LETRAS E PALAVRAS: IMAGENS DO ÚLTIMO CALÍGRAFO. PALAVRAS-CHAVE: Caligrafia, Imagem, Livros manuscritos árabes e persas; cinema.

Transcrição

1 LETRAS E PALAVRAS: IMAGENS DO ÚLTIMO CALÍGRAFO RODRIGUES, Ubirajara Alencar (UNICAMP) RESUMO: Esse texto é sobre imagens de letras, livros e filmes; e particularmente as de um pequeno documentário encontrado no site de vídeos You Tube durante busca de imagens sobre livros manuscritos e caligrafias árabes e persas. É difícil, num olhar, dissociar esses povos pelas informações que recebemos: todos são retratados como anônimos, estranhos estrangeiros escondidos sob o rótulo de muçulmanos. A caligrafia e os caracteres dos livros, também parecem assim. Além da motivação da pesquisa em curso, houve a de minhas atividades profissionais nessa unidade de ensino. Ambas estão ligadas diretamente. PALAVRAS-CHAVE: Caligrafia, Imagem, Livros manuscritos árabes e persas; cinema. Os caracteres dos livros impressos, as caligrafias dos livros manuscritos e as manchas que os textos ocupam nas páginas desses livros identificam lugares, origens. Essas manchas configuram, intrinsecamente, um espaço com limites estabelecidos por regras e imposições, harmônicas ou não. Cultura, política e aspectos sociais podem ser identificados nas imagens das páginas; elas nos remetem aos seus criadores, às suas escolas de orientação. E a grupos políticos, representantes de lugares, que se apropriam dessas imagens que nos são impostas e expostas. Quando vejo um texto escrito com caracteres árabes, não importa o suporte no qual ele esteja grafado papel, parede, etc... - imediatamente me lembro de palavras que carregam consigo imagens, como fé, aridez, deserto, monocromia, que não consigo separar dos sentidos que me trazem a luz e as cores, o calor, os odores e os sabores. Poderia lembrar de apreensões, que eu já não tenho, mas são despertadas na maioria das pessoas diariamente pelos noticiários televisivos ou impressos que enfatizam a violência presente nos países muçulmanos. Nos textos escritos com o alfabeto cirílico, minha memória faz uma remissão imediata às imagens de ícones do cristianismo russo, às imagens dos filmes de Andrei Tarkovski e Alexander Sokurov, e inevitavelmente às imagens que criei durante as minhas leituras de Dostoievski. Há um documentário sobre a vida do diretor Andrei Tarkovski no qual o compositor Eduard Artemiev, que foi responsável pela música dos filmes Solaris, O Espelho e Stalker, fala de noites frias ocupadas com longas conversas

2 com esse diretor dentro de um pequeno apartamento, cujo melhor aquecimento era a vodka. Quando vejo um texto escrito com letras góticas, não consigo evitar de pensar na Alemanha; mais ainda, em nazismo, na apropriação por esses das imagens arquetípicas que reforçavam o nacionalismo, as origens germânicas. As letras góticas foram desenvolvidas para a escrita alemã, para aproveitar melhor o espaço para a organização do texto na página do livro; no alemão há muitas palavras compostas, muito grandes, daí essa necessidade. No início da história do livro impresso, final do século XV, as letras góticas eram usadas na Alemanha na produção dos livros impressos hoje chamados de incunábulos. Os incunábulos são os livros impressos produzidos no período compreendido entre 1456 e foi o ano da invenção da imprensa por Gutenberg em Mainz, na Alemanha. Esse limite no ano de 1500 me parece um pouco arbitrário. Há reproduções de incunábulos espanhóis que utilizaram as letras góticas, e há outros, compostos com essas letras, produzidos em outros países da Europa, embora tenha me restringido às italianas, na pesquisa do mestrado. Há diversos filmes em preto e branco, de diversas origens, principalmente até a década de 1950, cujos créditos foram escritos com letras góticas, que fazem pensar... A escrita desse texto é sobre imagens de letras, de livros e do cinema; entre outras, é sobre as imagens de um pequeno filme encontrado no site de vídeos You Tube durante busca de imagens sobre as caligrafias árabes e persas em livros manuscritos. Uso caligrafias, no plural, face às diversas formas de apresentação das mesmas. O título desse filme é O Último Calígrafo, e foi produzido no ano de É difícil, num primeiro olhar, dissociar as pessoas de um grande grupo como esse árabes, muçulmanos - pelas informações que recebemos da mídia: todos são retratados como anônimos, estranhos estrangeiros escondidos sob esse rótulo: árabes, muçulmanos. Os outros. A caligrafia e os caracteres também parecem assim, embora tenham características que as ligam, geralmente, a lugares, escolas e linhas políticas e de pensamento dentro de um grupo maior da religião muçulmana.

3 No pequeno filme, apesar da bela música que acompanha as imagens, se simplesmente a ouvisse, não poderia associá-la ao nome do diretor: é música ocidental! O título do filme, por ser apresentado em inglês, fez pensar, num primeiro momento, que havia uma preocupação de que o maior número de pessoas, em qualquer lugar, lesse e soubesse logo de início, ainda que vagamente, do que se tratava. Facilitaria para os estranhos estrangeiros localizarem o filme no You Tube. Pode ser pragmatismo do autor, usar o inglês. Pode ser simplesmente a língua materna dele, embora seu nome me dissesse que fosse indiano: Premjit Ramachandran. Na Índia, dizem, há mais de 200 milhões de pessoas que falam e, suponho, escrevem, em inglês; daí eu imaginar, num segundo momento, que alguns grupos sociais estejam mais próximos da língua inglesa do colonizador, e que esse diretor nem tenha pensado em ser pragmático: simplesmente utilizou a língua materna de seu grupo social. Pensando no título do filme, em inglês, poderia se tratar de um filme nostálgico sobre qualquer caligrafia, de qualquer lugar ou época. Mas pensei em geografias, tentando localizar sua origem ao ler os nomes descritos nos créditos e os rostos das pessoas. É uma redução, mas é o que podemos pensar se conhecermos algumas palavras de determinada língua, ainda que não a dominemos, pela simples experiência da leitura. Ou ainda, tentando localizar essa origem pela simples observação das fisionomias dos personagens. São imagens dessas palavras e dessas fisionomias que vemos, que persistem, perseguem e enganam. Logo no início desse filme é apresentada uma placa sobre uma porta larga, que fez pensar num local comercial pelas informações descritas, bem características de placas comerciais, além de ser bem pouco usual uma placa sobre uma porta residencial - imagino que na Índia seja assim, também -; a imagem é mostrada por uma câmera que quer assumir a minha posição, ou a minha condição, de um pedestre qualquer que buscava esse lugar. Pelo título do filme que já fora apresentado, pelas imagens que destaquei antes e pelo que buscava encontrar, intuí que esse lugar pudesse ser um ateliê de caligrafia em alguma região da Índia, que tem uma grande população muçulmana, está próxima da

4 Pérsia dos manuscritos buscados, e historicamente sempre trocou muita cultura com esse país, desde antes do aparecimento do islamismo. Nesse momento da pesquisa eu fazia leituras que faziam referências a esses ateliês, tentando encontrar uma descrição mais minuciosa desses espaços, de preferência em textos literários, como narrativas de viagens. Pelas imagens do início do filme, esse ateliê fica no térreo de um prédio que possui pelo menos mais um andar, já que algumas janelas, aparentemente residenciais, podem ser vistas acima da placa. A luz sombreada que banha o edifício me fez pensar ser uma cidade densa, populosa; poderia ser uma zona mista: comercial e residencial, onde outras construções sombreariam a primeira que aparece na imagem. Mas essa luz poderia ser também conseqüência do horário da filmagem, num prédio com a face para a sombra. Outras possibilidades poderiam ser aventadas por outros que as vissem. A imagem, o texto, se multiplicam de acordo com os olhares e as leituras de cada um, que são únicos. A primeira imagem que surge no interior do lugar é de uma placa que reproduz a identificação do estabelecimento, com as palavras escritas em árabe e aparentemente em negativo. Imaginei que fosse uma matriz para a impressão de algum material de divulgação. A seguir, aparece a imagem da mão de alguém escrevendo, em primeiro plano e em seguida, o primeiro personagem trabalhando. Jovem, que pela fisionomia remete mais uma vez a um indiano: um estranho estrangeiro. As poucas imagens externas que poderiam ajudar a identificar o local em que foram feitas, são comuns a todas as grande cidades que conhecemos. Uma rua com motocicletas e bicicletas estacionadas, com um cartaz da Xerox ao fundo. Poderiam ser muitos lugares de São Paulo, Paris ou a Londres dos imigrantes; quem sabe Istanbul, Lagos? Fronteiras físicas ou políticas não coincidem com fronteiras humanas, visuais. O lugar, eu descobri depois seguindo os rastros e usando o site Google Mapas, é Chennai, que se chamava Madras em 1927, nome indicado na placa sobre a porta, quando o jornal foi inaugurado. É a capital da província de Tamil Nadu e fica na costa leste da Índia. Vendo esse filme e pensando nessas dificuldades, lembrei-me de um outro filme: O Deserto dos Tártaros, de Valério Zurlini. Nesse caso o personagem principal, um

5 militar, italiano, é mandado para uma fortaleza na fronteira; mas essa fronteira é com um deserto dos tártaros, que remete a outras metáforas, algo como um oceano sem margens 1. (CHODKIEWICZ, 1992, capa) O filme O último calígrafo fala do que seria o último jornal elaborado manualmente em urdu. Segundo o Dicionário Houaiss, o urdu é... relativo a ou língua nacional da República Islâmica do Paquistão [É considerado por alguns, dialeto do hindi, do qual difere especialmente na língua escrita e literária, pois o urdu escrito possui muita influência do persa, enquanto o modelo literário do hindi foi o sânscrito; é escrita com caracteres árabes e persas] 2. (HOUAISS, 2009, p. 1909) Usando ainda o Google Mapas, encontrei logo ali, há algumas quadras, naquele bairro, uma mesquita. Aqueles textos não eram, então, árabes; mas as letras, sim. As duas escritas, árabe e persa, são diferentes, como o são suas culturas, seus povos. Tudo muito desconhecido para nós, ocidentais Esse é um pequenino filme, talvez possa chamá-lo de documentário pela sua intenção de ser um registro histórico, de manutenção da memória das atividades escritas de um grupo minoritário, de uma verdade. Escrevendo sobre o processo de produção de um filme, Milton José de Almeida escreve que eles: Ao final do processo, tornam-se produtos inquietantes: jornalísticos, documentais, querem nos fazer crer reais e verdadeiros os acontecimentos que sabemos serem fragmentos da realidade escolhidos politicamente; ficcionais querem nos fazer viver como reais e verdadeiras histórias e imagens que sabemos serem somente fragmentos da invenção. 3 (ALMEIDA, 2001, p ) 1 CHODKIEWICZ, Michel. Um océan sans rivage. Paris: Editions du Seuil, HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. RJ: Objetiva, ALMEIDA, Milton José de. O Eclipse, o Dragão e o Cinema. Estudo sobre o filme O estado do cão. IN: EDUCAÇÃO & SOCIEDADE. Ano XXII, dez/2001, nº 77. p

6 E, continuando, ele escreve sobre a verdade contida num outro filme: O estado do cão, que causa essa dúvida, se pode ser chamado de documentário: caligrafia.... lugares e pessoas reais deixam-se documentar pela arte cinematográfica que vai transformá-los em seres de ficção e exibi-los em uma seqüência de imagens como se fossem ou tivessem sido reais. Simularão um outro real. 4 (ALMEIDA, 2001, p ) Esse real hipotético construí achando que aquele lugar fosse um ateliê de E aquele jornal, é real? Não importa se a história que está sendo contada é verdadeira, ou criada. O efeito visual é sempre de algo real. Mas não o real visto na realidade, mas aquele real transfigurado pela imagem da câmera e da edição. 5 (ALMEIDA, 2005, p. 45) Aquela placa sobre a porta, do início, terá legitimado a verdade do filme? E recuperando mais algumas palavras de Milton de Almeida,... tudo o que é visto no filme parece acontecer mesmo, as pessoas parecem existir mesmo, os locais parecem verdadeiros, pois pessoas, coisas, lugares foram filmados realmente, tanto na realidade, em locais existentes, como em locais fabricados, como os estúdios e cenários. 6 (ALMEIDA, 2001, p. 45) Bibliografia ALMEIDA, Milton José de. O Eclipse, o Dragão e o Cinema. Estudo sobre o filme O estado do cão. IN: EDUCAÇÃO & SOCIEDADE. Ano XXII, dez/2001, nº 77. p ALMEIDA, Milton José de. O real, a linguagem da realidade, o cinema. Brasília. Secretaria de Educação a Distância/ MEC, 2005 (Artigo em Website) CHODKIEWICZ, Michel. Um océan sans rivage. Paris: Editions du Seuil, ALMEIDA, Milton José de. O Eclipse, o Dragão e o Cinema. Estudo dobre o filme O estado do cão. IN: EDUCAÇÃO & SOCIEDADE. Ano XXII, dez/2001, nº 77. p ALMEIDA, Milton José de. O real, a linguagem da realidade, o cinema. Brasília. Secretaria de Educação a Distância/ MEC, 2005 (Artigo em Website) 6 Idem.

7 HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. RJ: Objetiva, 2009.