ACERCA DE GOA - DAMÃO E DIU
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- Marta Fragoso Lagos
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1 ACERCA DE GOA - DAMÃO E DIU HÉLIO BERNARDO LOPES * Determinei-me hoje, já com meses de distância, a abordar um tema que foi aqui tratado pelo nosso amigo e colega, Artur Fontes, em torno do designado caso da Índia Portuguesa, e que teve o saldo final que se conhece. Convém, em todo o caso, que faça agora um esclarecimento prévio: este meu texto nada tem que ver com a pessoa do nosso amigo e colega, nem mesmo com a tomada de posição que nos mostrou no seu texto, mas sim com o tema que no mesmo tratou. Acontece, como se conhece à saciedade, que a vida política portuguesa, sobretudo por via das mil e uma complicações que a criminosa crise mundial do neoliberalismo levou a quase toda a parte do Mundo, não tem deixado de fornecer aos comentadores temas de todo o tipo, pelo que, não sendo o espaço de publicação infindo também aqui se vão observando as falências, só agora consegui encontrar esta janela de oportunidade. Vejamos, então, alguns aspectos importantes para a compreensão do que se passou no caso da invasão de Goa, Damão e Diu pelas forças armadas da República da Índia. O território da actual República da Índia, antes da sua independência, encontrava-se subordinado ao poder das autoridades britânicas, mas não se constituía numa estrutura populacional humana e culturalmente homogénea. Até no domínio religioso, essa estrutura era muitíssimo variada. Deste facto resultaram, pois, dois Estados independentes distintos: a República da Índia, suportada numa estrutura democrática muito particular, e não confessional, e a República Islâmica do Paquistão. E a razão de ser desta decisão assentou no reconhecimento, precisamente, da impossibilidade de se criar, a partir da presença britânica, um só Estado com condições para funcionar. A verdade, porém, veio a materializar-se através da guerra que opôs estes dois novos Estados em 1971, e que se saldou na divisão da República Islâmica do Paquistão em dois novos Estados: Paquistão Ocidental e Paquistão Oriental, ou Bangladesh. Em todo o caso, e no meio de tudo isto, o potencial para novos conflitos entre a República da Índia e o Paquistão Ocidental nunca desapareceu, tendo mesmo levado à corrida armamentista nuclear que se conhece. Para já não referir o eterno problema de Caxemira. É verdade que a Carta das Nações Unidas consigna o Direito à Independência dos povos sob administração colonial, mas não indica como se estabelece o reconhecimento dessa situação. Pois se assim não fosse, não seria necessário perguntar às autoridades portuguesas se possuíam territórios nessas circunstâncias, porque os mesmos seriam pública e internacionalmente reconhecidos. E o que o Governo de Portugal fez foi responder pela negativa: não tínhamos territórios nessas circunstâncias, pelo que não existia qualquer espaço destinado a ser alvo de autodeterminação ou de independência.
2 Simplesmente, a situação derivada da designada Guerra-fria levou ao surgimento de uma espécie de corrida pela cativância dos países do Terceiro Mundo pelos dois grandes beligerantes mundiais: os Estados Unidos e a União Soviética. E foi à luz desta corrida, de parceria com alguma ingenuidade política de Kennedy, que a situação portuguesa teve o seu ponto mais complicado no plano internacional. Além do mais, surge a questão: a Carta das Nações Unidas era consentânea com um resultado favorável a uma integração no espaço político e constitucional português de um qualquer território ultramarino por via de uma decisão referendária? Claro que não. E era assim, porque os Estados que aprovaram a Carta das Nações Unidas sempre souberam que poderiam continuar a explorar, em regime neocolonial, as suas antigas possessões. Precisamente a razão que Salazar percebia não ser possível por parte de Portugal, e que já havia levado à nossa intervenção na I Guerra Mundial: poder manter os territórios portugueses a partir de uma posição de vencedores. Ainda assim, nada recebemos do espólio dos vencidos. Um tema que agora mesmo veio a ser reconhecido por Filipe Ribeiro de Menezes. No caso dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu, contudo, Salazar encontravase perante uma situação política assaz particular, e que era a resultante do modo como se operou a luta indiana em defesa da independência: a resistência não violenta ao colonialismo britânico, liderada por Gandhi, mas muito acompanhado por Nehru. Ora, para se perceber a gestão deste caso por Salazar é útil deitar aqui mão do exemplo de Nelson Mandela. Como se sabe, a extraordinária referência que Nelson Mandela passou a constituir na cena mundial ficou a dever-se ao seu sofrimento, mas, acima de tudo, à capacidade de perdoar, tendo como finalidade suprema construir um país onde os terríveis crimes do passado não voltassem a ter lugar. Mas imagine-se agora que as televisões de todo o Mundo nos apresentavam, já amanhã, uma completa reviravolta no pensamento de Nelson Mandela: com o maior estádio da África do Sul completamente cheio, e com o país absolutamente paralisado para o escutar, dele recebíamos o incentivo ao ataque aos brancos e a tudo o que fossem bens seus. Como ficaria a imagem deste Nobel da Paz? Seria, como é evidente, o descrédito total da figura hoje histórica de Nelson Mandela. Mas será que alguém acredita numa tal reviravolta? Naturalmente que não. Pois, era isto mesmo que se passava com o modo como Salazar olhava Nehru: nunca imaginou que ele pudesse delapidar, como realmente fez, toda a doutrina pacifista que vinha de Gandhi, e de que foi um apoiante com visibilidade mundial. Aliás, Nehru chegou mesmo a assegurar, em plena Assembleia-geral das Nações Unidas, que nunca recorreria à força em torno da questão dos territórios portugueses da Índia. E assim acreditou sempre Salazar, até aos momentos imediatamente anteriores à invasão. Qual foi, então, a razão da reviravolta política de Nehru? Muito simples: o apego ao poder, e a necessidade de jogar de um modo que nem sempre corresponde ao pensamento político próprio, que é o que muitas vezes tem de fazer-se para retirar argumentos a um potencial adversário político. Muito em especial nas democracias. Esse adversário era Krishna Menon, que era o Ministro da Defesa de Nehru. É verdade que conseguiu apagar o grande argumento populista de Krishna Menon, mas delapidou
3 completamente a doutrina pacifista de Gandhi, e que era também, e com sinceridade, a sua. Nehru, como hoje se sabe, nunca mais voltou a ser o mesmo. Diz Franco Nogueira, num dos volumes da obra sobre Salazar, e se acaso não faço aqui alguma confusão, que Nehru, já perto da morte, pediu a alguém da sua confiança que se deslocasse a Lisboa para explicar a Salazar que a decisão que tomou não foi a que traduzia o seu pensamento e o seu desejo autêntico. Como não me passa pela cabeça que Franco Nogueira pudesse mentir nesta matéria, continuo a acreditar neste relato. Interessante é, porém, expor aqui uma história autêntica, que teve lugar nos dias imediatamente anteriores à invasão dos nossos territórios. Tendo decorrido um Conselho de Ministros extraordinário, precisamente para fazer o ponto da situação sobre o que estava a passar-se lá longe, findo o mesmo, Luís Supico Pinto dirigiu-se de imediato à sede da PIDE, onde se reuniu com o director, com Agostinho Barbieri Cardoso, e com um académico de Matemáticas da Faculdade de Ciências de Lisboa. Este académico mantinha contactos permanentes, e já desde há anos, com as chefias dos serviços secretos dos Estados Unidos, da França e da Alemanha Federal em Portugal. Uns instantes depois de escutar o relato de Luís Supico Pinto, e sem dar explicações, dirigiu-se à Embaixada dos Estados Unidos, onde se encontrou de imediato com o funcionário da CIA em Lisboa, de nome, Albert. Informou-o, então, mas com esta mentira: havia terminado o Conselho de Ministros, onde se decidira que Portugal abandonaria a OTAN se a República da Índia invadisse os territórios portugueses de Goa, Damão e Diu. Bom, meu caro leitor: o bom do Albert como que endoideceu, dirigindo-se de imediato para a sala de encriptação, telegrafando para Langley o que acabara de saber. Da sede da CIA o caso chegou, de imediato, a John Kennedy, que mandou telegrafar com urgência para o embaixador dos Estados Unidos em Nova Delli, John Kenneth Galbright, ordenando-lhe que explicasse ao Governo da Índia que os Estados Unidos se opunham firmemente a qualquer invasão. Uma atitude que se repetiu nesse mesmo dia e nos seguintes. Simplesmente, John Kennedy, e por razões diversas, estava longe de dispor de real poder junto de muitos dos seus supostos homens de confiança, pelo que o embaixador deu todo o incentivo à invasão. Porém, e para lá de tudo o que já escrevi, a própria invasão violou a Carta das Nações Unidas e o que se encontrava decidido sobre a independência de povos e territórios anteriormente colonizados. O que estava estabelecido era que desses territórios nasceriam novos Estados independentes, sendo as respectivas fronteiras as resultantes da colonização. Precisamente o que veio a ter lugar com Timor: tornou-se um Estado independente, tendo como fronteiras as estabelecidas pela potência colonizadora. Por fim, o caso da reacção militar portuguesa. Bom, é essencial perceber esta realidade simples: Salazar nunca pensou que uma resistência vitoriosa era possível. Mas também nunca imaginou que Nehru deitasse toda a doutrina de Gandhi para o caixote do lixo da História. De facto, quem é que hoje segue, ou defende, uma luta, seja lá onde for, pela via do exemplo pacifista de Gandhi? Ninguém. Foi uma doutrina que foi destruída pelo segundo dos seus principais defensores.
4 Quando Salazar enviou o célebre telegrama, o que estava a fazer era uma natural e expectável exortação às nossas forças militares, mas numa situação que nunca poderia ser interpretada literalmente. Nem naquele caso, nem em lugar algum e com qualquer outra força militar. Ao menos, naquele tempo. De resto, Churchill havia feito o mesmo com as suas tropas em Singapura, e nem por isso estas deixaram de perder e de se render. Aliás, diz-se até que o telegrama de Salazar terá sido copiado do enviado pelo político britânico. O que Salazar não podia fazer era qualquer coisa do tipo: atenção, nada de mortos e de sacrifícios sem lógica. Não podia, como se torna evidente, fazer o que nunca se faz em parte alguma do Mundo. Mas houve um grande erro político de Salazar e dos seus ministros mais ligados ao que estava em causa, que foi escolher para governador e comandante militar um oficialgeneral oriundo da Arma de Engenharia, sem um ínfimo de experiência no comando de tropas. Claro está que este erro deveu-se a Salazar e aos seus ministros ligados ao que estava em causa e não a Vassalo e Silva. O único erro de Vassalo e Silva foi o modo como enfrentou a invasão, ficando à espera da chegada do comandante inimigo. Franco Nogueira conta na sua obra que o general que comandava as tropas invasoras, ao ler o telegrama de Salazar, terá dito para os que o acompanhavam: isto é a única coisa digna que aqui encontrei deste exército. Perguntar-se-á: mas o que poderia fazer Vassalo e Silva? Bom, no mínimo, o mesmo que Salazar preparou para o caso de Franco invadir Portugal: fugir e não assinar uma rendição. Mas para onde poderia fugir Vassalo e Silva? Em minha opinião, e de acordo com relatos de insuspeitos amigos meus, para as montanhas envolventes: os Gates. Se assim tivesse feito, à semelhança do que se deu em Timor, em três ou quatro dias o Conselho de Segurança das Nações Unidas condenaria a invasão daqueles territórios, contrária à Carta das Nações Unidas e às disposições sobre descolonização, e porque, diga-se hoje o que se disser, ali era Portugal. Foi nessa condição que aderimos e fomos recebidos nas Nações Unidas. Com este trunfo jurisprudencial daquela organização, Portugal passava a estar muito mais defendido face ao que já se sabia estar para vir: a rebelião em Angola, em essência, contra a regra do trabalho obrigatório. Uma regra cuja legislação, por via das explicações já dadas a Salazar por Adriano Moreira, de pronto foi revogada. Simplesmente, Vassalo e Silva não era bem um militar de Infantaria, ou de Cavalaria, ou de Artilharia mas alguém oriundo da antiga Escola do Exército, que só desempenhara cargos de gabinete, fosse na Academia Militar, fosse na Câmara Municipal de Lisboa. Era um homem de estudo e cultura, e não propriamente um militar. No fundo, faltou a Vassalo e Silva a preparação para proceder como fez o major-general, Mário Menendez, depois da vitória das foças inglesas nas Malvinas. E a grande e essencial diferença entre estes dois homens é que o argentino era, de facto e em espírito, um militar, ao passo que Vassalo e Silva era simplesmente oriundo da Escola do Exército, mas sem experiência nem espírito militar. E já agora, e mesmo para finalizar, convém não esquecer a tragédia da família Gandhi, sempre na vida política activa, e sempre vítimas mortais da mesma.
5 Aqui está o meu contributo sobre este tema, por onde se pode ver que Salazar teve também a sua dose de responsabilidade pelo modo como o comandante das nossas forças actuou. Simplesmente, ele sempre pensou que não era preciso um militar com grande experiência de combate, e pelas duas razões já atrás expostas: porque tal guerra não podia nunca ser ganha, e porque a invasão também não poderia ter lugar, pois assim o dissera Nehru, guiado pela doutrina pacifista de Gandhi. Salazar, como se sabe bem, era um homem sério e de palavra. * Antigo professor e membro do Conselho Científico da Escola Superior da Polícia
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