Sexualidade e Dependência de Heroína:
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- João Pinhal Escobar
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1 Sexualidade e Dependência de Heroína: resultados de um inquérito João Relvas Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra. Chefe de Serviço de Psiquiatria dos António Canhão do C.A.T. Aveiro Introdução Desde que se conhecem substâncias capazes de alterar o estado de consciência ou as performances pessoais que imediatamente se tenta avaliar o seu efeito sobre a função sexual. É vulgar deparar com a ideia de que qualquer droga pode ter um efeito afrodisíaco e que muitas vezes o seu consumo poderia ter como primeira motivação deveremos atribuir as suas tendência aditivas à sua sexualidade perturbada, ou o inverso, ou deveremos prestar mais atenção aos factores sociais que assentam em ambos aspectos do comportamento? Este mesmo autor, citando Stenback, refere que os utilizadores de narcóticos têm uma maior incidência de perversões sexuais. Isto numa altura em que a Homossexualidade era ainda considerada patologia. Ainda citando Leon e Wexler, este mesmo autor refere Isabel Boto Carlos Ramalheira Assistente Graduado de Psiquiatria dos Luísa Vale Vitor Henriques Guadalupe Rojas Interna de Psiquiatria dos Sandra Vicente Nunes Interna de Psiquiatria dos Piedade Costa Gomes Assistente Graduada de Anestesiologista dos exactamente este efeito. Em alguns casos são os próprios consumidores a descreverem este tipo de efeitos, muitas vezes independentemente da existência de qualquer relacionamento sexual. No entanto, seja pela vulgarização dos consumos, seja pela sua intensificação, a verdade é que os efeitos das diversas drogas a nível sexual têm sido cada vez melhor estudados. Mas, se é relativamente fácil estudar os efeitos de medicamentos ou substâncias socialmente permitidas, o facto é que quando procuramos abordar os efeitos daquelas cujo consumo é ilícito, as dificuldades crescem exponencialmente quando se procura a colaboração das populações envolvidas e ainda um pouco mais quando se abordam temas do foro íntimo. Talvez por isso a motivação para este tipo de inquérito tenha sido especialmente grande muito embora a amostra conseguida tenha pouca expressão e não permita dados com peso estatístico significativo. Fizemos uma pesquisa bibliográfica que remontou até aos anos setenta e tivemos por isso a oportunidade de observar a evolução do interesse que estas questões foram levantando nos últimos anos. Já Dennis Parr em 1976 colocava a seguinte questão: Será que os toxicodependentes diferem de forma que a função sexual se encontraria comprometida durante a adicção a opiáceos mas que após a recuperação, os indivíduos recuperados sofreriam um acréscimo na capacidade sexual relativamente ao seu estado prévio ao período de adicção. Numa referência à metadona cita que esta também provoca alterações que tenderiam a desaparecer com a continuação do tratamento e a normalizar após cerca de um ano de abstinência. A metadona seria mais compatível com uma performance normal mesmo quando existisse supressão da líbido. Parr termina o seu artigo referindo que (...) a heroína e a metadona são poderosos supressores da sexualidade masculina, mas os efeitos são intermitentes e reversíveis e não parecem motivar aqueles que os sentem a abandonar os consumos. Existe uma enorme variação individual, ao longo do tempo e dependente da dose(...); a melhoria da performance sexual pode reforçar o uso da droga, mas parece ser encarada apenas como um benefício fugaz, tal como os distúrbios da erecção são um efeito secundário bem tolerado (Parr, 1976). À medida que vão crescendo as preocupações com o consumo de opiáceos e vão surgindo algumas alternativas terapêuticas começa a verificar-se um interesse também pelos efeitos destas alternativas na 9 significativa dos não dependentes no que respeita às função sexual. Isto sugere que apesar de os suas atitudes sexuais, funções ou disfunções? E se assim for existirá alguma ligação causal entre a psicopatologia da sua adição e a sua sexualidade? E nesse caso dependentes de heroína tolerarem bem os "efeitos secundários" desta, já não têm a mesma tolerância para a metadona, que não proporciona o prazer da VOLUME III Nº5 NOVEMBRO/DEZEMBRO 1
2 1 heroína e oferece alguns dos seus efeitos colaterais, nomeadamente a nível da sexualidade. Crowley & Simpson em 1978 sugerem que altas doses de metadona podem suprimir o comportamento sexual humano. Apesar disso referem também que os pacientes mantidos sob doses constantes de metadona tornam-se tolerantes à droga, e muitos dos seus efeitos desaparecem com a administração repetida. Acreditam apesar disso que a nível dos efeitos sexuais a tolerância nunca chega a ser completa. Com isto colocam em causa o efeito terapêutico da metadona dizendo que se fazia uma pressão legal sobre milhares de pessoas para tomarem uma droga que reduzia a sua interacção sexual classificando este tipo de actuação numa perspectiva do tipo Orweliano (Crowley e Simpson, 1978). Por esta altura, em 1979, Martha Jessup, embora concordando com o facto de a metadona afectar dramaticamente a sexualidade preocupa-se com aspectos ligados à fertilidade ou a alterações hormonais que possam estar na base destes efeitos. Aborda ainda no nosso entender um ponto importante e muitas vezes negligenciado, os adolescentes ou adultos jovens que iniciaram os consumos regulares durante a adolescência, poderiam nunca ter experimentado um ajustamento sexual satisfatório. Por outro as consequências psicológicas do abuso de drogas poderiam ser interpretadas erradamente pelos doentes como falhanços pessoais ou deficiências (Jessup, 1979). Em 198 Mirin et al. fazem referência ao "orgasmo farmacogénico", mas logo de seguida e quase como se fosse uma referência dissimulada pelo facto deste tipo de sensações ser efémero mencionam os problemas inerentes ao consumo prolongado de heroína, assemelhando-o ao uso de metadona e descrevem: interesse diminuído pelo, impotência e ejaculação retardada. Não esquecem de referir que após a paragem dos consumos é frequente observar um interesse sexual renovado que pode vir acompanhado de uma ejaculação prematura. Este estudo de Mirin et al. aprofunda as alterações hormonais, nomeadamente os níveis de testosterona séricos e as variações subsequentes aos consumos. Não nos iremos alongar sobre as variações dos níveis de testosterona e LH, mas não podemos deixar de referir que é neste estudo que encontramos o primeiro interesse por uma nova substância, a naltrexona. Sobre ela fica a ideia que poderia funcionar como um melhorador da função sexual (Mirin et al., 198). Smith et al. (1982) elaboraram um guia clinico para o diagnóstico e terapêutica da disfunção sexual relacionada com a heroína. Nele abordam especificamente o problema de os consumos se terem iniciado devido à existência de disfunções sexuais, referindo para o homem a ejaculação precoce e para a mulher o vaginismo ou formas de dispareunia. Afirmam, nessa altura, que geralmente quanto mais o utilizador de heroína descrever melhoria sexual com o uso inicial, maior é a probabilidade de a disfunção sexual ser anterior ao inicio do uso de heroína. Enfatizam ainda que muitos do sujeitos referiram que a dificuldade básica não se centrava no seu funcionamento sexual, mas antes na interacção social na ausência de drogas psicoactivas, que usavam para desinibição e relaxamento em situações de índole psicosexual. Por outro lado, o desconhecimento de que existem soluções para problemas de ordem sexual em conjunto com a pouca preparação dos técnicos nesta área pode levar apenas à identificação do problema mas, ao não proporcionar a sua resolução, manter factores que levaram aos consumos (Smith et al., 1982). O LAAM (alfa-acetilmetadol) surge como alternativa à metadona e também os seus efeitos são estudados. Hargreaves et al.,em 1983, realizam estudo que sugere que os seus efeitos sobre a função sexual são ainda mais perniciosos do que os da metadona (Hargreaves et al., 1983). Nesse mesmo ano, num pequeno artigo, Buffum retira a carga sobre os efeitos hormonais da heroína e aponta para outras explicações para os seus efeitos secundários, nomeadamente as perturbações vasculares, neurológicas e da contracção do músculo liso. A deficiente erecção viria, por exemplo, num contexto semelhante ao síndroma de roubo pélvico (Buffum, 1983). Daqui até 1994 é um pequeno salto de dez anos em que não encontramos artigos especificamente dedicados aos problemas sexuais causados pelos opiáceos, nesta altura em que a SIDA ganha terreno, os comportamentos de risco ocupam todas as páginas. Gossop et al. elaboram nesse ano um excelente trabalho relacionando um comportamento de risco, a prostituição, com o consumo de opiáceos. Ou seja, o uso do não como resultado do consumo de drogas mas como mais uma variável geradora de sofrimento associada aos consumos (Gossop et al.,1994). Ainda em 1994 um estudo realizado em Espanha por Bravo et al. relaciona um outro ponto importante dentro dos comportamentos de risco. A troca de seringas e o envolvimento sexual. Não tendo encontrado nenhuma relação significativa entre a troca de seringas e alterações do comportamento sexual com os utilizadores de drogas não endovenosas (Bravo et al., 1994). Um outro excelente trabalho realizado em 1995 por Teusch et al. interessa-se pelas diferenças no funcionamento sexual entre um grupo de controlo e outros constituídos por heroínodependentes, pacientes a tomar neurolépticos e doentes neuróticos. Curiosamente sobressai deste estudo que os mais afectados eram precisamente os toxicodependentes (Teusch et al., 1995). VOLUME III Nº5 NOVEMBRO/DEZEMBRO 1
3 Material e Métodos Foi partindo destes pressupostos e também da nossa experiência clínica que resolvemos realizar o estudo que passamos a descrever. Trata-se de um estudo naturalístico, descritivo, com amostra de conveniência, provávelmente representativo do conjunto de doentes que frequenta a nossa consulta. Os métodos utilizados foram puramente descritivos. Numa primeira fase com o objectivo de caracterizar a amostra e posteriormente para uma descrição dos diversos regimes terapêuticos normalmente utilizados na recuperação destes indivíduos. Faremos ainda uma análise descritiva da situação em que se encontram relativamente à abstinência, consumo ou programas de tratamento. Finalmente uma apreciação global sobre o grau de satisfação com a sexualidade, que é discriminado nas dificuldades sentidas de acordo com a classificação mais consensual da DSM-IV, nas fases de desejo, excitação e orgasmo. Resultados e Conclusões Da amostra fazem parte 111 indivíduos dos quais 93 do masculino e 18 do feminino, o que significa uma percentagem de 83,78% para 16,22%. As idades situam-se entre os 16 e os 44 anos, com uma idade média de 28,12 anos e um desvio padrão de 5,822, com curvas de distribuição semelhantes nos dois s, apesar da disparidade de amostras. Podemos ainda referir que a quase totalidade se situa, como era de esperar, entre os e os 35 anos e que os mais velhos tinham como meio terapêutico principal os programas de substituição. No que respeita à distribuição por actividades, 74 (66,6%) da amostra encontrava-se desempregada ou em profissões pouco diferenciadas e precárias. Passando à análise da situação clínica propriamente dita, 37% da amostra encontrava-se a consumir heroína com regularidade, 32,5% a fazer terapêutica regular com antagonista, 22,5% em programas de substituição. Uma pequena percentagem de indivíduos referiu estar abstinente de heroína, sem qualquer programa terapêutico específico ou apenas a consumir outro tipo de substâncias. No que a este aspecto diz respeito, os indivíduos foram inquiridos sobre o facto de, independentemente do tipo de tratamento que estivessem a realizar, se existia ou não o consumo de outro tipo de substâncias, nomeadamente álcool (em excesso), alucinogéneos, cocaína ou haxixe. Os resultados encontram-se na figura % m % f outras nenhumas Figura 6 - Consumo de outras drogas vs ausência de consumo Podemos constatar que cerca de 5% dos homens e um pouco menos de mulheres mantêm consumos regulares de outras substâncias nocivas. Sabendo que a interpretação da palavra drogas, tem nesta população um conceito abrangente, foram também inquiridos sobre alguma medicação que tivesse sido prescrita para além das referenciadas ou que estivesse a ser tomada por livre arbítrio dos utentes. Embora as respostas sejam pouco específicas podemos constatar que perto de % da amostra estava medicada com antidepressivos, enquanto outros tantos afirmaram ingerir com regularidade medicamentos da família das benzodiazepinas. Estes dados são no entanto difíceis de gerir devido à dificuldade de abordar com certeza este assunto num questionário de autopreenchimento. Ficam os autores com a ideia que os dados obtidos estarão sub-avaliados. Quando falamos de, embora a actividade sexual se possa desenvolver de forma individual, é importante sabermos se as pessoas que responderam ao questionário vivem sós ou se têm companheiro(a) regular. Aqui os dados são extremamente interessantes. Embora faltem respostas, (alguns questionários careciam de pontos que os inquiridos não quiseram ou não souberam responder), 92% das mulheres que responderam (12 das 18), tinham companheiro contra apenas 45% dos homens (55 de 93) que afirmaram ter companheira (Figura 2). 11 VOLUME III Nº5 NOVEMBRO/DEZEMBRO 1
4 sim não Figura 1 - Ter ou não companheiro Tal poderia encontrar uma justificação no facto de existirem menos mulheres na população toxicodependente e a companheira do homem toxicodependente o ser também muitas vezes. Para além disso existem, por vezes, problemas de afastamento conjugal devido ao consumo de drogas por parte do elemento masculino. Passando especificamente às questões do foro sexual, de uma forma global podemos dizer que apenas 9 homens e 2 mulheres, 11 dos 111 inquiridos, ou seja, aproximadamente 1% da amostra referiu não ter problemas significativos no seu funcionamento sexual (Figura 2) Figura 3 - Presença ou ausência de problemas na fase do desejo Figura 4 - Presença ou ausência de problemas na fase de excitação Figura 2 - Presença ou ausência de problemas da esfera sexual Abordando as alterações de forma mais diferenciada, podemos ver que de uma forma geral as alterações são muito semelhantes nos dois s independentemente do número de indivíduos envolvidos e que são marcadas nas três fases, com especial relevo para a fase orgásmica (Figuras 3, 4 e 5). Figura 5 - Presença ou ausência de problemas na fase orgámisca VOLUME III Nº5 NOVEMBRO/DEZEMBRO 1
5 Podemos pensar que o estudo conduziu ao resultado óbvio de que o consumo de drogas, nomeadamente a heroína provoca dificuldades na esfera sexual. Por isso comparámos os dados dos doentes com ou sem dificuldades, com a substância predominante a que estavam associados. (Figura 7) sem consumo Tipo de substância / dificuldades heroína metadona naltrexona outros fármacos substância total Figura 7 - Dificuldades sexuais vs tipo de substâncias consumidas Embora sem qualquer relevância estatística nota-se que a maior diferença entre os que referem dificuldades e o total é na coluna da heroína. Eventualmente porque é a única substância que apesar de tudo proporciona outro tipo de compensações. Não sabemos obviamente o tempo de consumos, o tempo de abstinência e outros dados eventualmente relevantes. Tal teria sido particularmente complicado de avaliar e deixa concerteza dúvidas. Possam elas contribuir para nos estimular a nós ou a outros a mais pesquisas sobre o tema. BIBLIOGRAFIA: Bravo, M., Delgado-Rodriguez, M., Fuente, L.,Lardelli, P., Barrio, G., López, R. (1994). Sharing Injecting equipment and Sexual Behaviour in Ambulatory Intravenous Drug Users: A National Survey (Spain). The International Journal of the Addiction, 29 (14), Buffum, J. (1983). Pharmacology Update: Heroin and sexual Function. Journal of Psychoactive Drugs, 15 (4), Crowley, T., Simpson, R. (1978). Methadone Dose and Human Sexual Behavior. The International Journal of Addictions, 13 (2), Gossop, M, Powis, B, Grffiths, P, Srang, J. (1994). Sexual Behaviour and its Relationship to Drug-Taking Among Prostitutes in South London. Addiction, 89 (8), Hargreaves, W., Tyler, J., Weinberg, J., Sorensen, J., Benowitz, N. (1983). Alpha-Acetilmethadol Effects on Alcohol and Diazepam use, sexual Function and Cardiac Function. Drug and Alcohol Dependence, 12 (4), Jessup, M. (1979). Heroin and Methadone: Their impact on Human Sexuality. American Journal of Maternal Child Nursing, 12(6), Mirin, S., Meyer, R., Mendelson, J., Ellingboe, J. (198). Opiate Use and Sexual Function. Am. J. Psychiatry, 137 (8), Parr, D. (1976). Sexual Aspects of Drug Abuse in Narcotic Addicts. Br. J. Addict., 71, Smith, D., Moser, C., Wesson, D.R., Apter, M., Buxton, M., Davidson, J., Orgel, M., Buffum, J. (1982). A Clinical Guide to the Diagnosis and Treatment of Heroin Related sexual Disfuntion. Journal of Psychoactive Drugs, 14 (1-2), Teusch, L., Scherbaum, N.,Böhme, H., Bender, S.,Eschmann-Mehl, G.,Gastpar, M. (1995). Different Patterns of Sexual Dysfunctions associated with Psychiatric Disorders and Psychopharmacological Treatment. Pharmacopsychiatry, 28, Em conclusão podemos dizer que os pressupostos iniciais dos anos 8, que estabeleciam que após a paragem dos consumos se podem verificar alguns fenómenos de hipersexualidade, não estão de acordo com a realidade. Também a afirmação de que a naltrexona poderia ter qualquer efeito afrodisíaco é linearmente contrariada. Podemos verificar que todas as substâncias em estudo mostraram interferir sobre a função sexual. A recuperação parece não trazer melhoras significativas, mesmo nos doentes completamente abstinentes, embora o factor tempo de abstinência deva ter que ser controlado em estudos futuros. As mulheres são afectadas de forma semelhante aos homens. É provável que alguns efeitos exercidos sobre a função sexual durante o uso de opiáceos possam deixar uma espécie de sequela, assim como também existe a possibilidade de as disfunções serem prévias aos consumos. Tendo em conta a importância dos números, podemos dizer que as alterações da função sexual são um ponto que não devemos esquecer quando procuramos tratar estes doentes. Devem ser investigadas, tratadas e necessitam de continuar a ser estudadas para poderem ser melhor compreendidas. VOLUME III Nº5 NOVEMBRO/DEZEMBRO 1
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