Audiovisualidades do papel feminino nos anos 1950 sob o olhar da publicidade televisiva.
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- Emanuel Laranjeira Balsemão
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1 Audiovisualidades do papel feminino nos anos 1950 sob o olhar da publicidade televisiva. Roberta Fleck Saibro Krause 1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos Resumo O presente trabalho busca realizar a reflexão dos conceitos de audiovisualidades nas mídias através da análise da presença feminina em comerciais televisivos da década de O texto apresenta a contextualização da publicidade durante o Governo de Juscelino Kubitschek e a introdução do consumo no Brasil, que produziu efeitos sociais e culturais, por meio da representação da evolução rumo ao progresso através da aquisição de bens duráveis. Posteriormente pretende-se observar como se apresentam os fundamentos teóricos entendidos no objeto referido por meio da conexão dos autores Machado (2007), Benjamin (1986), Aumont (2004), Huberman (2013) e Weibel (2000). Palavras-chave: audiovisualidades; propaganda; Governo JK; feminine; consumo. Introdução Atualmente vivemos em uma sociedade marcada pelo consumo e pela conexão em rede que ultrapassa as leis do espaço e do tempo. Podemos estar conectados sempre e onde quisermos através de dispositivos móveis e redes sem fio para acompanhar constantemente os passos de amigos, familiares, marcas que consumimos, personalidades que admiramos, etc. A proximidade que a internet proporciona é marcada por múltiplos contatos via mídias sociais e uma sensação de instantaneidade típica do século XXI e sua geração de novos consumidores ávidos por lançamentos e novidades tecnológicas. Porém, o ritmo de consumo no Brasil atual nada tem a ver com os primórdios do capitalismo em território nacional quando as grandes indústrias americanas de bens 1 ¹ Trabalho final desenvolvido para a disciplina de Audiovisualidades nas Mídias, ministrada pelo Prof. Dr. Gustavo Daudt Fischer e Prof. Dra. Sonia Montaño. Roberta Fleck Saibro Krause é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. Bolsista CAPES. (robertakrause@hotmail.com)
2 duráveis se instalaram em território brasileiro após a II Grande Guerra Mundial. Por meio da abertura da economia pelas mãos de Getúlio Vargas e posteriormente sob o comando do visionário Juscelino Kubitschek, a partir de 1956, as multinacionais encontraram uma sociedade com forte demanda, aliada à capacidade de produção e, consequentemente, de consumo. O capitalismo norte-americano disseminou uma nova forma de viver baseada na aquisição de produtos e no ideal de uma família que tem na mulher dona de casa a principal força feminina chamada de rainha do lar. É através da disseminação deste imaginário que se constrói uma sociedade totalmente espelhada no american way of life, modo de viver dos americanos, que é tomado como símbolo a priori do desenvolvimento e progresso dos anos O imperialismo que os Estados Unidos conquistaram nos anos subsequentes ao fim do conflito armado da Guerra, no nascer da ameaça atômica e da disseminação da Cortina de Ferro comunista foi uma oportunidade de consumidores ávidos por novidades. Além disso, a tão desejada e prometida modernidade que teve papel primordial no discurso de candidatura de JK à presidência do Brasil, fez com que esses novos consumidores adotassem um novo olhar frente ao desenvolvimento econômico e se tornassem uma nova classe econômica: a classe média. Com o progresso do país e a chegada de inúmeras multinacionais, a sociedade foi apresentada às facilidades da vida moderna; os eletrodomésticos, aparelhos que os norte-americanos utilizavam em seu dia-a-dia e que, posteriormente, viraram sonho de consumo de qualquer dona de casa. O acesso a estas modernidades se deveu ao forte papel da propaganda da época em apresentar a utilidade e a finalidade dos produtos ao público que os desconhecia até então. Marcas como OMO, Palmolive, Gessy, Arno e Electrolux viraram itens mediadores de classificação social e se consagram como sonhos de consumo da família brasileira. Portanto é neste cenário que se propõe a desenvolver a presente reflexão; verificar traços identitários das audiovisualidades nos comerciais televisivos da década de 1950 e analisar como a propaganda adotou a força do papel da mulher nos comerciais
3 da época. Como objetos de estudo, analisaremos o comercial do Sabão em Pó OMO de 1957 que foi veiculado na televisão brasileira durante o período de governo de JK e hoje faz parte do acervo digital do portal que contém grande volume de peças publicitárias impressas, eletrônicas e digitais do Brasil desde os primórdios da comunicação no país. Link de acesso ao vídeo: A propaganda de 1956 à 1961 Acompanhando o desenvolvimento industrial e cultural brasileiro, brota uma sociedade de consumo nas mãos do Presidente Kubitschek. Como resposta ao advento do crescimento e da industrialização, as pessoas passaram a desejar novos bens e mais informação, tudo isso para acompanhar o caminho rumo ao futuro. O desenvolvimento econômico e a estabilidade política são elementos importantes que marcaram os anos 50, mas os aspectos sociais e culturais são igualmente relevantes. Ao longo da década de 50, especialmente durante o governo JK, a sociedade brasileira se consolidou como urbana e industrial, com alterações importantes no consumo e no comportamento da população (KORNIS, 2005, p. 27). O consumismo dos brasileiros surgiu como uma extensão da presença dos EUA e das ações monopolísticas das corporações econômicas em território nacional. Segundo Castelo Branco, Martensen e Reis (1990) as grandes empresas de origem estrangeira traziam para cá as mesmas marcas que já comercializavam em outros países e limitavam-se a produzir artigos padronizados, de qualidade apenas razoável, mas que para a classe média recém formada, eram aparelhos fantásticos. Todo o tipo de novidade foi apresentado aos brasileiros e com isso, novos sonhos de consumo começaram a surgir estimulados por marcas como Lâminas Gilette, Palmolive, Gessy, dentre outras. Paralelamente ao nascimento destas grandes marcas, a mídia se desenvolve aceleradamente e o rádio teve sua década de ouro, revelando os primeiros comerciais que transmitiam os sonhos de lazer e sedução das novas máquinas produzidas no Brasil. Sob o comando do empresário Assis Chateaubriand surgem duas estrelas: a revisa O Cruzeiro e a primeira estação de TV da América do Sul, a PRF-3 TV Tupi de São
4 Paulo, que começou a operar oficialmente no país em 19 de setembro de 1950 (SANTOMAURO, 2005). Para concorrer com Chateaubriand, nas mãos do jornalista Roberto Marinho, nasce uma organização de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão que têm na Rede Globo, uma forte extensão internacional. É dessa maneira que a comunicação de massa se modifica, já que fazer notícia fica mais acessível e mais ágil através da TV, totalmente influenciada pelo rádio. Segundo Santomauro (2005) a publicidade também se refaz, pois ganha uma nova ferramenta de atingir e atrair o público através da junção de imagem, som e movimento, com comerciais de formatos indefinidos, denominados contratos de apoio. A partir de 1955 é que aparecem algumas agências de propaganda genuinamente brasileiras, já que as poucas que existiam eram a McCann Erickson e a J.W.Thompson. O boom industrial no Brasil trouxe inúmeras empresas americanas, que já utilizavam as ferramentas de marketing, como a Ford e a GM e, consequentemente suas agências de publicidade que ampliaram suas operações. As agências seguiam os padrões norteamericanos, que eram exemplo de know-how da boa propaganda, e tiveram o papel de fornecer conhecimento aos brasileiros. Novas agências emergiram da necessidade de se anunciar através dos novos meios de comunicação, como a Alcântara Machado, atual AlmapBBDO e em 1957 a MPM. A propaganda surge como uma maneira de apresentar à sociedade brasileira as formas de utilização e o quanto os novos produtos melhorariam a vida das famílias. Introdução às audiovisualidades Audiovisualidade se entende pela junção de duas palavras com significados diferentes mas que convergem entre si; áudio (som) e visual (imagem), característica que podemos notar na grande maioria de dispositivos de mídia que utilizamos em nosso dia a dia atualmente. Podemos dizer que o audiovisual também é uma virtualidade que se atualiza constantemente conforme a evolução das mídias, acompanhando a constante
5 inovação tecnológica, como a passagem da fotografia para cinema, rádio, televisão e internet. No século XXI a junção do som e da imagem convergem em um misto de matéria e memória, onde o aparato técnico é capaz de conter uma quantidade de informação ou banco de dados, apto a designar a relação do usuário com seu ambiente exterior. Na era da globalização das culturas onde a interatividade entre usuário e máquina quase se confunde como um único sujeito, há uma grande força acadêmica que analisa a reprodução da imagem por meio de interfaces digitais. Porém, se virarmos a lente da câmera para o passado, veremos que os primórdios da interação entre usuário e máquina no Brasil se deu no período de introdução da imagem em movimento e do som na vida da população, com o rádio, o cinema e posteriormente evoluindo para a televisão, fundando mídias de forte presença em nossa cultura que perduram até os dias, sobrevivendo no mesmo espaço dos dispositivos móveis. Conforme Bergson (2006) o vídeo é uma virtualidade que se atualiza de diversas maneiras em inúmeros construtos da web, e ainda aponta, que a imagem-lembrança não é o passado, mas sim o que o representa, pois herda a marca da lembrança pura. Importante trazer a origem da imagem através da pintura e posteriormente da fotografia, que conforme caracteriza Flusser (2004), a câmera deveria ser considerada um computador primitivo ser explicada através do ponto de vista que é o primeiro quadro produzido pela montagem deliberada de bits infinitos por meio da computação. Conforme Benjamin (1986), imagens dialéticas são aquelas que contêm o velho e o novo, em relação tensa, e por isso, por causa da tensão, lampejam e iluminam as demais. Análise de conteúdo No contexto da indústria cultural, passamos da condição de sujeito para o status de consumidor, onde serviços e produtos são desenvolvidos para determinada cultura com o foco em despertar o desejo da população ao ato de consumi-los. Na sociedade contemporânea, consumir está estritamente ligado ao status social e estilo de vida, itens
6 que são atribuídos aos produtos e marcas como representação de valores e imaginários de uma sociedade baseada no capitalismo e consequentemente na aquisição. O objetivo de despertar o desejo no público-alvo é torná-lo consumidor, portanto o discurso e estética da televisão acompanha os interesses de seus consumidores a fim de mantê-los fiéis a seu produto. Podemos identificar esses itens quando passamos a analisar os comerciais da década de 1950, e mais precisamente na publicidade com o objeto de estudo que trabalharemos, o comercial do detergente OMO de 1957, que representa o ideal do espectador feminino que é o consumidor alvo do produto, a rainha do lar. É importante dizer que a escolha por este comercial não foi feita de maneira aleatória, e sim devido ao longo ciclo de vida do produto e a forte presença da marca OMO que segundo a pesquisa Top of Mind da Folha de São Paulo, (disponível em há 16 anos é a primeira marca a ser lembrada pelos consumidores quando se fala em marcas em geral, e há 20 anos quando se fala em sabão em pó, OMO também é top de categoria. Cabe mencionar as palavras de Arlindo Machado (2007) quando se refere à concepção que se fazia da atividade do espectador ou do processo de recepção, atribuindo ao espectador a condição de uma figura ideal, cuja posição e afetividade encontravam-se estabelecidas anteriormente pelo aparato ou pelo texto cinematográfico. Como é possível verificar no comercial de 1957, a visão que se tinha da reprodução de produtos, a massificação do consumo e a multiplicação das mídias eletrônicas, evoca o pensamento de Walter Benjamim (1986) referente à reprodutibilidade técnica das obras de arte, que em sua essência sempre foi reprodutível. Porém, o que gostaríamos de ressaltar é a reprodução como incentivo ao consumismo e condição a priori do modo capitalista de ser. Em sua obra, Benjamin realiza uma análise da evolução das artes passando da fotografia para o cinema e a questão de sua reprodução na sociedade para as massas, como a disseminação dos meios de comunicação criando o nascer de uma tecnocultura que elevou a televisão e o
7 rádio dos anos 50 como itens mediadores de felicidade e de inclusão na era da modernidade, rumo ao desenvolvimento espelhado nos Estados Unidos. A autenticidade que Benjamin defende como única capaz de conter a aura do original, se perde no momento em que a indústria desenvolve produtos de consumo de reprodução em massa, já que o caráter único da autenticidade e da tradição passa a ter uma existência serial, o declínio da aura está estritamente ligado à difusão e a intensidade dos movimentos das massas. Com o capitalismo e sua exigência de consumo constante e o apelo das mídias, cada dia fica mais irresistível não comprar o objeto ou a sua cópia/reprodução que é capaz de ser consumida por um número ilimitado de pessoas. Benjamin faz uma analogia quanto ao conteúdo autêntico e sua representatividade para um conhecedor da obra de arte que se caracterizaria como um objeto de devoção contendo a aura e sagrado. Já para as massas a aquisição da cópia ou objeto está ligada diretamente ao conceito de diversão. Se analisarmos o cinema sobre a questão da reprodutibilidade técnica é possível ver uma narrativa cheia de cortes, edições e colagens de cenas que materializam o choque e a experiência da vida moderna que remete a esse perfil, onde não há estabilidade e estamos em constante evolução tecnológica. Com a reprodução, a ordem do aqui e agora se desfaz. Como vimos anteriormente essa é uma característica exclusiva da autenticidade, então o conteúdo midiático das massas é a disfunção do tempo e espaço. É importante tratar da presença do imaginário no comercial da OMO referente ao feminino e o nítido papel de mulher que trabalha em casa e se dedica exclusivamente ao cuidado do marido, dos filhos e do bem estar do lar. Podemos tratar os imaginários como mediações, que são também conjunto de marcas de enunciação das culturas (identidades coletivas), manifestas e visíveis nos discursos, na arte, nos produtos culturais..., ou que são por eles mediadas (KILLP, 2003). O papel do imaginário feminino no comercial remete à uma mulher zelosa, porém submissa ao marido, este responsável pelo fomento de recursos financeiros para a família, representante do trabalhador que deve sempre estar bem vestido e com as roupas brancas devido ao uso
8 pela esposa do detergente OMO. Outra característica interessante na peça, é a maneira com que as roupas são lavadas à mão diretamente no tanque, caracterizando ainda ausência de eletrodomésticos à disposição da mulher brasileira de classe média, como a máquina de lavar roupas automática. Vale lembrar que esse cenário se inverte com a chegada da década de O discurso também se torna bastante didático, de maneira que a atriz apresenta o produto e demonstra a forma de utilização orientando para o jeito correto de consumo do detergente, assim como dando ênfase ao nome do sabão, repetindo-o 8 vezes durante o filme publicitário. Passando para uma análise que vai além do conteúdo textual da peça publicitária da marca OMO, se torna pertinente dedicar-nos ao estudo da imagem como uma audiovisualidade e a presença da atriz como modelo de um padrão estético que se disseminou na época, e também como foco principal a espectadora e consumidora do produto. Conforme diz Arlindo Machado em sua obra O Sujeito na Tela (2007), o plano frontal com olhar da atriz dirigido diretamente para a câmera é uma característica anticinematográfica, mas regra estética da televisão e também da fotografia, se distinguindo do cinema que produz segundo o autor, um efeito mais natural, com enquadramento oblíquo, com os olhares situados fora do quadro, no espaço off. Interessa para a televisão que seja revelada a presença da câmera, isso faz com que o espectador não seja ignorado ou invisível, traz o sujeito na tela, como pertencente ao diálogo com a personagem, como no frame abaixo, onde a atriz simula contar um segredo para a espectadora e ainda apresenta o produto direcionado para a câmera. Figura 1 0:08 Comercial OMO 1957 Figura 2 0:16 Comercial OMO 1957
9 A sensação que temos ao assistir ao comercial é que a imagem é incompleta, pois se não o fosse, não haveria espaço para o observador (MACHADO, 2007). O espectador ocupa posição forte na estrutura do conteúdo, ele faz parte do discurso. O movimento de sutura com a câmera simulando o intercâmbio de olhares da visão do espectador versus visão da atriz, articulando o plano e o contra plano, onde o campo fílmico se articula com o campo ausente ou imaginário do comercial, faz com que se torne legível o sujeito imaginário, um sujeito fílmico: o espectador. Arlindo Machado (2007) faz dessa maneira, a relação do cinema com o espectador, e na forma como ele fora considerado passivo e programado ao conteúdo do cinema. Essa teoria sobre o cinema ficou conhecida como Teoria da Enunciação, e posteriormente através da heterogeneidade da recepção cinematográfica e com a chegada de novos meios, chega-se ao conceito de que os espectadores não são todos iguais e portanto não interpretam na mesma maneira os filmes. Através dessa contextualização, é possível verificar que a televisão dos anos 1950 tomava o público feminino das peças publicitárias como passivo e vulnerável ao consumo por meio da exposição à mensagem comercial, se apropriando de determinado conteúdo para suas agendas culturais. Com a chegada da televisão que possibilitou a relação do apresentador com a audiência através do olhar direto à lente da câmera e a referência em segunda pessoa, o cinema perde a hegemonia do mercado, ainda mais que, com a televisão, se torna possível assistir o conteúdo diretamente do cenário doméstico, fora das salas de cinema. Dando continuidade à análise fílmica, Jacques Aumont (2004) realiza um estudo das imagens por meio de quadros, seus limites e suas bordas e molduras, onde ele diz que todos os sentidos possíveis de um quadro estão, a um só tempo, contidos na própria tela. Segundo o autor, o quadro se define tanto pelo o que ele contém, quanto pelo que exclui. O mundo imaginário que as imagens evocam se afinam com nossos desejos, e segundo Aumont (2004), seriam caracterizados como quadro-janela, já que permite
10 uma abertura sobre a vista e o imaginário do espectador. Portanto o visual fora de campo nunca vem sozinho, mas acompanhado de um efeito simbólico, conforme é possível verificar nas cenas do comercial de 1957, onde há devires de uma construção de sociedade ideal, da mulher ideal e família com os papeis do masculino e feminino bem definidos e distintos. A televisão evoca uma tensão que traz imaginários e conceitos impostos na sociedade brasileira em 1950, como é possível verificar na figura do homem fora de quadro e descentralizado, que remete ao seu papel coadjuvante no comercial. O foco principal está no público alvo do produto OMO, que é a mulher do centro do quadro e bem definida entre as bordas da cena e que obriga o espectador a olhar para o interior, característica centrípeta do quadro. Além disso, a filmagem é feita para ser vista na vertical, ela pesa e está submetida a gravidade. Como diz Kilpp (2009), a percepção do audiovisual depende do hábito - pois é a recepção tátil que leva à ótica, mas o que vemos precisa ser outra vez desabituado para chegarmos à percepção das montagens, e isso tem a ver também com os modos conforme Bergson (1999) apud Kilpp (2009), a percepção é ativada pela memória e relaciona-se com nossa necessidade de agir no presente, sendo que a percepção é possível graças a imagens-lembrança gravadas em nossa memória. Para contextualizar a memória e o imaginário contido nas imagens, Georges Didi Huberman (2013) afirma que não há imagem sem imaginação e que se torna um grande equívoco dizer que é uma simples faculdade de desrealização. Huberman propõe que a história e memória devem ser interrogadas através das imagens. A imagem verdadeira arde quando entra em contato com o real, uma queima da obra, onde a forma alcança seu mais alto grau de luz. Devido à sua natureza de encruzilhados caminhos, a imagem se torna um rastro, um traço do tempo. A criação de determinados imaginários através de imagens do comercial da marca OMO toma parte do que nós inventamos para registrar tremores (de desejo e de temor) e suas próprias consumações (HUBERMAN, 2013). O conteúdo textual da mensagem publicitária e as palavras exibidas na tela durante o comercial, juntos formam um tesouro ou uma tumba da
11 memória, seja esse tesouro um simples floco de neve ou essa memória esteja traçada sobre a areia antes que uma onda a dissolva (HUBERMAN, 2013). Mas, frequentemente, as lacunas são resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé. O arquivo é cinza, não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu (HUBERMAN, 2013, p. 6) Se arde, se inflama, nos consome de uma só vez. Para Huberman não podemos falar de imagem e real sem falar de incêndio, então não podemos deixar de falar das cinzas. Para o autor as imagens estão sempre em outra temporalidade, uma dialética nunca do agora, e a construção da historicidade é a montagem que mostra os anacronismos, as supervivências, as temporalidades contraditórias e que acabam por refletir em cada objeto. Portanto se analisarmos o conceito de Huberman sob o objeto em questão, podemos ver que no momento em que a imagem do comercial e seu apelo de persuasão arde na espectadora, é porque em algum momento houve identificação, verdade através da imagem em uma multiplicidade de tempos, no local em que se acercou. Além da defesa de que as imagens são compostas por dialéticas que permitem compreender o que está no inconsciente da história, Huberman afirma que a imagem é transportadora de memória. Assim ele sugere um arquétipo de temporalidade posicionando a imagem como personagem central da ideia de tempo, realizando a relação entre o tempo e a imagem como uma montagem de vezes heterogéneos e descontínuos que no entanto estão ligados. Huberman critica a forma de ver história e defende um outro conceito para ela sob a definição de uma imagem, que passa pelo anacronismo, temporalidade e dialética trazendo uma ideia de tempo não convencional. Se torna pertinente analisarmos o comercial da marca OMO com o viés do autor Peter Weibel e seu trabalho O Mundo como Interface (2000) que estuda determinados imaginários e propõe olhar o mundo por meio da interface ou atrás da cortina com distorções específicas do observador que se produzem em nosso próprio mundo. Weibel inicia seu estudo sobre o esclarecimento do significado da endofísica, ciência que investiga um sistema em que o observador faz parte dele.
12 Para Weibel a única maneira de observar o mundo de forma completa é similar a existência de um observador externo que o encare de fora, de modo que se aproxima aos modelos de simulação computadorizados. Esse observador externo é característica do pós-humano, e o observador interno é explícito. Para o autor, os meios tecnológicos representam um mundo artificial. Assim ele faz a relação de que no mundo real os observadores são internos, e no mundo midiático temos os observadores internos e externos. O corpo humano é uma nova concepção de corporeidade: aparição de corpo que se divide da seguinte maneira; ele (como máquina interna) e o corpo (como máquina externa). Assim não se distingue bem o que está dentro e fora, e não podemos nos limitar a representação aos limites do mundo com os limites de nossa interface. Considerações finais Com a evolução das mídias digitais, o espectador agora é visto também como protagonista, não um sujeito passivo conforme a televisão da década de 1950 caracterizava sua programação e discurso publicitário. A relação dos usuários com as mídias põe as audiovisualidades com valor de cultura. Suzana Kilpp (2003) menciona que a televisão instaurou, pela primeira vez na história do país, uma cena brasileira em tempo real (especialmente telejornais): Transcendendo de longe as várias cenas regionais que vigiam então e criando simbolicamente o mercado nacional que facilitaria a vida das multinacionais, ao mesmo tempo que, é claro, diminuiria simbolicamente falando, mas não só as distâncias que até então separavam-nos, a nós, brasileiros, uns dos outros, em vários quase-países arranjados sobre o mesmo território geopolítico. (KILPP, p.58) Portanto, vimos no decorrer da reflexão que as audiovisualidades estão presentes em nosso dia a dia de maneira ininterrupta com a tecnocultura e a busca incansável pelo desenvolvimento de novas tecnologias que nos criam uma noção de real são na verdade uma virtualidade daquilo que nos é fornecido por meio da interface. É possível verificar que o questionamento que norteia este trabalho foi esclarecido a partir do momento em que foi possível analisar o papel da figura feminina no imaginário da sociedade sob o olhar das audiovisualidades na propaganda de 1950.
13 Por fim, as imagens do comercial que tomamos como objeto para este trabalho mostram que a história pode ser contada por meio das imagens, e conforme Huberman (2013) carregam uma memória, a dialética das imagens, que são repletas de histórias ininterruptas, cíclicas e em constante movimento, tal como nosso ritmo desenfreado de comunicação no século XXI. Referências Bibliográficas AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006 CASTELO BRANCO, Renato. MARTENSEN, Rodolfo Lima. REIS, Fernando. História da propaganda no Brasil. São Paulo: Ibraco, DIDI-HUBERMAN, Georges; CHÉROUX, Clément; ARNALDO, Javier. Cuando las imágenes tocan lo real. Madrid: Círculo de Bellas Artes, Disponível em ges_didi_huberman_cuando_las_imagenes_tocan_lo_real.pdf FLUSSER, Vilém. La nueva imaginación. Texto publicado originalmente em Art Forum com o nome de: A New Imagination"/"On Discovery IV". Foi traduzido em 2004 no marco do seminário on-line sobre Flusser realizado pela Unesco. Disponível em: Acesso em: 15/11/2013 KILPP, Suzana. Ethicidades Televisivas. São Leopoldo: Editora Unisinos, KORNIS, Mônica Almeida. 50 anos em 5. Revista Nossa História, ano 2, n. 23, setembro de 2005, p Lenoir, Tim. Foreword. In: HANSEN, Mark. New philosophy for new media. London: MIT Press, Disponível em: MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela. Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, SANTOMAURO, Antônio Carlos. O início da modernização in Meio & Mensagem ed. Especial 21º aniversário. São Paulo, 2005, p. 16 e 17. Unilever.com -
14 WEIBEL, Peter. El mundo como interfaz. Revista Elementos. No. 40, Disponível em:
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