Comunista Brasileiro (PCB) 187, e setores da sociedade, dentre eles a Igreja Católica, por meio das pastorais sociais, que compartilhavam com o ponto de vista da necessidade de se ter ações no sentido de possibilitar novos horizontes e novas formas de acesso a terra por parte dos trabalhadores rurais explorados e expropriados 188 (MEDEIROS, 1993). Durante o período do regime militar as Ligas camponesas foram duramente reprimidas e extintas no NE. Com isso, abriu-se um intervalo na luta pela terra no Estado e em várias partes do NE, tendo sido retomado, posteriormente, o processo de embates entre os latifundiários e os camponeses de forma mais intensa com o sugimento do MST em Pernambuco, a partir de Conforme afirma Medeiros (1993), a ótica de reforma agrária defendida pelo PCB era baseada em duas frentes de luta. Uma em torno da necessidade de atenção imediata de atender aos problemas ligados ao trabalho, eliminando todas as formas de exploração e dominação existente; e a segunda, a necessidade de realização de uma reorganização da estrutura fundiária, uma vez que o pouco avanço no campo era fruto do atraso imposto pelo latifúndio: Para o PCB, a demanda por reforma agrária, no entanto, não foi definida estritamente a partir desses conflitos. Quando esse partido assumiu, como um dos traços de sua linha política, a tarefa de tentar acompanhar e atuar sobre as lutas de resistência que se davam no campo, o fez informado por uma concepção anterior sobre o significado do latifúndio e da luta contra ele. Esta era, segundo os intelectuais do PCB, um dos passos necessários de um conjunto de transformações pelas quais o país deveria passar no processo de uma revolução democrático-burguesa. No centro dessa concepção, estava a ideia de que o campo brasileiro era fortemente marcado pela existência de restos feudais (formas de dominação pessoal, exigência de que os trabalhadores pagassem renda pelo uso da terra etc), que entravavam o livre desenvolvimento das forças produtivas. Como a situação de exploração e miséria em que viviam os trabalhadores rurais impedia que estes se constituíssem em mercado para os produtos industriais que então começavam a ser produzidos no país, o PCB acreditava que uma vasta reorganização da estrutura fundiária, eliminando o poder dos latifundiários, que representavam o "atraso", contaria inclusive com o apoio dos segmento industriais (MEDEIROS, 1993, p. 07). 188 É importante destacar que a Igreja Católica tinha uma postura diferente com relação ao problema do campo se comparado com o PCB. Passando a denunciar as condições de vida das populações rurais e as situações de exploração vivenciadas pelos trabalhadores, a Igreja não defendia uma reforma agrária com base no conflito, mas uma reforma que fosse feita por meio de desapropriações e com justa indenização aos proprietários dos latifúndios, estimulando inclusive a formação de sindicatos rurais: [...] reagindo à ameaça de penetração de "ideologias alienígenas" no campo, a Igreja passou a denunciar as condições de vida da população que ali vivia, apoiar o acesso à terra e recomendar a formação de uma classe média rural. Defendia, assim, o direito instituído de propriedade, mas reconhecendo a necessidade de uma reforma agrária que fosse feita através de desapropriações com justa indenização. É com essa perspectiva que passou inclusive a disputar a direção política dos trabalhadores rurais, estimulando a criação de sindicatos (MEDEIROS, 1993, p. 08).

214 213 Nota-se, então, que esse desencontro dos discursos do Estado e dos trabalhadores é algo histórico não só no Brasil, mas também, em Pernambuco. E que o surgimento das Ligas era uma forma de não só organziar as massas de trabalhadores, mas de colocar a RA como pauta do debate. Fato que coloca em covergência o discurso das Ligas com o do MST. 4.3 UM QUADRO ATUAL DA LUTA PELA TERRA E DA REFORMA AGRÁRIA EM PERNAMBUCO, A PARTIR DO MST As ocupações e a permanência da luta pela terra a partir do MST O quadro atual da RA em Pernambuco ainda é marcado por fortes conflitos no campo. Como já afirmamos anteriormente, o processo de luta pela terra no Brasil e, por conseguinte, em Pernambuco, é muito antigo. Uma história em que os embates em torno deste tema não começaram com o MST. Porém, hoje, este movimento, constitui-se como um dos grandes responsáveis pela organização e mobilização dos camponeses no estado. A materialização desta luta, em torno dos PA, pode ser vista como resultado da pressão exercida pelo movimento. Só para se ter uma dimensão desta afirmativa, no período de a 2014, segundo dados obtidos junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), em PE houve 614 ocupações de terra, envolvendo famílias de trabalhadores sem-terra em torno de 14 movimentos socioterritoriais 190 (Quadro 6): 189 Considera-se como faixa temporal ao levantamento de dados, o período com início em 2001, uma vez que, segundo vários assentados entrevistados, o seu tempo de participação em ocupações e acampamentos junto aos movimentos sociais se deu entre 2001 e Não houve nas falas ocorrência de participação anterior a esse período. 190 É importante destacar que esse grande número de movimentos sociais conduz a uma certa fragmentação e em certa medida uma possível redução do poder dos camponeses.

215 214 Quadro 6: Pernambuco Movimentos socioterritoriais Sigla Nome ACRQ Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos CPT Comissão Pastoral da Terra FETRAF Federação da Agricultura Familiar FETAPE Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco MLST Movimento de Libertação dos Sem Terra MLTRST Movimento de Libertação dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MTBST Movimento dos Trabalhadores Brasileiros Sem Terra MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MTL Movimento Terra, Trabalho e Liberdade Movimentos Indígenas Movimentos Indígenas OLC Organização da Luta no Campo STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais UAPE União dos Agricultores de Pernambuco Via Campesina Via Campesina Fonte: CPT, 2001 a 2014; Organizado: Hugo A. Morais Desse total, o MST ganha destaque como o movimento socioterritorial com o maior número de ocupações para o período ora analisado, estando presente em 397, um percentual de 64,65%. Para se ter uma dimensão dessa capacidade de atuação, se fizermos uma soma das ocupações feitas pelos outros quatro maiores movimentos sociais, OLC (66), FETRAF (49), CPT (43) e FETAPE (40), observamos que o MST supera, também em números, os demais no que se refere nessa prática (Tabela 16). Tabela 16: Pernambuco Ocupações realizadas pelos movimentos socioterritoriais 2001/2014 MST OLC FETRAF CPT FETAPE * 0 0 1* * * * * * 4* 2* * 0 0 4* Total *Ocupação conjunta com outros movimentos sociais Fonte: CPT, 2001 a 2014; Organizado por Hugo A. Morais

216 215 Além do mais, o MST estimulou a realização de ocupações em todos os anos analisados, não havendo intervalo na luta pela terra. Se tomarmos o exemplo do OLC 191, segundo maior movimento social em termos de ocupação no estado, observamos um intervalo de atuação de nove (9) anos (Tabela 17). No mesmo período, das famílias envolvidas na luta pela terra, o Movimento Sem-Terra reuniu a maior quantidade, totalizando , representando 67,69% dos ocupantes no Estado. Contra um total de famílias no OLC (9,94%) (Tabela 18). Só para clarear ainda mais o poder de atuação do MST, junto aos trabalhadores rurais, em 2004, ano com maior número de ocupações de imóveis no estado de Pernambuco, o movimento realizou 70 ações contra 33 dos demais. Se olharmos a capacidade de mobilização, observamos a reunião de famílias na luta pela terra nesse ano, um número bem superior aos dos demais movimentos que juntos somaram famílias, sendo no OLC e no da CPT. E mesmo havendo um quadro de diminuição das ações dos movimentos sociais no âmbito da luta pela terra, o MST continua sendo o movimento que mais atua. Se tomarmos como referência, ainda, o ano de 2014, observamos que o movimento realizou as únicas 10 ocupações em PE, reunindo para isso famílias (Tabela 17). Tabela 17: Pernambuco Relação Movimentos sociais, ocupações e famílias 2001/2014 MST OLC FETRAF CPT FETAPE Ocup. Fam. Ocup. Fam. Ocup. Fam. Ocup. Fam. Ocup. Fam * * * * * * * * 501 2* * * Total Segundo Souza (2009), o movimento socioterritorial OLC espacializa-se somente no estado de Pernambuco, sendo um movimento dissidente da FETAPE. Assim: Conhecido pela sigla OLC, foi fundada em janeiro de 2003 na cidade do Recife e atua somente no Estado de Pernambuco origina-se de um racha entre dirigentes da FETAPE (Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco), entidade que reproduz no estado a política de conciliação de classes levada a cabo em nível nacional e pela CONTAG. Os principais líderes da OLC eram dirigentes da federação que resolveram criar seu próprio espaço de atuação política, pela conquista da terra. (SOUZA, 2009, p. 85)

217 216 Fonte: CPT, 2001 a 2014; Organizado: Hugo A. Morais Dentro desse quadro, o MST se constitui como o movimento social com forte poder na luta pela terra em PE. Não só pelas ocupações realizadas, mas também pela capacidade no que concerne à formação da mobilização de pessoas nessas ações. Conseguindo, no período de , a partir da problematização do cotidiano, reunir um grande número de camponeses que buscavam exercer o seu direito de inserção territorial nos territórios do PA. Daí porque podemos afirmar, também, este movimento mais especializado em PE. Se observamos a sua distribuição espacial, dos 185 municípios de Pernambuco, de 2001 a 2014, o MST esteve presente em 109 cidades: Agrestina, Água Preta, Aguas Belas, Aliança, Altinho, Amaraji, Araripina, Arcoverde, Barra de Guabiraba, Barreiros, Belém de Maria, Belém de São Francisco, Betânia, Bezerros, Bom Conselho, Bonito, Buíque, Cabo de Santo Agostinho, Cabrobó, Camocim de São Feliz, Camutanga, Canhotinho, Carnaubeira da Penha, Caruaru, Catende, Condado, Cortês, Cumaru, Custódia, Escada, Exu, Feira Nova, Floresta, Gameleira, Garanhus, Gloria do Goitá, Goiana, Granito, Gravatá, Iati, Ibimirim, Igarassu, Inajá, Ipojuca, Ipubi, Itacaruba, Itamaracá, Itambé, Itaquitinga, Jaboatão dos Guararapes, Jaqueira, Jataúba, João Alfredo, Joaquim Nabuco, Jucati, Jurema, Lagoa do Carro, Lagoa dos Gatos, Lagoa Grande, Lajedo, Limoeiro, Manari, Maraial, Mirandiba, Moreno, Nazaré da Mata, Ouricuri, Palmares, Paranatama, Passira, Paudalho, Pedra, Pesqueira, Petrolândia, Petrolina, Pombos, Primavera, Quipapá, Riacho das Almas, Rio Formoso, Sairé, Salgadinho, Salgueiro, Santa Cruz do Capibaribe, Santa, ria, da Boa Vista, São Benedito do Sul, São Bento do Uma, São Caitano, São João da Coroa Grande, São João, São Joaquim do Monte, São José da Coroa Grande, São José do Belmonte, São José do Egito, São José do Monte, São Lourenço da Mata, Serra Talhada, Serrita, Sertânia, Tacaimbó, Tacaratu, Tamandaré, Timbaúba, Toritama, Tupanatinga, Vertentes, Vicência, Vitória de Santo Antão, Xexéu. Desses municípios, 10 se encontravam no Polo Bom Jardim 192 (Mapas 01 e 02), área de atuação da Superintendência Regional do INCRA (SR/03): Bom Jardim, Cumaru, Feira Nova, João Alfredo, Limoeiro, Passira, Salgadinho, Santa Cruz do Capibaribe, Toritama e Vertentes. 192 Segundo a Coordenação do Polo Bom Jardim, a região conta com um conjunto de 18 municípios do Agreste Setentrional e não foi delimitada por quantidade de ações dos movimentos sociais ou pelo número de assentamentos existentes, mas pelo critério de capacidade de atuação e atendimento da Superintendência.

218 Mapa 1 217

219 Mapa 2 218

220 219 Segundo dados obtidos junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), para o período de 2001 a 2014, das 38 ocupações que ocorreram no Polo, cerca de famílias de camponeses estavam envolvidas em suras atividades. Contando com a atuação de 04 movimentos socioterritoriais: MST, OLC, FETAPE e CPT. Deste total, 31 (81,5%) ocupações foram realizadas pelo MST, com a participação (79,55%) famílias (Tabela 18), constatando novamente a potencialidade deste último. Tabela 18: Polo Bom Jardim Relação das ocupações e famílias 2001/2014 Municípios Ocupação total N de Famílias Demais Movimentos Sociais MST Ocupações Famílias Ocupações Famílias Bom Jardim Casinhas Cumaru Feira Nova Frei Miguelino João Alfredo Limoeiro Machados Orobó Passira Salgadinho Santa Cruz do Capibaribe Santa Maria do Cambucá Surubim Taquaritinga do Norte Toritama * Vertentes Vertentes do Lério Total * Ação conjunta com o CPT Fonte: CPT, 2001 a 2014; Organizado: Hugo A. Morais Desses municípios, Passira destaca-se como sendo o que, dentro do processo de espacialização da luta pela terra, contou com 16 ocupações, um percentual de 51,61% dentro do Polo Bom Jardim e 2,60% com relação ao estado de Pernambuco. Essas ocupações tiveram a organização do MST e do OLC e contaram com a participação de famílias de camponeses, sendo, respectivamente: 981 e 417 famílias para cada movimento. Esse número representa um percentual de 36,32% das famílias que ocuparam os imóveis rurais no contexto do Polo Bom Jardim e 1,73% das famílias no estado (Tabela 19).

221 220 Tabela 19: Passira Relação das ocupações e famílias 2001/2014 Ano base Ocupação total N de Famílias OLC MST Ocupações famílias Ocupações Famílias Total Fonte: CPT, 2001 a 2014; Organizado: Hugo A. Morais O período de 2004 a 2005 é referência temporal do maior número de ocupações ocorridas no município, sendo um total de onze (11) ocupações de terras, das dezesseis (16) que ocorreram entre 2001 e Nesses dois anos, foram ocupados oito (08) imóveis rurais e famílias sem-terra foram envolvidas. Ao mesmo tempo, o MST contou com o maior número de participantes, sendo oito (8) e somando um total de 666 famílias ocupantes (Tabela 20). Entendemos que o clima de esperança em torno do II PNRA favoreceu essa intensa atuação do movimento. Tabela 20: Passira Imóveis ocupados, movimentos sociais e famílias 2004/2005 Data e ano base Imóvel ocupado Movimento social envolvido N de Famílias 03/09/2004 Fazenda Varame MST /05/2004 Fazenda Carcará OLC /05/2004 Fazenda Dependência MST 80 22/04/2004 Sítio da Prefeitura OLC /05/2004 Fazenda Recreio MST SI* 23/11/2004 Fazenda Recreio MST /07/2005 Faz. Candeias MST /03/2005 Fazenda Carcará MST /08/2005 Faz. Independência MST SI* 22/12/2005 Faz. Independência MST 63 17/04/2005 Fazenda Santa Helena OLC 107 * Sem informação Fonte: CPT, 2004; 2005; Organizado: Hugo A. Morais Os dados mostrados acima reafirmam que há um percentual muito elevado de famílias que lutam pela terra no estado de Pernambuco e no município de Passira. Levando em consideração que cada família, em média, possui quatro membros, nos últimos dezesseis (16) anos de ocupações em Passira, foram envolvidos cerca de indivíduos que buscaram, 193 Entendemos que uma possível hipótese para esse número de ocupações no município de Passira poderia estar ligado a esperança de uma nova possibilidade de vida a partir do discurso do MST.

222 221 através das ações em conjunto com os movimentos socioterritoriais, a mudança das suas condições de vida. Com a leitura desses dados, busca-se mostrar a capacidade do MST no que diz respeito ao processo de mobilização de camponeses que procuraram a construção de um espaço de vida em que a exploração e a sujeição ao capital deixem de existir. As ações em torno das ocupações representam um processo de elaboração de espaços de recriação camponesa, uma vez que não se consegue entender as atividades humanas fora dos seus territórios de referência e existência. Ao mesmo tempo, é no e a partir desses espaços que os sujeitos reproduzem e transformam permanentemente suas vidas, existências, objetos, trabalhos e a si mesmos Os Projetos de Assentamentos Rurais em números A luta pela terra reforçada pelos movimentos sociais, com destaque para o papel do MST, tem se materializado em vários PA espalhados no estado de PE. Esses territórios surgem como fruto da disputa territorial que se estabelece, primeiramente, no nível discursivo e se concretizam em práticas, a partir da dinâmica das ocupações de terra, impulsionadas pelos movimentos sociais, e da tentativa do Estado em trazer uma resposta às pressões populares, tornando-os instrumentos de ordem (MARTINS, 2003) e em certa medida territórios apaziguadores. Porém, dentro desse quadro de disputa, entendemos a concretização da RA como um processo penoso e lento para as várias famílias que se colocam à disposição da luta pela terra. Isso porque, não necessariamente as ações de todas essas famílias camponesas, junto aos seus movimentos socioterritoriais, solucionam substancialmente a totalidade dos seus problemas, principalmente, dos que não conseguem a obtenção da fatia do território do assentamento. Mesmo com a capacidade de pressão do MST e do discurso de realização da RA por meio das ocupações e do discurso do Estado brasileiro em realizar uma RA massiva e ampla por meio do II PNRA, observamos que a implantação dos assentamentos se dá de forma insuficiente para a maioria das famílias camponesas. Nessas perspectivas, entende-se que há atores que ganham e outros que perdem no âmbito do conflito. Daí por que não necessariamente as ações de todas as famílias

223 222 camponesas junto aos seus movimentos socioterritoriais, através das ocupações e acampamentos, solucionam substancialmente a totalidade dos seus problemas, principalmente das famílias que não conseguem a obtenção da fatia do território do assentamento. Um dos grandes problemas desse processo de luta pela terra refere-se ao fato da não implantação dos assentamentos de forma suficiente, isto é, no sentido de atender a todas as famílias envolvidas nas ocupações e nos acampamentos. O número de ocupações não necessariamente representa o número de acampamentos, como também o número de acampamentos não representa um número elevado de assentamentos implantados pelo INCRA. Para se ter uma noção dessa afirmativa, tomemos como referência, por exemplo, o número de Projetos de Assentamentos criados em PE, no Polo Bom Jardim. Segundo os dados levantados junto as Superintendências Regionais do Estado de Pernambuco (SR/03 e 29), entre e 2014, foram criados 313 PA, sendo assentadas famílias. Deste total, por desapropriação foram implementados um número de 293 assentamentos, representando um percentual de 93,61%, somando (68,10%) das famílias de camponeses beneficiadas com esse tipo de ação (Tabela 21). Porém, se tormarmos como referência o número de famílias assentadas por meio de desapropriações e as envolvidas em ocupações, percebemos um défict no número de famílias que deveriam ser beneficiadas em pelo menos Isso só vem confirmar que somente 16.43% das famílias que lutavam pela terra conseguiram atingir o seu objetivo. Tabela 21: Pernambuco - Relação número de famílias assentadas e em ocupações 2001/2014 Total de PA Nº famílias N Famílias Assentadas N de famílias Saldo assentadas por desapropriação Ocupantes de terra (+ ou -) (-) (-) (-) (-) (-) (-) (-) (-) (-) (-) (-) (-) 979 Total (-) Fonte: INCRA, 2001 a 2014; Organizado por Hugo A. Morais 194 Tomamos como referência 2003 como sendo o ano de vigência do II PNRA.

224 223 No caso específico do Polo Bom Jardim, para o período de 2001 a 2014, foram assentadas 233 famílias em uma área que cobre ha e em 8 PA: Lagoa Comprida, Nova Conquista, Recreio, Independência, Varame I, Varame II, Cacimba de Baixo e Maria Alice Gonçalves (Tabela 22). Destes, metade aconteceu no município de Passira, totalizando 130 famílias, o que representa 55,79%. (Tabela 23). Tabela 22: Polo Bom Jardim Relação dos PAs 2001/2014 Municípios N de PA Ano de crição Nome dos PA Obtenção N de Famílias Bom Jardim PA Lagoa Comprida Desapropriação 20 Orobó Nova Conquista Desapropriação 39 Passira 4 Santa Cruz do Capibaribe Taquaritinga do Norte Recreio Independência Varame I Varame II PA Cacimba de Baixo PA Maria Alice Gonçalves Fonte: INCRA, 2001 a Organizado: Hugo A. Morais Desapropriação Desapropriação Desapropriação Desapropriação 130 Desapropriação 10 Desapropriação 25 Porém, se tomarmos como referência o número de famílas envolvidas em ocupações de terra no Polo Bom Jardim e assentadas para o mesmo período, percebemos que o quadro estadual de défict se repete na região delimitada pelo INCRA. Isso se deve ao fato de famílias que ocuparam terra no Polo, somente 233 (6,05%) foram assentadas. O que representa um défict de famílias. Tabela 23: Polo Bom Jardim - Relação número de famílias assentados e em ocupações 2001/2014 Municípios N de famílias assentadas por desapropriação N de famílias Ocupantes de terra Saldo (+ ou -) Bom Jardim (-) 80 Casinhas Cumaru 0 1 (-) 1 Feira Nova (-) 590 Frei Miguelino João Alfredo (-) 150 Limoeiro (-) 135 Machados Orobó 39 0 (+) 39 Passira (-) Salgadinho (-) 190 Santa Cruz do Capibaribe (-) 486 Santa Maria do Cambucá Surubim Taquaritinga do Norte 25 0 (+) 25 Toritama (-) 400 Vertentes (-) 270 Vertentes do Lério 0 0 0

225 224 Total (-) Fonte: INCRA, 2001 a 2014; Organizado por Hugo A. Morais Em cima dos dados levantados, observamos que as ações do MST e dos demais movimentos sociais têm um efeito muito forte na territorialização dos camponeses que lutam pela terra. A pressão exercida a partir das ocupações possibilita de fato a construção de um território que tem por base os PA. Ao mesmo tempo, esses dados são no sentido de afirmar que a territorialização do camponês é possível a partir do processo de luta pela terra, junto aos movimentos sociais. Porém, ainda há muito o que se avançar em termos de RA em PE. Por exemplo, se tomarmos o caso de Passira, observamos que a partir das ações populares foram desapropriados pelo menos 1.427,3283ha, a partir de 4 imóveis rurais (Tabela 24). Mesmo assim, ainda há um déficit, que é histórico, muito grande com relação ao número de famílias ocupantes e as assentadas. De 2001 a 2014, participaram de ocupações camponeses, sendo assentadas somente 121 famílias (Tabela 24). Esses números revelam que neste município, somente 8,65% das famílias conquistaram os territórios dos PA. O que faz com que a RA em Passira, em termos de números de famílias beneficiadas, se configure ainda como uma política muito tímida. Tabela 24: Passira Projetos de Assentamentos Rurais 2001/2014 PA Data da criação Área (ha) Forma de obtenção Número de Famílias Movimento social Recreio II ,4245 Desapropriação 40 MST Independência ,5213 Desapropriação 29 MST Varame I ,7780 Desapropriação 22 MST Varame II ,6045 Desapropriação 30 OLC Fonte: CPT, 2001 a 2014; INCRA, 2001 a Organizado: Hugo A. Morais Outro aspecto importante reside no fato de que a conquista da terra pelas famílias, não, necessariamente, vão conduzí-las a uma apropriação participativa no território. Entendemos que houve significativa conquista, um passo importante para um recomeço no que tange à retomada da luta pela terra e uma modificação nas reais condições de vida. Porém, nessa fase, já no território, inicia-se uma série de novos desafios e embates que, na maioria das vezes, apresenta uma série de fragilidades e impasses para uma inserção digna e ativa. Tais desafios e embates rebatem nos discursos dos assentados, na medida em que não há discursos ativos e que possibilitem um protagonismo dos assentados nos territórios dos PA Independência e Varame I.

226 O MUNICÍPIO DE PASSIRA: ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIOECONÔMICOS DA POPULAÇÃO LOCAL Faz-se aqui uma caracterização do município de Passira, como também das condições socioeconômicas gerais da população local, a partir do tratamento de um levantamento de dados secundários junto ao IBGE, com o intuito de compreender melhor o contexto político, histórico e econômico em que se encontra o município e as reais condições de vida de sua população. Com isso, pode-se ter uma visão do universo em que se encontravam as famílias assentadas antes e depois da implantação dos PA no município, numa tentativa de justificar o processo de forte participação dos camponeses nas ações dos movimentos socioterritoriais nesse município. Trata-se, portanto, da reunião dos elementos necessários à concretização da abordagem relacional do problema ora identificado. Passira está localizado na mesorregião do Agreste Setentrional de Pernambuco, mais precisamente, na microrregião do Médio Capibaribe, a uma distância de 96,7km do Recife. Com uma área de 326,756 km² (IBGE), o município foi criado a partir do desmembramento de Limoeiro (no dia de 1964). Possui dois distritos: Passira e Bengalas. Do ponto de vista da sua população geral, de acordo, ainda, com os dados do último censo demográfico do IBGE (2010), Passira possui uma população total de habitantes: na área urbana e residentes em domicílios na área rural. Comparando esses dados com os do censo anterior (2000), os números continuam mostrando a superioridade da população rural com relação à população urbana, não obstante aquela ter sofrido uma sensível redução da ordem de 0,17% (Gráfico 2). Enquanto isso, a taxa de urbanização passou para 48,71% na comparação dos dois períodos.

227 226 Gráfico 2: Passira População urbana e rural 2000/2010 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 e Ainda sobre os dados representados no gráfico, convém ressaltar que se constata, na área da presente pesquisa, sobretudo a partir do ano de 2010, uma situação de equilíbrio entre população rural e população urbana; o que se contrapõe à situação populacional local há dez anos atrás (2000), quando a tendência era de aumento da disparidade entre ambas as populações, tal como vinha ocorrendo em vários municípios brasileiros. Diante deste fato, pode-se, desde já, confirmar o papel relevante do atual processo de RA, pelo menos no que diz respeito à possibilidade de fixação de populações nas áreas com as quais mantêm vínculos em termos de modo de vida. Corroborando, inclusive, com a perspectiva de Martins (2003), de que a RA deve conter o fluxo migratório imposto ao homem do campo. Levanta-se essa afirmativa uma vez que se for comparado o percentual de população do município de Passira com os percentuais do Estado de Pernambuco, observa-se essa tendência em termos de equilíbrio por parte da população de Passira, já que, próximo do que ocorre no Brasil, 80% da população da unidade federativa encontra-se fortemente concentrada nos centros urbanos, o que equivale a um número de habitantes (IBGE, 2010). A força destes PA no município de Passira também pode ser vista quando se analisa os percentuais em termos de população rural e urbana dos municípios do Polo Bom Jardim que apresentam PA em seus territórios: Bom Jardim, João Alfredo, Orobó, Salgadinho e Santa Cruz do Capibaribe. Esses municípios, com exceção de Salgadinho, apresentam uma tendência ao esvaziamento do campo, uma vez que há uma diminuição no nível da população rural e o aumento da população urbana (Gráfico 3), o que torna importante a

228 227 presença desses assentamentos como forma de impedir ou diminuir esse processo o que já é uma tendência nacional. Gráfico 3: Polo Bom Jardim População rural em municípios que apresentam assentamentos 2000/2010 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 e No censo demográfico 2000, observamos que a população de Passira apresentava uma taxa de 46% de jovens entre 0 e 17 anos, caracterizando o município como uma população extremamente jovem. Segundo os mesmos dados, as pessoas com a faixa etária de 18 a 22 anos representavam 9%, a de 23 a 35 representavam 17% o mesmo percentual das de 36 a 57 anos. Enquanto isso, os indivíduos de 58 a 65 e acima de 65 anos representavam, respectivamente, 5% e 6% da população passirense. Os dados do censo 2010, por outro lado, mostram que houve redução da população entre 0 e 17 anos, passando de 46% em 2000 para 36%, mas permanecendo os mesmos 9% percentuais para a população com faixa etária entre 18 e 22 anos. Os dados também mostram uma tendência ao amadurecimento ou envelhecimento da população do município, uma vez que os indíviduos na faixa entre 23 e 35 anos e 36 a 57 anos passaram, respectivamente, de 17% cada para 20% e 22%. Os de 58 a 65 anos permaneceram com os mesmos 5% e a população com mais de 65 anos aumentou de 6% para 8% (Gráfico 4), seguindo, de maneira geral, a evolução dos dados para a nação.

229 228 Gráfico 4: Passira Distribuição da população por faixa etária Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 e No que tange às condições sociais e econômicas em que se encontra esssa população, os dados do IBGE mostram uma série de problemas relacionados à permanência das situações precárias de existência da população rural. Isto a partir da evidência dos dados sobre educação, rendimentos, e serviços básicos dentre outros. Com relação aos aspectos relacionados ao nível de educação, os dados do IBGE mostram que a população em Passira apresenta um percentual alto de analfabestimo, principalmente na área rural. Em 2000, a população analfabeta no município era de indivíduos. Deste total, os individuos que habitavam na zona rural representam um número de indivíduos analfabetos (o que representava 62% do total), ao passo que a população que não sabe ler e escrever da área urbana era de indivíduos, sendo equivalente a 38% dos analfabetos do município. Se comparado com os valores estaduais, havia uma inversão da realidade em 2000, uma vez que 61% dos analfabetos do estado estavam residindo na área urbana, representando um número absoluto de indivíduos. Já os analfabetos que residiam na área rural equivaliam a indivíduos, um percentual de 39% (IBGE, 2000). Entretanto, em 2010, a população analfabeta no município é de indivíduos, mostrando uma redução de 25,56%. Porém, deste total, a área rural do município ainda conta com o maior percentual: indivíduos (57%), contra indivíduos na área urbana (43%). Se comparado aos dados referentes ao estado de Pernambuco, Passira ainda apresenta valores altos com relação ao percentual de pessoas que não lêem e escrevem. O estado federado contava com um total de analfabetos: na área urbana (64%) e

230 na área rural (36%). O torna difícil pensar em autonomia de fato sob tal quadro de referência quanto a educação. Desse número de analfabetos no município, os homens e as mulheres da área rural são os que se achavam nas piores condições. Segundo os dados levantados pelo IBGE, em 2010, o município contava com um total de analfabetos homens e analfabetos mulheres. Desse total, os homens eram 1.457, todos residentes na área urbana, contra analfabetos do sexo masculino que tinham como domicílio a área rural (59,3%). Quanto à situação feminina, na área urbana, existiam mulheres analfabetas e, na rural, os números chegam a (54%) (Gráfico 5). Essa tendência de analfabetismo da população rural tem reflexo direto quando observamos o nível de escolaridade dos chefes das famílias assentadas, todos apresentando como característica comum o fato de não saberem ler e escrever. Gráfico 5: Passira Percentual de analfabetos por sexo 2010 Fonte: IBGE, Censo Demográfico de Segundo IBGE (2008), o PIB do município em 2008 era de R$ , tendo o setor de serviços como o que mais havia contribuído para a economia local, com R$74.117; em seguida, vinha o setor agropecuário com R$8.885 e o da indústria com R$7.435 (IBGE, 2008). Com relação à renda per capita mensal dos indivíduos em Passira, os dados do último censo revelam que o rendimento mensal em média girava em torno de R$246, uma média bem menor do que o valor total do salário mínimo, que era de R$545. Quando analisados mais de perto, os dados mostram que a população urbana do município apresenta o maior

231 230 rendimento médio mensal, comparado com o da população rural, sendo, respectivamente, R$287 por indivíduo da área urbana residente na cidade, contra R$204 dos indivíduos que habitam no rural (IBGE, 2010). Comparando a situação da renda per capita em Passira com a estadual, percebe-se que o rendimento do município está bem abaixo. Em média, o rendimento dos indivíduos no estado é de R$501,05, sendo R$569,32 na área urbana e R$214,17 rural (IBGE, 2010). Em 2010, o censo mostrou que 46% da população de Passira recebia até 1 salário mínimo 195 mensal e 45% não possuíam rendimento mensal, representando um quadro de 91% da população total do município com um rendimento muito baixo (Gráfico 6). Situação que coloca num contexto de vulnerabilidade econômica, fazendo-os contentar-se com qualquer ganho a mais oferecido pelas políticas compensatórias do Estado. Gráfico 6: Passira Rendimento mensal das famílias 2010 Fonte: IBGE, Censo Demográfico de Ao nível dos domicílios, os dados revelam que a população rural é a que apresenta os menores rendimentos mensais. Os domicílios que recebem até R$70,00 mensais correspondem a 13,9% das residências da área urbana e a 21,4% na área rural. Do total dos domicílios que recebem até 1/4 de salário mínimo, 33,2% estão na área urbana e 42,8% na rural. Quanto àqueles que recebem até metade de um salário mínimo, 66,2% estão na área urbana e 76,2% na rural. E daqueles que recebem um rendimento de até 60% de um salário mínimo, 60,4% acham-se na área urbana e 33% na rural (Gráfico 7). Essa condição financeira 195 Em 2010, o valor do salário mínimo oficial, no Brasil, chegou à soma de R$510,00.

232 231 da população local, pode ser percebida nos números de programas de transferência de renda do Governo Federal, como o Bolsa Família. Este programa beneficia famílias (se levarmos em consideração que cada família tem numa média de quatro indivíduos, o Programa atende a cerca de 21 mil pessoas ou cerca de 62,15% dos domicílios), contando com um valor mensal que chega a um total de R$ ,00 (CADASTRO ÚNICO SECRETARIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE PASSIRA, 2016). Gráfico 7: Passira Rendimento médio mensal da população urbana e rural 2010 sm salário mínimo Fonte: IBGE, Censo Demográfico de Essa situação em termos de rendimentos soma-se às difíceis condições de vida da população no município, sobretudo no que concerne ao acesso a serviços básicos tais como: saneamento básico, energia elétrica etc., principalmente na área rural. Do total de domicílios em Passira, têm acesso à rede geral de abastecimento de água (57,8%), sendo na área urbana e na rural. Do ponto de vista do acesso à rede elétrica, temse um valor de atendidos com esse serviço, sendo somente domicílios atendidos na área rural (IBGE, 2010). No que diz respeito ao acesso a esses serviços, nota-se ainda a permanência de forte desigualdade. Os números do censo 2010 revelam que a quantidade de domicílios atendidos com serviços de saneamento básico representa um percentual de 98,7% das residências na área urbana: 20,3% possuem domicílios com saneamento adequado e 78,4% semi-adequados. No caso dos domicílios rurais, os dados mostram uma situação de 48% das residências com

233 232 alguma forma de saneamento: 0,4% são atendidos de forma adequada e 47,6% semiadequada. Na área urbana, encontra-se 1,3% dos domicílios com saneamento inadequado, já no perímetro rural o número chega a 52% dos domicílios (IBGE, 2010). Esses dados socioeconômicos da população de Passira, atrelados a uma forte concentração fundiária no município (como será abordado na seção 3.4.1, A implantação dos assentamentos e a tendência à desconcentração fundiária no município de Passira-PE), constatam a permanência de um quadro social e econômico muito difícil e que favorece e muito a participação dos camponeses nos movimentos sociais, principalmente, no MST, uma vez que encontram nele uma saída ou uma possibilidade de mudança substancial em termos de condições de vida. Daí a força do MST entre os camponeses locais, uma vez que há a construção de um discurso que ressalta não só a luta pela terra, mas também a luta pelo acesso à cidadania A implantação dos assentamentos e a tendência à desconcentração fundiária no município de Passira-PE Os assentamentos rurais constituem-se como territórios da materialização e da realização concreta do conflito. Trata-se de territórios que possibilitam a mudança na condição de vida das famílias beneficiadas, tornando-os espaços de inclusão de indivíduos historicamente incluídos de maneira precária na sociedade. Como também podem ser territórios de modificação na estrutura fundiária do município onde é implementado. No caso em estudo, no município de Passira-PE. Como já assinalamos, para o período de 2001 a 2014 foram assentadas 233 famílias em uma área que cobre ha e em 8 PA, na área do Polo Bom Jardim: Lagoa Comprida, Nova Conquista, Recreio, Independência, Varame I, Varame II, Cacimba de Baixo e Maria Alice Gonçalves. Desse total, 4 foram implantados em Passira, sendo este município aquele que conta com o maior número de beneficiados. Mesmo assim, há um déficit na relação famílias assentadas e ocupantes de terra no município. Os 4 PA beneficiaram 130 famílias de camponeses, enquanto o número de ocupantes chegou a 1.398, um percentual de 9,29% de famílias, restando ainda serem assentadas

234 233 Porém, mesmo com esse déficit, a implantação dos PA possibilitou uma tendência positiva no que concerne à situação da estrutura fundiária em Passira. Uma mudança que ocorre de forma clara na estrutura de distribuição da terra no município. O que caracteriza historicamente que o espaço agrário de Passira tem se apresentado como de forte concentração da propriedade rural. A estrutura fundiária do município é fortemente concentrada nas mãos de poucos proprietários rurais, sendo esta estrutura um dos principais fatores à reprodução de camponeses desapropriados, uma vez que a massa da população não tem tido acesso à terra como propriedade sua. Como pode ser observado na Tabela 25, em 1995, os estabelecimentos rurais de 0 a 100ha correspondiam a do total no município, ocupando uma área agrícola de 53,97% (IBGE, 1995). Os imóveis com mais de 100ha correspondiam a 30 estabelecimentos (1,55%), ocupando uma área de 46,02% da área agrícola (IBGE, 1995). Tabela 25: Passira Estrutura fundiária do município 1995 Tamanho das Número das % Área das % propriedades (ha) propriedades propriedades 0 a ,88 7,248,523 35,65 20 a ,56 3,725,01 18, a ,55 9,358,000 46,02 acima de * * Total % 20,331, % * - sem informação Fonte: IBGE, De acordo com dados obtidos junto ao Censo Agropecuário de 2006, percebe-se uma tendência de mudança nessa estrutura do espaço agrário em Passira. Assim sendo, como pode ser visto na Tabela 26, observa-se um aumento no número de estabelecimentos rurais, o qual passou de no ano de 1995 a em 2006, um acréscimo de 790 imóveis (IBGE, 2006). Com relação aos estabelecimentos menores, de dimensões entre 0 e 20ha, pode-se perceber que, em 1995, havia 1.899, passando a 2.607; em 2006, um acréscimo de 168 estabelecimentos (IBGE, 2006), havendo, inclusive, decréscimo no número de imóveis acima de 100ha, que passaram de 30 a 28 estabelecimentos. Destaca-se o fato que, em 1995, não havia nenhuma propriedade com mais de 1000ha; em 2006 é que foi registrado um estabelecimento com esta dimensão.

235 234 Tabela 26: Passira Estrutura fundiária do município 2006 Tamanho das Número das % Área das % propriedades (ha) propriedades propriedades 0 a , ,61 20 a , , a ,71 acima de * * Total % % * - sem informação Fonte: Censo Agropecuário, O aumento do número de estabelecimentos agropecuários entre 0 a 100ha também é acompanhado por um aumento da área ocupada. Segundo as informações contidas nas tabelas, esses estabelecimentos passaram de 53,97% de ocupação de área para 56,27%, no período de 1995 a 2006; um crescimento de 2,3% (IBGE, 2006). Ao mesmo tempo, houve uma redução na ocupação dos estabelecimentos rurais com dimensões acima de 100ha, passando de 46,02% em 1995 a 43,71% em 2006; uma redução de 2,31% (IBGE, 2006). Mesmo com esses números, observa-se ainda uma forte concentração fundiária no município, somente vinte e oito estabelecimentos agropecuários existentes em 2006 detinham uma área de 43,71% relativa ao espaço agrícola do municipal (IBGE, 2006). Um percentual ainda muito grande para um número reduzido de imóveis. De todo modo, não se muda uma estrutura secular em poucos anos. Assim, esses mesmos dados revelam que há de fato tendência (modesta) quanto ao processo de desconcentração fundiária. Ousamos afirmar ser estes PAs territórios que se enquadram dentro da condição de reformadores (GIRARDI, 2008). Segundo Girardi (2008), para ser reformador, o assentamento tem que ser fruto da pressão exercida pelos movimentos socioterritoriais, colocando no cenário político quem estava à margem da sociedade e desencadeando mudanças nas condições de vida dos indivíduos. Como também deve ser um indicativo para evidenciar os problemas na estrutura fundiária de um local, contribuindo, a partir da desapropriação de terras improdutivas, para modificar a estrutura fundiária da região/área onde foi implantado: Para os assentamentos reformadores as terras são arrecadadas geralmente a partir de desapropriação, o que representa o mais alto grau de reforma da estrutura fundiária possível na legislação brasileira atual. Através da criação desses tipos de assentamentos é cumprido o artigo 186 da Constituição e a estrutura fundiária é de fato desconcentrada. Com os assentamentos reformadores o campesinato se territorializa a partir da desterritorialização do latifúndio (GIRARDI, 2008, p. 283).

236 235 Pode-se levantar a hipótese de que a implantação dos PA contribui para a existência dos assentamentos reformadores em Passira, na medida em que, além de territorializar famílias envolvidas na luta pela terra, possibilita tendência à desconcentração fundiária no município. E isso numa contribuição direta à modificação da estrutura fundiária local, mesmo que de forma modesta em termos percentuais de área ocupada (2,3%). Por isso, levando em consideração que as parcelas de cada PA não passam da dimensão de 20ha, com o surgimento de 168 estabelecimentos rurais no período de 1995 a 2006, pode-se afirmar que 121 estabelecimentos ocorreram a partir dos PA, sendo: 29 no Independência, 22 no Varame I, 30 no Varame II e 40 no Recreio. Tais valores mostram que os quatro PA contribuíram com 72,02% dos novos estabelecimentos rurais, confirmando o processo de desterritorialização do latifúndio, com etapas de territorialização do camponês (GIRARDI, 2008). Essa afirmativa ainda pode ser levantada quando comparada à situação das relações de trabalho antes e depois da implantação dos PA. As tabelas 27 e 28 permitem-nos concluir que o número de ocupantes e arrendatários diminuiu no período de 1995 a 2006 em Passira. Tabela 27: Passira Relação pessoal ocupado por categoria de propriedade 1995 Tamanho das propriedades Número de ocupantes Número de Arrendatários Número de parceiros Número de Proprietários 0 a a a acima de Total Fonte: IBGE, Tabela 28: Passira Relação pessoal ocupado por categoria de propriedade 2006 Tamanho das propriedades Número de ocupantes Número de Arrendatários Número de parceiros Número de proprietários 0 a a a acima de Total Fonte: Censo Agropecuário, Com efeito, estas tabelas ainda nos apresentam uma situação em que o número de ocupantes e arrendatários passou, respectivamente, de 888 a 225, em 1995, e de a 888,

237 236 em 2006, uma diminuição de 25% e 11% para cada situação. Nos casos dos parceiros e proprietários, houve um aumento significativo em ambas as situações. O número de parceiros passou de 4 para 54, e o de proprietários passou de 1.811, em 1995, a 2.048, em 2006, um aumento significativo de 13,08% novos proprietários. É evidente que esse crescimento dos pequenos proprietários pode estar associado ao processo de fragmentação das propriedades, e não descartamos este fato. Porém, os dados nos permitem visualizar que o aumento das pequenas propriedades é também acompanhado por uma queda no número das grandes propriedades. Se em 1995 o número dos estabelecimentos acima de 100ha era de 30, em 2006, esse número passou para 25, uma diminuição de 16%. O que nos faz afirmar que há um processo paralelo do aumento de pequenas propriedades e uma diminuição direta nas grandes, constituindo-se num processo de desconcentração fundiária. Porém, não basta somente ter a desconcentração, deveria ocorrer de forma paralela a construção de novos territorios camponeses, baseados numa série de mudanças, reais e simbólicas, que alteram as condições de vida, produção, relações com a natureza, etc. (SAUER, 2003, p. 22).

238 OS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS RURAIS NO MUNICÍPIO DE PASSIRA- PE: CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS E DA POPULAÇÃO ASSENTADA 5.1 CARACTERIZAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA POPULAÇÃO DO ASSENTAMENTO INDEPENDÊNCIA Organização e produção 196 O PA Independência, também conhecido como Assentamento Patativa do Assaré 197, cobre uma área de mais de 365ha, tem capacidade territorial de assentar 29 famílias. Este PA é resultado da desapropriação da Fazenda Independência, localizada no Sítio Borba, situada às margens da PE 95 (Mapa 3 e Foto 1), a uma distância de 1km do perímetro central da cidade. 196 As informações aqui apresentadas e que se constitui base para uma caracterização do processo histórico de construção do PA Independência são resultados, também, das pesquisas realizadas junto ao assentamento e que resultaram na monografia de finalização do Curso de Bacharelado em Geografia (DCG- UFPE), defendida no ano de 2009, e da dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia (PPEGO-UFPE), apresentada em O que buscamos é traçar uma caracterização geral das famílias assentadas, numa tentativa de ter uma visão do quadro social e organizativo desse território, desta vez ressaltando sua relação com os discursos. 197 Para o MST, o território do Assentamento é chamado de Patativa do Assaré, mas para o INCRA ele é cadastrado no Polo de Bom Jardim como Projeto de Assentamento Independência. Estamos partindo da nomenclatura utilizada pelo INCRA. Isso porque nenhum assentado citou nos seus discursos a nomenclatura do MST. Inclusive, entendemos que essa diferença tem um peso significativo nos discursos, uma vez que deixa claro um certo distanciamento com a verbalização do movimento no atual contexto socioterritorial.

239 238 Mapa 3: Passira Localização do PA Independência Fonte: Foto do autor, Foto 1: Entrada do Assentamento Independência, às margens da PE-95

240 239 O assentamento possui em 29 lotes familiares e uma área de reserva de 365,5313 hectares. Cada família assentada conta com um total de 11ha, sendo 1ha de lote de moradia e 10ha de parcela individual para trabalhar na agropecuária. A localização das casas foi organizada em forma de agrovila (Foto2; Figura 1), com vinte e sete (27) famílias que possuem suas casas localizadas na área, somente duas casas estando fora. Fonte: Foto do autor, Foto 2: Visão parcial da agrovila do PA Independência.

241 240 Figura 1: Agrovila do PA Independência Cada lote de morada do assentamento possui uma casa que tem na sua constituição o material de alvenaria (Foto 3); sua divisão que se apresenta da seguinte forma: um terraço, dois quartos, uma sala de estar, uma cozinha e um banheiro interno 198. Para isto, foi liberado um crédito de habitação, no valor de R$10.000,00, segundo o INCRA, através da Caixa Econômica Federal para a Associação dos Trabalhadores Rurais do PA Independência. 198 Existem casos de assentados que conseguiram realizar reformas nas suas casas ampliação e melhoramento da área do lote de moradia a fim de adaptá-la às suas necessidades e aos seus interesses.

242 241 Fonte: Foto do autor, Foto 3: Modelo de casa do PA Independência O período de construção das casas do PA ocorreu entre final de 2007 e início de 2008, com a presença de três representantes dos assentados, escolhidos por eles próprios em assembleia, para fiscalização e controle de todo processo de construção. Segundo informações colhidas junto ao Presidente da Associação, naquele mesmo período, havia sido feita uma pesquisa de preços em quatro estabelecimentos comerciais do município, visando a compra dos materiais que seriam utilizados na construção das casas. Escolheu-se o estabelecimento que apresentou o melhor preço, ganhando a licitação para a compra dos materiais. No momento em que as suas casas estavam sendo construídas, algumas famílias tiveram que permanecer morando nas barracas do acampamento ou nas antigas casas nas pontas de rua da cidade de Passira. Percebeu-se uma grande mobilização por parte das famílias, o que foi sentido pela participação e empenho de muitos assentados na construção de suas casas 199 (Foto 4). 199 Essa referência é feita com base em um estudo de campo realizado no período da construção das casas do Assentamento em 2008.

243 242 Fonte: Foto do autor, Foto 4: Assentados auxiliando na construção de suas próprias casas No que tange ao acesso à energia elétrica, todos os assentados do Independência têm acesso a esse tipo de serviço, principalmente, através do Programa Luz para Todos, implantado no assentamento desde Porém, é válido destacar que até recentemente o PA apresenta algumas casas que só tinham energia através de instalações informais, uma vez que nem todas as casas eram interligadas com a rede de fios que possibilitam o acesso a este serviço de distribuição (Foto 5 e 6).

244 243 Fonte: Foto do autor, Fotos 5: Instalação informal da rede elétrica no PA Independência Fonte: Foto do autor, Fotos 6: Instalação formal da rede elétrica no PA Independência

245 244 Com relação ao abastecimento de água, os assentados do PA Independência apresentam alguma forma de acesso a este bem 200. Porém, de maneira bastante diferenciada entre eles. Observa-se que a maioria tem o seu abastecimento por meio de cisternas que foram construídas com investimento do Crédito Semi-árido (Foto 7). Essa forma de abastecimento é, na maioria das vezes, unicamente para o abastecimento doméstico. A falta de água para o exercício das atividades agrícolas, principalmente nos lotes da agrovila, é um problema destacado por muitos. Algumas famílias têm acesso à água encanada instalada com recursos próprios ou por meio de um açude com qualidade duvidosa. Fonte: Foto do autor, Foto 7: Cisterna das casas do PA Independência. No que diz respeito às construções disponíveis no assentamento, não se observa áreas de lazer ou alguma outra construção realizada, como grupo escolar, posto de saúde ou outra. A infraestrutura básica existente se encontra presente desde a época de entrada das famílias, sendo adaptadas e utilizadas pelos mesmos. Observamos: uma área coletiva, que se trata da antiga Casa sede da Fazenda (Foto 8), espaço que é usado para os encontros e reuniões realizados pela associação das famílias assentadas; curral e um galpão para máquinas e equipamentos; uma antiga casa de morador, uma caixa d água suspensa, uma cisterna, ambos construídos, em alvenaria de cimento. Existe uma única estrada vicinal que dá acesso à 200 Segundo Leite (2004), o acesso aos bens água e energia elétrica é crucial à nova dinâmica da família nos seus respectivos lotes, promovendo a organização das atividades agrícolas e maior possibilidade de exploração dos lotes agrícolas dentro dos assentamentos rurais.

246 245 agrovila e à saída do PA, às margens da PE-95, o que provoca muitos transtornos em decorrência das dificuldades apresentadas pelas condições da estrada. Em períodos chuvosos, muitos assentados não conseguem fazer o seu deslocamento de maneira segura. Fonte: Foto do autor, Foto 8: Casa-sede do assentamento do PA Independência Observamos, ainda, em campo, que os lotes das famílias apresentam-se como espaços mais importantes, uma vez que permitem a reprodução da unidade familiar 201, havendo possibilidade de construção de uma nova forma de vida. Verificamos que cada unidade familiar apresenta-se, em média, com 3 a 4 membros. Em alguns casos, há uma ampliação e até tentativa de construção de uma nova casa dentro do lote para que possa abrigar um filho(a) que se casa. Em termos de produção, tem-se o roçado como base. Observamos uma associação entre culturas para o abastecimento da unidade familiar, voltadas ao mercado, principalmente, comercializadas na feira da cidade de Passira. Destacam-se como principais culturas: macaxeira, jerimum, feijão e milho. Estes dois últimos aparecem como aquelas que, ao mesmo tempo em que se voltam ao abastecimento doméstico, também se destinam à comercialização. Inclusive, os dados da produção agrícola municipal, em 2010, levantados 201 A esse respeito, disse Leite (2004), já chamava atenção para o fato de ser o lote o lugar mais importante para as famílias assentadas e da possibilidade de reprodução desse núcleo familiar: Nos lotes vivem e trabalham pessoas ligadas entre si por relações de parentesco, na sua grande maioria das famílias nucleares, ou seja, que não abrigam outras pessoas além do pai, mãe e filhos (LEITE, 2004, p. 120).

247 246 junto ao IBGE, confirmam essa informação, uma vez que mostram que a área plantada com feijão e milho em Passira foi de 600ha e 3.000ha, respectivamente (IBGE, 2010). O que mostra que há uma possível vocação do assentamento em acompanhar a produção agrícola local. Sparovek (2005), em pesquisa realizada em 2005, já observava que essa é uma tendência dos assentamentos, ou seja, a de produzirem o que predomina no município. Outro aspecto que pode ser chamado à atenção na produção agropecuária, refere-se ao não parcelamento dos lotes, que é uma das principais dificuldades apresentadas pelos assentados. Observou-se em campo e apurou-se através das falas dos assentados, que o PA Independência ainda se acha na condição de pré-parcelamento. Não houve ainda divisão e cercamento oficial das parcelas de trabalho pelo INCRA. A divisão existente é fruto de marcações feitas, informalmente, pelos próprios camponeses-assentados. Identificamos somente um assentado que conseguiu cercar suas parcelas para nelas trabalhar, gerando um rendimento que não é suficiente para tornar a produção agrícola sua principal fonte de renda. Sem essa divisão de forma oficial, os assentados limitam as suas atividades e produção a extensão de um hectare de área da agrovila. Por isso que, na maioria dos casos, constata-se que cada espaço da parcela da casa é aproveitado para a criação de animais e a plantação de culturas, principalmente, daquelas voltadas ao consumo familiar. Nessa área, o perfil de ocupação se dá pelo predomínio das lavouras citadas anteriormente, sendo o milho a cultura que ocupa a maior parte do espaço do lote da casa (Figura 2; Fotos 9 e 10), produto que é fundamental na área, sustentando, inclusive, uma festa tradicional local, ou seja, a Festa do Milho.

248 Figura 2: Perfil de ocupação dos lotes da Agrovila 247

249 248 Fonte: Foto do autor, Foto 9: Criação de animais ao lado da casa Fonte: Foto do autor, Foto 10: Plantação de feijão, na frente da Casa da Agrovila (meses de março, abril, maio e junho) 202 Verificou-se que muitos assentados, além de consumirem uma parte dessa produção, vendem a outra como forma de complementar a renda familiar. Uma venda que é feita para 202 Por conta da forte estiagem na região, não observamos culturas plantadas nas parcelas. Por isso, estamos trazendo uma foto mais antiga como forma de ilustrar o que afirmamos acima.

250 249 atravessadores da cidade. Poucos são os que vendem aos consumidores, embora não tenha ficado claro para nós como essa venda é realizada. Suas respostas levaram-nos a crer que esse consumidor é de fato o atravessador. A atuação dos atravessadores é uma prática comum e aceita entre os assentados, sobretudo, para os produtores que não conseguem outra forma de comercializar seus artigos, uma vez que não conseguem levá-los à feira local. Esses intermediários têm um peso significativo nas relações de comercialização dos excedentes produzidos, com destaque para o milho. Observamos em campo e na fala dos mesmos que não há canais seguros e justos de diversificação para o escoamento da produção. O que nos permite dizer que esse assentamento não conseguiu até o presente momento criar um novo arranjo da agricultura local, no sentido de mudar ou conseguir criar novos canais de comercialização. Os assentados não conseguiram romper com as formas mais tradicionais de escoamento da produção. O próprio gerente da Cooperativa Mista de Passira (COAMIPA), que é comprador de produtos dos assentamentos rurais do município, principalmente provenientes do Independência, PA mais próximo do estabelecimento comercial, afirma que são os próprios assentados que se dirigem a ele para oferecer seus produtos. Caso seja de interesse, a compra é realizada. Porém ela se dará de acordo com o preço estabelecido pela Cooperativa. Nessa condição, o assentado não tem poder de barganha sobre o seu próprio produto. Assim, diz o gerente: Eles vêm aqui e oferecem. Eles veem, me comunicam e eu mando o carro ir buscar. Saiu o milho, eles veem e me oferecem [...] (Informação verbal, Presidente da Cooperativa Mista de Passira). Dessa forma, não há quebra das relações tradicionalmente, como também permanece uma série de dificuldades para a produção e diversificação das atividades das famílias. Isso devido às condições de sujeição que ainda lhes são impostas: péssimas condições das estradas que impossibilitam um melhor deslocamento das famílias e escoamento de sua produção; nível de escolaridade e histórico de exploração e expropriação sofrida pelos pais e pelos assentados, tendendo ao individualismo; pouca capacidade de cooperação e organização conjunta dos assentados; falta de parcelamento, investimentos e pouca atuação do INCRA com relação ao atendimento de questões básicas. Ainda com relação à produção agropecuária, observa-se que existe uma pequena criação de animais. Porém, segundo informações levantadas, essa criação não se faz de forma tão expressiva, sendo poucos os assentados que criam galinhas e gado. Também o número

251 250 mostra-se bastante inexpressivo sendo em média 2 a 4 cabeças gados por assentado. Animais que servem tanto para o consumo familiar como para a reprodução voltada à venda. Cabe salientar que o PA Independência possui uma associação, chamada Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Patativa do Assaré, a qual é assessorada pelo MST e se constitui como um espaço onde os assentados podem se achar representados, fazendo valer seus interesses e suas demandas no processo de implantação e construção dos territórios do assentamento. Nas suas reuniões, cada assentado expõe sua opinião sobre um determinado problema observado, procurando possíveis soluções em comum, no âmbito das discussões sobre os mais variados projetos e problemas que surgem no PA. Esta é composta pelos assentados e é formada por um presidente, secretário, tesoureiro, seus respectivos vices e um conselho fiscal. Todo esse contexto territorial tem um peso muito grande nos discursos formulados e enunciados pelos assentados, principalmente, por, em certos momentos, entrarem em conflito com os discursos e as ações do MST e do INCRA em torno do PA Independência O contexto histórico dos assentados Com relação ao contexto histórico dos assentados do PA Independência, observamos in loco no que concerne à naturalidade, que predomina uma origem ligada ao próprio município de Passira, o que reforça o vínculo local, especificamente, quanto à ligação com a rua 203, já que os atuais assentados foram todos antigos moradores das pontas de ruas da cidade, numa clara tendência à municipalização da luta pela terra. Observamos, ainda, que essas famílias são formadas por pessoas que nasceram e foram criadas em Passira, inclusive tendo seus pais trabalhado como parceiros e/ou meeiros, alugados em muitas fazendas locais. O que reafirma a forte ligação com as atividades agrícolas, mesmo antes da implatanção dos territórios em epígrafe: Trabalhava na agricultura mesmo! Trabalhei alugado para os outros também! Trabalhava para os outros e trabalhava pra mim também! Quando eu não era assentado aqui, realmente as minhas condições era mai difici, eu tinha que trabalhar para os outros. Eu trabalhava e o patrão me pagava. Ele pagava por diária. Era limpando 203 A rua é uma expressão usada pelos assentados para fazer referência ao centro da cidade ou à periferia urbana do lugar, denominação bastante comum em muitos lugares do interior do Nordeste brasileiro.

252 251 mato, todo dia da semana. Trabalhei, trabalhei muito tempo! (Discurso assentado 01, PA Independência). Trabalhava sempre na agricultura! Ante de vim pra aqui (PA Independência) eu trabalhava na terra dos outro. Trabalhei uns tempos numa construção. Trabalhei no sul cortando cana! Cortei cana, cortei muito! Trabalhei em todo canto, em todo serviço! (Discurso assentado 02, PA Independência). A minha vida, a minha infância, de quinze ano de idade pra cá, eu entrei em fazenda pra trabalhar alugado. Eu trabalhei alugado em uma fazenda por vinte e sete ano. Na fazenda Pirauá que era de Zezinho Alves (Discurso assentado 03, PA Independência). Eu trabalhava na agricultua. Trabalhava mai meu pai lá na terra de Zé de Bione, de Mané Augusto. E no tempo que meu pai morreu, eu fui trabalhar alugado pra sobreviver. Trabalhava alugado, butando roçado. Trabalhei de treze anos até quase trinta e oito anos! Pra sobreviver nessa vida! (Discurso assentado 04, PA Independência). Toda vida eu vivi da agricultura! Sempre era trabalhando nas fazendas. Sempre butando roçado na terra dos outro. E quando a gente consegue um pedaço de terra pra se manter nela e se não tiver recurso fica difícil! A vida na agricultura é difícil! A vida do agricultor é trabalhando! Agricultura é assim: quando vem um inverno bom, mandado por Deus, aí a gente lucra. Lucra o milho, lucra o feijão. E o que sobra fica pra dá aos bichos mesmo (Discurso assentado 05, PA Independência). O conteúdo e a construção desses discursos confirmam que as experiências anteriores ao PA Independência estavam ligadas à agricultura. Porém, sob as formas de relações de trabalho traduzidas pelo arrendamento e o trabalho alugado. Por isso, toda a verbalização se dá em torno de palavras/frases/expressões como Trabalhei alugado, Trabalhava para os outros, eu tinha que trabalhar para os outros, eu trabalhava na terra dos outro, eu entrei em fazenda pra trabalhar alugado, eu fui trabalhar alugado pra sobreviver, Trabalhava alugado, butando roçado, Sempre era trabalhando nas fazendas, Sempre butando roçado na terra dos outro. Desse modo, há também uma experiência de proximidade em termos da cultura de exploração e subordinação vivenciadas anteriormente. Tal contexto, fez com que os assentados tivessem que trabalhar desde muito cedo, quando ainda eram novos, a fim de ajudarem seus pais nas atividades agrícolas com o intuito de melhorar o nível de renda da família: A minha vida, a minha infância, de quinze ano de idade pra cá, Trabalhava mai meu pai, Toda vida eu vivi da agricultura!.

253 252 Essas formas de relações representam não só o quadro histórico das condições sociais e econômicas em Passira, mas também, na região do Agreste Pernambucano. A este respeito, Andrade (2005) argumentou que as relações de trabalho estabelecidas entre os proprietários das fazendas e os pequenos camponeses do Agreste que, na sua maioria, encontravam-se sem nenhum pedaço de terra para trabalho, contribuíram para mantê-los sob processos muito desfavoráveis de trabalho e existência. Em sendo rendeiros, esses camponeses estavam sujeitos aos interesses dos proprietários: O agricultor não tem qualquer garantia de renovação de contrato, nenhum documento que legalize a transação, ficando à mercê do proprietário em qualquer emergência (ANDRADE, 2005, p. 175). Com efeito, observamos que a maioria dos camponeses abordados arrendava terras e trabalhava alugado antes de serem assentadas. Condições de trabalho que eram tão precárias que nunca foram esquecidas. Inclusive, alguns relatam o nível da subordinação imposta pelos fazendeiros através da necessidade de pagar a renda da terra, tanto a dinheiro como em produto, o que muitos denominam de foro : O foro é botar um hectare de terra, aí no fim da colheita o cara dá quatro saco de milho ao fazendeiro, ao dono da terra. Isso se chama o foro. Era quatro saco por cada hectare que plantava. Um hectare de terra dava bastante milho. Agora, tendo inverno também (Discurso assentado 02, PA Independência). Trabalhar alugado é te chamar e tu vim trabalhar aqui pra plantar palma, vim roçar mato, vim fazer cerca. Esse era meu serviço. Trabalhei dezenove ano numa cocheira tratando de gado. Fim de semana o patrão me pagava e eu ia fazer minha feirinha. Esse trabalho se chama trabalhar alugado. Eu já paguei foro! Já trabalhei, plantava milho, feijão e algodão. E pagava o foro. O que é o foro? Eu trabalhava um quadro de terra e ele me cobrava como se fosse hoje duzentos conto (Discurso assentado 03, PA Independência). A gente sempre trabalhava nas fazendas. De primeiro a gente ia lá e arrendava a terra, dois hectare ou trei. E trabalhava. E quando era no final do ano a gente pagava o foro. Tinha lugar que era quatro saco de milho por hectare, tinha lugar que era trei. A minha vida de agricultor sempre foi assim! (Discurso assentado 05, PA Independência). As palavras/frases/expressões destacadas acima mostram que a condição histórica de rendeiro permanece no imaginário desses assentados. Isso porque a subordinação imposta pela condição de rendeiro, ou seja, sujeito que trabalhava numa fazenda e pagava a renda da

254 253 terra, por meio do foro, ficou marcado na memória desses assentados. Não por meio de uma colonização da mente dos pobres do campo 204 (SABOURIN, 2008), mas por ser marca histórica e inegável: Esse era meu serviço, A minha vida de agricultor sempre foi assim!. Táticas que são reproduzidas nos assentamentos. Foi essa condição de trabalho que fez com que os camponeses assentados levassem uma vida de exploração e subordinação: Rapaz, a gente era uma pessoa desreipeitada pelo dono da terra. Porque na época mesmo, quando a gente trabalhava ali na fazenda de Seu Francisquinho, chegava o tempo dele colocar o gado, ele não tava nem aí. Ele não queria nem saber, ele colocava o gado dele lá. Porque o direito do fazendeiro era assim, se tem um bucado de rendeiro na terra dele trabalhando e chegou a época de soltar o gado, era pra ele falar assim: Olha, tal mei eu vou soltar o gado. Tem um mei ou doi mei pra vocês fazer a colheita de vocês. Mas, quando ele dizia era em cima da buxa: Amanhã eu vou soltar o gado!. E o gado comia o resto da fava, comia o resto do algodão, comia tudo. E a gente perdia tudo. Era uma época difici! (Discurso assentado 01, PA Independência). E trabalhar alugado é vida boa?! Pagar do jeito que eles quer pagar! [Comente sobre esse trabalho: como era?] Era pegar a enxada e limpar mato na terra dos outro, pra quando chegar de noite tá mais morto do que vivo pra ganhar o pão de cada dia. [Como era o pagamento?] Por diária. Naquele tempo era treze real o dia. As veze, dava uma banana podre com cuscuz. Era capai de cair com fome em cima da enxada! Essa é a vida de quem trabalha alugado! (Discurso assentado 04, PA Independência). Alguns relatam como eram as condições de vida e trabalho, também, quando trabalhavam como cortadores de cana: Antigamente, o trabalhador trabalhava no sul e vivia feito um cachorro. Feito escravo! Por exemplo, você ia trabalhar no sul e lá você ia trabalhar com o usineiro lá. Mas, se você pisasse na bola ou fizesse qualquer coisinha com ele, ele matava você, jogava você na fornalha. Hoje não existe mais isso! Pode acontecer nas escondidas, porque tudo acontece nesse mundo. E hoje não, você vai trabalhar lá no sul, você tem seu direito. Hoje você tem cama pra dormir. Naquele tempo, a gente ia cozinhar com lenha, ficava lá feito uns mendigo de rua. Hoje não. Os meninos vai pro sul tem cama com colchão pra eles dormir, tem televisão, tem sanitário lá dentro, tem a comida tres vezi ao dia. E antigamente era de que? Era uma rede veia, chegava numa 204 Aqui, Sabourin (2008) faz uma crítica às concepções de Martins ao negar que o camponês, estando assentado e não dispondo de mecanismo técnicos e condições financeiras, busca lucrar na terra usando os mesmos mecanismo vividos anteriormente, por meio da renda da terra a terceiros.

255 254 cocheira e armava a rede. Cozinhava numa panela de todo jeito. Hoje é diferente! Hoje tem direito quando sai (Discurso assentado 01, PA Independência). Era cortar cana e amarrar! Quando não era amarrar, era soltar. Cortar e deixar amarrada na esteira no chão pra máquina pegar. Trabalhei cortando cana e trabalhei muito. Até meu PIS é de cortador de cana de usina. No sul é ruim, no sul é pior que aqui. Porque o cara trabalha que nem bicho e no fim da semana o dinheiro ser tanto assim [gesto com a mão]. Porque você pega de quatro hora da madrugada no corte de cana, se quiser cortar um salário de cana, e quando dá meio você tem cortado um salário e meio. Aí o cara vem e passa a braça e ainda falta muito pra um salário. O cara trabalhou de meia pra o usineiro. Um caminhão de cana dá vinte toneladas. O cara pega de quatro da madrugada e quando dá uma da tarde o cabra tem cortado um caminhão de cana. Quando o cara passa a braça dá três, quatro tonelada. Pra vinte ainda falta muito. O cara perde quanto? Por isso, que eu digo, todo o pobre, o agricultor pobre é sofrido demais (Discurso assentado 02, PA Independência). Por isso, alguns asentados afirmam que apesar de toda a problemática colocada, houve uma melhora muito grande na sua condição de vida, com relação ao período anterior, não havendo interesse de retornar ao passado: Deus me livre! Porque era uma vida difici! Eu não tenho saudade daquele tipo de vida não! [É melhor ser assentado?] É melhor ser assentado porque aqui nós trabalha pra gente! Gente aqui trabalha pra gente mesmo! Aqui não trabalha para os outro! Tudo que produz é pra gente! Aqui não precisa dá pro dono da terra! Aqui a terra é da gente, a terra somo nossa! A gente conquistemo, ganhemo a terra e a terra somo nossa e nós tamo trabalhando! (Discurso assentado 1, PA Independência). Não! Não! E já estou velho! E o cara velho não aguenta mais. É muito pesado! (Discurso assentado 2, PA Independência). Meu amigo, eu fui do campo, eu nasci no campo, sou fii de agricultor. Nasci no campo, me criei no campo... Isso pra mim aqui é importante! Minha vida melhorou. Aqui eu tenho minha vaca, aqui eu tenho meu garrote, aqui eu tenho meu porco, aqui eu tenho meu cavalo, aqui eu tenho meu jumento... Quando eu vim pra qui o que eu tinha: um gato amarrado num quintal. Isso aqui é uma bola de ouro pra mim! Quem não quiser dá valor não dê, eu dô! Eu dô todo o valor do mundo aqui! (Discurso assentado 3, PA Independência).

256 Perfil e contexto atual das famílias assentadas Com relação ao perfil atual das famílias assentadas, há um certo envelhecimento da população assentada no PA Independência. Entre os chefes das famílias, observamos uma idade que supera os 50 anos. O que provavelmente irá afetar diretamente no trabalho agrícola do assentamento, já que boa parte dos jovens que moram no PA tem alguma forma de acesso às escolas do município e/ou buscam realizar outras atividades fora da agricultura. Por isso, ficou claro que há um processo de êxodo de jovens dentro do território 205. Percebemos que não há uma fixação dos mesmos nos assentamentos, o que não está desassociado da diminuição da população rural do município nos últimos dez anos (2000 a 2010). Verificamos que, no PA Independência, boa parte dos filhos dos assentados já não mora no assentamento. Entre os principais motivos que os levaram para outros lugares, encontram-se a união conjugal, o trabalho fora da agricultura e os estudos. Porém, é importante destacar que mesmo em um contexto mais favorável ao acesso aos estudos há outras oportunidades fora do PA, verificou-se, ainda, um imperativo aos jovens que permanecem: a necessidade de ajudar os pais no processo de elevação da renda doméstica. Nesse sentido, no âmbito das relações de trabalho, observamos que existe uma tendência a ser a mão-de-obra familiar aquela que predomina. Há, de fato, uma vinculação dos membros da família com as atividades do lote do assentamento. A população assentada tem na utilização dos membros de casa como força de trabalho principal. Destacando-se a participação ativa de vários, tanto nas atividades domésticas, como as da lavoura e pecuária 206. Ao mesmo tempo, é válido destacar que existe uma relação de venda e compra de trabalho entre os próprios assentados. Há assentados que vendem sua força de trabalho para o 205 Esses aspectos, segundo Abramovay e Camarano (ABRAMOVAY; CAEARANO apud LEITE, 2000), têm levado à masculinização e ao envelhecimento nos assentamentos rurais, confirmando, inclusive, a tendência ao êxodo por geração em muitos assentamentos. 206 Entendemos que a unidade familiar camponesa constitui um espaço que possui uma estruturação interna que busca manter-se enquanto uma unidade de reprodução familiar (CHAYANOV, 1981). Desse modo, ao invés de trabalhar na lógica capitalista, o camponês preocupa-se com a manutenção de sua unidade familiar e, por sua vez, a de sua família. E por este motivo, não é o lucro e nem o salário a base de sua existência, mas a satisfação das necessidades familiares. Para Lefebvre (1978), a comunidade rural é uma organização orgânica na qual estabelecem relações em família e não relações individuais do contrato do trabalho. Nesse sentido, a propriedade camponesa constitui um bem familiar, num limite abstrato entre propriedade coletiva e propriedade privada propriedade coletiva: organização social que quebra a apropriação privada e é construída a partir do uso coletivo do solo; propriedade indivisa: quando o uso do solo não é coletivo, mas familiar, restrito a uma família, em que há atribuições por partes iguais e desiguais.

257 256 colega, recebendo uma remuneração como diarista. Nas observações em campo, ficou identificado que há indivíduos que, geralmente, submetem-se ao trabalho diário dentro do território do PA. Geralmente, são os chefes das familías assentadas que têm como objetivo completar a renda doméstica, obtendo R$50 a R$ 80,00 pelo dia de trabalho. É importante que fique claro que essa venda e compra da força de trabalho se dá geralmente nos períodos em que ocorre a maior quantidade de produção agrícola (nos meses março, abril maio e junho em que temos a maior quantidade de chuvas na região). Mesmo sendo uma prática comum e conhecida por todos, é importante registrar que muitos assentados não se sentem à vontade em tocar nesse assunto 207. Alguns alegam que o INCRA não permite certas formas de relações de trabalho dentro do território do PA, citandoa. O que foi confirmado por um assentado quando afirmou que, ao ter de entrar no assentamento, o Instituito lhe impôs uma série de condições e impossibilidades de exercício das atividades no lote, como seu antigo patrão o fazia. O assentado chega a considerar-se como escravo do INCRA, uma vez que não tem autonomia de fazer e manter relações de trabalho sem a permissão da superintendência: O Incra não quer que eu seja empregado na rua. Eu não posso, eu não posso sair daqui e trabalhar um dia ou dois, o INCRA não quer. O INCRA não quer que eu chame um trabalhador aqui para trabalhar para mim, não pode. A lei deles é essa. Não pode! Eu não posso butar aqui um trabalhador para fazer uma cercazinha, para plantar uma palma dessa, para plantar um milho, eu não posso. Só que a gente não faz o que o INCRA quer e eu faço o que eu devo fazer, o que eu acho que posso fazer, e o que eu devo fazer. O INCRA não vive me dando renda para eu me manter, eu vivo aqui sendo escravo do INCRA (Discurso assentado 3, PA Independência). No PA Independência, as culturas não são cultivadas com base na irrigação. Nenhum assentado teve recursos próprios e/ou acesso a investimentos para cultivar em seus lotes utilizando esta técnica. Como já afirmamos, as atividades nos lotes de moradia se limitam ao 207 Como argumentaram Barreira e Paula (1998), sobre a experiência de assentamentos rurais no Ceará, a condição de camponês-assentado cria uma nova relação com o INCRA. Esse novo-elo, segundo as autoras, se dá pela nova relação não de subordinação estabelecida pela nova relação do Estado ao assentado, e não mais da relação camponês e antigo patrão. Assim, dizem: Para a maioria dos camponeses-assentados, depois da desapropriação, o INCRA passa a ocupar o lugar do antigo patrão. Com a desapropriação, ocorre uma ruptura com as antigas relações sociais entre proprietário de terra e camponês, como também começa a engendrar-se um novo elo, entre o camponês e o Estado. Este novo elo fornece os contornos do camponês enquanto cidadão, com direitos e deveres. Este aspecto está possibilitando que o ato de desapropriar, que é trabalhado pelo Estado como um direito outorgado ou simplesmente como uma ação jurídica administrativa, ultrapassa os seus limites (BARREIRA; PAULA, 1998, p. 217).

258 257 período das chuvas na região. Por isto é que os assentados só plantam nos meses de março, abril, maio e junho, permanecendo, nos demais meses, em situação de ociosidade. Essa condição obriga os assentados a certas situações, dentre a grande dependência com relação aos recursos oriundos das aposentadorias ou dos programas governamentais como o Bolsa Família, que se tornam, para muitos, as principais fontes de renda. Por isso, identificamos que a renda mensal das famílias assentadas acha-se entre 1 a 2 salários mínimos. Também, identificamos que há a busca da ampliação da renda doméstica fora do PA. Nos períodos de diminuição das atividades agrícolas, os assentados passam pelos maiores problemas financeiros, tendo muitas vezes que buscar trabalhos temporários na rua a chamada inserção multifuncional 208 (LEITE, 2004). Destacando-se atividades informais, como pequenos trabalhos de servente de pedreiro e trabalhos ou bicos na cidade de Passira, como moto-táxi e outros. 5.2 CARACTERIZAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA POPULAÇÃO DO ASSENTAMENTO VARAME I Organização e produção 209 O PA Varame I ou Carlos Mariguella 210 cobre uma área de ha, situada às margens da PE 78, numa distância aproximada de 8km do centro da cidade de Passira (Mapa 4). Este PA é, juntamente com o PA Varame II, resultado da desapropriação da Fazenda Varame. Eles se caracterizam como sendo fruto do conflito de famílias camponesas 208 Conforme aponta Leite (2004), o acesso à terra por parte de famílias submetidas historicamente à condição de pobreza e precária exclusão facilita a criação de novos arranjos e novas estratégias em termos de fontes de renda. De acordo com ele, os assentados não vêem a produção e a capacidade de geração de renda do lote como únicas fontes; mas também enxergam outras formas exteriores às atividades agrícolas, em uma perspectiva de inserção multifuncional. 209 As informações aqui apresentadas e que constituiem base para uma caracterização do processo histórico de construção do PA Varame I são resultados, também, das pesquisas realizadas junto ao assentamento e que resultou na dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia (PPEGO-UFPE), no ano de O que buscamos é traçar uma caracterização geral das famílias assentadas, numa tentativa de ter uma visão geral do quadro social e organizativo desse território, a fim de contextualizar as formações discursivas. 210 Como o PA Independência, o PA Varame I também tem uma denominação dada pelo MST como PA Carlos Mariguella. A exemplo do outro, optamos por chamar de acordo com o cadastro do INCRA: Projeto de Assentamento Varame I.

259 258 que, em torno dos movimentos socioterritoriais especificamente MST e OLC, buscaram o acesso à terra 211. Mapa 4: Passira Localização do PA Varame I Neste assentamento, após a sua conquista, cada família passou a contar com uma parcela de terra que serviu de espaço para a reprodução da unidade camponesa e outra para trabalho. No Varame I existe uma agrovila, separada por uma estrada vicinal, e as 22 famílias assentadas têm suas casas dentro do lote (Fotos 11 e 12). Essas áreas de moradia na agrovila 211 O contexto de espacialização da luta pela terra em torno da Fazenda Varame e os conflitos e embates significativos entre as famílias camponesas, junto aos movimentos socioterritoriais e o proprietário do imóvel, serão descritos na seção Ocupações, acampamentos e a conquista da terra no PA Varame I: mobilização em torno do discurso do MST.

260 259 apresentam 1,5ha e as parcelas individuais referentes ao trabalho agropecuário contam com 7ha. Fonte: Foto do autor, Foto 11: Estrada que dá acesso ao PA Varame I e que divide o assentamento em duas partes Fonte: Foto do autor, Foto 12: Vista parcial de casas do PA Varame I dentro de cada lote da agrovila Observou-se em campo que a estrutura física das casas construídas neste PA assemelhava-se à do Independência, tendo a seguinte divisão: um terraço, dois quartos, uma sala de estar, uma cozinha e um banheiro interno. Tendo custado, também, o mesmo valor

261 260 financiado pelo Projeto de Habitação, R$10.000,00, crédito liberado através da Caixa Econômica Federal, junto à Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Carlos Mariguella. Porém, ao contrário do outro PA, em que todas as habitações já estavam prontas, no Varame I encontramos, ainda, casas inacabadas, mas entregues. Das vinte e duas famílias beneficiadas com o projeto habitacional, observamos 12 que tiveram, até o momento desta pesquisa, suas residências construídas. Segundo informações coletadas em campo, a situação da condição de moradia apresenta-se muito difícil para alguns assentados. Afirmam que a construtora contratada pelo MST não terminou as obras, deixando muitas casas inacabadas (Foto 13). Fonte: Foto do autor, Foto 13: Casa inacabada no PA Varame I Com a existência de oito casas inacabadas, criou-se uma condição que impossibilita a permanência de alguns no PA, forçando-os a terem que se deslocar de suas antigas casas para o assentamento na tentativa de exercer as atividades na agricultura. Temos um assentado de 62 anos, que é obrigado a se deslocar todos os dias, aproximadamente 1 km, da sua casa no sítio próximo até o PA, a fim de trabalhar no seu lote. O que anula o seu direito a estar próximo do seu trabalho e de construir sua vida a partir do território conquistado.

262 261 Não existe no território deste PA uma área coletiva ou um espaço construído que seja destinado a encontros e reuniões das famílias assentadas. Com a divisão da fazenda Varame em dois assentamentos, as antigas construções, como a casa-sede, casas dos antigos moradores, curral e um galpão para guardar máquinas e equipamentos, uma caixa d água suspensa em alvenaria de cimento, ficaram na parte destinada às famílias que compõem o Varame II. Por isso, os encontros da associação são realizados em algumas casas de assentados. No que tange à energia elétrica, até a chegada do Programa Luz para Todos, o acesso a esse serviço só era possível graças às instalações informais ligadas às antigas casas do imóvel rural. Somente em 2011 é que começaram a fazer as instalações nas casas construídas. Com relação ao abastecimento de água, verificou-se que a maioria tem alguma forma de acesso a este bem. Porém, de maneira bastante diferenciada. Observamos que alguns têm acesso por meio de poço artesiano particular, uma vez que eles mesmos investiram na sua construção; outros por meio do açude comunitário no assentamento que, como o PA Independência, tem uma qualidade da água muito duvidosa. Também, observamos que alguns assentados têm o abastecimento doméstico feito a partir da captação de água da chuva, através de reservatórios comprados. É válido destacar que os assentados que têm acesso aos poços artesianos, conseguiramno a partir de um investimento no seu lote, não tendo recebido crédito específico destinado para este fim. Esses poços permitem o exercício das atividades ligadas à irrigação. Com isso, os assentados que hoje têm acesso a essa forma de abastecimento estão exercendo as atividades agrícolas nos seus lotes de forma mais intensa, se comparado aos outros que não dispõem dessa tecnologia. Verificamos em campo a existência de vários poços, porém, muitos estão secando devido à estiagem prolonganda na região. Como este PA também está dividido por agrovilas e não se encontra com as divisões das parcelas feitas de forma oficial pelo INCRA, a área da casa além de ser um lote para moradia, serve também para o trabalho. Porém, ao contrário do PA Independência, onde nenhum assentado teve recursos próprios e/ou acesso a investimentos para cultivar utilizandose da técnica da irrigação; no Varame I, o seu uso possibilita o cultivo de mais culturas, a citar: macaxeira, jerimum, inhame, batata, fava, cebola, coentro, repolho, pimentão, feijão e milho.

263 262 Por isso, a irrigação possibilita uma nítida diferenciação espacial neste território. Determinando muito a forma de organização do lote e do próprio assentamento, uma vez que a paisagem revela claramente a maior ou a menor capacidade de investimento dos assentados. Há os que praticam as atividades irrigadas e os que não a praticam para a produção agrícola. Os lotes com irrigação apresentam atividades de cultivo e de colheita ocorrendo o ano todo (Foto 14), enquanto que nos que estão sem irrigar, as atividades se concentram nos meses chuvosos no município: março, abril, maio e junho (Foto 15). Fonte: Foto do autor, Foto 14: Paisagem de lote que apresenta cultura irrigada no PA Varame I

264 263 Fonte: Foto do autor, Foto 15: Lote sem cultura alguma, uma vez que o parceleiro não dispõe de condições para fazer irrigação O contexto histórico dos assentados Com relação ao contexto histórico dos assentados do PA Varame I, observamos nas entrevistas que eles são oriundos, notadamente, das zonas rurais do município dos sítios próximos ao assentamento. Como no PA Independência, as famílias do Varame I mantiveram desde cedo relações de trabalho ligadas à agricultura: Sempre trabalhei na agricultura. Nasci e sou fia de agricultor. Me criei trabalhando na agricultura. Sempre nada a gente arrumava e até hoje não tenho quase nada. Mas, sobrevivi esses tempo todim na agricultura, trabalhava, plantava milho, feijão. Só para o consumo da casa mesmo. Que às vezes, era muito pouca. Ralava na vida! Não era tão boa, mas dava pra ir levando (Discurso assentado 6, PA Varame I). Sempre trabalhei na agricultura, desde moleque. Com sete ou oito ano de idade começei a trabalhar com meus pais. Meu pai tinha um sitiozinho. Agora, era pequeno e quando a gente foi crescendo a gente foi tomando um rumo. Sempre trabalhei com agricultura, nunca trabalhei em outra coisa não (Discurso assentado 7, PA Varame I). Eu trabalhava com meu pai na agricultura mesmo (Discurso assentado 8, PA Varame I).

265 264 Minha escola foi a enxada mesmo! (Discurso assentado 9, PA Varame I). Observamos que a situação de subordinação à qual os seus antecedentes familiares achavam-se submetidos foi vivida também pelos assentados do Varame I. Daí palavras/frases/expressões como Sempre trabalhei na agricultura. Nasci e sou fia de agricultor. Me criei trabalhando na agricultura, Sempre trabalhei na agricultura, desde moleque, Eu trabalhava com meu pai na agricultura mesmo, Minha escola foi a enxada mesmo!. A exploração por meio da renda pela terra sempre foi uma realidade presente: Eu trabalhava na terra dos outros, antes daqui. De primeiro se pagava foro. Às vezes a gente pagava o foro. Quando não pagava o foro, a gente tinha que deixar a palha do milho no terreno pros gado do homi. Isso quando não pagava. Quando pagava, não era lá essas coisas, mas pagava (Discurso assentado 6, PA Varame I). Trabalhava na fazenda dos outros. Plantava milho naquela época do inverno. Plantava milho, feijão, fava. E nói deixava o lucro pra o dono da fazenda. Deixava doi saco de milho por hectare. Aí, nói trabalhava por foro mesmo. Nói capinava a terra, cortava e deixava os doi saco de milho. Dava doi saco de milho pra ele. Esse era o foro que nói dava. Isso é o que se chama foro. Nói deixava doi saco pra ele (Discurso assentado 8, PA Varame I). Os processos de arrendamento e trabalho alugado foram uma constante e uma condição imposta. Daí por que havíamos assumido o fato da subordinação histórica do camponês ao capital, através da renda da terra (OLIVEIRA, 2001). Sendo o pagamento do foro a forma de exploração mais comum: De primeiro se pagava foro, nói trabalhava por foro mesmo. [...] Esse era o foro que nói dava. Isso é o que se chama foro. Nói deixava doi saco pra ele. Essas formas de relações na área e nos sujeitos em epígrafe representam o quadro histórico que marcou de forma muito profunda a vida desses camponeses assentados, contribuindo para mantê-los sob processos muito desfavoráveis de trabalho e existência: Não era muito bom não! Porque a gente trabalhava para os outros! (Discurso assentado 6, PA Varame I). Nossa forma de viver era desse jeito. Era trabalhar pra ter as coisa. (Discurso assentado 8, PA Varame I). No tempo que eu trabalhava fora, eu trabalhei muito. Eu tinha que enfrentar. Às vezes chegava de oito hora da noite, dentro da lama, no

266 265 inverno. Cansado de tanta luta. O cara passava o dia lá trabalhando. Às vezes, passava o dia com um punhado de farinha seca com sal. A minha vida era essa. Às vezes, levava os três menino pequeno pra ajudar numa plantação numa coisa [...] eu nunca tive terra não. Sempre trabalhei na terra dos outros. Trabalhei demai! Era arrancando toco, era roçando mato. E dava graças a Deus quando achava um serviço para conseguir o açúcar. Quando não arrumava espiava assim nos quatro canto da parede e só via os meninos chorando. Eu era em fazenda, pelo sul eu saia atrás de trabalho. Eu e muito do meu tipo. Atrás de um dia, de uma semana, de um mei de serviço. E assim ia levando a vida (Discurso assentado 9, PA Varame I). Essa exploração foi tão intensa que quando solicitados a falarem sobre sua atual condição de vida, comparando-a com a dos seus pais, alguns afirmam que, hoje, a sua é melhor do que a deles. E hoje eu tô aqui, trabalhando na terra e morando na terra. Eu acho melhor! As coisa estão melhor agora! [...] Hoje eu tenho o meu terreno. [...] a gente trabalhando no que é da gente, tudo fica em casa. Eu acho melhor! (Discurso assentado 6, PA Varame I). A de agora é melhor! Aqui a gente tem muito mais chance dentro do assentamento. Porque antes eu não tinha terra pra trabalhar. E agora eu tenho muita terra (Discurso assentado 7, PA Varame I). Agora tá melhor, né? Mudou bastante! Agora é mais fácil. Hoje eu tenho terra! Nói estamo aqui nesse terreno. (Discurso assentado 8, PA Varame I) Perfil atual das famílias assentadas Com relação ao perfil atual das famílias assentadas, observamos um processo de forte envelhecimento da população assentada. Entre os chefes familiares, verficamos que a idade supera os 50 anos. No Varame I, assim como ocorre no Independência, há uma ausência dos jovens. Como no outro PA analisado, os principais motivos que causam essas saídas são a união conjugal, o trabalho fora da agricultura e os estudos 212. No âmbito das relações de trabalho, observa-se que a situação de subordinação à qual os assentados e os seus antecedentes familiares estavam submetidos apresenta tendência a 212 Com relação à questão de educação de assentados, Navarro (1998) nos afirma que a geração de jovens assentados que tem acesso À educação não repete a situação de subordinação na qual foram expostos seus pais, através do trabalho alugado ou do arrendamento de terras. Essa é uma geração que pode ter mais acesso a outros serviços e a outras possibilidades de vida, uma vez que seu contato com a educação é maior.

267 266 reduzir-se. Todavia, ainda permanece uma situação que acaba limitando a concretização do acesso a novas oportunidades de trabalho e vida mencionadas no parágrafo anterior. Por isso, é válido destacar que dentro do perfil atual dos assentados a utilização da irrigação para o cultivo conduz a uma forte diferenciação espacial do território do PA Varame I. Uma diferença na organização da produção dentro do lote e uma diferença social entre os assentados. O que observamos em campo é que há, nas parcelas irrigadas uma separação das culturas que são destinadas ao consumo familiar daquelas que irão para o mercado. Ficou evidenciado que, com essa separação, o tamanho das áreas cultivadas também é diferente: as culturas voltadas ao consumo doméstico ocupam menos espaço no lote; ao contrário das destinadas ao mercado, estas estão dispostas na maior parte do espaço do lote. Essa ocupação tem por base a ordem de importância em termos de dividendo para a ampliação da renda familiar. Deixa claro uma preferência por certas culturas de maior pedida do mercado local e regional, como: pimentão, cebola, coentro, repolho e milho (Foto 16). Dentre elas, o milho ocupa grande destaque entre as culturas irrigadas, presente em todos os lotes cultivados, dado que, além de ser destinado ao próprio consumo, também é destinado à venda.

268 267 Fonte: Foto do autor, Foto 16: Paisagem de lote no PA Varame I com plantação irrigada das lavouras de hortaliças e milho, ao fundo 213 Já os assentados que não cultivam com base na irrigação, ocupam pouca área do seu lote. Essa ocupação se dá, como assinalamos, de forma mais efetiva nos períodos de maior trabalho, destacados como a época de chuvas ou o inverno. Nestes, predominam culturas destinadas ao consumo familiar: feijão, milho, macaxeira e batata. Fora desse período, a parcela fica ociosa, aumentando a importância e a dependência desses assentados com relação aos benefícios das aposentadorias e aos programas governamentais de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família. Outro aspecto muito importante, verificado em campo, foi o das relações de trabalho e do sentido da organização da unidade familiar no PA. Observamos claramente uma preocupação com a organização da unidade camponesa. A organização do lote e de suas atividades tem por base atender a demanda do mercado, bem como a satisfação das necessidades de produção e de consumo dos membros do lar. Por isso, a mão de obra predominante na atividade do eito é a doméstica, pois o trabalho da família constitui a base da produção camponesa. 213 Por conta da forte estiagem na região, poucas são as parcelas que ainda mantêm uma forte atividade de irrigação. Por isso, aqui também, estamos trazendo uma foto mais antiga como forma de ilustrar o que afirmamos acima.

269 268 Segundo Oliveira (2001), é com esse tipo de trabalho que o camponês consegue manter sua unidade familiar, tendo como prioridade a produção voltada para o consumo: [...] a presença da força de trabalho familiar é característica básica e fundamental da produção camponesa. É pois derivado dessa característica que abre a possibilidade da combinação muitas vezes articulada de outras relações de trabalho no seio da unidade camponesa. [...] Porém essa complexidade das relações estabelecidas é primeira e fundamentalmente, articulada a partir da família, a partir da hegemonia que o trabalho familiar exerce nessa unidade de produção e consumo (OLIVEIRA, 2001, p. 56). Observamos em campo e nas conversas com alguns assentados, que as famílias que usam a irrigação como atividade principal no seu lote têm pelo menos duas pessoas ocupadas na agricultura: o chefe-familiar e algum outro membro da família a esposa e/ou o filho. Porém, este não é o único tipo empregado, existindo articulação com outras formas de relações de trabalho, tal como a do tipo remunerado. Percebeu-se que muitos assentados utilizam mais de uma pessoa para o trabalho no lote, contratadas para completar as tarefas, exercendo a função de diarista. Os contratados, segundo revelaram os assentados, exercem funções temporárias, necessárias à complementação da atividade agrícola, já que muitas vezes a mão de obra familiar não possui ou promove condições de complementação. Esse trabalho promove uma remuneração básica entre R$50,00 e R$80,00, sendo comum a contratação, em média, de duas pessoas. É importante dizer que com relação a esse tipo de trabalho temporário, percebe-se que alguns assentados omitem sua condição de contratante ou contratado, a exemplo do que ocorreu no PA Independência. Em alguns casos, ocorre certo desconforto ao falar do assunto 214, principalmente, pelo medo que tal fato chegue ao conhecimento do INCRA. Muitos apontam que essa prática não é aceita pela instituição. Porém, as observações em campo nos permitiram confirmar que a venda e compra da força de trabalho são práticas comuns nos dois PA abordados, principalmente, por parte daqueles que conseguem realizar atividades agrícolas no seu lote com base na irrigação 215. Estes, tentando complementar as 214 Segundo Leite (2004), o não interesse em falar do assunto apresenta-se como uma questão comum quando se faz a análise das relações de trabalho e emprego nos assentamentos. Assim, diz o autor: [...] é muito provável que haja uma subdeclaração dos dados de trabalho fora do lote uma vez que, no geral, os assentados ficam temerosos de revelar sua inserção em outros tipos de trabalho, visto que esse procedimento é condenado tanto pelo Incra como pelos agentes de representação e mediação (sindicatos, MST, Igreja) (LEITE, 2004, p. 125). 215 É importante destacar, neste caso, que tal prática de compra de força de trabalho de base temporária também se apresenta nos assentados que não irrigam seus lotes. Porém, essa contratação se dá, principalmente, no período em que as atividades são mais intensas (período chuvoso) e que necessitam de uma mão-de-obra complementar.

270 269 atividades na parcela, contratam mão-de-obra externa à doméstica, inclusive, de assentados que não trabalham com irrigação em seus lotes 216. Há, então, nos dois PA, a permanência de rugosisdades como as que dizem respeito às relações de exploração e subordinação que ainda repercutem nas perspectivas de avanço do processo de inclusão socioterritorial das famílias assentadas. 216 Outro elemento diferente entre o discurso do MST e do INCRA.

271 O PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIOTERRITORIAL DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS: DISCURSOS E TERRITORIALIDADES ATIVAS E PASSIVAS NOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS INDEPENDÊNCIA E VARAME I 6.1 AS TERRITORIALIDADES E OS DISCURSOS ATIVOS NO PERÍODO INICIAL DE FORMAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DOS PROJETOS DE ASSENTAMENTOS A luta pela terra e a difícil tarefa da formação da identidade territorial local Conforme apontamos na seção, Ocupações como forma de acesso à terra: sentidos e desdobramentos na espacialização e territorialização da luta pela terra e pela RA, as ações das famílias assentadas, junto ao MST, na luta pela terra trazem como principal desdobramento a construção de uma experiência socioespacial pautada na ação coletiva. Segundo nos afirma Fernandes (1999), é por meio da mobilização em torno da conquista do território do PA que os camponeses passam por um processo de formação de uma consciência de resistência, a partir da tentativa de superação da vida de exploração anterior. Essas ocupações permitem a abertura para uma nova experiência, por meio de um processo de ressocialização, construindo espaços de interação ou interativo (FERNANDES, 1999). Estes espaços permitem o aprendizado e a conscientização política por parte do camponês, a partir da formação subjetiva e da possibilidade de transformação e construção de um novo destino: O espaço interativo é um contínuo processo de aprendizado. O sentido da interação está nas trocas de experiências, no conhecimento das trajetórias de vida, na conscientização da condição de expropriados e explorados, na construção da identidade sem-terra. O conteúdo das reuniões dos trabalhos de base são a recuperação das histórias de vida associadas ao desenvolvimento da questão agrária. Assim, a vida é experimentada como produtora de interações. Fazem suas análises de conjuntura, das relações de forças políticas, da formação de articulações e alianças para o apoio político e econômico. Desse modo, desenvolvem as condições subjetivas por meio do interesse e da vontade, reconhecendo seus direitos e participando da construção de seus destinos (Ibidem, p. 271). Por isso, a ocupação de terra é um processo socioespacial que tem por objetivo central a conquista do território do PA, tornando-se, nesta fase inicial, um conjunto de ações coletivas que se dá a partir da organização e mobilização de diversas famílias que buscam conquistar

272 271 sua inclusão social: Nesse sentido, a ocupação é um processo socioespacial, é uma ação coletiva, é um investimento sóciopolítico dos trabalhadores na construção da consciência da resistência no processo de exclusão (FERNANDES, 1999, p. 279). Isso faz das ocupações verdadeiros espaços de esperanças (MST, 2010), possibilitando a formação de um território da unidade camponesa (FERNANDES, 1999). Por isso, a organização e formação inicial dos territórios dos PA, a partir das ocupações das fazendas do município de Passira, permitiu as famílias assentadas nos territórios Independência e Varame I a realização de práticas territoriais que tomavam por base a coletividade: No início, as família são unida [...] No período da ocupação era todo mundo unido (Discurso assentado 1, PA Independência) 217. Nos acampamentos, eram mais unida (Discurso assentado 4, PA Independência). Era todo mundo junto, todo mundo batalhava junto (Discurso assentado 3, PA Independência). Tudo se fazia junto (Discurso assentado 6, PA Varame I) O povo queria terra (Discurso assentado 7, PA Varame I). Todo mundo tava indo, tava querendo a terra (Discurso assentado 8, PA Varame I). As frases destacadas acima mostram que a partir da espacialização da luta pela terra, os assentados passaram a construir uma identidade centrada na necessidade de conquista coletiva do território das fazendas ocupadas. Essas ações conjuntas se deram em torno das ocupações e podem ser vistas nas expressões juntos, batalhava, fazia. Ao mesmo tempo, quando destacam a união inicial nessa etapa, observa-se um elo estabelecido de forma mais forte devido ao fato de todos os envolvidos se encontrarem na mesma situação socioespacial e territorial. Eles eram trabalhadores rurais sem-terra e queriam conquistar uma porção do espaço para chamar de seu. Daí se justifica a verbalização em torno de expressões, como: queria terra e querendo a terra. 217 Como se trata de fala dos pesquisados, vamos dar destaque a essas informações verbais, deixando o tamanho da letra fora do padrão normal para texto/citação recuada, como também, recuaremos para margem 4, mesmo se essas citações apresentarem um número de linhas menores do que colocada dentro da normatização da ABNT. Os mesmos serão identificados por números, sendo omitidos seus nomes.

273 272 É nesse sentido que se construiu entre os assentados dos PA Independência e Varame I uma coletividade alimentada e reforçada, tendo por base o pressuposto de disputar e sair vitorioso das ocupações. Essa afirmativa é confirmada por um assentado ao justificar as ações nas ocupações do PA Independência: No começo todo mundo era igual porque a gente não tinha terra (Discurso assentado 1, PA Independência). Esses discursos nos possibilitam afirmar que as ações em torno das ocupações possibilitaram a construção de uma identidade territorial local (GOVERNA, 2005), em que a união de interesses e objetivos tornou-se comum e estabeleceram (inicialmente) uma unidade (DEMATTEIS, 2005). Foi esse processo que, de fato, permitiu fazer dos PA uma construção social (GOVERNA, 2005), a partir da perspectiva de ser o território um espaço para a mobilização e interação do grupo: I territori locali sono quindi costruzioni sociali che derivano dalla mobilitazione dei gruppi, degli interessi e delle istituzioni territoriali, in un processo collettivo in cui le interazioni fra soggetti prendono varie forme: il confronto, la cooperazione, il conflitto (GOVERNA, 2005, p. 54). Nesse sentido, as territorialidades centradas nas práticas de ocupações encabeçadas pelo MST buscavam a construção e efetivação dos territórios dos PA, onde os camponeses tornaram-se sujeitos ativos, fazendo emergir da luta pela terra uma perspectiva de comunità (DEMATTEIS, 2005). Assim, verbalizaram ao serem questionados como se deu a organização incial do Projeto de Assentamento Rural, a partir dessas ocupações: Pra pegar a terra fica tudo unido [...] são tudo unida pra trabalhar [...] são tudo unida pra trabalhar (Discurso assentado 1, PA Independência) 218. [...] quando nós estava tudo ali debaixo da barraca de lona, todo mundo se chamava de companheiro e meu irmão. Era meu irmão e meu companheiro! (Discurso assentado 3, PA Independência). [...] era tudo organizado. Se um queria o outro queria também! Aí deu tudo certo pra fazer o assentamento! (Discurso assentado 6, PA Varame I). Naquele tempo era de mão dada porque era pra ganhar a terra [...] Aqui era meus companheiros (Discurso assentado 6, PA Varame I). 218 Ao verbalizar com relação às atividades e a forma de organização inicial do assentamento, o mesmo assentado além de citar a união entre os companheiros, enfatizou o papel das reuniões iniciais no PA como caminho para a construção dos objetivos comuns: Participei de um bucado de reunião. Estava presente para escutar o que eles tinham o que dizer (Discurso assentado 1, PA Independência).

274 273 Não tivemos problema! Tava tudo unido, tudo preocupado com a terra, focou na terra (Discurso assentado 7, PA Varame I). Quando era pra ganhar a terra, todo mundo era mai junto (Discurso assentado 8, PA Varame I). Toda essa verbalização acima nos permite afirmar que, incentivados pelo discurso do MST, os assentados vislumbravam uma realidade diferente da vivenciada anteriormente. A luta pela terra possibilitou a construção de novas experiências coletivas e afirmou uma capacidade de união e de convergência de objetivos nesse período. Por isso, há uma ligação de ações nesses discursos entre as palavras união, juntos, de mão dada com a palavra terra. Uma vez que essa ligação está dentro da dinâmica de construção e apropriação simbólica dos territórios dos PA. O que unia os assentados era a possibilidade real de conquistar um território de vida e de trabalho. Ao mesmo tempo, a expressão companheiro sintetiza bem o fato de serem os territórios dos assentamentos Independência e Varame I espaços que apresentavam forte interação entre os sujeitos, permitindo o riferimento identitario ai luoghi (GOVERNA, 2005, p. 54). Ou seja, uma identidade pautada na imagem de um sujeito que passa de sem-terra à com-terra, a partir do trabalho em conjunto. Porém, é necessário enfatizar desde já, que, mesmo com a identificação desses discursos ativos pautados em ações coletivas e de identidade territorial local, já observamos um processo de desunião entre os assentados, principalmente, após a conquista do território. Isso a partir da construção e da existência de discursos passivos que impossibilita avanços no processo de inclusão socioterritorial das famílias nos territórios dos PA. Ou seja, discurso dos assentados que não apresentam mais um caráter de busca conjunta por transformações e novas conquistas nos territórios dos PA. Antes, entre os mesmos observamos ações de cunho individual e pouco interesse no assentamento como um todo. Assim, verbalizam: Mas, você sabe que era unida e que existe desunião aqui. Existe desunião, como toda família tem desunião [...] A mesma coisa é com os assentados aqui (Discurso assentado 1, PA Independência). [...] pra fazer a agrovila aqui foi medido, um pedacinho e cada cá com o seu. E cada um foi cuidar de ajeitar as suas casas. Aqui, pra ser sincero é difícil ter alguém unido. Aqui não tem ninguém unido não! (Discurso assentado 2, PA Independência) No período do acampamento! Muito, muito, muito mai! Hoje é mai individual! União aqui é muito pouca! (Discurso assentado 3, PA Independência).

275 274 Quando era no tempo dos acampamento, sempre existia mai união. Hoje, depois de assentado, o agricultor vai pra sua terra e fica recolhido. (Discurso assentado 5, PA Independência). Cada um quer cuidar do que é seu. Não dá mais a mão pra ajudar no que é dos outro. [...] Hoje não se chama meu companheiro de luta mais não. (Discurso assentado 6, PA Varame I). No começo, era tudo unida! Depois, o INCRA dividiu a terra e colocou a gente pra dentro. E fomos trabalhar e estamo aqui hoje. (Discurso assentado 7, PA Varame I). Hoje, a gente tá no que é seu e pronto. Nói respeita todo ele e nói tamo indo. Quando era pra ganhar a terra, todo mundo era mai junto (Discurso assentado 8, PA Varame I). Cada um agora tá preocupado com a sua [parcela] (Discurso assentado 9, PA Varame I). As palavras/frases/expressões destacadas mostram bem o fato de que, logo após a conquista da terra e a efetivação de uma parcela (ou porção do território) para a moradia e trabalho das famílias, houve um processo de individualização crescente. Daí por que nos discursos repete-se a concepção de desunião logo no estágio inicial da luta pela terra. Também, nesses discursos, encontra-se presente um forte descrédito com relação à concepção de serem os assentamentos territórios coletivos. Agora, fundamenta-se uma perspectiva de ser a parcela de trabalho e moradia a porção do espaço no qual se deve haver o esforço de cada uma das famílias. Daí por que encontramos nos discursos algumas referências ao cuidar do que é seu, ficar recolhido, fomos trabalhar, preocupado com a sua [parcela]. A mobilização inicial que deu sustentabilidade a construção e existência dos territórios dos PA deu lugar a ações com forte preocupação com a manutenção da unidade familiar, quebrando as concepções construídas na luta pela terra. Após a conquista dos PA, as ações em conjunto não se fizeram do mesmo jeito ou com a mesma intensidade. Assim, afirma um assentado em outro momento: Na hora que pegaram as terra, mudou totalmente meu amigo. Totalmente mudou! (Discurso assentado 3, PA Independência). Por isso, ao chamar a atenção para a necessidade da interpretação dos movimentos sociais como movimentos socioespaciais e socioterritoriais, Fernandes (1999) argumentou que suas ações têm o espaço como uma meta, um trunfo, ou seja, têm nele a base para a sua atuação. Nesse sentido, a condição de movimento socioespacial do MST justifica-se pelo fato de usar o espaço como um meio da sua existência, através das ocupações e dos

276 275 acampamentos. Tendo nos assentamentos o caminho de territorialização do camponês. Ao mesmo tempo, é a partir da conquista da terra e de ações coletivas voltadas ao controle desses territórios, que os camponeses começam a agir no sentido de participarem da sociedade como cidadãos de fato. Nessa perspectiva, recuperar os discursos das famílias assentadas em torno da espacialização e territorialização da luta pela terra é uma forma de compreender como ocorreu a participação na construção do território do PA Independência, como também, o papel desempenhado nessa etapa importante do processo inicial de inclusão sociterritorial. Nessa perspectiva, é válido destacar que as dificuldades de formação de uma identidade nos PA se dá pela forte individualização que se estabelece entre os assentados, fruto, ao nosso ver, da forte exploração e subordinação sofrida a vários anos antes da conquista dos territórios dos assentamentos Territorialidades e discursos na conquista do território do PA Independência A ocupação definitiva da Fazenda Independência, com a entrada de vinte e nove famílias no que hoje constitui o Projeto de Assentamento Independência ou Patativa do Assaré, ocorreu em 16 de dezembro de Para a conquista do território do PA e sua existência material, houve uma condição de persistência e mobilização de mais de 60 famílias, junto ao MST. Isso porque as primeiras ocupações aconteceram nos anos de 2003 e 2004, com ações (algumas, mal sucedidas) nas Fazendas São Vicente, Varame e na Fazenda Mauricéia, localizadas nas áreas rurais do município 219. Como relatam alguns assentados em seus discursos: Ocupei muitas fazendas! (Discurso assentado 1, PA Independência). Rapaz, a primeira vez que a gente entrou, a gente ficou ali na beira da pista pra entrar em [Fazenda] São Vicente. Aí viemo praqui, ocupar essa [Fazenda Independência]. Viemo ocupar essa aqui. E batemo, batemo e entremo aqui. Daqui foi um bucado pra [Fazenda] Varame e outro ficou aqui (Discurso assentado 2, PA Independência). 219 Segundo informações levantadas junto à CPT, não houve nenhuma ocupação efetuado na Fazenda São Vicente. Porém, como essas ocupações sucedem-se com uma velocidade muito intensa, muitos dados podem não ser computados na mesma intensidade.

277 276 Ocupemo lá [Fazenda São Vicente]. Teve dois despejo lá [Fazenda São Vicente]. Ocupemo [Fazenda] Varame. Não teve despejo. Ocupemo aqui [Fazenda Independência]. Teve doi despejo. E fiquemo insistindo (Discurso assentado 3, PA Independência). Eu entrei no primeiro dia. Primeiro foi na pista aqui [PE-90]. Depois fumo pra [Fazenda] São Vicente. Depois de São Vicente, fumo pra [Fazenda] Lagoa de Pedra, lá em Lagoa Rasa. Depois, viemo praqui e aqui entramo dua ou foi trei vezes (Discurso assentado 4, PA Independência). Já ocupei muita fazenda! Aqui em Passira todas elas foi ocupada por a gente. Sempre o mesmo grupo de família (Discurso assentado 5, PA Independência). As palavras/frases/expressões como Ocupei muitas fazendas, ocupar essa, Ocupemo lá, Ocupemo, Ocupemo aqui, Já ocupei muita fazenda! destacadas acima mostram o que geralmente acontece com relação à espacialização da luta pela terra: ações de ocupação de famílias de camponeses sem-terra em fazendas improdutivas no município. Daí como acontece em vários espaços rurais no país, as famílias camponesas que lutam em torno de movimentos sociais sofrem de duas a três ordens de despejo ao tentarem entrar no território dominado pelo latifúndio 220 : Teve doi despejo, Teve dois despejo lá. Processo que se deu com uma tendência de ocupações, despejos e reocupações, estabelecendo, com isso, uma sucessão de vitórias e derrotas (Figura 3). Trabalho de base do movimento Reunião e cadastro das famílias nas pontas de rua Início das ocupações e acampamentos Ocupação da Faz. São Vicente Despejo Ocupação na Fazenda Mauricéia Ocupação da Faz. Independência Despejo Acampamento na Faz. Independência Figura 3: Movimento de ocupações e acampamentos dos camponeses atualmente assentados no PA Independência. Elaborado pelo autor, após pesquisa de campo. 220 Com relação às ordens de despejo, não há um consenso entre as famílias assentadas. Entende-se que esse problema é fruto da não participação de todas as famílias nas várias ocupações existentes na região. Algumas entraram no movimento após certas ocupações ocorridas. Percebe-se aqui imprecisão com relação também a essas informações.

278 277 Para as famílias hoje assentadas, essa experiência foi marcada por grandes dificuldades, devido a vários problemas vivenciados, tais como: fome, insegurança, incertezas e falta de recursos para permanecerem na terra. Assim, afirma um assentado: Já passamo dificuldade, passsamo muito tempo debaixo da lona preta, dormindo mal dormido, comendo mal comido, sendo perseguido por pistoleiro do fazendeiro. A gente passamo por toda essa dificuldade. (Discurso assentado 1, PA Independência). Os despejos foram recorrentes e percebidos como pontos negativos para alguns participantes, devido ao constrangimento e à impossibilidade de permanecerem na terra para trabalhar e viver com suas famílias: Teve! Tivemos aqui doi despejo! A polícia tirou noi daqui e depoi butou noi aqui! (Discurso assentado 1, PA Independência). Fumu pra lá, de lá bateu, bateu, bateu e teve o despejo (Discurso assentado 2, PA Independência). Com efeito, apesar da causa ser justa a luta por terra de trabalho as famílias tiveram que ter muita perseverança e coragem, pois a violência contra os ocupantes e acampados foi muito grande. A ação de pistoleiros marcou os primeiros momentos das ocupações. Inclusive nas ações que se estebeleceram em torno da Fazenda Independência, criando momentos tensos de confronto entre as famílias e os tidos seguranças da fazenda: Aí teve bala ali nos tanque. O gerente daqui atirou. Lá [Fazenda São Vicente] teve bala. Atiraram em Reginaldo [dirigente do MST na região]. E quando chegou aqui, o gerente atirou em Lui Afonso lá no tanque [...] Deram um tiro aqui em baixo, só via o povo ali do lado de lá dentro da palma veia (Discurso assentado 2, PA Independência). Daí concordarmos com Feliciano (2006), quando afirma que o ato de querer participar de ocupações está fortemente ligado ao medo e a insegurança dos indivíduos: [...] uma ocupação está ligada, em nosso entendimento, ao sentimento de medo. O medo de ficar e/ou de ir. O medo de não dar certo de ser estigmatizado, de ocorrerem atos violentos, de não estar preparado, e o medo de ficar nas condições precárias em que se encontra (FELICIANO, 2006, p. 104). Perigo e medo relatado por alguns assentados: Mai era perigoso, enfrentemo muito pistoleiro pra puder conseguir isso aqui! Muitos tinham coragem de enfrentar, agora muitos desistiram com medo! E eu não desisti não! A minha mulé falava: É muito perigoso, tem pistoleiro! e eu dizia: A gente um dia vai

279 278 morrer mesmo, mai morrer de medo eu não morro não!. Aí eu enfrentei e ganhei a terra! E no tempo fui procurado por pistoleiro (Discurso assentado 1, PA Independência). [...] um bucado desistiu [...] Era perigoso! Não era muito bom não, era muito perigoso! Num lugar que sai bala não é fácil não [...] eu cheguei a pensar em desistir! Eu cheguei a pensar! Quando eu vi o povo levar tiro. Eu pensei em desistir! (Discurso assentado 2, PA Independência). O resto tudinho abriu! Criaram medo! Teve um tiroteio lá. Foi baleado gente! Teve um tiroteio aqui, foi baleado gente! Aí ficaram com medo e se afastaram! Aí a gente continuou! (Discurso assentado 3, PA Independência). É válido destacar as ações violentas desencadeadas pela força policial: Mas muitas vezes eu tinha até medo da polícia quando ela chegava lá pra butar a gente pra correr. Eu tava em São Vicente e chegou mais ou meno umas oitenta polícia. Cada negão, cada cachorrão deste tamanho! Levei uma pancada que quase que perdia o sangue todinho. A bala cobria, o fogo cobria e a gente lá (Discurso préteste assentado 2, PA Independência). Segundo os assentados, foram mais de 60 famílias participantes dos processos de ocupações, porém, somente as vinte e nove permaneceram acampadas na Fazenda Independência, informações que coincidem com os dados do CPT e do INCRA. Todas participaram das ocupações e dos acampamentos desta fazenda. A própria condição habitacional refletia a vida muito difícil. Os primeiros barracos do acampamento eram as tradicionais lonas pretas próprias das ocupações do MST: Sempre nói começa dentro de um acampamento, debaixo de uma lona preta [...] (Discurso assentado 4, PA Independência). Ali não fazia nada para não ir preso! Era esperar a feira do MST com feijão, arroz e farinha e ficar debaixo da lona preta! (Discurso assentado 3, PA Independência). Com a ocupação e formação de fato do acampamento na fazenda Independência, os barracos passaram a ser feitos de barro, com pedaços de madeira e telhados velhos, chamados de casa de taipa, não mudando muito as dificuldades e precariedade quanto à condição de vida no acampamento. Nesse período, as famílias estavam organizadas em três grupos: dois grupos de dez famílias e um de nove, que dividiam as tarefas durante a semana. Cada grupo era responsável

280 279 por uma determinada atividade (limpeza, organização das famílias, vigília, entre outras atividades). A vigília era, no início, a atividade mais importante e que requeria mais atenção dos acampados. Durante todas as noites ficavam, pelo menos, cinco pessoas responsáveis pela vigília do espaço, numa tentativa de manter a segurança, evitando qualquer possibilidade de ação por parte de pessoas contrárias ao movimento. Essa organização inicial foi muito importante, permitindo a formação de uma consciência em torno da luta pela terra, uma vez que as ocupações e os acampamentos desencadearam um processo de socialização política (FERNANDES, 1999), numa perspetiva de formação de uma coletividade: Aqui, quando nós estava tudo ali debaixo da barraca de lona, todo mundo se chamava de companheiro e meu irmão. Era meu irmão e meu companheiro! (Discurso assentado 3, PA Independência). Estes foram os espaços da solidariedade, do entrosamento, ao mesmo tempo em que, foram construindo uma identidade social pautada no companheirismo. Daí, a expressão companheiro representava um estágio em que todos se identificavam como iguais, reconhecendo no outro a condição de sujeito que foi explorado e que poderia mudar a sua condição de vida atuando em conjunto e com bastante determinação na busca de um futuro territorial diferente. Dessa maneira, as ocupações e os acampamentos representaram espaços de socialização ao permitirem entre os indivíduos conhecer e aprender várias dimensões da luta pela terra, a partir das primeiras vitórias e derrotas: A gente passou por situação difici! Quem entra aqui nos sem-terra sabe. Agora, quem fica fora não sabe das dificuldade, só quem sabe é quem vevi dentro do movimento (Discurso assentado 1, PA Independência). Ao mesmo tempo, esse foi o momento em que os indivíduos construíriam um espaço de resistência e de luta, mas, também, mostram-se ao público. Assim, confirma Feliciano (2006): Ocupando, é dessa forma, os trabalhadores sem-terra vêm a público, dimensionam o espaço de socialização política, intervindo na realidade, construindo o espaço de lutas e resistência, quando ocupam a terra ou acampando nas margens das rodovias (FELICIANO, 2006, p. 271).

281 280 Por isso, as ocupações e a formação dos acampamentos desencadeados pelas famílias em Passira, principalmente, na Fazenda Independência, em razão da sua proximidade com o centro urbano, causaram impactos socioterritoriais no âmbito da vida política local. Impactos ligados a posicionamento e opiniões a favor ou contra as ações por parte da população do entorno. No período, criou-se um ambiente de hostilidade com relação aos habitantes locais. Boa parte da população que morava próximo à fazenda discriminava as famílias acampadas, taxando-as de ladrões, vagabundos e invasores 221. Demonstrava repúdio e descrédito com relação às ações do MST. Sobre o assunto, afirma um assentado: Como é meu amigo que lutei, sofri, passei fome, levei nome de ladrão, levei nome de cabra safado, levei nome de mundiça pra conseguir isso aqui (Discurso assentado 3, PA Independência). [...] enfrentando sol e chuva, numa BR, e não vem ninguém pelo meno pra dá uma força a gente (Discurso assentado 4, PA Independência). Pautados nesses discursos, observamos a importância da organização e da mobilização social do grupo de indivíduos que se encontravam precariamente incluídos na sociedade, na medida em que as famílias passaram por novas experiências de ressocialização e de inclusão, a partir da atuação, junto ao MST. Por isso, como resultado das ocupações, a conquista do assentamento representou a persistência e a materialização da luta pela terra, como também uma ruptura com a vida anterior, o que permitiu passar da condição de expropriados pela renda da terra e sem-terra à de proprietários de terra (conforme abordaremos na seção O sujeito assentado, território e os novos discursos). Nessa perspectiva, é importante destacar que o trabalho de base do MST como um conjunto de ações que permitiu o contato das famílias camponesas com a sua realidade de expropriado, apresentando novos caminhos de mudança, como também o próprio movimento. Nesse sentido, após serem questionados com relação à conquista do território do PA, os assentados mostram um consenso, uma unanimidade, em afirmar que não haveria conquista da terra sem a mediação do movimento. Ficando clara a posição de que sem a ajuda do 221 Levanta-se a hipótese de que essas ações discriminatórias da população do entorno estão ligadas ao próprio contexto sociocultural da região. Ou seja, a forte herança do coronelismo e do clientelismo na área pode ter influência na mentalidade e no discurso contrários às ações dos camponeses junto aos movimentos sociais.

282 281 movimento não haveria terra 222 : Não! De jeito nenhum! Sem o movimento, não! (Discurso assentado 2, PA Independência). Por isso, o processo de formação e de realização das ocupações passa (e no caso específico de análise, passou) inicialmente pela formação do espaço comunicativo (FERNANDES, 1999). Esse espaço se forma a partir do trabalho de base do movimento, num processo que se estabelece nas comunidades locais e/ou nas periferias das cidades. O que permite a construção de experiências, a troca de informações dos indivíduos nos seus locais de vida e o contato do camponês com o movimento e com a luta mediada por este: A espacialidade é um processo contínuo de uma ação na realidade, é o dimensionamento do significado de uma ação. Desse modo, as pessoas do próprio lugar iniciam o trabalho de base porque ouviram falar, viram ou leram sobre ocupações de terra, ou seja, tomaram conhecimento por diferentes meios: falado, escrito, televisivo etc. E assim iniciam a luta pela terra construindo suas experiências (FERNANDES, 1999, p. 271). Para tal, um assentado destaca claramente como ocorreu o contato dele com o movimento e de que forma o MST o abordou e começou a atuação junto aos camponeses do PA Independência: Eu conheci o movimento assim: o primeiro acampamento daqui foi feito ali na beira da estrada na fazenda de Carlinho. Nessa época, eu morava em Pedra Tapada. Tinha uma barraquinha em Pedra Tapada, e trabalhava na fazenda São Vicente. Butei um roçado lá, em Um roçado muito bom. Três hectare de terra. E numa tardizinha vejo vindo dois cara numa moto. E eu fiquei assustado. Eu já fui adminstrador de fazenda e administrador de fazenda tem os seus porquê. E chegaram doi cidadão [citou os nomes]. E chegaram lá e começou a fazer umas pergunta comigo. Tudo bem. Eu sabia que a fazenda lá tava processada no INCRA desde (19)70. Ai eu fui e contei a eles. E eu contei dessa (Independência) também. Essa tava processada porque o dono queria se desfazer dela. Que o dono daqui foi o dono de (da Fazenda) Engenho Pinto que é assentamento também. Aí, eu contei essas história a esses doi cara. E esses doi cara foi embora e quando foi com quatro dia chegaram lá em casa. Pra fazer um levantamento de quem queria ser um assentado. Aí foram vinte e poucas pessoas lá de Pedra Tapada. Butaram meu nome (Discurso assentado 3, PA Independência). Esse trabalho de aproximação de dirigentes do movimento junto aos camponeses locais e da troca de informações, possibilitando o engajamento de muitas famílias no MST, 222 Retomaremos e abordaremos esse aspecto na seção O não protagonismo nos territórios dos PA. Nessa seção, mostraremos que há por parte dos assentados uma incompreensão com relação ao papel do MST como protagonista na construção dos territórios do PA. As famílias assentadas não se veem como protagonista, apresentando uma visão limitada da realidade e da luta pela terra e pela RA.

283 282 desencadeou as ocupações realizadas nas fazendas do município. Ações que duraram alguns anos: Foi de 2003 a Três ano! (Discurso assentado 1, PA Independência); e permitiram o contato dos camponeses de Passira com indivíduos de outros municípios que já vivenciavam a luta pela terra. Fato que observamos no discurso de um assentado, quando este afirma ter conhecido o movimento através de dirigentes que atuavam no município de Caruaru e que passaram a ter ações nas fazendas locais: Através de Caruaru (dos representantes do movimento com sede em Caruaru) que convidou eu pra entrar, aí eu disse: eu vou entrar (Discurso assentado 4, PA Independência). Outro fator preponderante e que permitiu a participação das famílias de camponeses do PA Independência, junto ao MST, foi a falta de oportunidades de trabalho na cidade e a busca (ou o sonho) de ter um pedaço de terra para trabalhar. Esses aspectos tornaram os indivíduos mais sensíveis à participação nas ocupações dos acampamentos, justificando suas escolhas de ter visto no MST o movimento em que eles poderiam acreditar: Na época eu tinha um pequeno comércio ali na rua, aí chegou um colega meu e perguntou: Rapaz a gente tamo aí no movimento semterra e chamo tu pra mode tu participar do movimento também. Aí vai sair terra, sai projeto e é bom! Aí eu disse: Meu amigo, eu vou. Bora ver o que é que dá! (Discurso assentado 1, PA Independência). Ele (dirigente) chegou fazendo reunião, dizendo que ia ocupar a fazenda, que ia assentar um bucado de gente. Se não desse pra assentar nessa fazenda ia pra outra fazenda. Ia ter um pedacinho de terra pra trabalhar. Aí eu entrei! (Discurso definitivo assentado 2, PA Independência). Inclusive, esse contato inicial permitiu que muitos camponeses conhecessem, de fato, quem é o movimento sem-terra: Eu não sabia nem o que era esse movimento. Eu nunca havia ouvido falar em Sem-Terra. Aí ele (dirigente) disse: Vamos rapaz, depois que você estiver lá, você passa a ter conhecimento!. (Discurso assentado 4, PA Independência). Abriu-se a oportunidade de colocar na vida dessas famílias um conjunto de palavras que compõe até hoje o seu cotidiano: luta pela terra, ocupações, acampamentos, assentamento, reforma agrária. Assim, confirma um assentado em dois momentos em seu discurso:

284 283 E o movimento (MST) convidou a gente pra ir para uma terra. Sempre falando em Reforma Agrária. Aí, a gente fez um grupo de família, ajuntemo o grupo, e ocupamos as terra] [...] A gente faz acampamento em estrada, a gente faz acampamento dentro das fazenda já pra lutar e vê se existe reforma agrária do jeito que eles fala (Discurso assentado 4, PA Independência). Por isso, a partir da espacialização e territorialização da luta pela terra, observamos nas análises uma série de discursos ativos das famílias assentadas no PA Independência, principalmente, por verem nessas ações uma possibilidade concreta de transformação da realidade vivida anteriomente. Nesse aspecto, concordamos com Fernandes (2000), quando afirma que, por meio das ocupações, o camponês sem-terra pode chegar mais perto da realização de seu sonho: ter um pedaço de terra. O que permite a busca por novas formas de resistência e de alcance da cidadania e da inclusão social. Assim, afirma Fernandes (2000): A ocupação é uma realidade determinadora, é o espaço/tempo que estabelece uma cisão entre o latifúndio e assentamento e entre o passado e o futuro. Nesse sentido, para os sem-terra a ocupação, como espaço da luta e resistência, representa fronteira entre o sonho e a realidade, que é construída no enfrentamento cotidiano com os latifundiários e o Estado (FERNANDES, 2000, p. 19). Assim, a participação nas ocupações possibilitou o acesso real à terra para trabalho: Eu decidi porque eu tinha vontade de pegar um pedaço de terra pra trabalhar, de ser agricultor! Aí eu decidi! (Discurso assentado 1, PA Independência). Tinha que ir atrás de um pedaço de terra para trabalhar. Eu queria um pedacinho de terra pra trabalhar (Discurso assentado 2, PA Independência). [...] eu queria terra! Meu prazer era ter terra pra criar! Meu prazer era esse! E hoje eu vivo aqui dentro! (Discurso assentado 4, PA Independência). Sendo esta a única alternativa e saída para o camponês: Porque era pobre e não tinha outra alternativa (Discurso assentado 2, PA Independência). Dessa maneira, a construção do que venha a ser o território do assentamento Independência é também resultado das ações, do aprendizado e da assimilação dessa etapa. Nessa fase, iniciou-se a busca pela cidadania e melhores condições de vida por meio do trabalho no território conquistado:

285 284 Porque só quem tem as coisas é quem trabalha e luta! A luta e o trabalho é quem faz a frente! (Discurso assentado 1, PA Independência). Daí por que muitos verbalizam e lembram das dificuldades vividas nesse período: Sofri muito pra chegar até aqui! [...] Pra voltar o que era, Deus me livre! Porque eu queria terra! Meu prazer era ter terra pra criar! Meu prazer era esse! E hoje eu vivo aqui dentro! (Discurso assentado 4, PA Independência). A luta foi grande! Pra gente chegar a dizer que hoje é um assentado a gente sofreu muito! (Discurso assentado 4, PA Independência). Porém, mesmo diante de tantas dificuldades, desistir e abandonar as ocupações eram as condições descartadas por muitos. Desistir era perder a oportunidade de ter terra: Várias gente desistiu! Agora, eu mesmo não desisti não! Porque eu butei na minha cabeça que eu topava tudo (pela terra)! Mesmo com pistoleiro! Eu topava tudo! Porque quem desistiu não ganhou! (Discurso assentado 1, PA Independência). Eu só não desisti porque queria uma terra! Eu queria um pedaço de terra pra trabalhar! Bateu, bateu, bateu, até que noi ganhamo a terra [...] Voltar o que era? Difícil! (Discurso assentado 4, PA Independência). Cabe agora, analisar como se deu o processo de luta pela terra no PA Varame I Territorialidades e discursos na conquista do território do PA Varame I As ações de ocupação da Fazenda Varame ocorreram no período de 2004, envolvendo cerca de 160 famílias de camponeses da área rural de Passira. Porém, antes de descrevermos, a partir dos discursos das famílias assentadas, o processo de espacialização e territorialização da luta pela terra no PA Varame I, é importante afirmar que o assentamento é fruto de um embate não só do camponês e do latifundiário, mas também de dois movimentos sociais que reivindicavam a posse das terras da fazenda: o MST e OLC. Após a participação das ocupações e o despejo ocorrido na Fazenda São Vicente, junto às famílias do PA Independência, os camponeses sem-terra ocuparam e montaram acampamento na Fazenda Varame. No mesmo período, famílias ligadas ao movimento do

286 285 OLC ocupavam uma área de um sítio, pertencente à Prefeitura Municipal, onde funcionava um pequeno grupo escolar para crianças. Logo após a chegada e a formação do acampamento na Fazenda Varame, esta passou a ser disputada pelos dois movimentos socioterritoriais e dividida entre as famílias (Figura 4). Trabalho de base do movimento Reunião e cadastro das famílias nas casas dos sítios Início das ocupações e acampamentos Ocupação da Faz. São Vicente Despejo Ocupação na Fazenda Varame Acampamento na Faz. Varame Conflito entre as famílias dos dois movimentos Divisão da Fazenda Varame em dois PA: Varame I e II Figura 4: Movimento de ocupações e acampamentos dos camponeses atualmente assentados no PA Varame I. Elaborado pelo autor, após pesquisa de campo. É importante destacar que esses conflitos em torno dos movimentos socioterritoriais não é algo exclusivo dos casos aqui estudados. Segundo mostra-nos Lima (2006), há várias dissidências entre os movimentos socioterritoriais, acarretando a separação entre eles mesmos nos seus níveis mais abrangentes. Na maioria das vezes, esse processo constitui uma ruptura ideológica entre os dirigentes dos movimentos, o que ocasiona diminuição em termos da articulação entre os mesmos, levantando-se com isso um maior grau de conflito. Assim, afirma Pedon, citando Lima (2006): No campo, o grande número de movimentos demonstra a intensidade do processo de dissidência e a ausência de uma tendência à formação de movimentos articulatórios. Sobre o processo de dissidências no âmbito dos movimentos socioterritoriais rurais, Lima (2006) aponta que, tal processo se dá por um rompimento político-ideológico de suas agendas e até mesmo por conflitos gerados no interior dos movimentos. Como pontos de conflitos, o autor aponta as negociações corruptas com fazendeiros, sonegação de informações e de prestação de contas para o grupo de trabalhadores acampados, promessas em discursos cansativos nas reuniões, entre outros (Lima, 2006 apud Pedon, 2009, p. 209). Diante da situação colocada pelos movimentos em epígrafe, o INCRA atuou no sentido de resolver a solução do conflito, dividindo a Fazenda segundo a forma que já existia, a partir da PE-78 (Foto 17). Assim, formaram-se dois PA: Varame I e Varame II, o primeiro para as famílias ligadas ao MST e o segundo para aquelas ligadas ao OLC. A ocupação definitiva da Fazenda Varame, através da implantação dos dois PA, deu-se em e , respectivamente.

287 286 assentados: Fonte: Foto do autor, Foto 17: PE 78 dividindo a Fazenda Varame e os PA Varame I e II Quando solicitados a falarem como ocorreram as ocupações, assim verbalizam os A gente não ocupamo muita fazenda! A gente ocupou essa mesmo que a gente ganhou! Foi sete ano! [...] Um bocado de tempo! [risos] A gente passou sete ano aqui acampado do outro lado da estrada. A gente passou sete ano acampado (Discurso assentado 6, PA Varame I). Rapaz, a ocupação é sofrido! O cara invadir uma fazenda tem que ter muita coragem! [...] Rapaz, a gente passou muito tempo. (Discurso assentado 7, PA Varame I). Passemo mais o meno uns sete ano [...] Meu pai participava das ocupações e eu fui também. Era muita família que participava. Tinha bastante gente! (Discurso assentado 8, PA Varame I). Ave Maria! Passamo sete ano na luta. Eu e um bucado de amigo. Era perigoso, mei mundo de policial! [...] Passei sete ano ali sofrendo. Debaixo da lona. Era dormindo pelo chão, dormindo em barraco, comendo mal comido, dormindo com fome, vendo a hora de levar um desacerto. Saía com os companheiro e nem imaginava chegar com vida (Discurso assentado 9, PA Varame I).

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