CURSOS D ÁGUA E MEIO URBANO: EM BUSCA DO REENCONTRO
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- Victor Gabriel Alencastre Correia
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1 2 CURSOS D ÁGUA E MEIO URBANO: EM BUSCA DO REENCONTRO
2 Os impactos apresentados no capítulo anterior chegam a parecer irreversíveis, principalmente em se tratando de um país em desenvolvimento como o Brasil. No entanto, é notável o interesse crescente pelo tema da recuperação de áreas degradadas, não só no meio acadêmico a mídia tem veiculado notícias sobre córregos em processo de despoluição, implementação de parques lineares, remoção de população das áreas ribeirinhas ou de proteção de mananciais, demonstrando, assim, preocupação com as áreas de risco para a população e para o ambiente urbano. Críticas à inadequação dos sistemas de drenagem urbana já não soam surpreendentes, e passam a apresentar reflexos na legislação, como é o caso de exigência de porcentagem de área drenante nos lotes e de piscininhas nos condomínios verticais (caixas de detenção de águas pluviais), soluções inovadoras abordadas mais adiante. Há também os cursos de educação ambiental integrando a grade curricular de várias entidades educacionais, com o objetivo de abrir os horizontes das novas gerações, ao mesmo tempo em que os cursos de gestão ambiental são disputados, pois os órgãos ambientais têm sido mais rigorosos na aprovação de empreendimentos. O objetivo deste capítulo é, então, explorar as concepções que entendem a necessidade de integrar aspectos ecológicos ao desenvolvimento urbano, e vêem a reconciliação com os rios urbanos como uma possibilidade de viabilizar gestões que proporcionem o enriquecimento do espaço urbano, sob os aspectos da hidrologia, da biodiversidade de flora e fauna, do equilíbrio da drenagem e da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. 58
3 A adoção dessas proposições não se dá repentinamente, mas como fruto de décadas de movimentos ocorridos em escala mundial, de pesquisas, de normatizações e de experimentação. O enfoque que se pretende privilegiar aqui diz respeito ao aspecto projetual, oriundo de uma base teórica que se adéqua às circunstâncias do sítio de intervenção. 2.1 Redesenhando a paisagem a partir dos cursos d água Como apresentado no capítulo anterior, as intervenções de saneamento ou de drenagem urbanas envolvendo bacias hidrográficas vêm se mostrando ineficientes e até mesmo catastróficas, abrindo espaço para reflexões e debates no sentido de questionar as soluções tradicionalmente adotadas pela engenharia. Esses questionamentos apontam para soluções em que os leitos dos rios devem estar articulados às propostas projetuais para o tecido urbano. Assim como as áreas urbanas se caracterizam como uma trama em que se assentam usos de solo de grande abrangência, também as áreas lindeiras aos cursos d água urbanos integram o contingente de áreas urbanas de variadas densidades ocupacionais que preenchem várias funções sociais e ecológicas. Particularmente nas áreas urbanas, os componentes do triângulo de sustentabilidade - aspectos ecológico, social e econômico - são interdependentes. Por esse motivo, os planos de recuperação de rios urbanos freqüentemente apresentam um potencial de melhoria urbana, ocasionando e incrementando funções sociais ao longo e no entorno dos cursos d água (URBEM 1, 2004). Efetivamente para as gerações da segunda metade do século XX, que vivenciaram a degradação ambiental, a antevisão de planos de recuperação dos sistemas fluviais se apresenta como uma nova postura que vem despontando a partir dos últimos 30 anos. Após anos de exploração dos rios urbanos, através de uso intenso e posterior negligência, constatamos que eles são valiosos econômica e socialmente, diz o prefácio do documento Ecological Riverfront Design, produzido em 2004 pela Associação Americana de Planejamento, que se propõe a difundir uma nova visão para as orlas fluviais urbanas. Costa (2006, p. 11), que vem se dedicando a estudar sistemas fluviais brasileiros, corrobora os documentos europeu e norte-americano, assim concluindo: 1 URBEM Urban River Basic Enhancement Methods entidade da European Comission cujo objetivo é estabelecer um quadro de referência de recuperação de rios urbanos, capaz de orientar os interessados, e levar em consideração as características regionais. 59
4 [...] já sabemos que não é mais aceitável pensar em retificar um rio, revestir seu leito vivo com calhas de concreto, e substituir suas margens vegetadas por vias asfaltadas, como uma alternativa de projeto para sua inserção na paisagem urbana. Estas propostas, que tinham como uma de suas bases conceituais a busca do controle das enchentes urbanas, são muito criticadas não só pela sua fragilidade sócio-ambiental no resultado final do projeto, como também pela pouca eficiência no controle destas mesmas enchentes. Essa abordagem, que soa como inovadora no século XXI, já foi defendida por técnicos no final do século XIX e início do século XX, os quais postulavam desde então uma visão abrangente do ambiente urbano em sua prática profissional, buscando soluções urbanísticas que integravam infra-estrutura às condições do ecossistema existente. Dois exemplos de profissionais que atuaram nos Estados Unidos e no Brasil nessa linha são brevemente apresentados no item a seguir Importantes precursores da inclusão da dimensão paisagística em projetos de saneamento e drenagem: Olmsted nos EUA e Saturnino Brito no Brasil O final do século XIX e início do século XX foram marcados pelo período do higienismo na Europa e em diversas cidades do continente americano, que vinham sofrendo com o intenso crescimento populacional resultante dos reflexos da Revolução Industrial 2. Nesse período, várias cidades foram redesenhadas e novos hábitos introduzidos por especialistas, então denominados higienistas e sanitaristas. Como principais formuladores das concepções organicistas da cidade, defendiam o saneamento da cidade, para que a população fosse saudável, sendo que os fluxos deveriam ser restabelecidos nas águas e na ventilação. Para obtenção desse objetivo, ruas eram alargadas dando lugar a bulevares, edificações e morros eram removidos e pântanos eram drenados (ANDRADE, 1992). A funcionalidade e a estética caminhavam lado a lado nesse processo. Em 1833, o Select Commitee on Public Walks, na Inglaterra, publicou um artigo propugnando que a melhor maneira de assegurar espaços abertos nas cidades populosas era criar passeios públicos e lugares de exercício para promover a saúde e a qualidade de vida da população 3. 2 A Revolução Industrial, a partir do século XVIII, modifica o ambiente construído em decorrência do aumento demográfico e das transformações da produção. Algumas desvantagens de ordem física, tais como congestionamento do tráfego, insalubridade e feiúra, tornam intolerável a vida das classes subalternas e, a partir de certo momento, a vida das classes dominantes. (BENEVOLO, 2001) 3 acessado em Janeiro de
5 A cidade de Birkenhead, próxima a Liverpool, foi a primeira a propor o desenvolvimento de um parque com base nesses novos parâmetros. A administração local adquiriu 226 acres considerados não produtivos para a agricultura, reservando aproximadamente a metade dessa área à recreação e o restante a ser comercializado para habitações, Surgia, assim, o parque Birkenhead, projetado pelo arquiteto inglês Joseph Paxton e inaugurado em 1847 (LAURIE, 1976). Frederick Law Olmsted 4 ( ), considerado o mentor da arquitetura e planejamento da paisagem nos Estados Unidos, em breve estadia na Inglaterra, em 1850, vivenciou esse movimento de introdução de parques urbanos 5, que tinham um caráter mitigador das condições precárias de vida urbana pós Revolução Industrial. Lá, conheceu o parque Birkenhead, que muito o impressionou. Laurie (ibid.) transcreveu em sua obra um trecho do livro Walks and talks of an american farmer in England 6, de autoria de Olmsted, publicado em 1852, no qual este revela seu entusiasmo pelo parque, declarando-se assombrado pela maneira pela qual a arte havia sido aplicada, obtendo da natureza tamanha beleza. Tal fato levou-o a estabelecer uma analogia entre o parque e um oásis, que se propunha a receber a população no denso meio urbano industrial. De volta aos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX, assumiu sua trajetória profissional, vislumbrando que poderia dar um passo adiante do sanitarismo, agregando projetos de intervenção na paisagem das cidades americanas que incluíssem sistemas de áreas verdes de recreação e de circulação (HALL, 1995). Dentre esses projetos, destaca-se um significativo exemplo descrito por Spirn (1995), que reúne área de recreação associada a um sistema de proteção de enchentes e melhoria da qualidade das águas em Boston o Back Bay Fens, antes uma área pantanosa, estagnada por aterros, contaminada por esgoto e sujeita a inundações. Desenvolvido por volta de 1880, esse projeto previa a interceptação do esgoto, a criação de bacias de detenção 7 de águas pluviais com vegetação adequada às oscilações da cota de nível e à salinidade e que acabassem com a estagnação através da ação das marés; estas, reguladas por comportas, oxigenariam a área pantanosa duas vezes ao dia. 4 Olmsted foi o responsável pela criação de vários parques emblemáticos nos Estados Unidos tais como o Central Park de NovaYork, projeto vencedor de um concurso em 1958 e que teve colaboração de Andrew Jackson Downing, paisagista americano e de Calvert Vaux, inglês.promoveu também o conceito dos parques nacionais e desenvolveu projetos de campos universitários e bairros planejados. 5 A intensa urbanização impede a eliminação de refugos e o desenvolvimento das atividades ao ar livre. Ocorrem as epidemias, que obrigam os governantes a corrigirem, pelo menos, os problemas de higiene. Na Inglaterra, tem início a abertura dos Parques reais para o público, a criação de praças e áreas verdes, na tentativa de minimizar os impactos negativos oriundos da Revolução Industrial. (BENEVOLO, 2001) 6 Passeios e revelações de um fazendeiro americano na Inglaterra. 7 Bacias de detenção áreas projetadas para reter água nas estações de chuva, normalmente secas no período de estiagem enquanto que as bacias de retenção contêm um volume substancial de água permanentemente. (CANHOLI, 2005) 61
6 O rio Muddy, que permeava essa área, passou a fluir através do pântano com o aprofundamento do canal e com suas margens reniveladas em cotas mais altas. Estas margens foram apropriadas para a implantação de alamedas ajardinadas, conectadas através de pontes, em que circulavam pedestres e veículos. Assim foi criado o Riverway, com caráter de várzea natural em ambiente urbano, propiciando à população superfícies adequadas à recreação. Efetivamente, o que se revelou aí foi a capacidade de Olmsted de entendimento das condições naturais da região, interpretando-as e manejando-as através de um plano e de um projeto que envolviam princípios de hidráulica, os ciclos das marés, conhecimento de botânica e a exploração do potencial de apropriação de espaços para recreação. Spirn (ibid., p.165) relata que Olmsted não incluía esse trabalho na categoria de parque, mas de Plano Geral para a Melhoria Sanitária do Rio Muddy, assim o definindo: O propósito original do esquema aqui exposto é diminuir os transtornos existentes, evitar perigos ameaçadores e proporcionar um projeto permanente, salutar e gracioso para a drenagem do Vale do Rio Muddy. Isto deverá ser alcançado principalmente pela terraplanagem, estreitamento e aprofundamento do canal e dos lagos existentes e pela exclusão das marés e dos esgotos. O parque era tido, portanto, como um subproduto de um trabalho mais amplo. Em Milwaukee, no estado de Wisconsin, cidade atualmente com habitantes, a população está a salvo do risco de enchentes graças à ação clarividente da Comissão de Parques do Condado. Na década de 1930, quando a cidade estava em processo de desenvolvimento, a Comissão implantou o plano de parques lineares, concebido também por Olmsted - um cinturão verde ao longo de todos os rios e tributários, visando proteger a cidade em expansão das inundações dos rios Milwankee, Menomonee e Kinnicknnic (RILEY, 1998). No Brasil, a modernização das cidades e a fase de higienismo no início do século XX têm como expoente o engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. Andrade (op. cit.,1992) 8, em sua pesquisa sobre o engenheiro, apresenta suas obras e o eixo que as norteou, relatando que Brito defendia a mesma solução preconizada por Pasteur 9 : um sistema de condução do esgoto por duto exclusivo, separado do de águas pluviais, em direção ao destino final - o mar. Nas suas propostas para as cidades de Santos, Recife, São Paulo, João Pessoa e outras cidades brasileiras, Brito tinha como referência os urbanistas franceses, particularmente Pierre 8 Os dados sobre Brito basearam-se no trabalho de Andrade (1992). 9 Pasteur cientista francês ( ) cuja atuação trouxe grandes contribuições para a química e a medicina. 62
7 L Enfant 10, autor do plano urbanístico para Washington. Impressionava-o a componente estética vinculada à percepção do sítio demonstrada por L Enfant ao definir o plano urbanístico da nova capital dos Estados Unidos. Brito iniciou suas atividades de sanitarista em 1893, formulando a concepção de bairros-jardim, antes mesmo dos urbanistas Howard e Parker 11, em 1896, quando introduziu a criação do novo arrabalde em Vitória, ES. Dedicava atenção muito especial ao sítio, valorizando sua condição natural, por exemplo, os manguezais, posteriormente alvos de destruição. Além de sua clareza em termos conceituais, adotava em sua metodologia de trabalho a precisão de dados sobre a área a ser trabalhada. Tinha, para tanto, como instrumento valioso de trabalho, o levantamento topográfico, e exigia que este fosse rigorosamente executado. O desenvolvimento dos planos contava com detalhamento e representação gráfica, de modo a garantir o sucesso de sua implantação, contemplando a dimensão estética e a viabilidade espacial e econômica. Além disso, Brito defendia o controle planejado do desenho das cidades em expansão, criticando o informalismo dos interesses particulares, sendo que, em sua visão de como planejar o desenvolvimento urbano, abarcava o meio físico (hidrografia, relevo), clima, condições de salubridade, principalmente para equipamentos urbanos específicos, como mercado ou matadouro. Quanto às diretrizes de saneamento, ressaltava a importância das condições atmosféricas, solos, águas, equipamentos urbanos, águas ornamentais, limpeza pública, coleta e destinação do lixo, iluminação pública, abastecimento de água, captação de águas pluviais e coleta de esgotos. Saturnino de Brito preocupava-se com a morfologia dos leitos fluviais, propondo a preservação das matas ciliares, a proteção das cabeceiras e o replantio, quando a devastação já tivesse ocorrido, dirigindo críticas à retificação de canais. Apontava que a intervenção nos leitos, retificando-os, poderia ocasionar inundações, e propunha barragens nas cabeceiras para controle da ação das chuvas torrenciais. Quanto às redes de esgoto, defendia que deveriam ser fechadas para impedir poluição do ar e do solo, sendo que a rede de coleta de águas pluviais deveria ter tubulação separada. Os esgotos domésticos deveriam ser conduzidos por um coletor central até a uma usina de depuração, para aí serem tratados por processos sucessivos, de decantação e de filtração da água decantada. Só então seriam lançados aos cursos d água. Brito aconselhava lavagens regulares das redes de esgoto e a incineração do lixo coletado, aliando as condições específicas de cada local à técnica e racionalidade. 10 Pierre L Enfant - urbanista francês que foi contratado em 1791 por George Washington para desenvolver o plano urbanístico da nova capital norte americana (Anacostia Waterfront Initiative Framework Plan, 2003, p.12). 11 Howard e Parker - urbanistas ingleses atuantes no final do séc. XIX e início do séc.xx idealizadores das cidades jardim. 63
8 Em 1896, integrou a Comissão Sanitária do Estado, instalada em Campinas, propondo a articulação da infra-estrutura e desenho urbano - canais de drenagem para evitar a estagnação das águas, acompanhados de avenidas e ruas, com a inserção das dimensões estética e sanitária do plano de melhoramento urbano. Em 1900, Brito publicou a obra Esgotos das cidades, defendendo o sistema separador absoluto de esgoto, e em 1903, Saneamento em Campos, monografia urbana, que tratava de planejamento e desenho urbano, enfatizando o planejamento integrado e a importância da higiene para a habitação proletária. Seu lema para a cidade de Santos, onde atuou entre 1905 e 1914, era sanear, embelezar e prever a expansão da cidade em um único plano. Brito construiu, então, canais de concreto armado para as águas pluviais, dutos separados para coleta de esgoto e estações elevatórias distritais, além de peças para esgotos domiciliares. O plano de expansão adotado para a cidade foi considerado muito avançado para a época, dotando-a de avenidas largas com os canais de drenagem no centro, calçadas arborizadas, pontes e passadiços e, ainda, avenidas parque que cortavam em diagonal o traçado reticulado de ruas e avenidas. Os canais eram navegáveis por pequenas embarcações. Evitava longas ruas retas com o recurso de interrupções através de pequenas praças onde locava equipamentos, tais como as estações elevatórias de esgoto e conjuntos de mictórios. Criou ainda o parque da orla e, junto a ele, a Avenida Beira Mar, também avenida parque, que contavam com vários equipamentos de lazer. A ponte pênsil, que liga Santos a São Vicente, além de elemento de conexão, foi concebida como suporte para o emissário de esgotos a serem lançados em alto mar. Participou também das decisões de uso de solo, formulando legislação de padronização de vias urbanas e gabaritos para as edificações lindeiras. Com sua visão abrangente, ao projetar os canais de saneamento de Santos, Saturnino de Brito desenvolveu um plano para o traçado das futuras ruas e avenidas da cidade, como ilustrado na figura 11. Em São Paulo, em 1926, Brito desenvolveu o projeto Melhoramentos do rio Tietê (Figura 12), em que propunha a redução da extensão do rio de 46 para 26 km, retificando alguns trechos na região Guarulhos Osasco, pretendendo, com isso aumentar a vazão da água e manter seu fluxo constante. Sua meta era prevenir enchentes e prover o abastecimento. Projetou dois grandes lagos junto à Ponte Grande 12 e comportas para regularização do fluxo do rio. Saturnino enfatizava a importância das várzeas como reservatórios naturais, reduzindo os impactos das cheias. 12 Atual Ponte das Bandeiras. 64
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