De repente um homem viu-se no meio de um campo verde, deserto, sem nada nem ninguém no horizonte, além do céu azul que se encontrava com o solo.

Transcrição

1 O Nada Rafael Bezerra Simão O NADA De repente um homem viu-se no meio de um campo verde, deserto, sem nada nem ninguém no horizonte, além do céu azul que se encontrava com o solo. - Morri! pensou o homem, entrando em desespero. Mas eis que ele ouve uma voz grave que se lhe dirige: - Não, João, tu vives; toca em ti. João tocou-se, constatando que ainda era de carne e osso. - Sim, vivo! Mas onde estou? - Estás no meio do nada. - Como no meio do nada? E quem é você? - Eu? Eu sou Ninguém, ou o Nada, criador de tudo e de todos, inclusive de ti. - Deus?! Você é Deus? Ó Senhor, me perdoe pela arrogância! suplicou João. - Acalma-te, homem. Não te preocupes com as tuas falhas, pois há homens que cometem 1

2 atos muito piores e digo-te, com toda a certeza, que nenhum deles escapará de sumir. - Sumir? Como assim? - Faço sumir todos os maus. - Todos os maus? - Sim. Os maus não se renovam. - Se renovam para quê? - Para voltar à vida, na terra. - Reencarnação? - Não; prefiro dar-lhe o nome de renascimento. - E a vida eterna? - É para quem quer, e não uma questão de mérito. - Não entendo. - Então vou explicar-te como concebi a vida e morte. Primeiro fiz algumas pessoas e deixei que crescessem e se multiplicassem. Quando começaram a morrer, dei uma escolha a elas, ou melhor, duas: ou ficavam para sempre comigo ou poderiam voltar, começando do zero, sem a consciência que chegam a mim. Compreendes tudo o que digo? - Acho que sim. Prossiga. - Se a pessoa foi boa na primeira vida e quiser voltar e continuar boa, quando morrer pela segunda vez não retorna mais para a terra; mas se a pessoa insistir em voltar, volta, porém 2

3 se for má será exterminada, não terá apelação. Portanto, recomendo sempre aos bons que permaneçam comigo, porque se se corromperem na segunda podem sumir. - E os homens maus? - Os maus têm a oportunidade de se regenerar, mas se não o quiserem, serão exterminados. - E o inferno? - Não existe o inferno propriamente dito, como reza a tradição judaico-cristã ou como descreve Dante Alighieri. - Quem foi esse Dante? Oh, santa ignorância, pensou o Nada. - O maior poeta italiano. Já leste algum livro na tua vida? perguntou o Nada, sabendo que João não tinha a prática da leitura. - Sim,muitos, mas isto não vem ao caso. Me diga: é ou não Deus? - Filhinho, não há Deus: só há o nada, ou seja, eu. - Mas é você um deus? - Entendas-me como quiser, mas digo-te que nada sou senão o Nada. - Complicado. Por que existe você? - Porque tu precisavas existir. 3

4 - Quem criou você? - Fiz-me. João esperou mais palavra do Nada, mas outras palavras não foram ditas. - Como assim? - É um mistério, da mesma forma como acreditas no Deus. - Você criou tudo? - Do homem ao micróbio. - Por que o mundo é tão turbulento? - Culpa vossa. - Dos homens? - Somente. - Então por que quando chegam aqui você faz sumir quem foi mal? - Por que quando saem daqui eles levam nas profundezas da mente a bondade; mas como eles têm livre arbítrio corrompem-se, o que não chega a ser demasiadamente ruim, mas tudo depende da corrupção de cada um. - Você castiga os homens quando eles cometem atos ruins na terra? - Não: o homem se castiga e os homens se castigam. 4

5 - E o demônio? - Folclore. Nada além disso. - E toda a maldade que temos na terra? - Em verdade te digo, meu caro João: o homem é o demônio do homem. - E os espíritos que atuam na terra, que vagueiam por lá praticando tudo o que não presta? - Os espíritos existem, mas só aqui comigo: eles não têm passagem para a terra. - E os espíritos que as pessoas veêm? - Projeção da mente. Entende, meu caro, João que tudo está na mente, todas as forças, sentimentos etc. estão concentrados na vossa cabeça: ela governa o mundo. A psiquiatria, psicanálise, psicologia, essas ciências que os homens estabelecem e tentam superar-me e só me fazem rir, essas ciências explicam os espíritos que se vêem. - E quando um objeto se move? - A mente, João, a mente. Esta conversa, que mais pareceu um interrogatório, teve um silêncio súbito, para que João refletisse sobre ela, sobretudo refletisse acerca das palavras do Nada. Estavam andando e confabulando, quando pararam bruscamente, João refletiu por minuto e meio, contemplou o rosto de luz do Nada e lhe disse estas palavras com raiva, afastandose do seu interlocutor: - Para trás, Satanás! Eu sei quem és e o que queres de mim. 5

6 - Ah, meu caro João, não sabes o que dizes. - Sei sim: queres convencer-me de que o meu Criador não existe e o seu Filho Glorioso também não. Como ousas? - É nisto em que crês? - Sim, essa coisa chamada Jesus, o meu Salvador, o único e verdadeiro. O Nada apenas balançava a cabeça, reprovando a atitude de João, mas sem querê-lo punir, porque o homem pensa e pensa o quiser. - Queria ver-te trazer o Cristo até mim. - Queres que eu diga que o teu Salvador jamais existiu? Estás a desafiar-me, João? Não o faças. Trouxe-te aqui porque te acho um homem especial e digno de ver-me. Mas pelo teu abuso não verás o teu Salvador, aquele ser o mais bondoso que já vi. João calou-se, ficou cabisbaixo, entristeceu-se. - Que há contigo, agora? perguntou o Nada, aproximando-se de João. - Por que me escolheste? Há tantos homens lá na terra... - Eu sei, meu caro, a verdade machuca. Mas estou dando-te a oportunidade de saber da verdade. - Eu nem queria conhecê-la; só quero mesmo é viver. Minha mulher está grávida: nosso primeiro filho. Estou muito feliz com a vida que tenho; só quero vivê-la. - Mas irás vivê-la: estás em sonho. 6

7 - Então tudo isto é só um sonho, nada é real? - Tudo é real, mas vieste em sonho. Irás despertar em breve: o dia está nascendo. - Não tens medo que eu revele tudo o que vivi contigo? - Não. Porque ou esquecerás tudo ou ninguém, em sã consciência, acreditará em ti, mas podes transformar este momento em um conto ou romance, dependendo da tua fantasia, mesmo tu não tendo intimidade com as letras. - Não tenho aptidão para escrever, mas posso contar como se fosse um mero sonho. - Faze como quiseres. Apenas te desejo paz e felicidade. Podes voltar, o dia já amanheceu. - Por que permites que as pessoas creiam em Deus? Não sentes nenhum arrependimento por não te manifestares? - Não. Quero ver a humanidade muito bem, entretanto a humanidade não quer ver-se bem. Tudo está em vós, só depende de vós, o verdadeiro sentido da vida está em vós. - Mas é tudo tão difícil... - Não. Na verdade tudo é fácil. Difícil é o homem. João, de costume, acorda por si só, mas desta vez Paula teve de despertá-lo. - Bom-dia, preguiçoso! - O Nada! O Nada! respondeu ele com um ar de maravilha. - Hem? O Nada? Que Nada? 7

8 - Hem? Como? Disse ele assustado. - Sonhava com o quê, querido? - Com o Nada respondeu ele virando-se para o outro lado da cama, semquerer levantar-se. - O Nada? Que Nada? interrogou-se Paula, sem mais indagar o marido. Obra original disponível em: 8