A Ameaça Vem do Aviário

Transcrição

1 A Ameaça Vem do Aviário O maior receio de um virologista concretizou-se com a actual epidemia de gripe aviária no Sudeste asiático. O agente - o subtipo H5N1 do vírus da gripe - reapareceu fortalecido, infectando um elevado número de aves e de pessoas. Pela primeira vez, os cientistas admitem a hipótese de o vírus se recombinar com genes humanos, possibilitando a sua transmissão entre o Homem. O contágio inter-humano nunca foi confirmado pelos testes laboratoriais, mas casos recentes parecem indiciar o contrário. A morte de duas irmãs vietnamitas - que se pensa terem sido contagiadas pelo irmão -, levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a admitir esse risco e a debater o que pode ser uma nova ameaça global. Esta semana, os cientistas reuniram-se para prepararem eventuais medidas de actuação e para reforçarem o apelo de colaboração entre os países. A gripe aviária está já disseminada pelo Cambodja, China, Coreia do Sul, Indonésia, Japão, Laos, Paquistão, Tailândia, Taiwan e Vietname. Apesar das medidas desencadeadas - que foram eficazes em surtos recentes, por exemplo em 2003 na Holanda -, as infecções no Homem continuam a aumentar. Até ao fecho desta edição, estavam confirmados 17 casos, dos quais 12 levaram à morte. Não é a primeira vez que este subtipo do vírus ataca o Homem - ele foi descoberto em 1997, em Hong Kong -, mas, desta feita, ressurgiu com modificações graves. O actual H5N1 impede a utilização da vacina que foi desenvolvida e indicia resistência a alguns dos fármacos no mercado.

2 O QUE É A GRIPE DAS AVES? É uma doença contagiosa das aves, provocada por viroses. Representa, à escala dos animais, o mesmo que a gripe dos humanos. Descoberta em Itália, em 1878, a forma mais grave da doença pode provocar a morte imediata dos espécimes infectados. Ao longo do tempo, os vários surtos levaram ao aparecimento de novos subtipos do vírus, altamente contagiosos, incluindo para o Homem. O mais recente a ultrapassar a barreira da espécie foi descoberto em 1997, durante a epidemia de gripe aviaria em Hong Kong. O vírus do subtipo H5N1- do vírus da gripe (tipo A) infectou 18 pessoas, matando seis. O mesmo agente está agora a assolar o Sudeste asiático, receando os cientistas que esse vírus se combine com genes humanos e permita a transmissão entre o Homem. A verificar-se, estaremos perante uma nova ameaça global, altamente contagiosa. SE NÃO FOR TRATADO: Rápida deterioração do estado de saúde, degenerando em pneumonia viral, que leva a dificuldades respiratórias, problemas renais, falha de vários órgãos e morte COMO APARECEM OS SURTOS NOS ANIMAIS? Normalmente, o vírus da gripe começa por ser disseminado através das aves silvestres, em especial pelas que vivem no meio aquático. Estes animais são o principal reservatório natural do agente e os que mais lhe resistem. Os seus excrementos contêm o vírus, levando à contaminação do solo ou da água e, assim, à infecção de outros animais. Por exemplo, aves de capoeira, pombos ou, até, porcos. Desta forma, a doença pode espalhar-se rapidamente, inclusive a outros países, devido aos movimentos migratórios das aves aquáticas, em especial dos patos selvagens. Um facto que explica o aparecimento simultâneo de vários surtos em diferentes áreas do Globo. A GRIPE DAS AVES Esta gripe tem uma alta taxa de mortalidade no ser humano. A Organização Mundial de Saúde (OMS) receia que o vírus se torne transmissível entre humanos 1. O vírus, do tipo H5N1, é o mais grave que afecta as aves. Até 1997 infectava apenas aves, mas depois passou destas para o homem. 2. Pode espalhar-se pelo contacto com aves infectadas ou com as suas fezes, secas (por contacto através da pele ou por inalação de poeiras) 3. O ser humano não tem imunidade contra este tipo de vírus A RAZÃO DE PREOCUPAÇÃO: O vírus da gripe das aves pode "fundir-se" com o origem a um novo vírus, relativamente ao qual o imunidade, o que... SINTOMAS: Semelhantes aos de uma vulgar gripe... poderá originar uma nova id i vírus da gripe humana vulgar e dar homem teria pouca ou nenhuma

3 Países onde a situação é mais grave: Europa-2003: a gripe das aves chega à Europa propagando-se pela Holanda, Alemanha e Bélgica. 26 milhões de aves mortas. Paquistão: 3,5 milhões de aves mortas. Laos: pelo menos 700 frangos abatidos. Tailândia: pelo menos 4 pessoas mortas e 11 casos suspeitos. 27 milhões de frangos abatidos. Cambodja: milhares de frangos abatidos. Vietname: pelo menos 11 casos de contágio em humanos (9 mortos). Abatidos 8 milhões de frangos. Indonésia: Milhões de frangos abatidos. Taiwan: Mais de 100 mil frangos e patos abatidos. Coreia do Sul: 1,8 milhões de galinhas e patos abatidos. Japão: dezenas de milhares de aves abatidas. China: 50 milhões de aves abatidas. Não há registo de contaminação em humanos. Apertadas as medidas de erradicação do vírus. PRINCIPAIS EXPORTADORES: A Tailândia é o quarto maior exportador mundial de galinhas. Dois dos seus maiores mercados o Japão e a EU exigiram já a proibição de importação durante a gripe das aves. Os maiores importadores de galinhas da Tailândia foram o Japão: 69%, a Alemanha: 7% e a Holanda: 5% PRINCIPAIS IMPORTADORES: A China anunciou que impedirá a importação de aves de 8 países asiáticos durante este período de gripe. EUA: 2434 (em milhares em toneladas) RÚSSIA: 1345 (em milhares de toneladas) BRASIL: 1571 JAPÃO: 827 EU: 739 ARÁBIA SAUDITA: 430 TAILÂNDIA: 457 CHINA: 419 CHINA: 441 MÉXICO: 281 CANADÁ: 83 HONG KONG: 262 HUNGRIA: 35 EMIRADOS ÁRABES UNIDOS: 149 ARÁBIA SAUDITA: 22 COREIA DO SUL: 105 EMIRADOS ÁRABES UNIDOS: 22 CANADÁ: 79 AUSTRÁLIA: 17 KUWAIT: 66 ARGENTINA: 11 Outros: 269 Outros: 49 EU: 606 Fonte: OMS, KRT e GN In: Revista ÚNICA - Expresso de 7 de Fevereiro de 2004

4 COMO SE TRANSMITE AO HOMEM? Os seres humanos podem ser infectados através do contacto próximo com os animais doentes. O vírus pro-paga-se pelo ar, através da inalação de partículas virais ou das mucosas dos olhos. Contudo, os cientistas garantem que a ingestão de aves infectadas não leva ao contágio. COMO NOS DEVEMOS PREVENIR? No caso de uma epidemia como a actual, os países devem fechar as fronteiras à importação de aves e ovos oriundos das áreas afectadas. As pessoas, incluindo os viajantes, devem evitar contactos com animais vivos ou matadouros nas regiões afectadas pelo surto. Em casos muito alarmantes, são ainda desenvolvidos dispositivos de controlo sanitário nos aeroportos, por exemplo para desinfectar os sapatos dos passageiros. A Organização Mundial de Saúde estipula que devem desenvolver-se os programas activos para despiste do vírus. Esse plano é já obrigatório em toda a Europa e é actualizado anualmente por cada Estado membro. No ano passado, Portugal efectuou 2500 análises, incluindo 300 a animais silvestres Os resultados foram negativos, mas o programa manter-se-á. Na eventualidade de surgir um caso, as orientações obrigam ao sequestro da respectiva exploração e ao abate de todos os animais. A actuação atempada c indispensável para controlar a doença nos animais e evitar pandemias. Foi o que a Holanda fez em 2003 e que outros países europeus como a Bélgica ou a Alemanha já tinham feito no passado recente. A DOENÇA PODE CHEGAR A PORTUGAL? As autoridades nacionais acreditam que não. Portugal não importa carne de aves ou ovos, nunca registou um caso de gripe aviária e mantém activo um programa de vigilância. Desde que a doença eclodiu no Sudeste asiático está proibida qualquer importação de aves, incluindo exóticas ou de companhia. A ameaça agora plausível é a possibilidade do vírus já se ter recombinado, conseguindo transmitir-se entre os humanos. Neste caso, a gripe aviária poderá chegar a qualquer parte do mundo e as medidas a desenvolver tenderão a ser semelhantes às adoptadas para a pneumonia atípica. A DOENÇA TEM CURA? Sim. Nos últimos dois anos foram desenvolvidos novos medicamentos an-tivirais capazes de combater o vírus na generalidade dos casos. São fármacos com um elevado potencial quimio-profiláctico, ou seja, que diminuem o risco de contágio. Contudo, os recentes casos no Sudeste asiático indiciam que o H5N1 está a desenvolver resistências. O seu reaparecimento fez-se com modificações que, por exemplo, inviabilizaram o uso da vacina que foi desenvolvida a partir de 1997.

5 As grandes epidemias 1918-Gripe espanhola/ pneumómica Em ano e meio, traduziu-se numa das mais implacáveis pande-mias (epidemias à escala de, pelo menos, um continente) de que há memória. Fez 40 milhões de mortos entre Março de 1918 e Agosto de O primeiro caso foi diagnosticado num complexo militar dos Estados Unidos. No mês seguinte, a pneumónica ficou assim conhecida por levar à morte devido a um efeito secundário, a pneumonia chegou à Europa. Em breve, a China, o Japão e diversos países africanos conheceriam os primeiros mortos. Impossível de conter, presu-me-se que o vírus deste surto de gripe teve a sua origem nos pássaros e propagou-se depois aos porcos e aos seres humanos, sofrendo diversas mutações. Para a história ficou registada uma heca-tombe que só encontra paralelo na peste negra, que matou mais de 100 milhões de pessoas, mas ao longo de vários séculos Gripe asiática Os primeiros casos da segunda pandemia de gripe da históriamoderna foram reportados em Três anos depois, o número de mortos registado rondava o milhão e a gripe espalhava-se pelo continente asiático. Uma mutação genética do vírus levaria a outros surtos, em 1967/1968 e em 1997, ambos com origem em Hong Kong Cólera Ainda devem andar na memória de muitos, no nosso país, as recomendações para lavar os legumes com muito cuidado. É que a cólera, uma infecção intestinal provocada pela bactéria vibrío cholerae, poderia transmitir-se assim e tinha chegado a Portugal, um dos principais países europeus atingidos nos anos 70, juntamente com a Espanha e a Itália. Os especialistas situam a origem desta pandemia em 1961, na região indonésia de Sulawesi. Três anos mais tarde, a infecção já ultrapassava as fronteiras da índia, até chegar ao Iraque, em Mas, a partir da década de 70, à medida que se conseguiam pequenos avanços na sua erradicação noutros continentes, a cólera invadia a África e, em 1991, a América Latina. Ao longo dos anos, a vibrío cholerae fez milhões de vítimas em todo o mundo e pode ser considerada uma das «doenças da pobreza», visto que o agente que a provoca se desenvolve em locais sem saneamento básico. Anos 80 - Sida Tal como a cólera, a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (sida) atravessa parte do século passado e entra no século XXI. Mas, ao contrário da bactéria da cólera, a comunidade científica continua sem resposta para debelar o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), só podendo apostar na prevenção. As organizações especializadas na sida, que ficou conhecida como «a praga do século XX», já fizeram as contas do ano passado: segundo a UNAIDS, a agência das Nações Unidas para o combate à epidemia, só em 2003 esta fez três milhões de mortos, 500 mil dos quais crianças, além de cinco milhões de novos infectados, que se somam a 40 milhões de portadores. Os países africanos são os mais atingidos, sobretudo devido à falta de informação sobre as formas de transmissão. Na Europa, Portugal ocupa um dos primeiros lugares na disseminação e na falta de conhecimentos sobre a doença. H

6 1 Uma nova estirpe do vírus H5N1 foi detectada e descrita por investigadores como sendo resistente ao tamiflu o antiviral encomendado por Portugal para fazer face a uma pandemia de gripe das aves. A descoberta é relatada na edição desta semana da revista NATURE e vem aumentar a preocupação dos 25 países da União Europeia que acordaram um conjunto de medidas para detecção precoce da doença. O Governo português anunciou a criação de uma comissão de acompanhamento da gripe.

7 2 Estirpe resiste a fármaco adoptado por Portugal Tamiflu é ineficaz contra nova estirpe do vírus da gripe aviária, revela 'Nature' FILOMENA NAVES * Há uma nova estirpe do vírus da gripe aviária H5N1 que é resistente ao Tamiflu, o medicamento que os países pelo mundo inteiro, incluindo Portugal, estão a adquirir como reserva estratégica para fazerem face a uma eventual pandemia de gripe causada por este vírus das aves, se ele vier a infectar também a espécie humana. Este dado novo levanta a possibilidade de aquele medicamento, que usa o princípio activo o seltamivir, ser insuficiente para combater uma potencial epidemia global causada por este vírus da aves. Portugal decidiu adquirir 2,5 milhões de doses de Tamiflu para a sua reserva estratégica, sendo o único medicamento existente para combater uma eventual epidemia. Contactado pelo DN, o director-geral da Saúde, Francisco George, referiu que na altura da elaboração do Plano de Contingência para Portugal, a DGS "já sabia que a possibilidade de resistência ao Tamiflu existia em 10% dos casos". Não revelando se Portugal vai ou não encomendar outro tipo de medicamento, Francisco George disse apenas que, "nestes casos, o que há a fazer é aumentar a dose de Tamiflu e prolongar o tratamento". Na Roménia foi, entretanto, detectado ontem um novo foco de gripe aviária no Sudeste do país, em Maliuc, uma aldeia no delta do Danúbio, localizada a cerca de 60 quilómetros de Ceamurlia de Jos, o primeiro local naquele país onde foram detectadas, na semana passada, aves infectadas com o H5N1 (ver texto na outra página). Quanto à nova estirpe do vírus resistente, a sua descoberta é relatada na Nature por uma equipa de investigadores do Japão, que estudou o caso de uma doente do Vietname, infectada em Fevereiro pelo H5N1.0 artigo só deveria ser publicado na próxima semana, na edição de 20 de Outubro. No entanto, a revista científica britânica decidiu ontem antecipar a sua publicação, "dada a sua relevância para os debates públicos " relacionados com uma potencial pandemia de gripe. A rapariga vietnamita, de 14 anos, infectada pelo H5N1, foi tratada com Tamiflu, cujo princípio activo é o oseltamivir, e acabou por recuperar. Mas o estudo genético sobre o vírus, feito posteriormente por uma equipa liderada pelo investigador japonês Yoshihiro Kawaoka, da Universidade de Tóquio, mostra que ele tinha uma sofrido uma mutação que o tornava resistente ao oseltamivir. Investigadores recomendam aos países que consigam reservas de outro fármaco, com o nome de 'Relenza' Testes de laboratório em animais, realizados pela mesma equipa, mostraram, no entanto, que o mesmo vírus era sensível a uma outra substância antiviral chamada zanamivir, que é comercializada com o nome de Relenza. Segundo os investigadores japoneses, os seus dados sugerem "que poderá ser útil ter também em reserva o zanamivir, para além do oseltamivir, no caso de uma pandemia causada pelo H5N1". A poten- cial emergência de vírus resistentes aos medicamentos disponíveis é sempre uma preocupação das autoridades sanitárias, pelo que há inúmeros estudos. O que essas investigações mostram é que os vírus com mutações que os tornam resistentes também perdem dinâmica, tornando-se menos transmissíveis e menos patogénicos. Mas esta é apenas uma indicação geral. Os autores referem ainda no seu artigo na Nature que a mesma doente vietnamita pode ter sido contagiada pelo irmão, e não directamente por aves infectadas. Não há, no entanto, qualquer confirmação desta suspeita, pelo que, sublinham os autores, será necessário estudar casos de suspeitas idênticas para que possam ser avaliadas outras implicações. A possibilidade de o H5N1 provocar uma nova pandemia de gripe já está a preocupar a Organização Mundial de Saúde (OMS) há algum tempo. Para já, os únicos casos humanos aconteceram na Ásia e foram provocados por contactos directos com aves infectadas. Não há nenhum caso de contágio entre humanos confirmado. In: DN de 15 de Outubro de Texto de Filomena Naves * Com Ângela Marques

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