ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK
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- Henrique Pedroso de Almeida
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1 ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK Fabiana Panhosi Marsaro (Unicamp) RESUMO: Em 2011, o cantor Ed Motta postou comentários preconceituosos em sua página do Facebook. Partindo desse exemplo, neste trabalho propomos reflexões que possam embasar um trabalho crítico na escola utilizando essa rede social. As práticas escolares envolvendo as Tecnologias e Informação e Comunicação podem ser catalisadoras de mudanças sociais, desde que de forma crítica e situada, assumida sua complexidade. PALAVRAS-CHAVE: ética, Facebook, escola ABSTRACT: In 2011, singer Ed Motta posted prejudiced comments on his Facebook page. From this example, in this paper we propose reflections that can support a critical work in school using this social network. The school practices involving the Information and Communication Technologies can be catalysts for social change, since critically, located and assumed its complexity. KEYWORDS: ethics, Facebook, school Todas as pessoas fazem isso nos bares, em casa. Com essa afirmação, Ed Motta buscou justificar as polêmicas declarações que proferiu no dia 11 de maio de 2011, não no conforto de sua casa, muito menos no clima descontraído de um bar, mas em sua página do Facebook. Foi na rede social que têm mais de 750 milhões de usuários no mundo, que o cantor brasileiro vociferou contra o povo feio do Brasil (Cf. Anexo I). Os ícones de polegares levantados mostram que os comentários do cantor sobre a civilidade do Sul e do Sudeste do Brasil em comparação ao resto do país, feitos logo após ele desembarcar no Aeroporto da cidade de Curitiba, foram curtidos por vários usuários. Felizmente, como matéria do jornal Folha de S. Paulo, de 13/05/2011, fez questão de registrar, também houve manifestações contrárias ao artista: Um internauta reagiu indignado aos comentários: E tu bonitão? A cultura chata que tu vive, a grosseria que emergiu destes dois infelizes comentários, também não és um arquétipo de beleza (PRETO, 2011). Após a polêmica ganhar corpo, saindo do perfil do cantor e se tornando notícia, Ed Motta recuou: Procurado pela Folha, Motta afirmou que não sabia que seu perfil no Facebook estava aberto ao público. Disse que eram apenas brincadeiras com os amigos, sacanagem (PRETO, 2011).
2 Hipertextus Revista Digital ( n.9, Dez Ainda que nem sempre cheguem até a mídia, o que é mais comum em exemplos como o nosso, em que os envolvidos são famosos, brincadeiras como essas que acabamos de relatar vêm se tornando cada vez mais frequentes nas redes sociais, seja envolvendo preconceitos de classe, racismo ou casos de homofobia e intolerância, suscitando diversas questões sobre as quais podemos refletir baseando-nos em diferentes teorias. Neste trabalho, explicitamos, situaremos a questão na área da Linguística Aplicada e, tendo em mente as relações entre linguagem, tecnologia e educação, nossa prioridade será tentar estabelecer pontes entre o problema posto e práticas pedagógicas que possam se dar a partir dele posteriormente, em um contexto de ensino e aprendizagem de língua materna. Discutiremos aqui, portanto, as seguintes questões: Como lidar com manifestações desse tipo - que sim, tragicamente, também acontecem em muitos bares e em muitas casas - quando são publicadas em meios com a abrangência das redes sociais, em que ganham apoio, são compartilhadas e reproduzidas, vinculadas ao nome de seus autores, sem que estes pareçam se dar conta do espaço em que estão agindo? Como sensibilizar nossos alunos para essas questões? Como prepará-los para agir de forma ética na vida social, sabendo lidar com as diversas vozes que se manifestam na internet? Acreditamos que um trabalho envolvendo o uso das redes sociais na escola deveria colocar em segundo plano a exploração de como usá-las, em um sentido técnico, relativo às habilidades do usuário no manuseio da máquina ou da ferramenta. Lembremos que as crianças e adolescentes que atualmente ocupam os bancos escolares, pelo simples fato de terem nascido após a década de 70, junto a todos os outros chamados nativos digitais, pelo menos na nomenclatura, pertencem à geração conhecida como geração (inter)net (netgeneration) ou geração digital (digital generation) (NOGUEIRA, 2007, p. 80), ou seja, estamos lidando com imersos nessas tecnologias. Vídeos como o já clássico O Buraco no Muro 1 nos mostram que o domínio técnico é um problema de solução relativamente simples, pois, uma vez em contato com a máquina ou a ferramenta, o usuário passa a explorá-lo intuitivamente, entendendo rapidamente sua lógica de funcionamento, pelo menos no que diz respeito às suas essencialidades. Consideramos necessário ir além, portanto, já que, de fato, as novas tecnologias diversificam e complexificam continuamente as práticas de linguagem, os perfis dos sujeitos letrados e as ideologias sobre o papel da leitura e da escrita (BUZATO, 2009, p. 12) e a escola não fica imune a esses processos já que, como aponta Rojo (2009), o volume de informações que circulam na sociedade é constantemente superado e impõe a cada dia novos parâmetros 1 Disponível em
3 ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK Fabiana Panhosi Marsaro (Unicamp) para a formação dos cidadãos (ROJO, 2009, p. 89). A autora defende a importância de considerar que as novas configurações da sociedade têm tido impacto direto nos letramentos, principalmente nos dominantes, e, por isso, devem ser encaradas de maneira crítica pela escola. As quatro principais mudanças elencadas pela autora são: i) a vertiginosa intensificação e a diversificação da circulação da informação nos meios de comunicação analógicos e digitais (ROJO, 2009, p. 105), que têm colocado em xeque o impresso e o papel; ii) a diminuição das distâncias espaciais (ROJO, 2009 p. 105), que tem efeitos sobre a construção das identidades e o enraizamento das populações; iii) a diminuição das distâncias temporais ou a contração do tempo (ROJO, 2009 p. 105), que têm tornado o instantâneo e o imediato as medidas que regem o cotidiano; iv) a multissemiose ou a multiplicidade de modos de significar que as possibilidades multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico trazem para o ato da leitura (ROJO, 2009 p. 105). Ainda segundo a autora, no contexto dessas mudanças está uma cultura de massa, fruto da globalização e da sociedade de consumo, que é padronizada, monofônica, homogênea e pasteurizada [...] Por isso, se tornam tão importantes hoje as maneiras de incrementar, na escola e fora dela, os letramentos críticos, capazes de lidar com os textos e discursos naturalizados, neutralizados, de maneira a perceber seus valores, suas intenções, suas estratégias, seus efeitos de sentido (ROJO, 2009, p. 112). A ideia de discursos naturalizados trazida por Rojo contribui para o entendimento do episódio que estamos tomando como exemplo. É preciso partir da constatação de que não foram a internet ou as redes sociais que deram origem a declarações como as de Ed Motta. Pelo contrário, esses e outros arroubos de preconceito perduram em nossa sociedade e nesses meios ganham mais visibilidade, são difundidos muito mais rapidamente e de forma menos velada, por encontrar facilmente respaldo em vozes sociais semelhantes. De maneira bastante interessante, para tentar justificar suas declarações na internet, Ed Motta as equipara às declarações que, não ele, mas todos, sempre fazem em ambientes domésticos. Essa justificativa, diferente do que seria esperado, não aponta imediatamente para a dicotomia existente entre real e virtual. Ed Motta tem um discurso um pouco diferente do senso comum, que costuma alegar que o que é dito ou feito no mundo virtual não pode ser considerado de fato pelo real, como se a internet fosse uma existência paralela, imune às leis - 3 -
4 Hipertextus Revista Digital ( n.9, Dez e convenções que regem a sociedade. Lévy (1996) discute longamente essa questão, chegando à conclusão de que uma oposição mais coerente seria entre o atual e o virtual, se opondo à polarização real e virtual. O autor discorre: (...) o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização. (...) A atualização aparece então como a solução de um problema, uma solução que não estava contida previamente no enunciado. A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades (Lévy, 1996, 16). A consciência de Ed Motta em não tentar se eximir das consequências de suas palavras alegando que elas foram proferidas via Facebook, entretanto, nos surpreende de forma negativa. Assumindo esse posicionamento, podemos entender que a lógica do cantor é a de que uma vez que enunciados semelhantes aos dele circulam nos mais diversos contextos, não há razão para que sejam reprimidos na internet, já que para ele, ingenuamente, a diferença seria somente a maior divulgação, da qual ele não se deu conta previamente. Lógicas como essa, cada vez mais comuns de serem externalizadas sem pudores, em parte são reflexo das intensas e rápidas mudanças sociais e econômicas pelas quais estamos passando. Gee (1996) aponta para uma nova ordem de trabalho, que tem como consequência alterações nas relações entre os sujeitos. Segundo o autor, nos últimos 20 anos, caminhamos para o que hoje é uma realidade do fast capitalism ou capitalismo rápido: During the past twenty years or so, the realm of work has changed dramatically across the developed world as part of a profound global economic restructuring 2 (GEE, 1996, p. 24). Gee chama de fast capitalism texts, ou textos do capitalismo rápido, a visão particular sobre essa nova ordem de trabalho que circula em nossa sociedade e que vem modificando a maneira como as pessoas pensam acerca de suas relações com os negócios, educação, governo e sociedade (GEE, 1996, p. 25). 2 Em tradução livre: Durante os últimos 20 anos, o universo do trabalho mudou drasticamente em todo o mundo desenvolvido, como parte de uma profunda reestruturação econômica global
5 ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK Fabiana Panhosi Marsaro (Unicamp) A essas mudanças, podemos relacionar a reflexão que Martin (2008) faz a respeito da construção da identidade individual na pós-modernidade: The construction of individual identity has become the fundamental social act. The taken-for-granted structures of modern (i.e., industrial) society the nation state, institutionalized religion, social class have become weaker and fuzzier as providers of meaning and, to that extent, of predictability. Even the family has become more atomized and short term. Under such conditions individual identity becomes the major life-project. You have to choose the pieces (from those available to you) rather than having them (largely) chosen for you. In this context, awareness of the self assumes new importance: reflexivity is a condition of life; a life that needs to be constantly active and constantly re-created. And care is needed, because each individual is responsible for their own biography. Risk and uncertainty have become endemic features of the personal biography, and individual risk-management action is thus an essential element of social action (Beck, 1992, 2001). The community can be no longer regarded as a given that confers aspects of identity, and the building of involvement in communities has become a conscious actionforming part of the construction of individual identity. Individualization has positive as well as negative aspects: the freedom to make one s own biography has never been greater, a theme frequently repeated in the media. But the structures of society continue to distribute the choices available very unequally, and the price of failure is greater since social support is now offered only equivocally 3. (MARTIN, 2008). 3 Em tradução livre: A construção da identidade individual tornou-se o ato social fundamental. As estruturas tidas como beneficiárias da sociedade moderna (isto é, industrial) a nação-estado, a religião institucionalizada, classe social tornaram-se mais fracas e imprecisas como fornecedoras de significado e, nessa medida, de previsibilidade. Mesmo a família tornou-se mais atomizada e de curto prazo. Sob tais condições, a identidade individual se torna o principal projeto de vida. Você tem que escolher as peças (entre as disponíveis para você), em vez de tê-las (principalmente) escolhidas por você. Neste contexto, a consciência do auto assume nova importância: a reflexão é uma condição de vida, uma vida que precisa ser constantemente ativa e constantemente recriada. E é preciso cuidado, porque cada indivíduo é responsável por sua própria biografia. O risco e a incerteza tornaram-se características endêmicas da biografia pessoal, e a ação de gestão de risco individual é, portanto, um elemento essencial da ação social (Beck, 1992, 2001). A comunidade pode já não ser considerada como um dado que confere aspectos da identidade, e a construção de envolvimento em comunidades tornou-se uma parte da ação de formação de consciência da construção da identidade individual. A individualização tem aspectos positivos, bem como aspectos negativos: a liberdade de fazer sua própria biografia nunca foi tão grande, um tema frequentemente repetido na mídia. Mas as estruturas da sociedade continuam a distribuir as - 5 -
6 Hipertextus Revista Digital ( n.9, Dez Como o autor afirma, na pós-modernidade, a construção de uma identidade acaba por pautar a vida das pessoas, o que, sem dúvida, contribui para o individualismo ter se tornado também marca de nossa contemporaneidade. Antes de formular o conceito de modernidade líquida, Bauman já apontava para essa fragmentação da vida e dos indivíduos, trazendo à tona uma questão fundamental para nós neste trabalho: a ética. Segundo o autor, vivemos na era do individualismo mais puro e da busca pela boa vida, limitada somente pela exigência de tolerância (desde que acompanhada de um individualismo autocelebratório e sem escrúpulos, a tolerância só pode expressar-se como indiferença) (BAUMAN, 2005, p. 9). A indiferença, portanto, costuma ser a manifestação mais comum para com o outro. As redes sociais, porém, ao conectarem rapidamente as vozes sociais que compartilham das mesmas indiferenças, parecem promover a sua externalização. Por outro lado, como Braga afirma, se a falta do domínio da língua correta, da aparência correta, do comportamento correto entre outros, sempre foram argumentos explorados para impedir a participação ou justificar a exclusão de indivíduos oriundos de outros grupos sociais (BRAGA, 2010), nas redes sociais esses pares também têm mais chances de se conectar e fazer valer sua voz social. Ou seja, a internet possibilita que aqueles que sofrem da intolerância possam se manifestar pelo mesmo meio dos intolerantes, com igual ou maior abrangência. Encarar a internet e as redes sociais como possibilidades de ação é uma postura que dialoga com o que Braga afirma: O avanço no desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) não garante a subversão desses modos de estruturação social. No entanto, o aumento e a diminuição de custos envolvidos no acesso à informação e à interação a distância viabilizados pela Internet ampliam, ou mesmo criam, novos espaços para a participação social, os quais carregam em si um potencial transformador. Como prevê a reflexão gramsciana, embora as restrições sócio-estruturais estabeleçam limites para a ação social, a malha social é constituída de brechas, rupturas e conflitos que viabilizam agentividade e potencializam mudanças sociais. A extensão e gradação de tais mudanças vai certamente variar de acordo com o poder de coesão e de exclusão social exercido pelos opções disponíveis de forma muito desigual, e o preço do fracasso é maior, já que o apoio social é agora oferecido somente equivocadamente
7 ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK Fabiana Panhosi Marsaro (Unicamp) grupos hegemônicos e também de acordo com a capacidade de organização e de ação política dos grupos não-hegemônicos. Em função da natureza de tais ações, esses grupos podem ou não ocupar e ampliar as brechas já existentes de modo a gerar mudanças locais ou rupturas mais radicais (GRAMSCI, 1971). (BRAGA, 2010). Castells, há mais de uma década, mais precisamente em 1999, procurando apontar certas tendências que poderiam configurar a sociedade no início do século XXI, diz: Há outra reação contra a exclusão social e a não-pertinência econômica que, ao meu ver, desempenhará papel fundamental no século XXI; a exclusão dos que excluem pelos excluídos. Como o mundo inteiro está (e estará cada vez mais) interligado nas estruturas básicas da vida sob a lógica da sociedade em rede, a não-adesão de pessoas e de países não representará uma saída pacífica (CASTELLS, 1999, s./p.) As práticas escolares envolvendo as TIC s, nesse sentido, podem ser catalisadoras dessas transformações e mudanças sociais, dessa manifestação efetiva dos excluídos, desde que assumam a complexidade envolvida nessa tarefa e não lidem apenas com o manuseio didatizado e acrítico das novas tecnologias. É na esteira desses mesmos desafios que o Grupo de Nova Londres 4 se propõe a pensar uma pedagogia de multiletramentos, que poderia dar conta de maneira crítica e situada da heterogeneidade, pluralidade e das tensões que permeiam a sociedade e, consequentemente, a educação, na contemporaneidade. Para eles, de acordo com Rojo (no prelo), o prefixo multi, no conceito de multiletramentos, envolve por um lado, a multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação para os textos multimodais contemporâneos e, por outro, a pluralidade e diversidade cultural trazida pelos autores/leitores contemporâneos a essa criação de significação (ROJO, no prelo, p. 1). 4 O New London Group, formado por teóricos como Bill Cope e Mary Kalantzis, James Paul Gee, Gunther Kress, Sarah Michaels e Martin Nakata, reuniu-se pela primeira vez em 1996, na cidade de Nova Londres, nos Estados Unidos. Desse encontro originou-se o manifesto Uma pedagogia dos multiletramentos: Projetando futuros sociais, publicado pela Harvard Educational Review
8 Hipertextus Revista Digital ( n.9, Dez Assim, para os autores, uma pedagogia dos multiletramentos deve desenvolver-se recobrindo três âmbitos essencialmente (KALANTZIS; COPE, 2006): o do trabalho, considerando a diversidade produtiva, uma vez que no pós-fordismo, espera-se um trabalhador multicapacitado e autônomo, flexível para adaptação à mudança constante (ROJO, no prelo, p. 2); o da cidadania, levando-se em conta o pluralismo cívico, ou seja, frente às práticas arraigadas e sedimentadas no contexto escolar, provocar a coesão-peladiversidade, comprometer-se com o papel cívico e ético das pessoas (ROJO, no prelo, p. 4); e o da vida pessoal, pensando-se as identidades multifacetadas, apropriadas a diferentes modos de vida, espaços cívicos e contextos de trabalho em que cidadãos se encontram (ROJO, no prelo, p. 2). Neste trabalho, portanto, estamos propondo que manifestações de intolerância propagados no Facebook, como em nosso exemplo, podem ser úteis para discutir, de forma crítica, questões éticas e de cidadania com os alunos, permitindo a eles um uso menos ingênuo da internet. Essa estratégia visa, principalmente, a aproveitar as potencialidades dessa ferramenta pensando verdadeiramente em uma apropriação tecnológica, ou seja, nos termos de Buzato (2010), em potencializar o processo através do qual uma comunidade transforma uma tecnologia em algo significativo para si e para suas necessidades. Buzato (2010) afirma que: os novos letramentos/letramentos digitais são, ao mesmo tempo, produtores e resultados de apropriações tecnológicas.essas apropriações põem em evidência processos e conflitos socioculturais que sempre existiram e que não deixarão de existir, mas também abrem a possibilidade de transformações (inovações, aberturas de sentido, instabilidades estruturais, etc.) com as quais os que educam, numa perspectiva crítica e não-conformista, precisam se engajar, se é que estão dispostos a responsabilizar-se pela própria (e de seus alunos) inclusão/exclusão (BUZATO, 2010). Na rede social Facebook, mais do que o preenchimento do perfil com as informações básicas, o que marca a participação do usuário são atualizações em seu mural, a inserção de links, comentário e vídeos, o compartilhamento de postagens de outros usuários, ou seja, uma série de ações que movimentam a página do usuário e refletem seus interesses e características de maneira direta e indireta. Assim, capacitar o aluno a realizar essas ações de - 8 -
9 ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK Fabiana Panhosi Marsaro (Unicamp) seleção e análise de conteúdo a ser publicado de forma crítica é fundamental para um uso situado da ferramenta. Tendo em vista o exemplo que guiou toda a nossa teorização, chegamos finalmente ao momento de explicitar quais práticas poderiam se desdobrar a partir de nossas reflexões. Acreditamos que exemplos de declarações como as de Ed Motta possam guiar um trabalho de sensibilização dos alunos com relação à ética na internet, incentivando a construção do respeito ao outro e do conceito de divergências respeitosas. Dada a complexidade que a questão pode ganhar, imaginamos que a proposta seria melhor aplicada nas turmas finais do Ensino Fundamental II ou nos primeiros anos do Ensino Médio. O ponto de partida para a prática de ensino-aprendizagem seria um exemplo similar ao que trouxemos neste trabalho, em que uma declaração de intolerância publicada no Facebook tenha causado polêmica, não necessariamente sendo noticiada pela mídia, como no caso de Ed Motta. Cabe ao professor a sensibilidade para selecionar um exemplo que possa ser produtivo para a comunidade onde atua e para a classe em que o trabalho se dará. Trazer à tona alguma questão que esteja latente na classe, como o preconceito contra nordestinos ou a homofobia, com certeza gerará mais polêmica, mas, por outro lado, possibilitará mais oportunidades de um trabalho realmente significativo. A partir do exemplo selecionado e das impressões da classe a respeito do mesmo, imaginamos que possa ser criado um ambiente profícuo para a prática do debate. Os alunos poderão pesquisar casos semelhantes e a sua repercussão na mídia. A necessidade de expor argumentos e justificar opiniões pode motivar um trabalho com o gênero oral formal público debate ou com textos argumentativos, cabendo ao professor diagnosticar o mais adequado para a turma no momento da atividade. A discussão deve ser sempre eticamente orientada, com atenção especial aos alunos que marcarem seu posicionamento a favor de vozes sociais questionáveis, o que com certeza pode acontecer. A segunda etapa da prática de ensino-aprendizagem vai de encontro com a ideia de Braga (2010), de que: a direção do desenvolvimento tecnológico e das mudanças sociais dele advindas está sempre ligada a valores e ideologias préexistentes que podem também mudar em novas direções quando a adoção dessa tecnologia transforma a própria natureza das práticas sociais pré-existentes (Braga, 2007, p. 80 apud BRAGA, 2010)
10 Hipertextus Revista Digital ( n.9, Dez Ou seja, mostrados os efeitos nefastos que podem ter certas publicações nas redes sociais e que, infelizmente, podem ser endossados por milhares de pessoas, apresentar aos alunos possibilidades de agir de forma efetiva para a obtenção de um bem comum pode sensibilizá-los para o fato de que são as ações individuais que decidem de que forma as tecnologias podem impactar na sociedade. Um exemplo que temos e que pode ser alterado conforme o contexto em que o professor estiver é o reproduzido na Figura 2 (Cf. Anexo II). Explicamos: após a Câmara de Vereadores da cidade de Americana, interior de São Paulo, ter votado em regime de urgência o aumento dos salários dos vereadores em 60%, foi criado no Facebook um Evento convocando a população para uma passeata em protesto à ação. A criação de um Evento é uma função gratuita do Facebook a que qualquer usuário dessa rede social tem acesso. O usuário precisa definir um nome para o evento, adicionar data, horário e local e os detalhes, ou seja, uma descrição. Também há a opção de adicionar uma imagem. Feito isso, o usuário pode convidar seus contatos e outras pessoas para o evento. Os convidados têm a opção de aceitar ou não o convite, escolhendo entre as opções Vou, Não sei, Não vou. Quando a opção escolhida é Vou, o evento é compartilhado no perfil do convidado, de onde pode ser visto por outras pessoas que também podem confirmar presença, mesmo que não tenham sido convidadas inicialmente. Utilizando essa estratégia, a parte da população insatisfeita conseguiu a adesão de mais de duas mil pessoas à passeata, registradas na página do Evento. No dia 26 de novembro de 2011, horário marcado para o ato, de fato, cerca de duas mil pessoas compareceram ao local combinado, como registrado em matéria do jornal local 5. Pressionados pela ação e pela cobertura da mídia a respeito do caso, em nova votação, os vereadores revogaram o aumento e até então não houve novas propostas do mesmo tipo. Há vários exemplos semelhantes de mobilizações, desde o recente Churrasco da Gente Diferenciada, motivado pela resistência de parte dos moradores de Higienópolis à construção de um metrô no local, até o uso das redes sociais pelos militantes na Primavera Árabe, em uma escala global. Utilizando recursos argumentativos aprendidos, os alunos podem, colaborativamente, criar um evento que mobilize a comunidade em que vivem para uma causa comum. Pode haver discussões para definir estratégias de divulgação do evento entre aqueles que possuem perfis no Facebook, além do desenvolvimento de textos para justificar a causa em questão e incentivar a participação da comunidade no ato. Alguns usuários do Facebook criam eventos que se restringem à internet, mas seria interessante trabalhar com os alunos a abrangência e 5 Disponível em:
11 ÉTICA E INTERNET: REFLEXÕES NA ESCOLA A PARTIR DO FACEBOOK Fabiana Panhosi Marsaro (Unicamp) rapidez de propagação do meio em questão para uma ação que tivesse reflexos para além daquele ambiente, possibilitando uma apropriação efetiva. Não esquematizamos nossa proposta em passos muito fixos, ou em uma sequência didática com gêneros pré-estabelecidos, mas acreditamos que a análise, somada a essa ideia esboçada ao final, possa gerar inquietações e reflexões que, em contato com contextos e necessidades diferentes, podem se materializar de várias formas. Trabalhar com as novas tecnologias na escola de maneira mais crítica não garante que tipos de transformações vão ocorrer, nem mesmo se vão ocorrer, uma vez que as ferramentas e os tipos de relações que estabelecemos por meio da internet são frutos também dessas novas formas de se organizar e de agir da sociedade. Entretanto, pensar em propostas que levem em conta essa complexidade é o primeiro passo para que não nos isentemos dessas difíceis questões que estão em pauta atualmente. Reflexões éticas e situadas a esse respeito são necessárias e bem-vindas. Referências BAUMAN, Z. Ética posmoderna. Tradução: Bertha Ruiz de la Concha. 1 ed. Siglo XXI Editores, 2005 BRAGA, D. B. Tecnologia e participação social no processo de produção e consumo de bens culturais: novas possibilidades trazidas pelas práticas letradas digitais mediadas pela Internet. Trabalhos em Linguística Aplicada, vol.49 no.2 Campinas: BUZATO, M. E. K. Cultura digital e apropriação ascendente: apontamentos para uma educação 2.0. Educação em revista, vol. 26, n. 3. Belo Horizonte, CASTELLS, M. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3, São Paulo: Paz e terra, 1999, p GEE, J. P.; HULL, G. A.; LANKSHEAR. The new work order - Behind the language of the new capitalism, LÉVY, P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, MARTIN, A. Digital Literacy and the Digital Society in: LANKSHEAR, C.; KNOBEL, M. Digital Literacies - Concepts, Policies and Practices, New York: NOGUEIRA, M. C. B. Ouvindo a voz do (pré)adolescente brasileiro da geração digital sobre o livro didático de Inglês desenvolvido no Brasil. Dissertação (Mestre). Rio de Janeiro, RJ: Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
12 Hipertextus Revista Digital ( n.9, Dez PRETO, M. Ed Motta ofende mulheres e músicos e cria polêmica no Facebook. Folha de S. Paulo, 13/05/2011. Disponível em: Acesso em: 28/11/2011. ROJO, R. H. R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo, SP: Parábola Editorial, A Teoria dos Gêneros Discursivos do Círculo de Bakhtin e os Multiletramentos. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: inter e intradiscursividades, Série Bakhtin Inclassificável, Vol. 4. Campinas, SP: Mercado de Letras, no prelo. Anexos Anexo 1 Figura 1 - Reprodução da página de Ed Motta no Facebook Anexo 2 Figura 2 - Página do evento no Facebook
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