O importante é prevenir para não ter que punir

Transcrição

1 Entrevista com o Dr. Antonio Carlos Moraes, promotor de Justiça aposentado, realizada em dezembro de 2010 por Simone Ávila e Paulo José da Silva para o Memorial do Ministério Público do Espírito Santo. O importante é prevenir para não ter que punir Ainda criança, Antonio Carlos Moraes já sonhava ser promotor de Justiça. Aos 15 anos, época em que era carteiro, entregava todas as correspondências rapidamente, para chegar em tempo de assistir às audiências no Fórum, em sua cidade natal. O baiano de Jequié hoje é aposentado, mas ainda cumpre a missão que o levou ao cargo no Ministério Público: seguir os princípios morais e cristãos, ser justo e ajudar o próximo. O filho de Carlos Brinzindor de Moraes e Abigail Viana de Moraes casou-se com Lygia de Assis Britto Moraes, a quem não se esquece de chamar, carinhosamente, de minha namorada. O casal tem quatro filhos e nove netos e aguarda a chegada do primeiro bisneto. Quando e onde o senhor nasceu? Nasci em 24 de outubro de 1929, em Jequié, na Bahia. Sou filho de Carlos Brinzindor de Moraes e Abigail Viana de Moraes Onde o senhor estudou? Meus primeiros estudos foram na Escola da Professora Alíria de Argolo Pereira e no Grupo Escolar Castro Alves, em Jequié (BA). Depois, fui para o Colégio Severino Vieira e para o Colégio Estadual da Bahia, em Salvador. Quando vim para o Espírito Santo, concluí o ensino médio no Colégio Estadual. Qual a formação acadêmica? Onde fez faculdade e quando se formou? Fez algum curso de pós-graduação? Sou formado pela Faculdade de Direito da Universidade do Espírito Santo (hoje Ufes). Concluí o curso em Tenho formação em Psicologia Jurídica. Quando percebeu que tinha vocação para o Direito? Quando tinha apenas 11 anos, já sonhava ser promotor público, hoje promotor de Justiça. Desde aquela época, fazia tudo para que pudesse ter uma vida que fosse dentro dos princípios morais e cristãos, já que queria assumir uma função em que o Estado iria me outorgar o poder de julgar e punir alguns dos meus semelhantes. Mas, por outro lado, sempre achei que, paralelo ao poder de punir, deveria estar o poder cristão de prevenir,

2 porque um delinquente a menos é também uma despesa a menos para o Estado e para a sociedade. Exerceu a advocacia? Durante que período e em que segmentos do Direito? Exerci a advocacia por dois anos como solicitador, sistema existente na época, antes da formatura, e mais dez anos como advogado nas comarcas do Norte, especialmente em Aracruz, onde residia. Chegou a trabalhar em outros lugares antes de ingressar no MPES? Aos 15 anos eu já trabalhava como mensageiro dos Correios e Telégrafos, em Jequié (BA) depois como carteiro, telegrafista e chefe da Agência e como professor em Aracruz (ES), mas sem deixar de ser carteiro. Só me afastei dessa função quando fui nomeado promotor de Justiça. Tanto que eu era carteiro, professor e advogado ao mesmo tempo. Eu entendo que não existe função pobre. O que realmente existe é muita gente pobre de caráter e de humildade na função. No exercício de cada função, dentro do possível, sempre procurei dignificar os cargos que me foram confiados, sem perder a minha autoridade em nenhum deles, inclusive no cargo que atualmente exerço, de juiz de Direito Canônico, há mais de 20 anos. Como surgiu o interesse de ingressar no Ministério Público Estadual? Aos 11 anos de idade, como disse, eu já sonhava ser promotor público. Aos 15 anos, na época em que era mensageiro dos Correios e Telégrafos, em Jequié (BA), quando havia júri na comarca, eu recebia os telegramas para entregar no comércio e fazia meu serviço de entrega com a máxima rapidez, para que sobrasse tempo de ouvir o promotor falar. Quando e como foi o concurso que fez para ingressar na instituição? Em 1971, participei de um concurso com cerca de 500 candidatos. Fiquei entre os 10 primeiros aprovados, sendo que em janeiro de 1972 assumi as funções no Ministério Público. Em que comarca iniciou sua carreira? Comecei a minha carreira como promotor substituto na 3ª Vara Criminal, em Vitória. Na época, para surpresa minha, um amigo falou para alguns jornalistas de A Gazeta que eu tinha uma boa matéria para o jornal.

3 Fui surpreendido no meu gabinete por aqueles jornalistas e fotógrafos. Mandei primeiro que lhes servissem um café e, ao me dizerem que queriam fazer uma reportagem sobre a minha trajetória de vida e como cheguei àquela função, eu lhes perguntei se me permitiriam ditar a frase que servisse de manchete no jornal. Eles, compreensivos, disseram que sim. Então, sugeri De carteiro a promotor, já que desde quando eu era carteiro eu valorizava o exercício de uma função que tem o poder de punir. No início de sua carreira, o senhor atuou em diversas comarcas num curto espaço de tempo. Como era essa adaptação? No início de minha carreira, atuei em várias comarcas. Dentre as cidades do Norte do Estado, só não atuei em Colatina. O meu período como promotor substituto foi de aproximadamente quatro anos. Durante os primeiros oito anos de minha carreira no MP, tive uma queda no meu salário de mais de 50%. Tinha uma renda mensal de CR$ 4.200,00 (quatro mil e duzentos cruzeiros) com atividades mais concentradas em Aracruz e adjacências. Depois, como promotor de Justiça, passei a ganhar Cr$ 2.000,00, porque não me pagaram meus adicionais. Além disso, comecei a andar pelas comarcas, sendo que na maior parte delas o meu gabinete era o meu dormitório. Eu tinha cem lotes para construção de casas em Aracruz e tive que vender tudo para manter a minha família e a minha posição de promotor. Que casos marcaram a sua atuação como promotor? Um caso que marcou muito a minha atuação como promotor de Justiça foi o respeito, e não o medo, que todas as classes - ricos, pobres, pessoas dignas e até pessoas com tendência para a marginalidade - tinham por mim. Quero registrar também um fato interessante que ocorreu comigo na comarca de Pancas. Eu saía de uma audiência no Fórum, onde eu tinha como companheiro de trabalho o saudoso magistrado doutor Almir Neves, e, quando alcancei a Praça Santa Luzia, um cidadão veio em minha direção para me avisar que dois indivíduos estavam brigando, o que poderia causar graves consequências. Ao aproximar-me do conflito, reconheci os dois indivíduos e, com os braços abertos e voz alta, disse: É assim que vocês me consideram?. De imediato, eles pararam e disseram: O doutor Antonio falou, vamos obedecer. Depois disso, saiu um para um lado e o outro para o lado oposto. Isso me deu a certeza de que não devemos ser apenas autoridade punitiva, mas, e sobretudo, autoridade conciliadora, naquilo que couber. Assim, uma contenda que poderia gerar um processo será eliminada graças a um ato conciliatório, desafogando o serviço da Justiça, tão emperrado nos dias de hoje. Era comum também eu fazer visitas à delegacia para conversar com os presos, explicando a eles a razão da prisão e qual o dever do promotor, qual o dever do advogado de defesa e qual a posição do magistrado. Que as leis eram feitas pelos parlamentares, cabendo à Justiça fazer com que fossem cumpridas por meio das decisões judiciais. Enfim, sempre marquei presença em todos os distritos das minhas comarcas, especialmente em época de eleições difíceis entre candidatos.

4 Também não deixava um menor na rua. Para isso, criei a Guarda Mirim em Ecoporanga. Conversava com os menores e os aconselhava a estudar para terem uma vida digna. Eu procurava ocupar todos os espaços daquelas criaturas e, para o meu orgulho, depois de aposentado tive a alegria de saber que dois daqueles pivetes concluíram o nível superior. Participou de algum evento representando o MPES? Qual deles foi o mais importante para a sua atuação no órgão? Por quê? Nós tínhamos encontros esporádicos a titulo de reciclagem e um dos melhores foi realizado na comarca de Conceição da Barra, com palestras proferidas por doutores em Direito Civil e Penal. De um modo geral, participei de vários eventos ligados ao Direito, especialmente, ao Direito Internacional Canônico, em Conceição da Barra, Guarapari, Uberlândia, Porto Alegre, Recife, Belém Aracaju, Aparecida, entre outros. Como o senhor avalia a instituição Ministério Público naquela época e nos dias de hoje? É preciso fazer uma avaliação não só no tempo e em relação ao desempenho do cargo, mas também quanto ao valor das mesmas leis aplicadas no passado e no presente. No passado, tivemos muito trabalho. Porém, por serem mais rígidas as normas jurídicas de então, nós sentíamos que havia melhores resultados, especialmente no que se refere aos dispositivos penais. O Ministério Público atual tem mais abrangência e, consequentemente, maior responsabilidade. Hoje, a dificuldade de se aplicar a lei é maior. Só para citar um caso específico, os parlamentares inseriram no Código Penal tantas benevolências a favor do acusado, a ponto de um indivíduo que comete um homicídio doloso, em estado visível de embriaguês, e que se recusa a fazer o teste do bafômetro não será preso, enquanto os familiares do morto ou dos mortos, além de perderem seus entes queridos, têm que arcar com as despesas inesperadas do enterro. Por isso, entendo que o Ministério Público de hoje tem muito trabalho e pouco poder de decisão. Qual membro ou servidor teve a atuação mais destacada na sua época na instituição? Entre as pessoas que se destacaram no nosso período de atividade, apontamos os procuradores Welington da Costa Citty, Antônio Benedito Amancio Pereira, Carlos Guilherme de Carvalho, dentre outros. Merece também destaque o nome do promotor Deo Schneider, que era da comarca de Iúna e foi executado no pleno exercício da função.

5 O que mais te orgulha por ter atuado no Ministério Público Estadual? O meu maior orgulho é o de ter conquistado, após um sacrifício muito grande, aquilo que, com os meus 11 anos de idade, já sonhava: ser um membro do Ministério Público. O Ministério Público, para mim, mesmo na minha senectude, será sempre uma referência, pois nele eu conheci um jeito de prevenir antes mesmo de usar o direito de punir. Escreveu alguma tese, livro ou participou de estudos relacionados com o Direito? Já publiquei dois livros: um em 2001 e outro em Tenho um terceiro que está em fase de publicação. Todos fora da área do Direito. O primeiro, intitulado Pedaços de Vida, são poesias; o segundo, Com a Mente Voltada para o Bem, é um livro para reflexão, com fundamento na psicologia educacional; e o último, com o título Brincando de Aprender, é destinado a um público de 4 a 8 e mostra o desenvolvimento intelectual da criança. Na avaliação do senhor, qual deve ser a prioridade do Ministério Público? A prioridade de um Ministério Público justo tem que partir de cada um dos seus membros, já que, numa democracia, toda autoridade emana da lei. No entanto, o exercício desta autoridade por uma pessoa, em qualquer nível, requer equilíbrio, sensatez e humildade, para reconhecer que quanto maior for o seu poder de mando maior será também o seu dever de ser justo. Para os que pretendem ingressar na instituição, que conselho daria? Para os que desejam ingressar no Ministério Publico, eu aconselho que, acima de tudo, procurem respeitar aquele que, mesmo em nível inferior, esteja exercendo uma autoridade em razão de sua função. Como exemplo, cito o guarda de trânsito. Como defensor e guardião da sociedade, tente se aproximar dela para aderir às suas virtudes ou ajudar a corrigir os seus defeitos. Ouça com a mesma dignidade o relato de todos, aplicando a cada um o que na realidade a sua ação ou omissão causou. Agindo assim, a atitude do novo membro do MP será digna de respeito e de grande valor para a instituição.

6 O que o senhor faz atualmente? Todo o meu tempo agora é destinado a servir, fazendo palestras para jovens e casais, especialmente sobre o exercício da cidadania. Na Igreja, exerço também o Ministério do Matrimônio, além de outros encargos que são a mim destinados. Quando aposentei como promotor, recusei a magistratura civil, tendo em vista já ganhar o s0uficiente para ter uma vida digna e para dar oportunidade para que jovens advogados daquela época disputassem aquela vaga. Atuo há mais de 20 anos como Juiz de Direito Canônico, indicado pelo senhor Arcebispo de Vitória e confirmado pelo Estado do Vaticano. Como a minha maneira de ter fé é pondo em prática o orar e agir, ao assumir a magistratura canônica e sabendo que era remunerada, eu perguntei se eu podia renunciar a remuneração, já que eu queria pagar um pouco o que Deus tem feito por mim e a resposta foi que podia. Deste modo, todo meu trabalho é em favor do próximo. Vivo apenas do meu salário, pago pelo Ministério Público. E como rende!!! Foi ou é integrante de entidades que têm relação com o Ministério Público ou com outros segmentos da sociedade? Hoje, mesmo aposentado, tudo o que posso fazer em homenagem ao Ministério Público, não crio obstáculo. Por isso continuo me dedicando, através de um trabalho filantrópico ainda em fase de regularização, para acolher crianças de 0 a 14 anos, período em que se acham em formação psíquica, com a intenção de orientá-los para o bem. A primeira fase desse trabalho, conhecido como Centro Integrado de Atividades Sócio- Educacionais (Projeto Ciase), está adiantada. Espero que no segundo semestre de 2011 já esteja em pleno funcionamento. Mesmo como membro aposentado do Ministério Público, ainda afirmo que não queremos só punir, mas sim prevenir, usando o nosso dever de cristão. Espero contar com a colaboração dos colegas nesse projeto. Se conseguirmos transformar um indivíduo tendente a delinquência em um cidadão respeitador, o Estado que nos paga tem dois lucros: primeiro por deixar de gastar com um marginal e segundo, deixando a marginalidade, ele vai dar lucro ao Estado. Enquanto cada um de nós só pensar no nosso bem-estar, esquecendo do bem-estar coletivo, nunca teremos uma sociedade justa e acolhedora.