RELATÓRIO ESTÁGIO ELETIVO 2014 CUBA
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- Larissa Carrilho Beppler
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1 Universidade Estadual de Campinas Faculdade de Ciências Médicas - Departamento de Saúde Coletiva Residência Multiprofissional em Saúde Mental RELATÓRIO ESTÁGIO ELETIVO 2014 CUBA Residente: Leticia Verardi Madlum Supervisora: Ellen Ricci Coordenadora: Rosana Onocko Campos Janeiro, 2015
2 Estágio Eletivo em Cuba Começo este relatório tentando delimitar um pouco o motivo pelo qual escolhi Cuba como destino para a realização do estágio eletivo da residência. Algumas questões se colocaram para mim ao longo desses dois anos de residência. A associação/articulação entre loucura e miséria, entre adicção e problemas sociais, entre saúde e condições de vida. A idéia de que as formas de enlouquecimento estão relacionadas com o modelo de sociedade que vivemos, com nossos modos de organização e de relações. A partir desse raciocínio sempre me intrigou a forma como se daria o enlouquecimento em culturas, sociedades e sistemas econômicos distintos. A curiosidade por Cuba começou a partir dessas idéias, aliada com o desejo de conhecer a estruturação do sistema de saúde. Por acreditar em um sistema de saúde único, universal e igualitário, conhecer um lugar com fama de ter tudo isso, seria uma experiência privilegiada para o momento da residência. Para a realização do estágio eletivo foi feito contato com a ENSAP, Escola Nacional de Saúde Pública, instituição acadêmica, vinculada ao Ministério de Educação Superior e a Universidade de Havana, que trabalha com formação em pós-graduação (mestrado, doutorado e especialização), pesquisa, produção e avaliação de tecnologia, consultorias, prestação de serviços, e oferece cursos a profissionais e estudantes estrangeiros que visam o conhecimento do sistema de saúde cubano. Nesse sentido, nosso pedido à coordenação do curso foi de um programa voltado à saúde mental e atenção primária. De forma que foi elaborado cronograma envolvendo visitas aos serviços e aulas que abordassem a temática. E ainda foi articulada a participação do grupo na jornada de estudos que a escola organiza anualmente, com o tema dessa edição sendo universalidade. No primeiro dia, iniciamos as atividades com a apresentação da escola e uma visita ao centro da cidade. O aspecto que marca esse dia para mim, foi o da idéia de que não é possível pensar saúde descolada de uma política de Estado, de um contexto sócioeconômico e de uma reforma universitária. No contexto da Atenção Básica, conhecemos o Policlínico e o Consultório Médico de Boyeros e o Policlínico e Consultório rural. Os Consultórios contam com um médico e uma enfermeira, que fazem parte da equipe básica que compõe o Policlínico. O Policlínico é um dispositivo regionalizado que conta com retaguarda especializada; psicologia, ortopedia, medicina natural, odontologia, fisioterapia, fonoaudiologia, além
3 de médicos generalistas, dentre outros. Eles atuam como ordenadores do cuidado, são a ponta da assistência, intrinsecamente ligados ao território, com foco no atendimento de baixa complexidade em termos tecnológicos, com profissionais da saúde da família, e acompanhamento longitudinal. A grande potência da atenção primária em Cuba em minha opinião, é que de fato conseguimos visualizá-la como política de Estado, isso inclui toda uma organização da rede, com plantão em quase todos os serviços, com departamento de saúde pública em cada província, também na formação dos profissionais, com compromisso que todos os profissionais da saúde trabalhem por 2 anos na atenção básica, com formação descentralizada, não localizada somente nos grandes centros, com vagas pensadas segundo a demanda. O sistema de saúde cubano se parece muito com o brasileiro no papel, são incríveis as semelhanças teóricas e as diferenças de implementação. Um exemplo são os tais programas prioritários de saúde (gestantes, crianças, idosos, doenças crônicas, por exemplo), que também são prioritários no Brasil, encontramos sua temática nas diversas cartilhas do ministério da saúde, nos protocolos que chegam verticalmente nas unidades de saúde, mas com muita dificuldade vemos seus aspectos contemplados de forma eficaz. Em cuba, esses programas estão na boca de todos, de fato se transformam em ações cotidianas e não se restringem ao papel e aos materiais informativos. Também conhecemos o Centro Psicopedagógico, que atende pessoas com deficiências mentais/intelectuais, interface entre saúde/educação/geração de renda, com forte influência de correntes comportamentais e métodos disciplinadores. Principal oferta para essa parcela da população, diferentemente do Brasil, onde ainda não temos uma diretriz forte que estabeleça via SUS a assistência dessas pessoas, se restringindo em sua maioria ao âmbito das ONGs e serviços particulares, e lá são absorvidas pelo Estado com maior possibilidade de trocas com a rede de saúde. Visitamos o Centro Comunitário de Saúde Mental, que foi apresentado pela psiquiatra do serviço, que depois ministrou uma aula no período da tarde. Foi o serviço mais próximo da lógica substitutiva da reforma psiquiátrica, porta aberta para todas as idades e enfermidades, além de atender demanda espontânea da comunidade. Aponta depressão, esquizofrenia, demências e autismo como principais demandas do serviço, fala da importância epidemiológica do consumo de álcool. Único serviço em que aparece a questão do fim dos manicômios. Conta que os profissionais do centro
4 comunitário fazem carga horária nos consultórios médicos, o que aproxima muito a relação com a equipe fixa do consultório. Na aula conseguimos discutir como a definição de saúde mental excede o âmbito da saúde; pobreza, urbanização caótica, educação, condições de trabalho, desemprego, carência, como determinantes do processo saúde/doença. De forma que para pensar a saúde mental é necessário pensá-la a partir dessa complexidade. No quarto dia visitamos a enfermaria psiquiátrica do hospital geral Enrique Cabrera e a Casa dos Abuelos. O hospital conta com uma Unidade de Intervenção à Crise, Ala de agudos, HD para neuróticos, HD para psicóticos e atenção psiquiátrica à mulheres gestantes com questão de uso de substância. A abordagem da questão das drogas nos serviços visitados passa pela idéia de que todo o uso é problemático, a redução de danos não é considerada uma vertente do tratamento, arranjos diversos de uso são utilizados apenas visando à abstinência no futuro. A internação ainda se caracteriza como um forte recurso seja com relação ao uso de substancias, quanto ao adoecimento mental. Percebemos que diferentemente do centro comunitário, a enfermaria se apresentada de uma forma muito mais centrada no diagnóstico, sendo os grupos divididos dessa forma (grupo de usuário de cocaína, de gestante, de neurótico, etc.). Ainda aponto para o fato de que a enfermaria, apesar de pertencer a um hospital geral, fica fora deste, mantendo aspecto de um hospital psiquiátrico, apesar de um espaço mais aberto e com serviço de plantão, segrega a partir do momento que coloca a saúde mental, literalmente, para fora do espaço geral do hospital. A Casa dos Abuelos é um serviço de permanência dia, onde os idosos podem realizar uma gama de atividades físicas e de convivência. O que me marcou nesse serviço, além da energia incrível das pessoas que nos receberam, foi o próprio fato da sua existência. Encontramos no discurso de muitos profissionais e docentes a preocupação com o envelhecimento da população, e foi possível ver o cuidado com os idosos, pregado pelos programas priorizados, em ação nas práticas implementadas; circulo de abuelos, assistentes sociais que fazem visitas domiciliares, os geroclubes de informática, as escolas de formação de cuidadores e o cuidado com os familiares. Em termos de planejamento de programas de saúde, conseguimos ver os diversos recursos pensados e articulados, inclusive fora do campo da saúde, para atingir a meta proposta pelo programa prioritário do cuidado aos idosos. Existe um planejamento e preparação para as demandas previstas, não somente a nível de Estado,
5 mas de serviço também. Todos os lugares visitados realizam análises estatísticas e psicométricas de cada território. Visitamos também o Serviço de Prevenção e Promoção de Enfermidades Transmissíveis e a Casa de Cultura Comunitária. No primeiro serviço foi interessante ver a produção do materialeducativo e informativo e a formação dospromotores de saúde e conselheiros no próprio serviço, a partir da análise da situação especifica de cada área de saúde. Um serviço com muita potencia e possibilidade de criar recursos, porém com o dificultador de que os promotores e conselheiros são voluntários o que, segundo os profissionais, causa muita rotatividade. A Casa de Cultura teve início em 2001, surge na tentativa de revitalizar o bairro, muito tomado pela criminalidade, pelo lixo e falta de investimento. Assim como o serviço de prevenção e promoção, se mostra muito potente na articulação com a comunidade, com alta qualidade das produções artísticas, mas por ser iniciativa civil, não conta com vinculo ou financiamento estatal. Lá não há uma política da cultura de criação de casas de cultura com financiamento e contratação estatal. Apesar de haver grande investimento na cultura em outras esferas, como o subsidio estatal para o cinema, teatro, dança. Conhecemos também uma farmácia comunitária. Em comparação com o Brasil, é raro poder ver um contexto em que a oferta de medicamentos não está ligada a indústria farmacêutica. Remédios são subsidiados pelo Estado, tendo valores simbólicos, porém, somente são vendidos com prescrição médica, para controlar a automedicação e o abuso de psicofármacos. As condições de fabricação e armazenamento dos medicamentos é bem precária, resultado da crise econômica e do bloqueio estadunidense ou fazemos assim, ou não fazemos (fala da profissional que nos apresentou a farmácia, quando perguntamos sobre a vigilância sanitária). A última visita foi ao Hogar Materno, lugar onde ficam mulheres grávidas com complicações clínicas ou em condições sócio-econômicas precárias. A princípio este serviço me causou estranheza. Talvez pela impressão de controle da vida da gestante, pelo recurso da internação, da separação da pessoa de seu contexto cotidiano. Essas questões não se aquietaram, mas por outro lado, no contato com as gestantes, percebi o quanto a relação delas com aquele serviço não passava pela impressão que eu tive. Me fez pensar que talvez essa vivência do coletivo seja muito diferente lá do que aqui. Outro ponto surpreendente foi encontrar em um mesmo quarto uma menina de 13 anosinternada por estar em um contexto de miséria, e uma advogada de comércio
6 exterior com descolamento de placenta. Fiquei pensando no principio da universalidade, onde todos, independentemente de recursos financeiros ou escolaridade, acessam o mesmo serviço. Uma vez encerrado o curso, foi hora da vivência cotidiana por Havana, para além dos serviços de saúde, mas que nos permitiram estar mais em contato com a cultura e os modos de circulação das pessoas pela cidade. Duas semanas em que a contradição cubana se mostrava a cada passo... Riqueza cultural e miséria econômica, maravilhas naturais e privação de insumos, incentivo intelectual eimpossibilidade de tecer contrapontos, justiça social e machismo, acesso a direitos e opressão política... São tantas, que não acho possível colocar um ponto final. Impossível falar da experiência do eletivo e não falar do cotidiano, da experiência antropológica que foram as simples ações como andar na rua, comprar pão, se locomover, tomar banho. Ações automáticas e banalizadas, mas que marcam o estranhamento de estar em novo lugar, explicitando como cada uma dessas atividades é produto de uma construção cultural, social, afetiva... De fato não seria possível conhecer Cuba somente pelas lentes da escola nacional de saúde. Foi fundamental fazer amizades, ser enganada por comerciantes, ir à festa da Santería (religião com raízes africanas), habitar uma havana não turística, antes de conhecer os museus, hotéis e praias. Estar imerso na avalanche da mídia política, com fotos do Che, Camilo e Fidel para todos os lados, vivendo a história de uma revolução que se presentifica todos os dias. De pontos para reflexão o que mais me marcou foi que a noção de coletivo, por mais interessante que seja em termos de direitos e justiça social, também implica em uma normatização das práticas e do modo de ser. Há muito pouco espaço para pensar diferente, para questionar, na jornada de estudos, por exemplo, após a apresentação dos trabalhos não havia tempo para debate, não havia troca, apenas exposição. Na saúde vimos o pouco espaço que existe para quem não segue os padrões estabelecidos, o usuário de substância, o louco, quem não adere ao tratamento, não tem muito lugar, ao mesmo não o lugar do acolhimento e pertencimento, não fazer parte da norma, é se colocar a margem do social, das políticas públicas, dos serviços de saúde. Apesar de encontrarmos alguns profissionais mais abertos e alguns pontos de resistência, a internação, o controle e a adaptação em nome de um bem estar social maior, são a corrente mais forte.
7 De modo geral, em termos de potências, o que mais me surpreendeu em Cuba foia possibilidade de ver como política de Estado, organização da rede, formação profissional, educação, assistência e gestão estão articulados. Em comparação com o que encontramos Brasil, onde Ministério propõe uma coisa, município faz outra, onde se forma profissional com concepções diferentes do que o SUS demanda. Onde redes de saúde, de assistência social e de escola não conseguem dialogar. E ver também que, apesar da miséria e da diferença social, que pobreza em Cuba, não significa privação de direitos. Aqui, a grande explicação para diversos problemas no funcionamento do SUS é o financiamento, as condições de trabalho, a miséria. Depois de visitar Cuba, fica claro que mais do que dinheiro, falta vontade política, formação de profissionais e alinhamento nos objetivos, porque como eles com tão pouco, fazem tanto? O que nos falta em tecnologia dura, compensamos com tecnologia humana. (fala do gestor do policlínico de Boyeros) É difícil encerrar essa reflexão, pois cada parágrafo escrito, vem acompanhado de um próximo em contraponto. Talvez eu nunca feche uma opinião sobre Cuba, não sei se consegui atingir os objetivos que inicialmente me levaram para lá, mas acredito que o eletivo cumpriu sua função, de instigar e fazer pensar. O maior ganho da experiência foi uma pulga atrás da orelha, que vai incomodar sempre...será que não dá para fazermos diferente?
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