Confiança, esperança e solidariedade
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- Cármen Batista Fragoso
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1 Confiança, esperança e solidariedade Comummente, vivemos em mentira. Não é possível, epistemológica e eticamente, tratar do tema que titula esta reflexão aceitando tal condição, pela evidente razão relacional contida no próprio título que nomeia o tema. Assim sendo, e para que trabalhemos de forma clara e o mais inequívoca possível, começa-se por dizer o que quem isto escreve entende por política, em necessária relação com a ética. A ética é o âmbito total e irredutível da acção humana, entendida na sua mais radical origem ontológica, o acto próprio de cada ser humano como forma autónoma, de outro modo inadjectivável. Este acto é o movimento ontológico e ontopoiético por meio do qual cada ser humano introduz uma diferença ontológica própria no conjunto total e sempre em evolução do ser. Seja esta diferença qual for. Sem este acto, exactamente no que e como é, esta diferença nunca ocorreria, pelo que tal acto é irredutível a qualquer outra coisa. A «ética» é o âmbito da pura imanência deste acto, quer como sua origem única quer como seu destino, se não houver qualquer transcensão deste acto relativamente a tal imanência. Chamamos «política» a toda a transcensão do acto ético, seja este qual for. O âmbito da política é, assim, o âmbito da transcendência do acto ético, constituindo concretamente o «forum» em que os actos éticos transcendentes se encontram, se relacionam, onde, como se costuma dizer, os seres humanos interagem. Sem esta transcensão do acto ético do puro âmbito da imanência humana para o âmbito da transcendência, humana ou outra qualquer pois, não é apenas com seres humanos que o ser humano se relaciona, nunca haveria política, nunca haveria «polis». 1
2 A «polis» não é apenas o «topos» da transcendência, como se fosse possível reduzi-la a um «lugar» ou «espaço» lógica e ontologicamente anterior aos próprios actos de transcensão do âmbito puramente ético, mas é, essencial e substancialmente, o próprio acto integrado e complexo da transcensão de todos os actos éticos a partir da interioridade ética original, pessoal. Tal aplica-se a toda a transcensão, mesmo, por exemplo, ao que se designa por religião, acto sempre político por essência e substância. 1 Ética e política são, deste modo, domínios onto-antropológicos, logo, sempre domínios substantivos, substanciais. Não aceitamos a sua utilização adjectival. Não aceitamos reduções de ética e política a formas meramente parciais da realidade humana, dado que, nas suas realidades próprias e na sua realidade relacional, constituem o todo da realidade propriamente humana, com exclusão da sua dimensão biológica e química-física, que não negam, antes assumem, formalizam, em ontologia propriamente antropológica, que, assim, plenificam. De notar que física e quimicamente, os seres humanos são constituídos exactamente pelos mesmos elementos fundamentais que o demais, pois não há, por exemplo, átomos de carbono especificamente dedicados à construção da matéria físico-química humana. 2 Em termos biológicos, partilhamos 1 É, assim, estulto pensar-se que a religião não deve misturar-se com a política. A religião é sempre um acto político, essencial e substancialmente, pois, tratando-se de uma relação de um qualquer ser humano com uma qualquer entidade a que atribui um especial valor ontológico, assim a sacralizando pode ser o Deus cristão, um totem ou um jogador de futebol, é um acto em que a acção humana transcende a sua pura interioridade ética, para o âmbito da exterioridade da pessoa humana, «topos» ontológico da política, político e acto da política. Muito mais evidentemente político é o acto religioso quando a transcensão se dirige a uma entidade também ela eticamente constituída, como são os deuses ou o Deus cristão, por exemplo. Mesmo a posição de John Locke, que, percebendo isto, procura minorar os efeitos perniciosos deste acto quando pervertido em relação de tirania tiranias várias, não deixa de assume o acto religioso como acto político, ao dividir a acção humana política universal em duas assembleias, a civil e a religiosa, que não se devem misturar. Assim, a questão não diz respeito ao inegável carácter político da religião, muitas vezes até necessariamente eclesial em assembleia, mas ao modo como o poder é administrado dentro das relações religiosas, nos seus vários, complexos e intricados níveis e movimentos. O que a religião não deve ser, aliás, como toda a actividade política, é coisa construída por humanas bestas. Mas esta bestialidade é sempre a ameaça que impende sobre a humanidade, feita para poder ser divina, preferindo, numa sua grande parte, ser como as bestas. 2 Um átomo de carbono que hoje está no meu corpo, pode amanhã estar no ar, por respiração e ventilação, ser capturado por uma planta, ir parar ao corpo de uma prostituta, sofrer semelhante processo, de novo e ir 2
3 também tudo como os outros seres vivos, menos a forma específica própria da humanidade, factor distintivo absoluto do que somos. Deste modo, o ético e o político são formas próprias de diferenciação ontológica humana, isso que distingue os seres humanos das bestas ou de demais entidades mais ou menos fantasiadas, sempre sujeitas à crítica definitiva do velho Xenófanes. Se a «polis» é a transcendência em acto dos actos dos vários sujeitos éticos em co-presença que, assim, a constituem, então, dizer «política» e dizer «confiança», «esperança» e «solidariedade» é, de algum modo, redundante. Porquê? O velho Platão, habitualmente tão mal compreendido, no «Livro II» da sua Politeia, percebe que a cidade nasce do facto irrecusável de cada ser humano ser não-auto-suficiente. Pense-se bem: se fossemos auto-suficientes, literalmente, necessitaríamos de nos relacionar com alguém, com algo que nos transcendesse? Precisamente, para quê? Note-se que a resposta «por excedência» sofre da mesmíssima estranheza que se encontra no início do Génesis, quando, na narrativa, Deus, que de nada precisa, resolve exceder-se criando o mundo e o ser humano. Também exactamente porquê, por quê e para quê? Alguém percebe exactamente a parar ao corpo de um santo e, assim, sucessivamente. O átomo não é um mero professor de filosofia, uma rameira ou um santo: é simplesmente um átomo de carbono. É a forma externa e sobretudo interna que define o ser humano. A interna sobretudo porque, externamente, fisicamente, nada distingue um cadáver de um ser humano acabado de morrer de esse mesmo ser humano, salvo a diferença formal entre estar vivo e não estar vivo, ser uma pessoa realidade ética e política ou ser um cadáver realidade puramente física, já que nem biológica é (a matéria biológica morta não passa de matéria sem mais e as designações equívocas nada mais fazem do que destruir a ciência). 3
4 razão, de um ponto de vista estritamente não-revelacional, isto é, que transcenda a economia intrínseca do mito? 3 Platão, que tem uma teoria da excedência absoluta do Bem na República, percebe que dificilmente um ser humano perfeito agiria ao modo do Bem: e, se o fizesse, não seria ele o Bem? E pode haver mais do que um destes seres assim perfeitos em sentido absoluto? Sabemos a resposta platónica. O realismo platónico intui o ser humano como sujeito de inúmeras carências, diferenciadas, mas também como sujeito de inúmeros talentos, diferenciados. A relação política de tais carências com tais talentos que são reais potencialidades de anulação de tais carências cria, agora de forma concreta, a cidade, o domínio em acto da política. Domínio concreto, incarnado, portanto absolutamente tópico e não-utópico. Esqueçamos Platão. Fiquemos com a teoria: esta colhe o que é a essência da política como acto concreto em que a passividade as carências de cada ser humano e de todos os seres humanos co-presentes se encontra realmente, repetimos, incarnadamente, com a sua actividade, isto é, com a actualização das possibilidades de que todos são portadores e que podem servir e servem mesmo para eliminar tal passividade, tais carências, se postas ao serviço de todos, no que constitui o bem-comum, único bem possível para uma cidade digna do nome. 3 Note-se que se trata do início absoluto do âmbito da relação inter-humana. Dizer que há sociedades em que as pessoas se relacionam precisamente porque há abundância, não nega o que Platão afirma, pois, para que tal abundância pudesse ser gerada, houve que reunir pessoas que a gerassem e essas pessoas reunir-seiam se fossem, à partida, auto-suficientes? Mas, para quê, se tinham tudo? Para o bem do outro? Mas se o outro tem já todo o bem de que necessita? Para quê mais? A base da política é económica, nasce da necessidade de troca de bens que anulem necessidades de outro modo não-anuláveis. A generosidade não é económica, é, aliás, profundamente anti-económica, pois é uma forma de esbanjamento. A grandeza ética máxima própria do ser humano supõe a economia, mas não se lhe reduz e transcende-a sempre, de uma forma que é também sempre fisicamente entrópica. É o amor que justifica a generosidade e o amor não é uma categoria económica: supõe a economia, mas olha para ela como Deus para o adubo. 4
5 Este é um processo dinâmico e cinético: dinâmico, pois tanto passividade quanto actividade são inicialmente apenas potentes; cinético, pois quer a passividade-carência quer a actividade-talento deixam de ser meramente potentes e entram em acto, movimentando-se ontologicamente, diferenciando-se, criando o novo, isso que, precisamente, anula a carência. Eis a cidade em acto. Mas quer a dimensão de carência quer a dimensão de talento não são efémeras, embora cada uma das necessidades concretas o seja e cada uma das suas anulações o seja também. Há, assim, uma dialéctica permanente entre carência e supressão de carência, a que se segue nova carência, nova supressão, e, deste mesmo modo, até que o movimento dialéctico cesse e o ente como tal deixe de ser, tanto ao nível dos sujeitos éticos individualmente considerados quanto ao nível das suas interacções, a cidade em acto. Esta dialéctica é ontológica. Tal intuição platónica que revela uma meditação muito séria sobre a metafísica de Heraclito está na base de toda a física e metafísica aristotélicas e de muitas outras apropriações posteriores, ao longo da história do pensamento. Independentemente de ser descoberta platónica, o que nos interessa isto é, à humanidade é que aqui está dada a forma metafísica da cidade, da política: esta é o acto a actividade, no seu imenso pormenor de aniquilação dialéctica permanente das inúmeras e sempre renascentes carências humanas. A todos os níveis. Com esta expressão «a todos os níveis», queremos dizer que a política não é apenas o acto de sobrevivência dos seres humanos, embora a tal se possa reduzir lembremo-nos de Auschwitz, mas isso que assegura quer a sobrevivência quer a possibilidade de plenificação do melhor bem possível 5
6 para cada ser humano e para todos os seres humanos concomitantemente, no que deveria ser sempre o escopo de cada uma e de todas as pessoas, algo que nunca aconteceu, pois, como Platão também percebe e manifesta na figura de Trasímaco, há uma tendência universal para a tirania, para o roubo de possibilidades ontológicas próprias de terceiros, se não se viver segundo um modo em que a lógica da vida e do agir de cada um seja a lógica do bem de todos. Assim, teoricamente e não-utopicamente, a cidade é o lugar único possível para o bem de todos, para o bem-comum. Teoricamente. Na prática e pragmática, sabemos que não é assim e que a humanidade nunca passou realmente de uma sucessão de tiranias e de oligarquias. Mas esta infeliz realidade não anula a possibilidade teórica do melhor bem para todos, o bem-comum, único digno da humanidade e de que a humanidade nunca se fez digna como um todo. E a humanidade ou é um todo ou nem sequer merece o nome de «humanidade». O bem-comum não é uma utopia, é uma real possibilidade, tornada incapaz por bestas éticas e políticas: todos os seres humanos que roubam para si os bens que competiam em possibilidade ou já em acto concreto a outro: é esta a origem de todo o mal, da guerra, por exemplo; é esta acção ética negativa que impede a política como acto de bem-comum. Esta crítica aplicase a mim. Tendo em consideração o que ficou estabelecido, «confiança», «esperança» e «solidariedade» revelam-se como eixos estruturantes da política, não como algo que se lhe imponha de fora do seu âmbito ontológico próprio ao modo de um contrato qualquer, mas como «logoi» que, ao modo do «Logos» de Heraclito, servem de inamovíveis referências unificadoras da diferente acção humana, sem o que esta acção se tornaria caótica, isto é, aniquilaria a própria 6
7 cidade que é suposto fundar, edificar e manter, relembramos, de forma dinâmica, cinética, dialéctica. São estes eixos fundamentais isso que permite que a cidade não seja efémera, sendo constituída, de facto, por necessidades e acções de sua anulação, ambas efémeras. A solidariedade que remete para algo «sólido», isto é, para algo com exterioridade mais ou menos dura e impenetrável e com interioridade espessa funciona ao modo das pedras das calçadas ou dos tijolos num muro, ou, melhor, das pedras apenas justapostas e mantidas no lugar pela complementaridade da forma e da acção anti-gravítica. Quer isto dizer que a solidariedade depende fundamentalmente do elemento externo aglutinador, seja ele material, como nos dois primeiros casos, seja formal como no último (caso da arcaria magna do Aqueduto da Águas Livres, que resistiu ao terramoto de 1755, o que prova que o sistema funciona). A solidariedade representa simbólica e concretamente a relação política minimamente eficaz, pois é uma relação que opera apenas ao nível da exterioridade política, isto é, não remonta em termos de acção até à sua origem ética: se o fizer, deixa de ser solidariedade e passa a ser algo de diferente. Disto, trataremos mais adiante. Mas mesmo a este nível, é a relação como cimento que mantém os relacionados exteriormente unidos. Ora, quer a confiança quer a esperança são o cimento, já mesmo neste nível mais precário. Não é possível ser-se solidário sem confiança; não é possível ser-se solidário sem esperança. A solidariedade é o acto através do qual ajudo o outro (outros) a manter a sua posição e não é mais do que isso: mais do que isso e encontramo-nos perante algo diferente de solidariedade. Para exercer tal acto, preciso de confiança: preciso de confiar na minha capacidade de o realizar; preciso de 7
8 confiar em que o objecto de tal acto necessita realmente dele e em que o vai receber como serviço real à carência a cuja mitigação de preferência, anulação se destina; tenho de confiar em que todo o universo político me permita tal acto e em que tal acto é bom para tal universo. Se alguma destas formas de confiança faltar, não ajo e não há acto de solidariedade algum, podendo restar algum pio vapor psicológico de solidariedade, o que não é bem o mesmo. Na base da acção política e ética que a suporta encontramos um acto de confiança, de fé, em sentido lato, profundamente humano, aliás definidor do que é o próprio da humanidade como portadora de um especial «logos» métrico, ponderador, reflexivo. Este sentido crítico da nossa inteligência, presente mesmo nas pessoas aparentemente menos dadas à reflexão, impedenos de iniciar qualquer acção sem que, ponderando mais ou menos em sentido estritamente técnico sobre os seus possíveis, mesmo que não tenhamos inteligência para intuir mais do que duas possibilidades sem esta fundamental dualidade instala-se imediatamente um mecanicismo cinético e o que é propriamente humano desaparece também imediatamente, temos de confiar na bondade de pelo menos uma dela para que possamos decidir escolhê-la. Sem esta confiança basal, nunca haverá decisão alguma. Nem sequer se pode falar de indecisão, pois esta supõe que se confie em pelo menos dois bens possíveis. É uma questão lógica e técnica em termos de pressupostos para a acção: sem confiança na possibilidade da existência de um bem qualquer, não há como o ser humano poder escolher. Talvez esta condição transcendental da acção explique a razão profunda pela qual em sítios como Auschwitz-Birkenau não houve acção: não houve confiança alguma num bem possível. Já no Gueto de Varsóvia e em Treblinka, havendo esta confiança, foi possível a acção. 8
9 Por outro lado, é aparente que o melhor meio de um tirano controlar facilmente os seus tiranizados consiste precisamente em lhes retirar esta confiança transcendental, impondo-se a si próprio como o único bem possível, bem que é imposto como forma mecânica de possibilidade de escolha. Positivamente, é a confiança que permite que quaisquer dois ou mais seres humanos possam conviver: é o sentido profundo da camaradagem, isso que me permite partilhar a cama ou a câmara, pois esse com quem tal partilho não se vai aproveitar da minha extrema vulnerabilidade de ser in-vígil para me violentar ou matar. Mas é, sobretudo, isso que permite o que para Aristóteles é o cimento ontológico, ético e político da cidade, a amizade. Não é possível amizade, em quaisquer dos seus três níveis, todos necessários para que haja «polis», sem que haja confiança e esta é tanto mais forte quanto mais alto subimos na hierarquia da amizade, sendo absoluta na amizade pura, em que não apenas confio absolutamente no amigo-amado como confio absolutamente em mim como fonte da minha contribuição para este mesmo partilhado amor. Nesta confiança, que é humana fé e fidelidade, construo, construímos, num acto de absoluta unidade entre dois ou mais seres humanos, uma relação que só é anulada terrenamente pela morte, selo indestrutível de um acto comum que nada senão esta pode aniquilar. A esperança, que solitária mais não é do que uma categoria vazia de substância, ganha substância proléptica por mais estranho que ontologicamente tal possa parecer a partir da confiança e da solidariedade que tal confiança instaura ao permitir o acto próprio do ser humano e, como seu ápice de consumação, a amizade. A esperança política é sempre esperança como relação de amizade. Mesmo em âmbito religioso. Uma esperança não política é um acto de onanismo ontológico, que renega a condição política fundamental da humanidade. Mas renegar esta condição é 9
10 um acto de total ilusão, pois nenhum ser humano existe senão em relação, sendo, aliás, sempre fruto de uma relação política que o produz ou cria, como se queira. «Confiança», «esperança» e «solidariedade» são os transcendentais ontológicos que permitem a possibilidade da existência da política. São logicamente anteriores à realidade política. Não há primeiro a coisa política que posteriormente produz confiança, esperança e solidariedade. Deste ponto de vista, todo o bem desde sempre existente na história da humanidade como coisa ontológica política deriva, em primeira instância, destas três categorias lógicas informadoras do «ontos» da «polis». Mas também todo o mal que historicamente existiu deriva do facto da falência da acção humana que não sabe apropriar-se devidamente de tais categorias lógicas. Este «devidamente» significa a conformidade ao melhor bem possível para todos, condição de sobrevivência sustentável da cidade e cuja violação significa a sua morte a prazo, numa trágica e irónica forma de justiça poética. Como sempre, a esperança está nas nossas mãos, assim confiemos em nós e sejamos capazes de ser pelo menos solidários, já que comummente incapazes de devidamente amar. Por isso, começámos por dizer que comummente vivemos na mentira: é que dizemos que amamos, mas pouco o fazemos, a começar por mim. Cacém e Lisboa Janeiro de 2016 Américo Pereira 10
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