UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

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1 MODERNISMO BRASILEIRO E A DEVOLUÇÃO DO PATRIMÔNIO À SOCIEDADE: AS INTERVENÇÕES EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES E SOLAR DO UNHÃO Daniela José da Silva (UEG) 1 (danijdesigner@gmail.com) Maíra Teixeira Pereira(UEG) 2 (mai_teixeira@yahoo.com.br) 1. INTRODUÇÃO A ideia de patrimônio sofreu alterações ao longo do tempo e talvez uma das mais significativas seja o acréscimo do sentido de público ao conceito da palavra. Essa soma ao significado muito se deve aos ideais iluministas de razão, liberdade, conhecimento e bem estar social presentes também na Revolução Francesa. A partir do século XIX o patrimônio passa então a não ser mais visto como um bem privado transferido de pais para filhos, e sim como um bem público pertencente a toda comunidade. Atualmente o patrimônio é visto como o legado de um povo, legado que pode ser material e imaterial, mas que é principalmente cultural e memorial. Atualmente a valorização do patrimônio muitas vezes está atrelada a questões mercadológicas e serve como entretenimento cultural vendido aos turistas e a toda comunidade. A primeira metade do século XX foi marcada pelos ideais modernistas de supervalorização do futuro e da modernidade. No Brasil o modernismo assume uma ideologia diferente, muito mais que uma ode ao futuro, aqui buscou-se uma identidade nacional, a Semana de Arte Moderna em 1922 e o Manifesto Antropofágo de Oswald de Andrade lançado em 1928 marcam profundamente a produção artística brasileira da primeira metade do século. Esse ideal nacionalista marca também a valorização e a institucionalização da política de preservação do patrimônio nacional com a criação, em 1937, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), órgão público federal criado por nomes como Mário de Andrade, Gustavo Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade entre outras figuras ligadas a política, arquitetura e a cultura brasileira, como Lucio Costa que teve significativa participação na consolidação das ações exercidas pelo SPHAN nos primeiros anos de atuação do órgão. Com a criação do SPHAN buscava-se a salvaguarda e a afirmação do patrimônio e da identidade brasileiros através de políticas e práticas de preservação do patrimônio nacional e regional. O apoio que estes modernistas, idealizadores da questão preservacionista, receberam do governo federal, principalmente na figura do próprio presidente Vargas muito se deve a questões de cunho político. Seja pela preocupação do governo em implantar uma ideia, até então pouco explorada, de uma cultura nacional que propiciasse a identificação dos cidadãos com a nação, seus símbolos, líderes e heróis, 1 Designer gráfico pela Universidade Federal de Goiás (2006), graduanda do 10º período do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Goiás. 2 Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Viçosa (2001), mestre pela Universidade Federal de Viçosa (2003), doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília e professora da Universidade Estadual de Goiás. 1

2 seja pela proximidade político partidária entre Vargas e Gustavo Capanema, que foi por Vargas nomeado ministro da educação e saúde. Através das ações de preservação e de intervenção sobre o patrimônio existente alguns arquitetos modernistas brasileiros, muitos deles ligados ao próprio IPHAN, restituíram o patrimônio à comunidade, levando à sociedade o conhecimento de sua história e dos elementos criadores de sua identidade. Lucio Costa com a intervenção na área de São Miguel das Missões entre 1937 e 1940 e Lina Bo Bardi em Salvador com atuações em dois momentos distintos, o primeiro entre 1958 e 1964 com obras como o Solar do Unhão ( ), e o segundo na década de 80 com obras de intervenção no centro histórico da cidade como a Ladeira da Misericórdia e a Casa do Benin são bons exemplos desse ideal modernista brasileiro. Com os projetos citados acima Lucio Costa e Lina Bo Bardi respondem a pergunta que até hoje é desafiadora, por que não usar a intervenção sobre o patrimônio existente como uma alternativa para devolvê-lo à sociedade? Conferindo-lhe assim novos usos e novas vivências apesar do distanciamento temporal existente entre sua construção original e a intervenção. 2. OBJETIVOS Realizar um estudo sobre a produção arquitetônica modernista brasileira voltada à salvaguarda do patrimônio e memória nacional e regional, executada sem deixar de lado os preceitos pregados pelo modernismo. Isso nos permite entender como a intervenção sobre o patrimônio existente pode ser uma alternativa para devolvê-lo à sociedade, dando novos usos, vivências e significados, além de buscar respostas para questões como: mesmo com o sucesso das intervenções, por que elas foram e são até a atualidade pouco exploradas? Por que a alternativa mais comum quando a intervenção acontece é a musealização? Não seria possível intervir no patrimônio arquitetônico para outros fins? 3. METODOLOGIA Para a realização deste trabalho o levantamento bibliográfico sobre o tema proposto, os arquitetos e as obras em estudo foram fundamentais e constituíram o primeiro momento da pesquisa, pois a parir deste foi possível produzir todo o embasamento teórico que norteou os rumos e decisões posteriormente tomados. Além desta pesquisa bibliográfica foi fundamental também a realização de um levantamento biográfico sobre os arquitetos estudados, Lina Bo Bardi e Lúcio Costa, a fim de entender sua formação, influências, projetos e discursos. Este estudo possibilitou assim conhecer os arquitetos, sua formação, seus trabalhos e suas ideias que nortearam e embasaram suas carreiras e seus projetos. No tocante as obras estudadas foi feito um minucioso levantamento iconográfico sobre elas, utilizando-se da Gestalt, que permitiu o desenvolvimento de uma metodologia aplicada no estudo dos objetos analisados e de suas características morfológicas. Também foi utilizado os estudos da semiótica a fim de determinar e ter claro os símbolos, os ícones e os tipos que compõe, aproximam e separam as duas obras estudas. Estes estudos possibilitaram compreender as obras e produzir elementos de análise gráfica de cada obra em separado e também da comparação entre ambas para compreender suas similaridades e particularidades e seu êxito no cumprimento das propostas apresentadas por cada arquiteto. 4. RESULTADOS E DISCUSSÕES 2

3 O século XX foi um momento bastante profícuo para as artes e cultura brasileiras, nas primeiras décadas tivemos momentos importantes como a exposição de Anita Malfatti em 1917, a Semana de Arte Moderna em 1922, a ascensão ao poder de Getúlio Vargas e a consolidação da arquitetura moderna no Brasil. É nesse contexto histórico que se inserem as obras estudadas, a primeira, trata-se da intervenção realizada entre os anos de 1937 e 1940, por Lúcio Costa no sítio arqueológico de São Miguel das Missões, localizado no Rio Grande do Sul, uma das primeiras obras executadas sob a batuta do SPHAN, órgão público federal criado para salvaguardar o patrimônio brasileiro. Esta obra tinha como intenção evidenciar e preservar um importante capítulo da história brasileira, as missões jesuíticas no sul do país. Com a intenção de valorizar o conjunto urbano e os elementos remanescentes no sítio a implantação proposta tem a intenção de situar o museu de preferência, em um dos extremos da antiga praça para servir de ponto de referência e balizamento e dar uma idéia melhor das suas dimensões (Pessôa, 1999, p. 39 apud CARRILHO, 2006, p. 02). Para a construção do edifício do museu Lucio Costa propôs um alpendre semelhante aos das construções feitas pelos jesuítas, encimado por uma cobertura à maneira das edificações antigas. Foram usados, também, elementos da própria ruína, como as colunas que delimitam o referido alpendre. Mesmo possuindo toda essa proximidade com o passado o restante do museu foi realizado de acordo com os preceitos modernistas: paredes brancas onde as peças seriam expostas e fechamento externo inteiramente de vidro, de modo a promover a permeabilidade e a continuidade entre museu e sítio. Além do museu o projeto conta com uma casa para o zelador do sítio arqueológico. Essa outra construção, completamente antagônica a primeira, trata-se de uma construção encerrada nos limites de um pátio fechado por muros de pedra. Tal oposição entre a permeabilidade do museu e o fechamento da casa acaba por acentuar os dois elementos, e consequentemente a relação entre novo e antigo, mostrando que nesse projeto Lucio Costa conseguiu propiciar o convívio harmônico entre métodos e matérias construtivos tidos como tradicionais e modernos numa justaposição entre elementos de origens diferentes, mas principalmente consegue devolver, graças a sua intervenção, esse espaço para a sociedade, dando-lhe um uso diferente do original. Para a escolha do segundo objeto de estudo resolvemos avançar no tempo em aproximadamente 20 anos e também mudar o recorte espacial. Enquanto o primeiro estava no sul do país este trata-se do Solar do Unhão, obra de intervenção realizada entre os anos de 1959 e 1962 pela arquiteta Lina Bo Bardi em Salvador, Bahia, num período onde questões de cunho social, como os movimentos comunistas e socialistas gozavam de grande força e influencia mundial. Entre as operações de conservação realizadas no Solar do Unhão, destacam-se aquelas voltadas a recuperar a estrutura interna de madeira, estrutura essa composta pelos pilares, piso superior, assoalho e estrutura de sustentação da cobertura, além da manutenção do monta-carga existente. Importante assinalar também a substituição da velha escada pela nova. Elaborada com pilar central e detalhe de encaixe dos pisos com as traves laterais, numa referência explicitada pela própria arquiteta aos carros de boi. 3

4 Lina também preservou a vegetação do entorno e a rusticidade do prédio, graças às paredes grossamente rebocadas e os seixos rolados fixados no piso do pátio. A simplicidade, de um modo geral está presente nesse projeto, seja na simplificação das esquadrias de madeira que tem na cor seu elemento mais chamativo, seja na forma como organizou o espaço interno das construções e na pintura neutra do conjunto. Com a intervenção sobre o patrimônio colonial, tombado pelo SPHAN desde a década de 40, Lina devolve a população de Salvador um espaço que antes era privado e degradado, transformando-o em um lugar destinado ao lazer, à cultura e ao aprendizado, perpetuando a memória. Assim, estas duas obras nos permite ver a evolução temporal do tema com as diferenças e similaridades no tocante ao discurso e ações dos dois arquitetos em questão, os lugares de implantação das obras e o legado deixado para a sociedade brasileira. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A noção de patrimônio evoluiu ao longo do tempo acompanhando a evolução da própria humanidade e das sociedades. O mundo ocidental, mesmo com diferenças temporais acabou seguindo o mesmo caminho e construiu suas memórias e sua identidade apoiada em símbolos. Esses referenciais memoriais foram criados pelas próprias mãos humanas e hoje constituem monumentos nacionais e patrimônios coletivos. Quando o modernismo, nas primeiras décadas do século XX, desembarca no Brasil, encontra um país e um povo carente desses símbolos nacionais que funcionam muitas vezes como agregadores de um povo. Em virtude da dimensão continental do território brasileiro e da falta de conhecimento da população do que se passava fora de suas imediações o país era pequenos Brasis. Enquanto na Europa a modernidade vinha atrelada a uma supervalorização do futuro e muitas vezes como uma negativa de uma cultura e identidade conservadoras, no Brasil precisava-se, antes de qualquer coisa, criar as bases de uma identidade e cultura nacional. Romper com o passado ligado aos padrões europeus de produção intelectual e buscar a identidade e a tradição brasileira de fato. Entre as décadas de 20 e 30 esse ideal intelectual moderno permeia também o campo da política, a ascensão ao poder de Getúlio Vargas quebrando a supremacia das tradicionais oligarquias paulistas e mineiras e a instauração, em 1937, do Estado Novo, marcam o início da busca do Estado brasileiro em estabelecer a imagem de uma sociedade unificada e identificada com a nação, seus símbolos, líderes e heróis. Esse ideário compartilhado entre intelectuais e políticos faz surgir grandes alianças entre os dois grupos, muitos dos intelectuais mineiros, paulistas e cariocas, ligados as correntes modernistas assumiram cargos públicos no governo Vargas. A área da cultura e da educação foram as que mais tiveram participação modernista. O SPHAN, criado em 1937, foi por 30 anos, dirigido pelo modernista mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade companheiro do ministro de educação e saúde Gustavo Capanema e dos poetas Carlos Drummond e Mário de Andrade entre outros. Outra figura importante dentro dessa relação estado, cultura e identidade nacional foi a de Lucio Costa, trabalhando no SPHAN, foi responsável pela primeira obra executada pelo órgão com o intuito de preservar e difundir a história, contada através da arquitetura, da formação brasileira. Sua intervenção nas ruínas arqueológicas de São Miguel no Rio Grande Sul, criando o 4

5 Museu de São Miguel das Missões, é a primeira grande evidencia de que é possível aliar passado e modernidade na construção de um presente significativo. Esse ideal de unidade nacional e memória perdurou por muito tempo e se espalhou pelo país. Quase vinte anos após a intervenção realizada no sul do país, outra tão relevante quanto a primeira, vai acontecer no nordeste brasileiro. O local onde ela acontece não poderia ser mais propício, Salvador, a primeira capital brasileira, detentora de muitos símbolos que compõe a memória nacional e então esquecida e abandonada pelo poder central começa a construir obras a fim de impulsionar sua visibilidade para o restante do país. Nesse contexto surge a figura da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, que mesmo possuindo uma formação e atuando num contexto diferente de Lucio Costa, com seu trabalho sobre o Solar do Unhão, um espaço degradado dentro da malha urbana de Salvador, chega a um resultado similar ao primeiro, ambos intervêm de forma a devolver esses espaços patrimoniais a população, dando novos e diferentes usos a esses lugares. Eles conseguem isso usando materiais e técnicas construtivas filiadas ao modernismo, como o vidro e o concreto, mas mesmo assim não agridem ou concorrem com o pré-existente, convivem em harmonia com ele, atuando como um aliado a sobrevida e a qualidade dos espaços históricos. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, Nicola. DICIONÁRIO DE FILOSOFIA. Fontes São Paulo: Martins ARGAN, Giulio Carlo. ARTE MODERNA. São Paulo. Companhia das Letras BOITO, Camillo. OS RESTAURADORES. Cotia, SP: Ateliê Editorial, BRANDI, Cesare. TEORIA DA RESTAURAÇÃO. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, São Paulo. Ateliê Editorial BRUAND, Yves. A ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL. São Paulo: Perspectiva, CARRILHO, Marcos José. A TRANSPARÊNCIA DO MUSEU DAS MISSÕES. in ARQUITEXTOS. Portal Vitruvius, , ano 07, set CHOAY, Françoise. ALEGORÍA DEL PATRIMÓNIO. Trad. Maria Bertrand Suazo. Barcelona: Editora Gustavo Gili FERRAZ, M. C (org). LINA BO BARDI. São Paulo: Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, FONSECA, Maria Cecília Londres da. O PATRIMÔNIO EM PROCESSO: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 3ª ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, KÜHL, Beatriz Mugayar. A RESTAURAÇÃO DE MONUMENTOS HISTÓRICOS NA FRANÇA APÓS A REVOLUÇÃO FRANCESA E DURANTE O SÉCULO XIX: um período crucial para o amadurecimento teórico. Revista CPC, São Paulo, n. 3, p , nov. 2006/abr LEMOS, Carlos A. C. O QUE É PATRIMÔNIO HISTÓRICO. Ed. Brasiliense, São Paulo PEREIRA, Juliano Aparecido. LINA BO BARDI: Bahia, Ubrelândia: EDUFU, 2007.

6 PESSOA, José, org. LUCIO COSTA: DOCUMENTOS DE TRABALHO. Rio de Janeiro: IPHAN, SAUSSURE, Ferdinand de. CURSO DE LINGÜÍSTICA GERAL. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix,