APELAÇÃO CÍVEL Nº /188 ( ) DE TRINDADE

Transcrição

1 APELAÇÃO CÍVEL Nº /188 ( ) DE TRINDADE APELANTES J.B. D.S. e OUTRA APELADO J. F. A. S. RELATOR DESEMBARGADOR CARLOS ESCHER CÂMARA 4ª CÍVEL RELATÓRIO J. B. D. S. e sua esposa, qualificados e representados nos autos da ação de REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO proposta em seu desfavor por J. F. A. S., também qualificado e representado, inconformado com a sentença (fls. 71/76) proferida pelo MMª Juíza Substituta em exercício na 1ª Vara Cível, Família e Infância da comarca de Trindade, Dra. Letícia Silva Carneiro de Oliveira, dela apela a esta Corte de Justiça, buscando sua reforma. Observo que a MMª Juíza singular julgou procedente o pedido inicial de revogação da doação, tendo em vista que a mesma recaiu sobre o único bem do doador, o que o privará de sua subsistência. 1

2 Os apelantes insurgem-se em suas razões recursais acostadas às fls. 78/87, alegando que o apelado não se desincumbiu de seu ônus de comprovar que a doação feita era nula, seja por ingratidão do donatário, seja porque foi feita sobre o seu único bem. Verberam que restou instituído usufruto vitalício em favor do doador/apelado, que continua residindo no imóvel. Colacionam depoimentos para corroborar sua tese de que os mesmos cuidavam do apelado antes que ele conhecesse sua atual companheira. Dizem que não existe nos autos qualquer indício da presença das hipóteses previstas no art. 557 do Código Civil. Ao final, requerem o conhecimento do presente recurso e, no mérito, o seu provimento, para que a sentença atacada seja reformada, mantendo a doação feita pelo apelado aos apelantes. 2

3 Ausente de preparo vez que os apelantes são beneficiários da assistência judiciária gratuita. A parte apelada apresentou contraminuta ao apelo, às fls. 91/93 pugnando, em síntese, pela manutenção da decisão apelada. Instada à manifestar, a douta Procuradoria de Justiça, através de sua ilustre procuradora, Dra. Márcia de Oliveira Santos, opinou às fls. 100/102 pela cassação da sentença apelada em virtude da suposta incapacidade do apelado, e para que o apelo seja julgado prejudicado. É o relatório, em síntese. Ao douto Revisor. Goiânia, 26 de agosto de /L Desembargador CARLOS ESCHER RELATOR 3

4 APELAÇÃO CÍVEL Nº /188 ( ) DE TRINDADE APELANTES J. DA S. e OUTRA APELADO J. F. A. S. RELATOR DESEMBARGADOR CARLOS ESCHER CÂMARA 4ª CÍVEL VOTO Presentes os pressupostos processuais de admissibilidade recursal, assim conheço do presente apelo. Trata-se de recurso de apelação interposto por J. B. DA S. e sua esposa, em face da decisão de primeiro grau que julgou procedente o pedido contido nos autos da AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE ENCARGO proposta em seu desfavor por J. F. DE A. S. Inicialmente, convém analisar o pedido de cassação da sentença de primeiro grau, formulado pela ilustre Procuradora de Justiça, em seu parecer de fls. 100/102. 4

5 Aduz a representante ministerial a existência de dúvida quanto à capacidade do doador apelado, devendo esse fato ser avaliado nos autos para, só então, ser proferida a sentença. Procuradora. Entendo que razão não assiste á douta A presente ação de revogação de doação não é apta a averiguar a capacidade do doador. Essa verificação poderá ser requerida pelo representante ministerial em ação própria, se for o caso, buscando, inclusive, no caso de eventual procedência, a sua interdição e, posteriormente, a anulação de todos os atos por ele praticados, inclusive da presente doação. Toda ação possui como elementos: partes, pedido e causa de pedir, não podendo ser alterado tais elementos, a não ser nos casos e momentos processuais previstos no Código de Processo Civil. 5

6 No caso dos autos, o próprio apelado postulou em juízo, representado por seu advogado, a revogação de uma doação e não sua anulação, tendo em vista a sua falta de capacidade. Assim, se o considerarmos incapaz, ainda que eventualmente, todo o feito seria nulo, pois ele nem sequer poderia dar procuração a um casuístico. Por outro lado, a regra é a capacidade plena a partir dos 18 (dezoito) anos completos. A incapacidade depende de prova, e só será declarada por sentença judicial, em ação própria para esse fim, o que não é o caso dos autos. Impende ser ressaltado que revogação da doação é diferente de anulação da doação. Esta última se dará no caso de vícios, tais como a incapacidade e aquela nos casos previstos em lei que serão em seguida analisados. Por estas razões, deixo de acolher o parecer ministerial de segundo grau. 6

7 propriamente dito. Passo ao exame do recurso apelatório A ilustre magistrada sentenciante revogou a doação feita pelo apelado aos apelantes ao argumento de que ele doou o seu único bem, ficando sem condições de sustentar-se. Civil, a doação é: Nos termos do artigo 538 do Código o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. Sobre as modalidades de doação pura e simples, modal, com encargo ou onerosa, Maria Helena Diniz assim leciona: Doação pura e simples, feita por mera liberalidade, sem condição presente ou futura, sem encargo, sem termo, enfim, sem quaisquer restrições ou modificações para sua constituição ou execução. Trata-se da doação em seu estado de perfeita e plena liberalidade, sem que haja imposição de limitações ao donatário. (...) Doação modal ou com encargo ou onerosa, ou seja, aquela em que o doador impõe ao donatário uma incumbência em seu benefício, em proveito de terceiro ou do interesse geral (CC, 7

8 arts. 553, parágrafo único, 562 e 1.938; Dec. n /89). O encargo consistirá, portanto, numa prestação imposta pelo doador ao donatário que, não constituindo um equivalente (entgelt) da liberalidade, não prejudicará a gratuidade desse contrato. O encargo ou modo apresentar-se-á tão-somente como uma restrição da liberalidade percebida pelo onerado. (in Tratado Teórico e Prático dos Contratos, Vol. 2, 5ª edição,são Paulo: Saraiva, 2003, p. 58) Nos termos da legislação vigente, afigura-se comportável a invalidação da doação quando restarem configuradas nulidades comuns aos contratos em geral, como ausência de capacidade; vícios que lhes são peculiares, como, por exemplo, a doação universal compreensiva de todos os bens do doador; ou, ainda, vícios de consentimento. Já a revogação pode ser realizada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo, conforme prescreve o artigo 555 do Código Civil. Feitas tais considerações, para uma melhor compreensão acerca da matéria, mister apresentar os elementos fáticos extraídos do feito. 8

9 Consta dos autos que, em , o apelado doou o imóvel em que reside os apelantes. Extrai-se da escritura pública de doação (fls.06/07) que a mesma é pura e simples. Além disso, instituiu-se usufruto vitalício em favor do doador, que ainda reside no imóvel. Nos autos não consta nenhuma informação acerca de descendentes do autor, e seus pais já são falecidos. Extrai-se dos depoimentos que a apelante cuidava da mãe do apelado e após a morte desta passou a cuidar também do apelado, até que ele conheceu uma mulher que impedia que ele conversasse com os vizinhos. Pois bem. O mero arrependimento não autoriza a anulação da doação devidamente formalizada. Com efeito, o doador deve demonstrar a existência de algum vício ou hipótese legal que ampare sua 9

10 pretensão. No que tange à fundamentação da MMª Juíza sentenciante de que o apelado doou o único imóvel que possui, razão pela qual é nulo o negócio jurídico, razão não lhe assiste. O artigo 548 do Código Civil vigente, que repetiu a redação do artigo do CC/1916, especifica o seguinte: Art É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador. Tal norma visa a assegurar ao doador o mínimo necessário para que tenha condições de prover a própria subsistência, a fim de que não seja reduzido à insolvência. Nestas condições, considerando que restou instituído usufruto vitalício sobre o imóvel em favor do apelado que, por seu turno, se mantém com os proventos dos benefícios que percebe, inexiste nulidade a ser declarada. 10

11 É esta a orientação do Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos: CIVIL. DOAÇÃO SEM RESERVA DE BENS. NULIDADE. ART DO CCB. Não há que se reconhecer alegação de nulidade de doação, fundamentada no art do CCB, se o doador se reserva usufruto de bens ou renda suficiente a sua subsistência. Recurso não conhecido. (STJ. Resp 34271/SP. Recurso especial 1993/ Relator Ministro Cláudio Santos. DJ p RSTJ vol. 51 p. 299). No caso dos autos o apelado possui o usufruto vitalício do bem doado, bem como percebe benefícios previdenciários. No mesmo sentido é o julgado abaixo: RT, 511:212 Não podem os doadores alegar que ficaram sem meios de subsistência se vivem dos subsídios da aposentadoria. RT, 522:159 Doação de imóvel, com reserva de usufruto para o doador, não infringe o art do CC. No mesmo sentido: RT, 440:76. Registre-se, ainda, que o doador não possui herdeiros, pelo que inexiste qualquer alegação quanto a eventual excesso de legítima. 11

12 O argumento de que a doação deve ser revogada por ingratidão da donatária também não procede. Ocorre que a conduta dos apelantes não se enquadram às hipóteses do artigo 557 do Código Civil, que dispõe: Art Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II - se cometeu contra ele ofensa física; III - se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava. Não restaram comprovados nenhum dos vícios do consentimento erro, dolo e lesão. Deve ser enfatizado que as condições mentais do doador deverão ser averiguadas em ação própria, posto que apenas consta dos autos meras alegações e nenhuma prova foi requerida neste sentido. 12

13 Como a incapacidade absoluta é insanável, ela retroage, anulando todos os atos praticados pelo incapaz, ainda que em momento anterior à sua declaração. Nessa seara, a doação ato jurídico perfeito e acabado merece prevalecer, visto que a situação fática evidenciada no feito não demonstra qualquer vício apto a macular a regular transação realizada. aresto a seguir: Dada a pertinência, transcrevo o "APELAÇÃO CÍVEL. DOAÇÃO. ATO FORMALIZADO ATRAVÉS DE ESCRITURA PÚBLICA REVESTIDO DAS FORMALIDADES LEGAIS. VALIDADE. VÍCIO DE CONSENTIMENTO NÃO DEMONSTRADO. ARREPENDIMENTO. Não há que se falar em nulidade da escritura pública de doação se a liberalidade foi realizada por pessoa capaz através de escritura pública, não restando demonstrado, ademais, qualquer vício de vontade. Hipótese que revela, na realidade, arrependimento da doadora, o que não autoriza a declaração de nulidade. Apelo conhecido e desprovido". (TJGO. 4ª Câmara Cível. AC /188. DJ de 29/11/2006. Rel. Dr. Camargo Neto). 13

14 Ao teor do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, para reformar a sentença de primeiro grau e julgar improcedente o pedido contido nos autos da ação de revogação de doação. É o voto. Goiânia, 21 de janeiro de Desembargador CARLOS ESCHER RELATOR 10/L 14

15 APELAÇÃO CÍVEL Nº /188 ( ) DE TRINDADE APELANTES J. DA S. e OUTRA APELADO J. S. RELATOR DESEMBARGADOR CARLOS ESCHER CÂMARA 4ª CÍVEL EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO. ÚNICO PATRIMÔNIO DO DOADOR. USUFRUTO VITALÍCIO. INCAPACIDADE DO DOADOR NÃO COMPROVADA. 1- Afigura-se incabível a declaração de nulidade de doação de bem imóvel, com amparo no artigo 548 do Código Civil, quando restar instituído usufruto vitalício em favor do doador, que provê a própria subsistência através de aposentadoria. 2- Não há que se falar em revogação de doação se a donatária não pratica quaisquer das condutas previstas no artigo 557 do diploma civil. 3- Ausentes quaisquer vícios de 15

16 consentimento, impõe-se a manutenção da transação regularmente formalizada. 4 Para que a incapacidade anule a doação é necessário a sua comprovação. Caso isso não tenha ocorrido, nada impede a propositura de ação para esse fim. RECURSO PROVIDO. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que são partes as retro indicadas. ACORDAM os componentes da 3ª Turma Julgadora da 4ª Câmara Cível do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, à unanimidade de votos, em conhecer do recurso e provê-lo, nos termos do voto do Relator. Votaram com o Relator, que também presidiu a sessão, o Desembargador Almeida Branco e o Dr. Carlos Alberto França (subst. do Des. Kisleu Dias Maciel Filho). 16

17 Presente a ilustre Procuradora de Justiça Doutora Ruth Pereira Gomes. Goiânia, 21 de janeiro de Desembargador CARLOS ESCHER RELATOR 17