PORQUE HÁ VIDA FORA DO DIREITO

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1 Letícia Ludwig Möller 123 PORQUE HÁ VIDA FORA DO DIREITO Letícia Ludwig Möller Doutoranda em Sistemas Jurídicos e Político-Sociais Comparados pela Università degli Studi di Lecce, Itália; Mestra em Direito pela UNISINOS, Brasil; Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência LAPEBEC do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Brasil; Pesquisadora-Bolsista do Programa de Bolsas de Alto Nível da União Européia para a América Latina ALβAN; Advogada. Referência: Stefano Rodotà, La vita e le regole. Tra diritto e non diritto, Milano, Feltrinelli, 2006, 288p. O lugar do direito na vida em sociedade, desde tempos remotos, costumou revestir-se de centralidade. Ainda que diferentes grupos humanos em diferentes tempos e espaços possam valorar diversamente o grau de influência e importância da dimensão jurídica para a coexistência e a organização social, o certo é que o direito sedimentou-se amplamente como um âmbito fundamental da atividade humana. Não se confundindo com as esferas da moral e da política, mas com estas dialogando estreitamente, o direito trata de fixar determinados valores e regular determinados atos, recobrindo-os de juridicidade, de modo a viabilizar um contexto social de maior certeza, segurança e estabilidade. É, enquanto ciência social e enquanto instrumento de regulação e organização, inseparável da evolução histórica das sociedades e de suas instituições. Outrossim, ao mesmo tempo em que reflete a sociedade presente (com o legado de seu passado), o direito concebe para esta um modelo normativo ideal, uma direção para o futuro (1). Diante do constante surgimento de novos fatos e circunstâncias que se evidenciam relevantes para a vida social, o direito busca sobre eles refletir e fornecer respostas, construindo regulações que sejam capazes de orientar o tempo presente assim como o futuro. Hoje, os velozes e impressionantes avanços na área das ciências biomédicas, da engenharia genética e das biotecnologias abrem sempre novas possibilidades, as quais freqüentemente suscitam questões éticas e jurídicas, provocando a opinião pública e desafiando o ordenamento jurídico existente. O direito, frente a tal cenário, se antes parecia fadado a restar engessado, em comparação ao ritmo dos novos acontecimentos e descobertas, hoje mais parece seguir a tendência contrária. A crescente tomada de consciência de estudiosos de diversas áreas, e mesmo do público leigo, sobre o impacto e a importância das descobertas e inovações científicas, passa a exigir do âmbito do direito um esforço em fornecer respostas mais rápidas de modo a não prolongar em demasia um contexto de incertezas e insegurança jurídica.

2 124 Porque há vida fora do direito No entanto, um contraponto é necessário. Importa não esquecer, ainda que possa soar como obviedade, que existe vida fora do direito. A regra jurídica não pode pretender (e não é certamente capaz de) abarcar a vida de modo exaustivo, prevendo e regulando a totalidade dos fatos, fenômenos e manifestações sociais. O reconhecimento do papel e da atuação do direito como dimensão fundamental na vida em sociedade não deve levar ao entendimento de uma atuação omnicompreensiva, cuja interferência regulatória não se depara com limites. Nesta direção encontra-se a hipótese de nãodireito formulada por Jean Carbonnier, a traduzir o reconhecimento da ausência de direito em um certo número de relações humanas, decorrência da aceitação do simples enunciado o direito é menor que o conjunto das relações entre os homens. Criticando o que considera ser a visão dos juristas dogmáticos acerca do direito (e de sua tendência ao panjurismo), Carbonnier recusa a idéia de que o direito tem vocação para estar em toda parte, a abranger todo o universo habitável (2). Em torno desta reflexão acerca do papel do direito e do limite de sua intervenção, situase o foco da última obra de Stefano Rodotà, La vita e le regole. Tra diritto e non diritto ( A vida e as regras. Entre direito e não-direito ). Amplamente reconhecido e respeitado, na Itália e no exterior, por suas reflexões no âmbito do direito privado e por seus estudos acerca dos temas das novas tecnologias e seu impacto na vida social e sobretudo na privacidade, Rodotà é professor titular de Direito Civil na Università di Roma La Sapienza, foi presidente da Autoridade italiana para a Proteção dos Dados Pessoais, integrou o Grupo Europeu para a ética das ciências e das novas tecnologias, e foi um dos autores do texto da Carta de Direitos Fundamentais da União Européia. Entre suas obras, citamos Tecnologie e diritti (1995), Repertorio di fine secolo (1999), Tecnopolitica (nova ed. 2004), Le fonti di integrazione del contratto (nova ed. 2004) e Intervista sulla privacy e libertà (2005). O presente livro do jurista italiano compõe-se de uma primeira parte, intitulada O direito e o seu limite e que consiste na defesa de sua tese principal, e de uma segunda parte formada por diversos tópicos ou capítulos. Cada um destes capítulos gira em torno de um tema principal: o corpo, os genes, o clone, a dor, a terapia, a solidão, o fim, entre outros. Destacamos aqui a síntese das idéias da primeira parte da obra. Para Stefano Rodotà, a regulação jurídica não deve aprisionar a vida, e sim deve reconhecer a variedade das situações concretas que a vida apresenta. Vivemos em uma sociedade saturada de direito (law-saturated society), de um direito invasivo em muitos setores e por vezes ausente justamente quando se faria necessário. A ansiosa busca por certeza jurídica, a exigência de fixação de verdades indiscutíveis através das normas jurídicas, faz com que o direito torne-se autoritário, se apresente como uma imposição e não como resultado de um sentir comum. Segundo o jurista, diante da pretensão de dizer-se tudo com a linguagem do direito, mostra-se legítima a reivindicação de respeito pela esfera de liberdade e autonomia individual e cultural. Na percepção do autor, como uma reação a um mundo cada vez mais juridicizado, talvez esteja nascendo um direito difuso e móvel (...) que pode paradoxalmente tornarse instrumento de liberação de uma regra vinculante que pretende fechar a vida em

3 Letícia Ludwig Möller 125 uma gaiola jurídica. Um direito novo, assim, ou uma nova concepção do direito, que resiste à simplificação das respostas resultante da ânsia pela imediata recomposição de uma ordem turbada, aflita e confusa em razão de novos acontecimentos e de novas possibilidades. Um direito, sobretudo, que encontra os limites de sua intervenção no pluralismo característico das sociedades democráticas: a própria vida e sua rica diversidade identificam o limite de um modo de fazer direito, tornando o direito reconhecível e aceitável (3). Um direito possível de ser reconhecido e aceito em uma sociedade democrática pluralista deve, neste sentido, justamente buscar ser inclusivo da multiplicidade de formações culturais, doutrinas morais e convicções individuais. Sendo inclusivo, possibilitará a coexistência de uma pluralidade de valores e reconhecerá a existência de uma esfera de liberdade e autodeterminação individual e coletiva de um espaço de não-direito ou ao menos de um inicial vazio de direito, que poderá vir a gerar normatização através da deliberação social ampla e plural. Conforme Rodotà, são móveis e indefinidas (e não rígidas e nítidas), as fronteiras entre direito e não-direito, fazendo com que a dimensão jurídica deva buscar seu equilíbrio entre a exigência social de criação da regra e a sua recusa, entre a necessidade de segurança e a reivindicação das identidades culturais e individuais (4). Pode-se acrescentar: entre o tudo regular, com escasso espaço para o exercício da autonomia e com escasso tempo para o debate e o amadurecimento de questões na esfera pública, e a omissão preocupante do direito, que pode vir a prolongar estados mais alarmantes de instabilidade e incerteza. Em outras palavras, parece que o desafio está em situar-se entre a superabundância de legislações fragmentadas e elaboradas no impulso de dar respostas, as codificações existentes que por vezes demonstram sua inadequação diante das transformações científicas, culturais e sociais, e o vazio de direito que não espelhe um sentir comum e bem informado que se posiciona pela não-intervenção jurídica, mas que reflita simplesmente um estado de confusão, desinformação ou desinteresse acerca dos possíveis impactos de novos fatos, descobertas e possibilidades. Aqui se evidencia a importância da reflexão desenvolvida por Rodotà para os temas da bioética, que são abordados especialmente na segunda parte da obra. A tese defendida pelo autor italiano revela-se de grande interesse para fomentar e fundamentar debates em torno do papel do direito diante do avanço das biotecnologias, e diante das possibilidades de aplicação dos novos conhecimentos científicos (pense-se na engenharia genética, nas técnicas de reprodução assistida, na possibilidade de prolongar ou abreviar a vida). Até que ponto deve o direito regular estas questões? Qual sua extensão, seu alcance? E onde o direito encontra limites, frente à legítima reivindicação de respeito pela esfera de liberdade e autodeterminação individual e cultural? (5) No perspicaz entendimento de Rodotà, não basta o silêncio jurídico, que pode ser rompido a qualquer momento pelo legislador, a garantir espaços de liberdade e pluralismo. O reconhecimento de espaços de não-ingerência do direito na vida cotidiana

4 126 Porque há vida fora do direito depende de escolhas políticas e sociais, que fundamentem (juridicamente) o reconhecimento dos espaços de autonomia. O autor refere o papel dos direitos fundamentais e do direito à livre construção da personalidade para justificar juridicamente os espaços de autonomia individual e cultural. Funda-se, assim, no próprio direito (nos princípios e direitos fundamentais) a possibilidade de se decidir pela omissão legislativa em alguns momentos e situações da vida cotidiana: não para limitar a autonomia das pessoas, contudo, deixando vencer a tirania da maioria, mas, ao contrário, para tornar a autonomia realmente efetiva (6). A esfera pública, assim, adquire centralidade, afirmando-se como o espaço por excelência das manifestações, deliberações e decisões de uma sociedade plural e democrática. O debate na esfera pública, a formação da opinião pública e a elaboração de legislações quando necessário, devem todavia orientar-se naqueles valores partilhados, que o âmbito jurídico incorpora e erige a direitos e liberdades fundamentais. A vida é um movimento desigual, irregular e multiforme diz Montaigne, citado pelo jurista italiano na abertura da obra (7). Ao direito cabe, em grande medida, acompanhar o movimento da vida conformando-se de modo menos rígido, mais flexível sem prejuízo de sua posição fundamental como ordenamento da sociedade e de sua tendência à duração no tempo. Somente assim parece possível ao direito construir a necessária ponte a ligar o tempo presente às heranças do passado e às expectativas do futuro. Que sejam a expressão de um bom auspício para o direito as palavras com que Rodotà encerra a primeira parte do livro: Deste nexo cada vez mais intenso entre vida e liberdade resulta um sentido mais profundo para a vida, e o direito encontra uma sua mais discreta medida. Coloca-se a serviço do ofício de viver, e assim pode ser objeto de aprendizado, lugar do homem e não do poder, instrumento humilde e disponível e não imposição insustentável (8). Referências (1) ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XI, XXXV, XXXVI. (2) CARBONNIER, Jean. Flexible droit: pour une sociologie du droit sans rigueur. 10 ed. Paris: Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 2001, p. 9-47; trad. livre do francês. (3) RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole. Tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006; cit. respect. p. 62 e 29; trad. livre do italiano. (4) RODOTÀ, Stefano. Op cit., p. 16. (5) Buscamos refletir sobre estas questões em: MÖLLER, Letícia Ludwig. Esperança e responsabilidade: os rumos da bioética e do direito diante do progresso da ciência. In:

5 Letícia Ludwig Möller 127 MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia L. (orgs.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense (no prelo). (6) RODOTÀ, Stefano. Op cit., p Neste sentido, o jurista italiano pondera sobre a hipótese de Carbonnier na medida em que relegaria as áreas de vazio de direito unicamente ao jogo da norma moral e da norma social à força, entende Rodotà, ao jugo de uma maioria. É função do direito atuar na defesa contra a violência individual e coletiva, assim como contra a violência institucional. O puro e simples retirar-se do direito pode ensejar a afirmação de diferentes formas de violência (p. 20). (7) RODOTÀ, Stefano. Op. cit. p. 7; trad. livre do francês. (8) RODOTÀ, Stefano. Op. cit. p. 72; trad. livre do italiano.

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