O COMPLEXO DA MÃE MORTA: SOBRE OS TRANSTORNOS DO AMOR NA RELAÇÃO MÃE-BEBÊ

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1 1 O COMPLEXO DA MÃE MORTA: SOBRE OS TRANSTORNOS DO AMOR NA RELAÇÃO MÃE-BEBÊ Autora Issa Damous Mesa Redonda Do amor conjugal ao amor parental: reflexões sobre o sofrimento psíquico No senso comum, espera-se que o amor materno seja incondicional. Isto implica numa devoção única e exclusiva por parte da mãe, que deve então se debruçar de maneira absolutamente investida e positiva sobre a sua cria. Donald Winnicott, pediatra e psicanalista, teve a oportunidade de observar e de acompanhar de perto a relação mãebebê desde os momentos mais primitivos dessa relação. Do seu arcabouço teóricoclínico fazem parte expressões como preocupação materna primária, devoção comum da mãe, mãe suficientemente boa que refletem os cuidados ambientais facilitadores do desenvolvimento emocional primitivo num contexto em que o holding e o handling são essenciais para o que está por vir (Abram, 1996). Tudo isso é harmônico com o tal senso comum do amor materno incondicional, salvo pelo ódio necessário para o qual igualmente apontam tais expressões winnicottianas. Sim, Winnicott não esqueceu o ódio e o tem em alto valor, diferentemente de considerá-lo uma possível expressão de transtorno do amor materno, como facilmente poderia se pensar no senso comum. Certamente o ódio assim considerado por ele encontra respaldo em Freud que já destacara ambos os aspectos, o amor e o ódio, como inerentes ao ser humano. Um exemplo disso é o texto de 1915, sobre as pulsões e seus destinos, quanto ao ódio constituir-se na polaridade essencial do amor em contraste com a indiferença. Esta idéia sustenta justamente a dupla que o ódio forma com o amor, não somente como um mal necessário, mas também inerente às falhas ambientais constitutivas que levam a mãe, na suficiência dos seus cuidados, a favorecer as experiências de ilusão/desilusão, de encontro/criação do objeto, a transicionalidade, a destruição/descoberta do objeto que conduzirão paulatinamente ao complexo processo de diferenciação, isto é, o longo percurso até que um indivíduo se perceba como uma pessoa total relacionada a outras, ou seja, como alguém que tem minimamente estabelecidos os seus limites intrapsíquicos e intersubjetivos. Assim, da idéia fundamental de Winnicott (1960) acerca da existência de uma unidade mãe-bebê primordial, no contexto de um ambiente suficientemente bom, destaca-se o papel facilitador que desempenha os cuidados maternos primários o tempo

2 2 todo sustentado pela dupla amor-ódio. O ambiente que proporciona silenciosa e empaticamente esse suprimento essencial, o que inclui naturalmente um bom manejo da agressividade (Garcia e Damous, 2008), faz com que o cuidado materno dificilmente seja percebido pelo bebê que pode então experimentar processos de suma importância como integração, personalização e realização (Winnicott, 1945) e assim organizar-se narcisicamente. Essas experiências se dão concomitantemente ao início de uma diferenciação dentro/fora que pouco a pouco adquire a sofisticação de uma vida psicossomática e de um ambiente interno no qual é possível abrigar a riqueza pessoal que existe dentro do self (Winnicott, 1963: 72), ou seja, o verdadeiro self. Na elaboração de André Green, na qual se verifica um esforço no sentido de articular a teoria pulsional à teoria das relações objetais, ganha relevo a teoria do trabalho do negativo em seu aspecto fundante e estruturante do psíquico no contexto da relação mãe-bebê (Green, 1993). Embora o vocábulo negativo seja fortemente polissêmico, a sua acepção que mais interessa à psicanálise diz respeito à constituição de uma ausência latente, ou seja, algo que mantém sua existência potencial mesmo que não seja mais perceptível (Garcia, 2007, 2009). Neste sentido, de modo geral, o trabalho do negativo em psicanálise abrange o conjunto das operações psíquicas que exercem uma função de negativização tais como a excorporação, o recalcamento, a alucinação negativa, a clivagem e a negativa (Green, 2002). Estas operações são costuradas pelo trabalho de ligação/desligamento empreendidos pelas pulsões de vida e de morte onde mais uma vez se vê o duplo trabalho do amor e do ódio em andamento em contraste com a indiferença. No que se refere especificamente à relação mãe-bebê, os mecanismos negativizadores são essenciais, pois são justamente eles que operam o apagamento do objeto primário e a sua internalização como estrutura psíquica, desenhando então um espaço psíquico pessoal, diferenciado, capaz de comportar as produções subjetivas dentre as quais os processos de simbolização como o pensamento. É claro que, para o devido apagamento do objeto materno, é imprescindível a suportabilidade da mãe em ser esquecida, ou seja, em aceitar estar presente/ausente no que diz respeito ao ponto de vista do bebê. Green (1993) é enfático quanto à função intrínseca ao objeto na conjuntura das relações primárias. Este deve, a princípio, estimular a pulsão para despertá-la e, ao mesmo tempo, contê-la, além de deixar-se substituir adequadamente por outros objetos. Na medida em que isto ocorre de modo suficientemente bom, sua presença não é percebida pelo bebê, caracterizando-a então qualitativamente como uma

3 3 presença potencial (Green, 1975), o que favorece finalmente o apagamento do objeto primário e sua transformação em estrutura enquadrante no psiquismo. É claro que os transtornos ao longo do processo de diferenciação mãe-bebê podem ser de diferentes ordens e talvez com maior freqüência possam ser apontados aqueles resultantes do fracasso do trabalho do negativo em promover o apagamento do objeto primário em função dos excessos maternos, de amor ou de ódio. Excessos estes que produzem igualmente na criança a experiência de excesso de presença ou de ausência redundando, por sua vez, entre outros, na dupla angústia, de intrusão e de separação. Contudo, os transtornos do amor na relação mãe-bebê que dificultam o processo de diferenciação também podem derivar da indiferença materna ou do esfriamento afetivo que ocorre na mãe em relação à criança de quem ela cuida, articulando-se então ao que Green (1980) nomeia como complexo da mãe morta. O complexo da mãe morta consiste numa metáfora utilizada para referir-se ao desinvestimento central por parte do objeto primário (Green, 1980). As características mais proeminentes desse desinvestimento são o abandono, a ausência ou simplesmente a distância afetiva decorrentes não da morte real da mãe, posto que ela permaneça viva, mas da mãe que parece morta psiquicamente aos olhos da criança em conseqüência de uma depressão que ela própria atravessa, de uma tristeza ou mesmo de uma diminuição do seu interesse pela criança. Esse esfriamento materno é vivenciado pela criança como uma catástrofe, um trauma narcísico, dada a desilusão antecipada que demarca para ela a perda de amor e igualmente de sentido uma vez que ela não dispõe de recursos para explicar o que ocorreu. A mãe morta engendra no psiquismo nascente um enorme esforço para manter cativo o objeto primário em vez de apagá-lo via trabalho do negativo como requer o processo de diferenciação. Verifica-se mesmo um grande empenho contra o seu desaparecimento e, por conseguinte, marcas mnêmicas alternando-se entre a nostalgia e a dolorosa vacuidade de um luto branco ou inelaborável que assola a vivência psíquica. Luto, uma vez que se trata de perda e branco na medida em que evoca a angústia das perdas sofridas no nível narcísico, ou seja, a angústia dos estados de vazio originados da interrupção do investimento materno, bastante diferente da angústia de castração que evoca o vermelho de um ato sangrento, de uma ferida a ser infringida ao corpo sob uma lógica triangular de desejo e proibição já operantes. E luto inelaborável dada a impossibilidade de elaboração da perda metafórica do objeto primário, justamente a

4 4 perda responsável pela instauração da ausência ou do espaço psíquico pessoal que abrigará o verdadeiro self. O complexo da mãe morta suscita conseqüentemente uma gama de defesas contra a angústia branca experimentada após a catástrofe sofrida narcisicamente pelo desinvestimento materno (Green, 1980). Considerando-se onipotentemente o centro do universo materno, a criança procura inicialmente despertar a mãe do luto no qual ela provavelmente se encontra absorta, atribuindo a si própria a causa da decepção materna. Revelando-se esta uma inútil tentativa de reparação, a criança começa a sentir o peso da sua impotência, agita-se, manifesta uma alegria artificial, apresenta problemas no sono como insônia ou terrores noturnos até que outra série de defesas se estrutura. A primeira modalidade de defesa diz respeito ao desinvestimento afetivo e representativo do objeto materno. Não há ódio nessa espécie de assassinato psíquico uma vez que a imago materna já concebe a mãe por demais aflita. Desenha-se apenas um buraco na trama das relações objetais com a mãe na proporção em que são mantidos investimentos secundários o mesmo que ocorre com a mãe que se sente incapaz de amar a criança, mas que ainda assim continua a se ocupar dos seus cuidados. Concomitantemente, ocorre a identificação inconsciente com a mãe morta segundo um modelo especular primitivo. Trata-se de uma simetria reativa, mimética, alienante, numa tentativa de restabelecer uma união com a mãe: não podendo mais ter o objeto, renuncia-se a ele conservando-o canibalisticamente, ou seja, continua-se a possuí-lo tornando-se ele mesmo. Nas relações objetais futuras, o desinvestimento dos objetos será então uma tendência importante visto que a identificação se dá mais propriamente com o buraco deixado pelo objeto. A segunda defesa é a perda de sentido, de prazer, pois ao se atribuir a responsabilidade pelo desinvestimento materno, a criança tenta explicar a mudança materna pelo seu próprio jeito de ser e assim passa a acreditar que lhe é interdito ser e que só a morte lhe resta já que nem mesmo sua agressividade pode ser expressa dada a vulnerabilidade materna. Uma triangulação precoce pode ser igualmente ensaiada se o pai é intuído como o objeto do luto materno. Sua figura pode passar a ser então intensamente investida como o grande salvador. O desencadeamento de um ódio secundário apresenta-se como uma terceira via de defesa evocando desejos de incorporação e posições anais sádicas no intuito de domínio e mácula do objeto. Instala-se ainda a excitação auto-erótica como uma quarta defesa voltada para a procura de um amor sensual puro, de órgão, caracterizada

5 5 principalmente pela dissociação entre sensualidade e ternura. Sob a marca de uma reticência a amar, o objeto pode ser procurado apenas pelo gozo que pode proporcionar às zonas erógenas isoladamente. Finalmente, uma quinta defesa desponta na estimulação precoce do fantasiar e do intelecto, referindo-se a uma obrigação de imaginar ou de pensar, muitas vezes, com atividades projetivas que, independente de serem verdadeiras ou falsas, denotam o esforço para adivinhar ou antecipar o que se passa com o objeto. Todas essas defesas, embora tenham seu valor, são de certo modo ineficazes no equilíbrio da economia psíquica na medida em que se adentra no campo amoroso, pois a ferida branca do complexo da mãe morta ameaça sempre retomar o centro da cena levando à dissolução do que fora a muito custo adquirido. Prisioneiro do desinvestimento materno, o sujeito está ocupado pela mãe morta e sofre ele próprio um esfriamento caracterizando assim uma configuração depressiva central, nem sempre aparente por encontrar-se geralmente submersa em meio a outros sintomas, mas perfeitamente passível de eclodir como quadro depressivo. Desse modo, ao tomar a indiferença materna articulada ao complexo da mãe morta para pensar os transtornos do amor no contexto da relação mãe-bebê, não há como não evocar clinicamente as patologias narcísicas tão em voga na atualidade que, embora muitas vezes não apresentem imediatamente uma sintomatologia depressiva clara, não tardam a manifestá-la na transferência. Referências: ABRAM, J. (1996) A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, GARCIA, C. A. (2007) Os estados limite e o trabalho do negativo: uma contribuição de A. Green para a clínica contemporânea. In: Revista Mal-Estar e Subjetividade. Fortaleza: v. 7, n.1, p , (2009) Continuidade e ruptura na constituição psíquica. Revista Psicologia Clínica. Rio de Janeiro: v. 21, n. 1, p , GARCIA, C. A. e DAMOUS, I. (2008) A agressividade no contexto dos cuidados primários: a liberdade suficientemente boa. Cadernos de Psicanálise SPCRJ. Rio de Janeiro: SPCRJ, v.24, n. 27, p , 2008.

6 6 GREEN, A. (1975) O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico. In: Sobre a loucura pessoal. Trad. Carlos Alberto Pavanelli. Rio de Janeiro: Imago, p.36-65, (1980) A mãe morta. In: Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Editora Escuta, p ,1988. (1993) Le travail du négatif. Paris : Les Éditions de Minuit, (2002) Orientações para uma psicanálise contemporânea. Desconhecimento e reconhecimento do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: SBPSP. Depto. De Publicações, WINNICOTT, D. (1945) Desenvolvimento emocional primitivo. In: Da pediatria à psicanálise. Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, p (1960) Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, p (1963) O desenvolvimento da capacidade de se preocupar. In: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, p