RESENHA. MIRANDA, Ana Semíramis. São Paulo. Companhia das Letras (2013). 272 p.
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- Esther Anjos Salazar
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1 RESENHA MIRANDA, Ana Semíramis. São Paulo. Companhia das Letras (2013). 272 p. Rodrigo Celente Machado 126 A objetividade do historiador é um absurdo. Isto significa que um acontecimento pode ser examinado de maneira tão límpida nos seus motivos e nas suas consequências, que não produziria nenhum efeito e continuaria sendo um processo puramente intelectual: como a paisagem para o artista que se contenta com representá-la. Contemplação desinteressada, fenômeno estético, ausência de qualquer movimento da vontade. O termo objetivo designa então uma disposição interna do historiador, a contemplação artística: mas é uma superstição acreditar que a imagem suscitada pelas coisas numa pessoa assim disposta manifesta a sua verdadeira natureza. Ou, por acaso, se acredita ainda que se trata de um estado passivo? Pelo contrário: é exatamente nessas circunstâncias que se cria verdadeiramente a obra de arte, este é um momento supremo de composição durante o qual a vontade individual dorme. A descrição é verdadeira no plano artístico, certamente não no plano histórico; ela não constitui os facta, mas o seu encadeamento e correlação, que se acham aqui reunidos pela imaginação e que podem ser fortuitamente verdadeiros: mas permanecem objetivos, apesar de serem falsos. Pensar objetivamente a história, esse é o trabalho secreto do dramaturgo: tudo reunir pelo pensamento, ligar qualquer acontecimento particular ao conjunto da teia, baseando-se na hipótese artística de que nela pode ser encontrado um plano, uma coesão: hipótese que não tem qualquer base empírica nem histórica e que contradiz qualquer objetividade, tal como ela é compreendida habitualmente. É o instinto artístico, não o instinto da verdade, que impulsiona o homem a estender a sua teia sobre o passado e a se tornar senhor dele. A forma acabada de tal historiografia é pura obra de arte: sem qualquer traço da verdade comum. F. W. Nietzsche, fragmentos póstumos e aforismos, Escritos sobre história. Semíramis e Iriana: românticas alencarianas Ana Miranda: escritura palimpsesto Ana Miranda estreou na ficção com Boca do Inferno (1989). A obra foi prontamente aclamada pela crítica como um sopro de vida na literatura brasileira contemporânea. 126 Rodrigo Celente Machado é jornalista e mestrando em Escrita Criativa pela PUCRS. rcelente@yahoo.com.br. 195
2 Uma leitura atenta dos romances da escritora cearense revela uma meticulosa pesquisa histórico-literária que se une à técnica e vigor narrativo. Além disso, percebe-se que a história da literatura brasileira é uma constante ficcional, mas não constitui o elemento mais característico de sua produção, que reside na experimentação, sobretudo da linguagem. Sua escrita revela timbres de vozes e traços de estilo de autores do passado. Ana Miranda constrói uma conexão entre tempos diferentes que ora nos afasta (em função do estranhamento linguístico) ora nos aproxima da atmosfera da época, do lugar, das pessoas. Para isso, a escritora lança mão de uma série de artimanhas ficcionais, inventa situações, deforma fatos, parodia, cria ambiguidade para reinterpretar o fato histórico alicerce ficcional de seus romances. Outra marca da obra da cearense é a reflexão acerca de uma identidade cultural brasileira, a questão da fundação da nação dentro da história da literatura nacional. Em Semíramis (2014), Ana Miranda executa uma reescrita da memória nacional da perspectiva de uma historiografia hipertextual com a vida e a obra de José de Alencar Ao apropriar-se do estilo e da linguagem de Alencar, a escritora apropria-se também do discurso de nação, ou mesmo de pertencimento, que o escritor representou no curso da historiografia da literatura brasileira. José de Alencar está presente, mesmo que de forma indireta, oblíqua, da epígrafe a última página. A linguagem poética exala um perfume de romantismo, seja na sintaxe, no vocabulário, seja nas imagens produzidas através da voz da narradora. O representante máximo do Romantismo no Brasil e dono de um projeto literário definido: traçar um mapa do Brasil em busca de uma identidade nacional aparece, ainda, na obra, como um ator social que simboliza uma forma de sensibilidade. Sensibilidade que aparece na forma de trechos do texto Como e porque sou romancista, no qual Alencar escreveu sobre sua doutrina estética e poética, dando um testemunho da sua consciência em função do fenômeno literário. Trata-se, enfim, de um palimpsesto, cuja função não é somente retomar à linguagem de determinada época, mas, principalmente, dar continuidade ao seu movimento na memória coletiva através da constante atualização dos textos. A definição de palimpsesto diz que se trata de um pergaminho ou papiro cujo manuscrito foi removido para dar lugar a uma nova escritura, porém, ainda se mantêm 196
3 visíveis fragmentos do texto anterior. Na teoria literária, o conceito foi trazido por Gerárd Genette com o objetivo de caracterizar as múltiplas relações que um texto pode manter com as obras que lhe precederam. Genette desenvolve a ideia de hipertextualidade. O termo define qualquer aproximação entre um texto B (chamado hipertexto) e um texto anterior A (o hipotexto), com o qual aquele primeiro se relaciona. Dizer que Semíramis é uma escrita em palimpsesto significa destacar a existência de relações entre hipertextos que mantêm a obra em constante diálogo com a biblioteca universal. O hipertexto é tecido por vários hipotextos, como citações, apropriações, estilização de cartas, trechos de romances e bricolagem da obra de José de Alencar. Amor de duas mulheres Estruturado em pequenos capítulos, quase como um diário, a narradora vai desfiando com delicadeza e tensão poética a história social da região. Nos apresenta seus familiares, seu círculo de conhecidos sempre a partir de uma experiência pessoal. Iriana, a narradora e irmã da personagem que dá nome ao livro, assim como Oribela, a narradora de Desmundo, são órfãs. No caso das irmãs, elas perderam os pais em função de conflitos do Brasil Império. O avô é um político ligado a Bárbara de Alencar, mãe de José Martiniano (pai do escritor), nomes importantes nas insurreições republicanas de 1817, a Revolução dos Padres, e de 1824, a Confederação do Equador. Ana Miranda constrói Dona Bárbara, heroína da história brasileira, como alguém que flanava num mundo de grandes tramas, fazia parte de tragédias, disputas, da craveira de forças, que perdera as fazendas com as duas guerras republicanas, além do irmão, dois filhos e vários parentes naquele território de guerras, desde as armadas contra vermelhados, em sua infância, incêndios de tabas guerreiras, assaltos e massacres, centenas de cabeças rolando pelo chão, foi o que ela herdou, e herdamos. Na primeira parte, as lembranças ainda galopavam pelas ruas, dando tiros, Iriana parte com o avô em uma viagem até o Alagadiço Novo, terra dos Alencar. Durante o trajeto, toda a riqueza da flora e da fauna do interior do Ceará nos é mostrada. Pode-se experimentar o sabor das frutas, ouvir o grito da graúna. Ao chegarem, Iriana, sempre com a presença da ausência da irmã, conhece Ana Josefina, mãe do futuro escritor, que vive maritalmente com o padre José Martiniano, pai de José de Alencar. Iriana vê nascer o 197
4 menino, que recebe o apelido de Cazuzinha, e sente que ele fará parte de seu destino para sempre. A narradora identifica eventos de sua própria história nos escritos de Alencar. Iriana entende que os folhetins, assim como a própria vida, eram traçados por menções secretas às suas correntes, e que o autor tecia uma novela com os fios de uma ventura real. Ela passa a achar a sua vida menos medíocre. Iriana e Semíramis, ao colecionarem as próprias experiências, realizam um processo de autoconhecimento, colocando-se diante do espelho, tentam possuir o que se perdeu, armazenar os fragmentos de um todo vivido e perdido; uma coleção de memórias de toda uma vida. Mas, como ressalta Philippe Artières: não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens (ARTIÈRES, 1998, p. 11). Vamos tomando conhecimento da vida de José de Alencar através das impressões de Iriana e de Semíramis, diferentes em quase tudo. Iriana é mulher da terra, sem jeito com os homens. A irmã, ao contrário, é uma sonhadora repleta de lascívia. Ao voltar da viagem onde conheceu Cazuzinha, elas se separam. Iriana fica na Vila do Crato cuidando da avó cega e doente, e Semíramis, enamorada mais pelo Rio de Janeiro do que pelo noivo, Calixto, parte para a capital do país. Lá, frequenta teatros e óperas, sonha em atuar. Semíramis passa a escrever para a irmã, que se casou num vestido de lama e viu o marido se matar. Iriana passa a viver a partir dos relatos da irmã sobre a vida do menino Cazuzinha e, mais tarde, a viver das histórias do escritor José de Alencar, contadas pela irmã romance dentro de um romance. Iriana e Semíramis são personagens obstinadas, de almas quixotescas, histriônicas, líricas e sonhadoras. Ambas são construídas por um discurso fluido e sensual, ressentido e provocador. As duas alcançam o estatuto de criações ora tangíveis, donas de uma forte ilusão de realidade, ora diáfanas, encobertas pelo véu da linguagem, tão trabalhada na obra de Ana Miranda. Não é coincidência que a narradora seja uma mulher e que, Semíramis, que morre (de amor não correspondido por Alencar? Fica a dúvida), seja a grande heroína da história. Sabemos que Alencar foi um mestre, no seu tempo, na psicologia feminina. Alencar nos 198
5 apresentou diferentes perfis de heroínas, todas elas de alguma forma presentes em Semíramis. A questão da cidade versus província, presente na obra alencariana, o perfil de mulher como Alencar fez em Lucíola, a questão da verdade e da mentira, da realidade e do sonho, Iriana e Semíramis são tudo isso. Ana Miranda mistura frases do próprio Alencar, recupera os temas do romancefolhetim, em que o autor foi mestre as traições, os rompimentos, as viagens, os interesses. A escritora, tal como um arqueólogo que escava e tira a poeira das palavras com um leve pincel, recupera palavras, frases, e realiza uma montagem como se fosse um grande manto todo cheio de bordados: José de Alencar é revisitado em seu próprio espaço, a ficção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Centro de pesquisa e documentação de história contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: MIRANDA, Ana. Semíramis. São Paulo: Companhia das Letras,
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