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1 Introdução O Complexo do Alemão é um morro na zona norte do Rio de Janeiro, a cerca de quinze quilómetros do centro, que reúne cerca de quinze favelas, nas quais vive um número impressionante de pessoas: a prefeitura do Rio de Janeiro e os censos existentes apontam para cem mil, em aproximadamente quarenta mil habitações. Na verdade, aqueles três quilómetros quadrados acolhem mais de trezentos mil habitantes. Talvez devesse chamar -se «Complexo do Polaco», já que o seu proprietário, alto, loiro e de olhos azuis, e por isso recordado como «o alemão», Leonard Kaczmarkiewicz, era dessa nacionalidade. Na década de 1920, Kaczmarkiewicz comprou terrenos na serra da Misericórdia, na altura isolada e sem qualquer valor comercial. O «alemão» decidiu instalar ali uma fábrica de tratamento de couro, a Cortume Carioca, que atraiu à região centenas de pessoas em busca de trabalho na empresa. Acabaram por ficar a morar na serra da Misericórdia e por constituir a nova população da serra, criando assim a necessidade do estabelecimento do pequeno comércio e também de mais indústria. De facto, na década de 1950, quando Kaczmarkiewicz resolveu vender a maioria dos lotes do Complexo, já a serra da Misericórdia se apresentava como a região industrial por excelência do Rio de Janeiro. Os trabalhadores 11

2 das fábricas foram -se instalando de forma desordenada pelos lotes de terreno, construindo casas e barracas, gerando bairros espontâneos, que cresceram e se transformaram em favelas; estas, sempre em expansão, foram ocupando novos morros. Era uma extensão de terra enorme e ainda barata costuma dizer -se que o Rio de Janeiro funciona ao contrário de todos os outros países e que é a população mais pobre quem tem acesso aos lugares mais altos da cidade, o que aconteceu com o fenómeno das favelas, numa ascensão imparável. Mais e mais gente acorreu ao Complexo, que ganhou formas desajeitadas, um caos de casas e barracas em filas intermináveis. Assim nasceu o maior «bairro» do Rio de Janeiro, que funciona com uma autonomia e uma auto -suficiência impressionantes e assustadoras. A década de 1980 trouxe a realidade da droga, o comando dos traficantes, o crime organizado e com ele as armas e a necessidade de intervenção policial; as mortes e a fama do Complexo, conhecido por ser abrigo de traficantes e criminosos. Ao mesmo tempo que o crime organizado e o tráfico se instalavam como realidades quotidianas no conjunto de favelas, as fábricas que tinham em primeiro lugar atraído a população pobre para o morro foram desaparecendo, procurando lugares mais seguros e deixando os moradores no desemprego. A conjunção destes factores contribuiu para a rapidez com que a droga se tornasse não só factor desestabilizador do Complexo como, aparentemente, única fuga possível à miséria. As autoridades acreditam que quarenta por cento do crime do Rio de Janeiro está de alguma forma ligado ao Complexo do Alemão. De facto, os conflitos entre Polícia e moradores, os tiroteios e a violência que dominava este conjunto de favelas valeram -lhe a alcunha de «Faixa de Gaza do Rio de Janeiro». As várias favelas misturam -se (é difícil precisar onde começa uma e termina outra), mas reclamam autonomia, ao mesmo tempo que não param de se expandir na serra da Misericórdia. Há quem diga que são doze favelas, outros acham que são quinze; uns dizem que este morro faz parte daquele, outros que os dois são um só. No Complexo do Alemão, encontramos o morro do Alemão, a Vila Cruzeiro, a Fazen- 12

3 dinha, a Alvorada, a Matinha, a Grota, a Chatuba, o Caracol, o morro da Baiana, o morro dos Mineiros, a Nova Brasília, a Pedra do Sapo, a Palmeiras, a Favelinha, a Caixa d Água e o morro do Adeus. Após terem sido atribuídos ao Brasil o próximo Campeonato do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, Lula da Silva, presidente em funções até ao final de 2010, acelerou um processo que se vinha arrastando há muitos anos: o Programa de Aceleração e Crescimento (PAC), que tem como objectivo o crescimento económico -social do país e uma forte aposta nas áreas da habitação, do saneamento, do transporte e das energias. Implica grandes investimentos que só com a extinção das centenas de pontos de venda de droga existentes nas favelas e a detenção dos traficantes que comandam as operações se tornariam viáveis e sustentados. Para esse efeito, foram criadas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), esquadras activamente colocadas junto das inúmeras favelas espalhadas pelo Rio de Janeiro (estima -se que entre vinte e trinta por cento da população urbana brasileira viva em favelas). Se desde 2007 que o Complexo vivia recorrentemente sob cercos e investidas policiais a Polícia vigiava diariamente as principais ruas de acesso às várias favelas da região e eram frequentes os cercos às entradas dos morros, impedindo a passagem de droga e armas ou a fuga de traficantes procurados, a instalação das UPP foi a gota de água. Se em muitos locais correu tudo bem, a mera ideia de colocar uma no Complexo do Alemão quase originou uma guerra civil, em Novembro de 2010, em resposta à primeira investida policial com o intuito de fazer uma verdadeira recuperação daquele território. O negócio da droga na cidade é dominado por três grandes organizações criminosas, o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando. Ainda que os cabecilhas dos três grupos estejam presos, mesmo a partir das cadeias continuam a gerir o negócio, rivalizando pela liderança do negócio ilegal e dividindo entre si o comando das favelas do Rio de Janeiro. Terá sido uma ordem de Fernandinho Beira -Mar, um dos líderes do Comando Vermelho preso desde 2002, que fez estalar um conflito como há muitos anos não se via no centro da cidade. 13

4 Beira -Mar não terá gostado de saber que as autoridades iriam instalar uma UPP no Complexo do Alemão, a sua principal fonte de lucros, e aliou -se aos rivais Amigos dos Amigos; em conjunto, lançaram uma onda de violência por todo o Rio de Janeiro. No final de Novembro, centenas de carros foram incendiados pelos vários bairros; autocarros e camiões foram completamente destruídos; e vários gangues varreram as zonas mais ricas e algumas praias do Sul com arrastões demolidores, saqueando tudo e roubando quem lhes aparecia pela frente. A Polícia não tardou a responder. A 25 de Novembro, a Brigada de Operações Policiais Especiais (BOPE) liderou uma invasão a uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, a Vila Cruzeiro, que se mistura com o Complexo do Alemão e onde funcionava o maior armazém de droga e armas do Brasil. Os líderes do Comando Vermelho terão conseguido fugir e refugiar -se no Complexo do Alemão, que gozava de uma protec ção especial, já que nunca fora alvo de investidas policiais (ou jornalísticas) de peso. Se é certo que já tinha havido cercos com alguma frequência até, ataques concertados com o objectivo de desmantelar as redes criminosas, uma, em 2007, aquando dos Jogos Pan- -Americanos, que decorreram no Rio, foi especialmente violenta. Se o número oficial de mortes é de dezanove, organizações não governamentais indicam que terão morrido pelo menos trinta e quatro pessoas, a maioria das quais com tiros na nuca à queima- -roupa, mas não foi suficiente para apanhar nenhum dos grandes traficantes do Rio, em particular Tito, que liderava o tráfico de droga dentro do Complexo do Alemão. É de salientar a resistência que os militares encontraram; mesmo com uma operação planeada ao mais ínfimo detalhe e entrando por três frentes diferentes em simultâneo, a Polícia demorou cerca de oito horas a avançar quilómetro e meio pela Avenida Joaquim de Queiroz. A 27 de Novembro de 2010, à BOPE juntaram -se várias outras forças policiais e até a Marinha, que cedeu tanques blin dados para que se desse início à maior operação policial de sempre no Brasil, a tomada do Complexo do Alemão. Os carros de assalto derrubaram as barreiras feitas pelos traficantes e subiram pelas ruas mais largas do Complexo. A BOPE galgou as várias ruas estreitas em busca dos 14

5 traficantes que se escondiam por lá. O tiroteio não tardou. Foram precisas apenas quatro horas para a Polícia chegar ao cimo do Complexo do Alemão, onde os traficantes tinham por hábito queimar os traidores ou quem violasse as regras da favela. A bandeira axadrezada, azul e branca, do Rio de Janeiro foi has teada, em sinal de libertação e de conquista dos morros pelo Estado. Pelas ruas ficaram mais de cinquenta corpos, quase todos de traficantes diz a Polícia, muitos de moradores inocentes dizem os residentes. Apesar da discrepância na interpretação das baixas provocadas pela operação, na verdade esta veio pôr fim a um sufoco que durava há demasiados anos. Os moradores do Complexo estavam cansados de serem vistos como os «maus da fita», pelo facto de terem de viver naquele bairro. Estavam fartos do medo imposto pelos traficantes. Estavam cansados de não serem livres. A entrada das forças policiais no Complexo e a repressão dos criminosos trouxe -lhes, finalmente, a promessa de um recomeço. 15

6 Complexo Universo Paralelo Durante quatro anos, entre 2004 e 2007, dois jovens irmãos portugueses frequentaram as favelas do Complexo do Alemão, inacessíveis a gente de fora e, ainda mais, a jornalistas. Mário e Pedro Patrocínio conviveram com os bandidos mais procurados do Rio de Janeiro, assistiram a tiroteios com a Polícia, viram a miséria vivida pelos habitantes daquele morro; mas houve algo mais forte que os fez regressar, dia após dia, àquele «universo paralelo». Apaixonados pelas pessoas, Mário e Pedro levaram pela primeira vez câmaras e microfones autorizados para o Complexo do Alemão e ali filmaram um documentário único, «Complexo Universo Paralelo», que foi aplaudido com entusiasmo no Brasil, em Setembro de 2010, e estreou em Portugal no festival DocLisboa, no mês seguinte. No início de 2011, o documentário é exibido nas salas de cinema nacionais. «Complexo Universo Paralelo» mostra não só a realidade do tráfico dentro das favelas mas sobretudo o que aos noticiários das televisões e aos jornais nunca interessou: como dizem Mário e Pedro, «a vida de gente boa que vive no Complexo do Alemão». 17

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