INSTALAÇÃO DO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO: ARTICULAÇÃO E PODER

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1 INSTALAÇÃO DO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO: ARTICULAÇÃO E PODER Patricia Rosalba Salvador Moura Costa¹, Antenor de Oliveira Aguiar Netto², Hannah Uruga Oliveira³, Edson Leal Meneses Neto 4 1 Professora mestre em Sociologia do Instituto Federal de Sergipe. patriciarosalba@gmail.com 2 Professor Pós-Doutor em recursos hídricos da Universidade Federal de Sergipe. antenor.ufs@gmail.com 3 Aluna do curso de engenharia civil do Instituto Federal de Sergipe. hannaholiv@gmail.com 4 Professor Mestre do Instituto Federal de Sergipe. edsonmene@gmail.com Resumo: O presente artigo teve como principal objetivo analisar as relações de poder que emergiram nos discursos registrados na ata de posse do comitê da bacia hidrográfica do Rio São Francisco, órgão deliberativo que atua em relação às águas do rio da integração nacional em dezembro de A metodologia insere-se na análise de fontes documentais, e apóia-se teoricamente no conceito de documento como historicamente marcado e revelador de relações de poder e saber. Os resultados apontam para a instalação de um espaço de poder aparentemente autônomo, mas que esteve vinculado em seu início a estrutura governamental federal. Palavras-chave: gestão, poder, deliberação 1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo analisar os discursos presentes na ata de posse do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), criado em junho de Este espaço de poder se configura como o parlamento das águas onde são deliberadas questões pertinentes a gestão da bacia do São Francisco, importante rio para a sociedade brasileira. Esta análise se configura de grande importância na medida em que expõem a dinâmica dos assuntos abordados em reuniões, além de evidenciar a participação de pessoas e grupos sociais diretamente envolvidos com a problemática dos recursos hídricos e do meio ambiente no Brasil. Da mesma forma, o estudo de tal documento revela que o debate sobre o uso da água se estabelece como um foco importante que marca as sociedades modernas, caracterizada pelo desenvolvimento tecnológico, científico, econômico, cultural e político e, conseqüentemente pelo impacto nocivo dos seres humanos sobre o mundo natural. De acordo com Giddens (2005, 2010) o interesse público pelo meio ambiente e seus recursos naturais levou as sociedades democráticas à formação de movimentos sociais, partidos políticos, organização não governamentais e comitês gestores com objetivo de efetuar ações para proteger o meio ambiente do planeta Terra. Desde a sua criação o comitê tem se constituído com um espaço no qual há participação da sociedade civil, do Estado e dos usuários deliberando sobre os problemas que afetam o rio São Francisco e a população que faz uso de suas águas. Durante este período assuntos variados estiveram presentes nas pautas das reuniões como a transposição e revitalização do rio, a seca que atinge a população, a geração de energia elétrica, e as conseqüências causadas a sociedade em função do uso de técnicas modernas sem o cuidado específico com as águas e as comunidades, principalmente as ribeirinhas. 2. MATERIAL E MÉTODOS 5 Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido por pesquisadores/as vinculados aos Grupos de Estudo Sociedade, Natureza e Meio Ambiente-SONMA do Instituto Federal de Sergipe-IFS e o Grupo Acqua da Universidade Federal de Sergipe, projeto aprovado pelo edital PIBIC/PROPEX-IFS/2012 que tem como objetivo averiguar as relações de poder em todas as reuniões do CBH-SF.

2 A região hidrográfica do São Francisco é de fundamental importância para o Brasil devido ao volume de água transportada numa região semiárida, o que tem contribuído para o desenvolvimento econômico da região. A bacia hidrográfica do rio São Francisco abrange km 2 de área de drenagem (7,5% do país) e vazão média de 2.850m 3 /s (2% do total do país). O rio São Francisco tem 2.700km de extensão e nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais, escoando no sentido sulnorte pela Bahia e Pernambuco, quando altera seu curso para o leste, chegando ao Oceano Atlântico através da divisa entre Alagoas e Sergipe. A bacia abrange sete unidades da federação - Bahia (48,2%), Minas Gerais (36,8%), Pernambuco (10,9%), Alagoas (2,2%), Sergipe (1,2%), Goiás (0,5%), e Distrito Federal (0,2%) - e 504 municípios, cerca de 9% do total de municípios do país (BRASIL, 2012). O rio São Francisco liga o Brasil de Sudeste a Nordeste, razão pela qual é chamado de rio da integração nacional. Seu curso pode ser dividido em quatro trechos de fisiografia distinta (Figura 1): o alto São Francisco, que se estende das nascentes, na Serra da Canastra, à cidade de Pirapora, em Minas Gerais; o médio São Francisco, que vai de Pirapora à cidade de Remanso, às margens do lago de Sobradinho, na Bahia; o sub-médio São Francisco, entre Remanso e Paulo Afonso, ainda na Bahia; e o Baixo São Francisco que vai de Paulo Afonso à foz, na divisa entre Sergipe e Alagoas (França et al., 2007). Figura 1. Representação das regiões fisiográficas do rio São Francisco. Fonte: BRASIL, 2012.

3 Para a construção desse artigo foram pesquisadas as atas das plenárias do comitê da bacia hidrográfica do rio São Francisco entre os anos de 2002 e 2012 disponibilizadas para consulta, e analisada a ata referente a posse dos primeiros membros em A apreciação das atas está consubstanciada no método de análise de documentos, nesse sentido, os documentos têm uma importância fundamental para conhecimento das relações sociais e de poder que se estabelecem em tempos diferentes proporcionando um debate interdisciplinar entre campos de estudos como a Antropologia, Sociologia e História e põe em evidência que todo documento histórico é uma construção permanente (KARNAL, TATSCH, p: 12). Através de tais documentos é possível traçar um panorama sobre os assuntos abordados nas reuniões, as relações de poder que se evidenciam a partir do registro dos posicionamentos dos indivíduos e instituições, e as principais deliberações. A análise dos discursos presentes no documento está ancorada teoricamente em Foucault (1995, 2009). Entende-se que os discursos são constituídos a partir das relações de poder que se estabelecem entre os sujeitos. O poder deve ser entendido a partir da multiplicidade de suas correlações de força imanentes, encontra-se em toda parte, não porque englobe tudo, mas porque provém de todos os lugares. Sendo assim, a analise das atas expõe o posicionamento dos diversos grupos, indivíduos e estatal, as temáticas que ganham mais destaque, as decisões e posicionamento dos dirigentes. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO De acordo com Aguiar Netto et al. (2008, p. 183) As bacias hidrográficas foram indicadas como unidades básicas de monitoramento e planejamento dos recursos hídricos pela Lei Federal nº 9433 de 08/01/97, baseada na experiência francesa. A partir dessa premissa a União e os Estados brasileiros iniciaram o processo de descentralização administrativa das águas, instituindo os comitês. Assim, o comitê da bacia hidrográfica do rio São Francisco (CBHSF) foi criado por meio do decreto presidencial de 5 de junho de 2001: Antecedeu a publicação do decreto de criação do CBHSF um amplo processo de mobilização social na região do São Francisco, que contou com a coordenação do IMAN e apoio técnico da ANA e dos órgãos gestores dos estados com território na bacia. Este processo buscou envolver o poder público em suas 3 esferas de atuação, os principais usuários da água e as entidades da sociedade civil organizada,contabilizando ao todo cerca de pessoas. (MASCARENHAS, 2009). A estrutura geral do comitê pode ser visualizada na Figura 2, tendo como órgão máximo o Plenário, que se reúne pelo menos duas vezes por ano. Devido a grande extensão territorial da bacia hidrográfica do rio São Francisco foram criadas as câmaras consultivas, por região fisiográfica, que possibilitam uma gestão colegiada e com maior ênfase para os problemas locais.

4 Figura 2. Estrutura geral do comitê da bacia hidrográfica do rio São Francisco. Fonte: Adaptado de Mascarenhas (2009). O CBHSF apresenta um total de 60 membros eleitos, distribuídos em três categorias, o poder público, os usuários da água, a sociedade civil e a comunidade indígena. A ata referente à posse dos primeiros membros e a instalação do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco ocorrida no ano de 2002 na capital de Brasília é reveladora das relações de poder que começavam a se estabelecer entre os membros titulares e suplentes e diversas instituições, e evidencia a importância que o comitê passou a ter no cenário nacional. Vários atores sociais representando o Estado brasileiro e sociedade civil estiveram presentes ao evento selando as contribuições que o parlamento das águas do São Francisco daria a partir de então para a gestão dos recursos hídricos no País. A Agência Nacional de Águas (ANA) foi responsável pela condução desta primeira reunião que contou com a participação de outras instituições do poder público e privado. O evento que concretizou a posse dos membros e a instalação do comitê ocorreu nos dias 12 e 13 de dezembro, e contou com debates intensos sobre a função do comitê. A abertura da reunião foi realizada por uma das diretora da ANA. A representante ressaltou a importância do evento, e da bacia hidrográfica do rio São Francisco para o país e apresentou os itens que seriam abordados no decorrer do evento, destacamos dois que no registro da discussão revelou as estratégias de poder: (1) definição de qual o membro do CBHSF receberia, simbolicamente, das mãos do Presidente da República, o termo de posse em nome dos demais membros; (2) palestra do Procurador Geral da ANA (ATA da reunião de posse CBHSF, dezembro de 2002).

5 A pauta de trabalho foi invertida iniciando-se pela palestra que foi proferida aos membros cujo tema tratou da importância e responsabilidades do CBH-SF. A fala do palestrante apontou para as inovações quanto à administração dos recursos hídricos no Brasil, e o fato desta ter sido descentralizada. Ressaltou o poder do Comitê e a responsabilidades dos membros para agirem com consciência sobre as limitações e normas que incidem sobre a administração pública. Concluiu afirmando que o Comitê de Bacia Hidrográfica é o fundamento de toda a estrutura de gerenciamento de recursos hídricos e é a instância única e última, vinculado, no entanto, ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, segundo o registro de sua participação: O Comitê de bacia é um fórum deliberativo que passa a gerenciar e tomar decisões sobre os recursos hídricos, formado por representantes dos segmentos do poder público, dos usuários e da sociedade civil. Ressaltou a importância da posição jurídica do Comitê, que é um órgão público, pois toma decisões com toda a autoridade e conseqüência que deriva do fato de ser órgão público, portanto, sujeito às normas da Administração Pública. Os Comitês são exemplos únicos na administração pública brasileira de órgão colegiado formado por maioria de representantes que não são do poder público, com competência de decidir matéria que condiciona, limita e impõe restrições até mesmo às mais clássicas e tradicionais funções do poder público, tais como o poder de polícia e fixação de arrecadação de valores a particulares, ou seja a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Como mensagem disse que o funcionamento do Sistema depende de vários fatores, mas, sobretudo, dos membros dos Comitês que devem trabalhar com consciência, tendo sempre em mente a representatividade setorial, os limites da legalidade e o interesse público, norteador de todas as suas decisões (ATA da reunião de posse CBHSF, dezembro de 2002). A fala do palestrante que representa a ANA, instituição reguladora dos recursos hídricos do Brasil, toca em pontos primordiais para o esclarecimento do papel e das responsabilidades dos membros que atuarão no comitê. É um discurso elucidativo do ponto de vista institucional e legal com ênfase para as responsabilidades dos gestores/as eleitos/as para compor os espaços de poder e decisão do CBHSF. O ponto importante desse primeiro dia de reunião foi a escolha do membro que receberia das mãos do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o termo de posse em nome dos demais (ATA da reunião de posse CBHSF, dezembro de 2002). Nesse momento parece que se estabeleceu impasses em relação aos nomes propostos, uma vez que muitas foras as sugestões e debates dos participantes, mas sem um consenso rápido: Vários critérios para escolha foram propostos, dentre os quais: o sorteio; o conhecimento e envolvimento com a bacia; o membro de maior ou menor idade; o membro do sexo feminino de maior ou menor idade. Alguns nomes foram sugeridos: o prefeito de Poço Redondo; o prefeito de São Roque de Minas, município onde está situada a nascente do rio São Francisco; o prefeito de Piaçabuçu, município onde se localiza a foz do rio São Francisco; o membro representante das comunidades indígenas; o membro representante dos pescadores.

6 É interessante perceber no trecho anterior o registro da indicação de membros do poder público municipal, entre os primeiros nomes, para receber diretamente do presidente da República o documento que oficializa a ação do CBH-SF. Parece que as relações de poder entre os indivíduos pôs-se em destaque nesse momento auge da reunião, em que a escolha do representante foi realizada. Ser escolhido ou eleito pelos pares, e receber diretamente do presidente do País o documento que registra a posse dos primeiros membros do comitê representa a personificação do capital político assim como destaca (Bourdieu, 2009). Mas, além dos prefeitos também foram sugeridos os nomes dos membros representantes das comunidades indígenas e de pescadores, parece uma ato de resistência ao poder executivo municipal e de articulação das relações de poderes entre os indivíduos (Foucault, 1995). Não houve acordo em relação aos nomes acima indicados, e a decisão foi realizar uma votação que Incluiu as quatro maiores tendências, quais foram: o representante das comunidades indígenas; a mulher mais nova ; o prefeito de São Roque de Minas; o representante dos pescadores (ATA da reunião de posse CBHSF, dezembro de 2002). Percebe-se a retirada do nome do prefeito de Poço Redondo município do Estado de Sergipe, ele não se configurou entre uma das quatro maiores tendências para continuar no pleito, esse fato pode apontar para uma articulação mais forte no Estado de Minas Gerais no momento de instalação do CBHSF. Como resultado da votação foi eleito o representante das Comunidades Indígenas, Povo Truká, com 29 votos a favor. Este membro captou o poder de representatividade de todos frente ao chefe maior do Estado brasileiro. No dia 13 de dezembro houve a cerimônia de posse cuja sessão foi aberta pelo diretor geral da Agência Nacional de Águas, o que evidencia a força que essa instituição teve no início dos trabalhos do comitê. Todos/as os membros receberam o seu documento de posse individualmente, na ata aparecem registro de quebra de protocolo com o pronunciamento de três representantes do CBHSF que expressaram a emoção de vivenciar este momento histórico para a população brasileira que depende das águas do São Francisco. O discurso de um dos representantes do Estado de Pernambuco é bastante elucidativo da importância do comitê e da participação da sociedade nos processos de deliberação das águas do rio da integração nacional: Comentou a importância do evento que a partir de agora viabilizará a participação da sociedade no planejamento da bacia do São Francisco, comentou ainda que são grandes as expectativas de todos os segmentos e da população quanto à preservação e o desenvolvimento econômico e social da bacia do São Francisco. Disse que o papel do Comitê é administrar racionalmente e com competência as concorrências entre os diversos setores com interesse na bacia (ATA da reunião de posse CBHSF, dezembro de 2002). Este momento da reunião foi encerrado com a fala do diretor da ANA que saudou a quebra do protocolo e pontuou a importância deste momento histórico, onde razão e emoção se misturavam. Não deixou de destacar a importância que o então Presidente consagrou à questão dos recursos hídricos e, em particular, à gestão participativa dos mesmos (ATA da reunião de posse CBHSF, dezembro de 2002). Em seguida, houve a entrega oficial do termo de posse ao representante indígena escolhido pelos pares, dessa vez a reunião foi realizada no Palácio do Planalto. Este momento contou com a presença do Presidente da República, Vice-Presidente, Ministro do Meio Ambiente, o Diretor da ANA e representante da casa civil. Houve um registro breve das ações com informação de que o Ministro fez um resumo das ações do ministério, no qual destacou os recursos hídricos.

7 Parece que um novo ciclo iniciava para o rio São Francisco, mas será que o comitê obteve realmente o poder de decidir sobre o futuro de rio tão importante? 4. CONCLUSÔES Pode-se inferir que a instalação do comitê da bacia se configurou como um espaço de poder onde membros eleitos passam a ter um papel importante na deliberação das águas deste importante rio, mas destaca-se que a direção das ações do CBHSF foi articulado e apresentado pelo poder executivo federal. As futuras publicações, desse projeto, buscarão compreender o desenrolar do trabalho desenvolvido pelo CBHSF desde sua instalação até os dias atuais. 5. REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, BOURDIEU, P. O poder Simbólico. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009 BRASIL. Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco. Caracterização geral. Disponível em: Acesso em 6 de julho de FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, p FRANÇA, V. L. A.; CRUZ, M. T. S.; FONTES, A. L. Atlas Escolar de Sergipe histórico e cultural. João Pessoa: GRAFSET, p. GIDDENS, A. A política das Mudanças Climáticas. São Paulo: Jorge Zahar Editora GIDDENS, A. Sociologia. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, KARNAL, L.; TASCH, F. G. A memória evanescente. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, p MASCARENHAS, A. C. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Revista do CBHSF. V , p PINTO, J. E. S. S., AGUIAR NETTO, A. O. Clima, geografia e agrometeorologia: uma abordagem interdisciplinar. Aracaju: UFS, 2008, p.221.