Os gêneros do discurso na sala de aula: um enfoque para o professor de ensino médio Victoria Wilson (FFP-UERJ)
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- Jónatas Caldas Vilalobos
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1 Os gêneros do discurso na sala de aula: um enfoque para o professor de ensino médio Victoria Wilson (FFP-UERJ) Parte I: Reflexões iniciais Desde a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (2000), os estudos sobre os gêneros do discurso na área acadêmica se multiplicaram. Sua presença como eixo norteador para a interpretação e compreensão dos textos em livros didáticos de língua portuguesa se estabeleceu, bem como se intensificou a exigência de seu trabalho como ferramenta pedagógica em sala de aula. Como opção metodológica de trabalho e ancorada em um de seus pressupostos mais caros, destaca-se a natureza social e interativa da linguagem em que o texto (verbal sobretudo) é considerado em sua dimensão social e cultural: O processo de ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa, no Ensino Médio, deve pressupor uma visão do que é linguagem verbal. Ela se caracteriza como construção humana e histórica de um sistema lingüístico e comunicativo em determinados contextos. Assim, na gênese da linguagem verbal estão presentes o homem, seus sistemas simbólicos e comunicativos, em um mundo sócio-cultural. (PCNEM, 2000, p.18) Sob a ótica discursiva, os PCN do Ensino Médio elencam como uma das competências e habilidades a serem desenvolvidas em Língua Portuguesa essa que aqui destaco: Analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando textos/contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo com as condições de produção/recepção (intenção, época, local, interlocutores participantes da criação e propagação de idéias e escolhas. (PCNEM, 2000, p.20) Nota-se, nessa passagem, a ênfase dada à relação entre texto e contexto e às condições em que se tornaram possíveis sua produção bem como sua recepção. Tais elementos texto, contexto e condições de produção/recepção (ou interlocução) trazem à tona dimensões outras que ultrapassam a esfera estrutural e prescritiva da língua, fazendo-nos lembrar das reflexões de Bakhtin sobre linguagem, texto, discurso e enunciado e gêneros. No estudo sobre gêneros, Bakhtin (2003) distingue três elementos que compõem o enunciado conteúdo temático, construção composicional e estilo e que, ao serem determinados pelas especificidades de um determinado campo, passam a constituir os gêneros do discurso. Ora, se a língua se manifesta sob a forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, nas palavras de Bakhtin (2003, p. 261), os gêneros, também eles, se materializam sob a forma de enunciados concretos, e únicos, dependentes daquelas condições de produção/recepção e do contexto de onde emergem. página 1
2 Portanto, tanto o conteúdo quanto à forma (construção composicional), se estão associados ao estilo que define as singularidades de cada texto, todos esses três elementos estão, de algum modo, determinados pelos contextos históricos e sociais ou pelos campos, esferas mais imediatas da comunicação. Com essa reflexão preliminar, quero trazer uma proposta de ação pedagógica para o ensino de língua portuguesa pelo viés dos gêneros do discurso, passando, então, à parte dois desse trabalho. Parte II: O gênero na sala de aula A carta como gênero: especificamente, cartas de reclamação. A escolha da carta como gênero deve-se a várias razões, dentre as quais destaco o fato de ser esse um gênero recorrente no cotidiano tanto de adultos quanto de jovens. Portanto, trata-se de um gênero cujas características são, a princípio, familiares. No entanto, cartas de reclamação, por apresentarem motivações específicas como, por exemplo, uma resposta a algum dano sofrido, ou algum tipo de insatisfação e/ou reivindicação, acabam por ter alterado seu estilo e sua estrutura composicional. Para a proposta deste trabalho, foi selecionada uma carta de reclamação escrita por um proprietário de imóvel residencial à empresa de construção civil, dirigida, especialmente, ao gerente (engenheiro) responsável pelo setor de atendimento ao cliente. O exercício de leitura e análise aqui apresentado visa à interpretação dos recursos linguísticos empregados pelo redator da carta, considerando os fatores de ordem pragmática, a saber: a) que traços há, na língua, que caracterizam esse texto (gênero) como uma carta de reclamação? b) Como analisar os traços depreendidos, considerando-se as fronteiras entre língua e discurso?; c) Quais são as relações entre língua/discurso e cultura? d) Como o professor de língua / linguagem pode fazer uso dos conhecimentos gramaticais e examiná-los do ponto de vista do gênero e do discurso? No contexto em que a carta foi escrita, como as pessoas, na condição de consumidoras, de um lado, e cidadãs, de outro, agem, comportam-se em situações nas quais precisam solucionar problemas e reivindicar direitos? As reclamações encontradas na carta de nosso exemplo são motivadas por danos materiais, tais como trincas e rachaduras, vazamentos e empolamentos, danificações de modo geral; e por danos morais em resposta à qualidade ou dos serviços ou do atendimento prestado. No entanto, numa cultura como a brasileira, tida como uma cultura de não-confrontação, sustentada pelos traços cordiais, do deixa-disso e de um tapinha nas costas, o ato de reclamar, em geral, é considerado um comportamento desagradável, realizado por pessoas chatas, encrenqueiras ou que não têm o que fazer. Associado a esse página 2
3 jeito de ser, deparamo-nos com um sistema jurídico moroso e com leis que privilegiam as pessoas particularmente (embora no papel tais leis sejam universais, pois feitas para serem aplicadas a todos igualmente, cf. da Matta, 1979). Nesse contexto, reclamar, ainda que seja pela reivindicação de direitos básicos, torna-se um tormento para os brasileiros, pois não se tem a garantia de uma resposta, nem ao menos a certeza de que a justiça será exercida (cf. Cerbino, 2000, atual Wilson). Vejamos então exemplo de uma carta de reiteração, cuja solicitação à empresa já havia sido realizada por mais de uma vez. Nenhuma alteração no texto, o qual se encontra na íntegra, foi feita, a não ser a marcação em itálico dos recursos lingüísticos que serão destacados para a análise. Prezados Senhores, Como é de conhecimento de V.Sa. desde março que, pacientemente, estamos aguardando a solução de vazamento no banheiro social do corredor, além do empoçamento de água no box por falha no nível. Esclarecemos, que exatamente face a demora no atendimento, a infiltração já está quase atingindo a soleira da porta de acesso ao corredor significando uma ameaça ao piso especial que nele colocamos e que, como V.Sa. sabe, não pode pegar umidade. Assim a postergação em solucionar a anomalia, poderá causar um prejuízo adicional muito importante, já que o piso do corredor é da empresa Y. Lembramos, para que não paire dúvidas, que constatamos o problema em nosso banheiro há muitos meses atrás, quando comunicamos pela primeira vez ao construtor e assim muito antes do surgimento do caso de aquecimento da água só recentemente detectado nos aptos da coluna 01. Cabe lembrar que continuamos também aguardando a solução para a porta de acesso da salão à varanda já que está desalinhados e com inúmeros erros de instalação como comprovados, quando a ele mostramos, pelo próprio técnico enviado pelos construtores. Enfim, toda essa desgastante realidade, tem tido um custo muito elevado do proprietário que, após quase dois anos de recebimento, ainda tem que vivenciar protelações as mais diversas. Em face do exposto solicitamos, em nome do bom relacionamento que sempre mantivemos, como síndico e proprietário, com a construtora, a pronta solução de todas nossas deficiências. De acordo com os PCNEM, a análise gramatical, estilística e textual deve levar em conta o contexto, os gêneros, os recursos empregados pelos participantes da cena comunicativa, tendo em vista os significados e as funções sociais que se manifestam no contexto em questão, bem como perceber o ponto de vista assumido aqui, no caso, pelo redator da carta. (PCNEM, 2000, p.18) Ao redigir a carta, o proprietário lança mão de vários recursos da língua que revelam os problemas vivenciados por ele em seu apartamento, tais como: vazamento no banheiro social; empoçamento de água no box por falha no nível; ameaça ao piso; aquecimento da água; desalinhamento da porta; erros de instalação. Pode-se observar que a descrição dos problemas vem embalada por substantivos, classe de palavras com a qual designamos ou nomeamos os seres em geral, de acordo com a NGB. (CUNHA e CINTRA, 1985, p.171) página 3
4 No entanto, ao descrever os danos ocorridos, o proprietário faz coisas com a linguagem, no sentido que Austin (1970) atribui aos atos de fala em que dizer é fazer. Sob essa perspectiva, o proprietário: a) expressa sua insatisfação com a empresa (descaso no atendimento e falha nos serviços) quando pontua o tempo decorrido desde a primeira reclamação e a permanente postergação dos serviços. b) reivindica à empresa a responsabilidade que a ela cabe para reparar os danos. Para expressar a insatisfação com a empresa, pode-se notar a ocorrência de: Orações adverbiais que indicam ou apontam para o tempo decorrido, podendo ser temporais ou causais: a) (...) desde março que, pacientemente, estamos aguardando; b) (...) exatamente face a demora no atendimento (...); c) (...) constatamos o problema, há muitos meses atrás, quando comunicamos pela primeira vez ao construtor (...) d) (...) após quase dois anos de recebimento (...) Advérbios que seriam classificados, do ponto de vista prescritivo, como advérbios de modo. Porém, se tomados em sua função discursiva e social, manifestam-se como modalizadores, expressando sentimento. a) pacientemente; b) exatamente Numerais ou expressões numéricas que não indicam apenas a quantidade ou a ordem de sucessão, mas, ao fazerem isso, denotam o desgaste relativo aos problemas vivenciados pelo proprietário: a) (...) quando comunicamos pela primeira vez ao construtor (...) b) (...) quase dois anos de recebimento Substantivos e locuções verbais (iterativas) que denotam morosidade e descaso da empresa: a) estamos aguardando a solução do vazamento/ continuamos também a aguardar; b) postergação em solucionar o problema; c) face a demora no atendimento; d) custo muito elevado; e) a pronta solução de todas nossas deficiências página 4
5 Adjetivos que reforçam as falhas da empresa. Trata-se, pois, de adjetivos avaliativos com teor afetivo também: a) desalinhados; inúmeros erros; custo muito elevado Para chamar a empresa à responsabilidade que lhe é devida ou lembrar-lhe de dívidas anteriores, a opção por orações de natureza adverbial parece ter sido um recurso bastante produtivo. Por exemplo: Conformativas: com a função social de comprovar que a empresa tem ciência do fato: a) Como é do conhecimento de V.Sa., desde março que, pacientemente, estamos aguardando a solução de vazamento no banheiro social do corredor; b) (...) como V.Sa. sabe, não pode pegar umidade. c) Cabe lembrar que continuamos também aguardando a solução para a porta de acesso da salão à varanda já que está desalinhados e com inúmeros erros de instalação, como comprovados; Temporais: para enfatizar a recorrência dos pedidos e também a confirmação do que foi dito: a) (...) constatamos o problema em nosso banheiro há muitos meses atrás, quando comunicamos pela primeira vez ao construtor e assim muito antes do surgimento do caso de aquecimento da água só recentemente detectado nos aptos da coluna 01. b) Cabe lembrar que continuamos também aguardando a solução para a porta de acesso da salão à varanda já que está desalinhados e com inúmeros erros de instalação como comprovados, quando a ele mostramos, pelo próprio técnico enviado pelos construtores. Final: com a mesma motivação funcional e social, qual seja: a de validar uma situação: Lembramos para que não paire dúvidas (...) Parte III: Para concluir Evidentemente, ainda há uma série de ocorrências lingüísticas que poderiam ser comentadas, mas ficam aqui algumas indicações de como o contexto gera determinados enunciados, definidos por um gênero predominante, gênero esse que, a partir de uma estrutura composicional, conforma-se, por um lado, e por outro, atua para adquirir uma forma específica em função das relações sociais e interacionais estabelecidas. E são nessas interações e por meio delas que se podem perceber os índices valorativos com que o autor vai marcando seu texto ou seu estilo. Na manifestação das singularidades possíveis, vemos emergir os valores e as funções sociais que constituem os gêneros, a língua e o discurso. Uma aula de língua portuguesa pode ser dada contemplando todas as categorias lexicais, gramaticais e morfossintáticas desde que compreendamos a língua em sua dimensão sociointeracional, ou seja, adjetivos, numerais, verbos e advérbios até orações em período composto não se restringem apenas página 5
6 ao que a NGB descreve e/ou prescreve. Sob a ótica sociointeracional, tais categorias são motivadas pelo gênero do discurso, pelas condições de sua produção, pelas relações (sociais, funcionais, afetivas e de poder) que se estabelecem entre os participantes. Todos esses fatores intervêm na língua e no modo de organização discursiva, ampliando e diversificando as funções e valores lingüísticos. Referências AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Palavras e Ação. Trad. Danilo Marcondes. Porto Alegre: Artes Médicas,1980 [1962]. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do Discurso. In:. Estética da Criação Verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, CERBINO, Victoria Wilson Coelho (atual WILSON). Manifestação de afeto em cartas de reclamação. Rio de Janeiro, Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, Parâmetros Curriculares do Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. MEC. Brasília: p.Disponível em página 6
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