Uma experiência de ensino de desenho para crianças cegas a partir da desconstrução do esquema gráfico
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- Benedito Maranhão Antunes
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1 Uma experiência de ensino de desenho para crianças cegas a partir da desconstrução do esquema gráfico Mari Ines Piekas 1 - UDESC Resumo: O presente artigo 2 relata uma experiência de desenho de esquemas gráficos, realizados por três crianças e um adolescente, todos com cegueira, e teve por objetivo testar alguns procedimentos usados nas aulas. Apresenta três exemplares de esquemas gráficos, desenhados por crianças standards, os quais foram posteriormente desconstruídos e adaptados para linha de contorno em relevo tátil. Faz uma breve abordagem dos aspectos comunicacionais do desenho, do processo da representação gráfica na infância, incluindo algumas reflexões no âmbito da invisualidade. São apresentados ainda, os resultados dos esquemas gráficos realizados antes e depois do estudo proposto. Palavras-chave: Desenho infantil; cegueira; comunicação. Introdução Esta investigação partiu do pressuposto de que crianças cegas constroem esquemas gráficos após um aprendizado e exercícios de linhas e figuras geométricas básicas, e que podem alcançar resultados semelhantes aos desenhos de crianças standards. Nesse sentido, a fim de compreender as possibilidades de aquisição da linguagem gráfica por crianças com esta deficiência, foi elaborada uma série de procedimentos que utiliza imagens tátil-visuais como mediadoras nesse processo. Tendo em vista o desenho infantil como um forte recurso de cognição e comunicação alternativa dessas crianças, são relevantes estudos como este. Como afirma Darras (1998), a atividade gráfica da criança é muito intensa e os desenhos que elas produzem têm características simplificadas, generalizantes e neutras. Pode-se observar isso nos esquemas abaixo, realizados por crianças entre seis e nove anos de idade, e que exemplificam os apontamentos teóricos de Darras (1998) e Duarte (2007), sobre as características encontradas geralmente em desenhos pertencentes ao nível de base 3 (Quadro 1). No âmbito da invisualidade, Darras & Duarte (2007), evidenciam que é neste nível que a aprendizagem de desenho pelas pessoas cegas pode alcançar importantes resultados.
2 Quadro 1. Esquemas gráficos de pássaro, considerados como pertencentes ao nível de base. Fonte: arquivo pessoal. Num contexto comunicacional, o estudo do esquema gráfico é pertinente quando se quer compreender a produção gráfica na infância e na adolescência, e sua relação com a linguagem oral e escrita. Sendo assim, segundo Duarte (2001), desenhos que têm palavras equivalentes em nossa cultura (Figura 1), e que por sua vez identificam objetos do mundo, podem ser tratados como desenhos comunicacionais, e passam a ter grande relevância, principalmente quando são direcionados ao ensino de crianças cegas. CASA = Figura 1. Exemplo de equivalência entre palavra e desenho, baseado em Duarte (2001). Fonte: arquivo pessoal. Esta autora aponta que, a frequente repetição de desenhos dos mesmos objetos acaba criando nas crianças uma memória de procedimentos. Produzidos com esse tipo de memória, os desenhos mantém, geralmente, o mesmo aspecto formal, além de serem simplificados e produzidos quase que automaticamente, resultando numa economia de trabalho mental, ou seja, os desenhos passam a ser construídos cada vez com mais facilidade (DUARTE, 2001). Para a criança cega, esse resumo cognitivo do objeto, configurado em esquema gráfico e presente na memória de procedimento, em função de exercícios repetidos, pode ser positivo quando for necessário se comunicar por meio do desenho. Conforme esta autora, desenhos que permanecem na memória estão intimamente relacionados à maneira de como a criança apreende o mundo, pois ao perceber tatilmente características estruturais simples, como a rotundidade e a triangularidade de um objeto, por exemplo, pode entender o processo de desenhar por meio de um aprendizado de que bordas de contorno dos objetos também podem ser desenhadas com linhas de contorno sobre o papel (DUARTE, 2004). Pressupõe portanto, que o ensino de desenho de esquemas gráficos para crianças cegas, por meio da percepção tátil de
3 objetos presentes no seu cotidiano, pode também contribuir para a formação de conceitos e apreensão do mundo que as rodeiam. Para melhor compreender a linguagem gráfica, foram levantados dados a respeito do processo de desenho na infância (COUTINHO, 1998) e (COUTINHO & FERREIRA, 2009) principalmente a respeito das manifestações gráficas usadas na construção do desenho. Ainda nesse contexto, das poucas investigações encontradas na literatura na área da invisualidade, duas delas tratam do ensino do desenho para crianças cegas (BARDISA, 1992; DUARTE, 2001, 2003, 2004, 2008, 2009) e uma trata do reconhecimento de desenhos tangíveis (LIMA, 2001). Dentre as metodologias estudadas, a de Duarte (2009) levanta algumas hipóteses a respeito do desenho e da invisualidade. Uma dessas hipóteses aponta que (...) Crianças não videntes (...) embora desenhem rabiscos, não começam naturalmente a representar os objetos do mundo. (...). Elas poderão iniciar natural e espontaneamente os seus desenhos se alguma concepção de desenho for adquirida em situações como: aulas de geometria (...); brincadeiras com familiares ou colegas em que o ato de desenhar seja compartilhado com a criança cega (...) por meio de desenhos realizados em linha de relevo tátil (...). (DUARTE, 2009, p. 245). Com base nesse referencial teórico e nos resultados do estudo de campo piloto, realizado numa escola regular de ensino, foi elaborada uma proposta de ensino de desenho, que teve por objetivo saber se crianças cegas constroem esquemas gráficos após um aprendizado de linhas e figuras geométricas básicas, alcançando resultados semelhantes aos desenhos de crianças standards. Metodologia O estudo de campo piloto contou com a participação de 50 crianças standards, na faixa etária entre seis e 10 anos. Por meio de análise dos desenhos coletados, observou-se que essas crianças utilizam elementos de desenho (linhas e figuras geométricas) na construção dos esquemas (Quadro 2). Dentre algumas dessas linhas estão:
4 Linha pontiaguda Linha curva Linha em espiral Linha oblíqua Círculo Oval Quadro 2. Amostras de esquemas gráficos realizados por crianças standards, coletados na escola regular e a presença dos elementos de desenho. Fonte: arquivo pessoal. Da coleta de dados foram escolhidos os exemplares representantes de flor, borboleta e árvore, os quais foram adaptados para linha de contorno em relevo tátil (Quadro 3) e que posteriormente foram utilizados nas sessões com os alunos cegos. Exemplar de esquema gráfico de flor Esquema adaptado para linha em relevo tátil Exemplar de esquema gráfico de borboleta Esquema adaptado para linha em relevo tátil Exemplar de esquema gráfico de árvore Esquema adaptado para linha em relevo tátil Quadro 3. Exemplares dos esquemas gráficos mais representativos da amostragem, desenhados por crianças standards, e suas adaptações para linha em relevo tátil. Fonte: arquivo pessoal. Os desenhos adaptados passaram por um processo de desconstrução da forma, a fim de se chegar aos componentes dos esquemas gráficos escolhidos, como mostra o exemplo abaixo (Quadro 4). Elementos de desenho Oval Linhas curvas Linha oblíqua Componentes de desenho Corpo de borboleta Asas de borboleta Antenas de borboleta Esquema gráfico de borboleta Quadro 4. Elementos e componentes do esquema gráfico de borboleta, elaborados pela pesquisadora. Estes procedimentos compreendem basicamente sete etapas, com os seguintes exercícios: 1) aprendizagem dos elementos de desenho; 2) percepção tátil do objeto tridimensional; 3) aprendizagem do esquema gráfico do objeto; 4) desenho dos elementos de desenho; 5) aprendizagem dos componentes de desenho; 6) desenho dos componentes de desenho; 7) desenho do esquema gráfico completo do objeto.
5 O material didático utilizado nas aulas com os alunos cegos constou especificamente de objetos tridimensionais, 30 cartelas de papel, no formato 21x21 cm, contendo 12 desenhos de linhas, quatro figuras geométricas, 11 componentes dos esquemas e três esquemas gráficos completos, todos em linha de contorno em relevo tátil; papel sulfite branco 75 g, formatos A4 e A2; lápis HB, B e 2B; prancha macia de material plástico, tipo E.V.A. (Figura 2): Figura 2. Amostra do material didático: cartela com desenho em linha de relevo tátil, prancha de E.V.A., papel sulfite, lápis e modelo tridimensional de borboleta. Fonte: material elaborado pela pesquisadora. No contexto desta proposta, os elementos de desenho (linhas e figuras geométricas) são usados para construir o componentes de desenho, que por sua vez, vão construir o esquema gráfico do objeto como um todo. Resultados e conclusão Após os exercícios realizados nas oito sessões individuais, de uma hora por semana, e duração de dois meses, os alunos chegaram aos seguintes resultados (Quadro 5 e Quadro 6): Alunos Aluno A Aluno B Esquema gráfico Flor Borboleta Árvore Flor Borboleta Árvore Antes do método Não soube desenhar Depois do método Quadro 5. Resultados gráficos dos alunos A e B, antes e depois do estudo proposto. Fonte: arquivo pessoal. Alunos Aluno C Aluno D Esquema gráfico Flor Borboleta Árvore Flor Borboleta Árvore
6 Antes do método Não soube desenhar Não soube desenhar Depois do método Quadro 6. Resultados gráficos dos alunos C e D, antes e depois do estudo proposto. Fonte: arquivo pessoal. Os desenhos realizados depois do estudo proposto apresentam características formais semelhantes aos esquemas gráficos das cartelas usadas na coleta de dados e aos realizados pelas crianças standards, como pressuposto no início da pesquisa. São desenhos que identificam objetos, portanto podem ser considerados como desenhos comunicacionais. O material usado para a realização dos desenhos foi satisfatório quanto à percepção tátil da linha resultante após o traçado, fundamental para a orientação do aluno no espaço gráfico. Acredita-se que os exercícios de identificação e de desenho das linhas, realizados em quase todas as sessões, tenham possibilitado a formação de uma memória de procedimento, bem como a aquisição de uma linguagem gráfica, da mesma maneira que, exercícios de reconhecimento do objeto real ou da maquete tridimensional, por meio da percepção tátil, auxiliaram na concepção de que bordas de contorno do objeto podem ser transformadas em linhas de contorno de desenho. Sendo assim, mais estudos relacionados às características formais dos objetos e à produção de esquemas gráficos de crianças cegas e de crianças standards poderão ter continuidade a partir desta investigação, abordando o desenho e sua função comunicacional.
7 Referências BARDISA, Lola. Como enseñar a los niños ciegos a dibujar. Madrid: ONCE, COUTINHO, Solange G.; FERREIRA, Erika S. Estudo trans-cultural do processo de desenho infantil e de memória de crianças entre 5 e 12 anos da França e do Brasil. In: SPINILLO, Carla; BENDITO, Petrônio; PADOVANI, Stephania. (Eds.) Selected Readings of the Information Design International Conference. Curitiba: SBDI, COUTINHO, Solange G. Towards a methodology for studying commonalities in the drawing process of young children. 2 vol. Tese (Doutorado em Typography & Graphic Communication). The University of Reading, Department of Typography & Graphic Communication, Inglaterra, DARRAS, Bernard. A imagem, uma visão da mente: estudo comparado do pensamento figurativo e do pensamento visual. Trad.: Maria Lúcia B. Duarte. Recherches en communication. Paris, França, n. 9, DARRAS, Bernard; DUARTE, Maria Lúcia B. Regards aveugles, mains voyantes. Reliance Revue des situations de handicap, de l education et des sociétés. Lyon, France: Éditions Éres, n. 25, 2007, p DUARTE, Maria Lúcia B. Esquemas gráficos: o pensamento, a comunicação, o ensino da arte. In: 1º Seminário Desenho: educação, cultura e cognição. ECA/USP/FAPESP, São Paulo, Sobre o funcionamento cerebral e a importância do desenho para os cegos. In: MEDEIROS, Maria Beatriz de. (Org.) Arte em pesquisa 2003: o tempo na/da Arte. Anais do 12º Encontro Nacional da ANPAP. Brasilia: UnB, 2003, p O desenho como elemento de cognição e comunicação: ensinando crianças cegas. In: PORTO, Tânia Maria E. (Org.) Anais do Grupo de Trabalho 16, da 27ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação ANPEd, Representação, categoria cognitiva e desenho infantil. In: ROCHA, Cleomar (Org.) Arte: limites e contaminações. Anais do 15 Encontro Nacional da ANPAP. Salvador: ANPAP, 2007, p A imitação sensório-motora como uma possibilidade de aprendizagem do desenho por crianças cegas. Ciências & Cognição, 2008, v. 13, n. 2, p Disponível em: < Acesso em: 07 abr A importância do desenho para crianças cegas. In: NOGUEIRA, Ruth E. (Org.) Motivações hodiernas para ensinar geografia: representações do espaço para visuais e invisuais. Florianópolis: Nova Letra, 2009, p
8 LIMA, Francisco J. de; SILVA, José A. da. Algumas considerações a respeito da necessidade de se pesquisar o sistema tátil e de se ensinar desenhos e mapas táteis às crianças cegas ou com limitação parcial da visão Disponível em: < node/184>. Acesso em: 09 ago
9 1 Notas Mari Ines Piekas possui graduação em Comunicação Visual pela Universidade Federal do Paraná e especialização pela Academia de Belas Artes de Varsóvia. Atualmente é aluna do Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Artes Visuais, da Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de pesquisa Ensino das Artes Visuais. maripiekas@gmail.com 2 Este texto faz parte da dissertação de mestrado em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, sob orientação da Profª Drª Maria Lúcia Batezat Duarte. 3 A partir da proposta de E. Rosch (DARRAS, 1998), os componentes linguísticos podem ser divididos em três níveis de abstração: nível superordenado, nível de base e nível subordenado. Segundo o autor, os esquemas gráficos do nível de base são os mais usados na comunicação cotidiana entre as pessoas.
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