CÂMARA DOS SOLICITADORES COLÉGIO DA ESPECIALIDADE DE AGENTE DE EXECUÇÃO I JORNADAS DE ESTUDO DOS AGENTES DE EXECUÇÃO

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1 CÂMARA DOS SOLICITADORES COLÉGIO DA ESPECIALIDADE DE AGENTE DE EXECUÇÃO I JORNADAS DE ESTUDO DOS AGENTES DE EXECUÇÃO ESPINHO, DIAS 9 E 10 DE ABRIL DE 2010 Intervenção da Prof. mestre Cláudia Boloto: Mesa 2 Fase 2 do Processo Executivo: A penhora, a impenhorabilidade, redução da penhora e penhora de estabelecimento comercial. A penhora, enquanto acto judicial fundamental do processo executivo para pagamento de quantia certa, é aquele em que mais se manifesta o exercício do poder coercitivo do tribunal. Perante um acto de incumprimento, o tribunal priva o executado do pleno exercício dos seus poderes sobre um bem, o qual fica a partir daí sujeito à satisfação do crédito do exequente. A penhora é o acto executivo por excelência sendo também aquele em que o agente de execução tem um papel fundamental. Considerando as naturais limitações de tempo desta intervenção, será abordado um conjunto de questões que, ou pela sua importância prática, ou pelas dúvidas que possam suscitar, merecem aqui alguma reflexão. Assim, serão focados três aspectos essenciais: - O primeiro, relativo aos poderes do agente de execução na determinação dos bens a penhorar, a relação entre o exercício das suas competências próprias e a eventual indicação de bens pelo exequente, bem como a importância fundamental do princípio da adequação e da proporcionalidade neste âmbito; - O segundo, relativo a alguns aspectos relevantes da impenhorabilidade de certos bens ou direitos; - O terceiro, respeitante à penhora de estabelecimento comercial, cuja concretização prática suscita algumas questões. 1

2 I. A PENHORA I.1. O OBJECTO DA PENHORA: A DETERMINAÇÃO DOS BENS A PENHORAR Um princípio fundamental que o agente de execução deve ter em consideração no momento da penhora é princípio da proporcionalidade e da adequação dos bens a penhorar, considerando o valor da quantia exequenda e as custas prováveis da execução. Este princípio fundamental, previsto nos art. 821.º, n.º3 e 834.º, n.º2 do C.P.C. resulta da própria configuração da acção executiva adoptada pelo ordenamento jurídico português, ao consagrar um sistema em que os bens que podem ser apreendidos na execução são apenas os necessários ao cumprimento da obrigação exequenda. Como é sabido, antes da reforma da acção executiva cabia às partes nomear os bens a penhorar. No novo regime, deixou de haver nomeação de bens à penhora, falando-se agora na possibilidade de o exequente indicar bens do executado que conheça, com as precisões que lhe seja possível formar. Mas esta indicação só é dada na medida do possível e não vincula o agente de execução a penhorar os bens indicados, pois ele pode, em vez desses, penhorar outros. Só assim não será caso o exequente indique à penhora algum ou alguns dos bens referidos no art. 834.º, n.º1 e desde que tais bens presumivelmente permitam o pagamento do crédito exequendo e custas. Fora destes casos, a determinação dos bens a apreender cabe ao agente de execução, com o respeito pelo princípio da proporcionalidade e da adequação previsto nos art. 821.º, n.º3 e art. 834.º, n.º1 e 2, preferencialmente pela ordem estabelecida no art. 834.º, n.º1. 2

3 Assim, a apreensão deverá ter em conta: - Por um lado, o montante da dívida exequenda e despesas prováveis da execução. Na apreciação da adequação do valor dos bens penhorados deverá atender-se, pelo menos indirectamente, ao valor dos eventuais créditos de terceiros com garantia real sobre os bens apreendidos, na medida em que sejam conhecidos. Com feito, uma vez que a existência das garantias diminui o valor dos bens para o efeito da realização do direito do exequente, o princípio da adequação leva a que, na altura da penhora, se tenha em conta, na estimativa do produto da venda dos bens, aqueles que devam ser satisfeitos antes do exequente. Acresce que, a relação de adequação que o art. 834.º, n.º1 exprime reporta-se ao momento inicial da penhora ( a penhora começa ) e, não sendo rígida, vai-se adequando em função das vicissitudes da execução. Por isso, se após a penhora aparecerem reclamações de créditos desconhecidos que prefiram ao exequente, o princípio da adequação implica que a penhora possa ser reforçada nos termos do art. 834.º, n.º3 alínea b) caso os bens penhorados se revelem insuficientes, por o seu valor de realização se mostrar, afinal, inferior ao estimado. - Por outro lado, a penhora deve incidir sobre os bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização, só sendo admissível a penhora de imóveis ou de estabelecimento comercial cujo valor se estime excessivo em face do crédito exequendo, quando se deva presumir que a penhora de outros bens não permitirá a satisfação integral do crédito do exequente no prazo de 6 meses. Aqui, o princípio da proporcionalidade cede perante a necessidade de realização célere do fim da execução. Resulta agora do novo regime introduzido pelo DL n.º226/2008, de 20 de Novembro que, após as consultas às bases de dados tendentes à identificação de bens penhoráveis, o agente de execução deve notificar o exequente dos resultados obtido. Sendo identificados bens penhoráveis, a execução prossegue com a penhora desses bens, a não ser que o exequente, no prazo de 5 dias a contar da sua notificação, declare que não pretende a penhora de determinados bens imóveis e móveis não sujeitos a registo, ou desista da execução (art. 833.º-B, n.º2). Este regime justifica-se pelas despesas que a penhora destes bens implica para o exequente (que deverá provisionar o agente de execução para as despesas de registo, remoção, transporte e armazenamento dos bens móveis, etc., sem prejuízo do seu reembolso, a final), sendo que, no caso dos bens móveis não sujeitos a 3

4 registo, o valor da venda desses bens muito dificilmente compensa as despesas inerentes. Conclui-se que: 1.º O agente de execução não está vinculado à indicação dos bens pelo exequente, salvo se nessa indicação se compreenderem alguns dos bens mencionados no art. 834.º, n.º1. 2.º Caso sejam indicados bens em excesso, deve o agente de execução efectuar a penhora apenas dos necessário a garantir a quantia exequenda, a menos que se verifique a situação do art. 834.º, n.º2. Se o agente de execução penhorar bens em excesso, pode o executado opor-se à penhora excedentária nos termos do art. 863.º-A, n.º1 alínea a). 3.º Isto sem prejuízo de o agente de execução, por sua iniciativa, promover o levantamento da penhora sobre determinados bens, se ela se mostrar excessiva. Com efeito, não se vê qualquer motivo atendível para restringir a competência do agente de execução na redução ou no levantamento das penhoras excessivas, independentemente da espécie de bens sobre que a penhora em excesso recaiu. Aliás, esta competência já está expressamente consagrada no art. 861.º-A, n.º4 do C.P.C. a propósito da redução da penhora excessiva dos saldos bancários. I.2- A IMPENHORABILIDADE DE CERTOS BENS OU DIREITOS Tanto a lei substantiva como a lei processual estabelecem um conjunto de bens ou direitos impenhoráveis e que, por isso, não podem ser apreendidos no processo executivo para garantir o cumprimento da obrigação exequenda. Esta impenhorabilidade pode ser absoluta, relativa ou parcial. Vejamos cada uma delas. a) A impenhorabilidade pode ser absoluta, na medida em que os bens não podem, na sua totalidade, ser penhorados, seja qual for a dívida exequenda. É o que acontece com o direito a alimentos (art º do C.C.), o direito à sucessão de pessoa viva (art º do C.C.), o direito ao arrendamento habitacional (art º do C.C.), etc. É que acontece igualmente com os bens e direitos mencionados no art. 822.º do C.P.C., cuja impenhorabilidade resulta de razões de interesse geral, ou na salvaguarda de interesses vitais do executado que visam assegurar-lhe e ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida. Nesta categoria integram-se os bens imprescindíveis 4

5 a qualquer economia doméstica que se encontrem na residência permanente do executado, nos termos do disposto na alínea f) do artigo acima citado. Segundo algumas decisões da nossa jurisprudência, não integram esta noção de imprescindibilidade a televisão, o frigorifico, os candeeiros, os maples, ou as máquinas de lavar, com o fundamento de que estes bens não existem na economia mais modesta, a qual é apenas integrada por utensílios como os talheres, trastes de cozinha camas, mesas, cadeiras e bancos. Parece-nos que este rigor é manifestamente excessivo porque o padrão de dignidade evolui ao longo dos tempos e não deve ser aferido em função de casos marginais, mas sim em função do que, na sociedade actual, é humanamente exigível. Daí que vários tribunais já se tenham pronunciado quanto à impenhorabilidade de uma televisão. De resto, são penhoras que exigem da parte do agente de execução um enorme bom senso na sua concretização, devendo o mesmo procurar não ceder às pressões, por vezes excessivas, dos exequentes que, a todo o custo, pretendem a rápida recuperação do seu crédito. O acto de penhora é da exclusiva responsabilidade do agente de execução, sendo ele a autoridade que decide, preside e orienta esta diligência, sem prejuízo da intervenção do juiz nesta matéria, a qual pode ser provocada por qualquer interessado e com recurso aos diversos mecanismos previstos na lei. b) A impenhorabilidade pode também ser relativa na medida em que os bens a ela sujeitos podem ser penhorados apenas em determinadas circunstâncias ou para pagamento de certas dívidas. É o que acontece com os bens mencionados no art. 823.º. Estas impenhorabilidades filiam-se em motivos de interesse económico, matizados com considerações de humanidade, pois aqui visam-se interesses vitais do executado. Ela abrange os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado, que lhe asseguram e ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida. A lei evita, assim, que se retirem ao executado os meios necessários para ganhar a vida e sustentar-se, bem como à sua família. Porém, a penhora destes bens já será possível se o executado os indicar para penhora ou se a execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação, bem como quando os bens forem penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial. 5

6 Como se referiu, com a enunciação dos bens referidos no art. 823.º, n.º2, o legislador pretendeu salvaguardar interesses vitais dos sujeitos individuais e seu agregado, não tendo cabimento, na ratio deste normativo, impedir que o património de uma pessoa colectiva esteja, por si só, isento de penhora, ainda que imprescindível à sua actividade. De resto, quanto às pessoas colectivas é muito difícil indicar bens que não estejam afectos à sua actividade comercial (e não profissional) pelo que, a estender-se a elas o disposto no n.º2 do art. 823.º, na realidade prática, jamais uma pessoa colectiva veria os seus bens serem penhorados. Assim, conclui-se que o preceito apenas é aplicável às pessoas singulares e não às pessoas colectivas, por só àquelas se aplicar a ordem de razões que justificam estas impenhorabilidades, tais como a dignidade da pessoa humana e a salvaguarda de condições mínimas de vida. Às pessoas colectivas apenas se concede a possibilidade de requererem, nos termos do disposto no art. 834.º, n.º3 alínea a), a substituição dos bens penhorados por outros que igualmente assegurem os fins da execução, sempre que os bens penhorados sejam imprescindíveis à sua laboração. c) A impenhorabilidade será parcial sempre que os bens só possam ser penhorados em certa parte. É o que acontece nos casos previstos no art. 824.º do C.P.C. Estas impenhorabilidades parciais baseiam-se em razões que se prendem com a dignidade da pessoa humana, um dos pilares constitucionais de Portugal como Republica soberana, nos termos do disposto no art. 1.º da CRP. Assim, não podem ser penhorados dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado, bem como dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, etc. Em caso de colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu direito e o direito fundamental dos trabalhadores, optou o legislador, e bem, pelo sacrifício do direito do credor na medida do necessário e, se tanto for indispensável, mesmo totalmente, neste caso para evitar que o devedor se transforme num indigente a cargo da colectividade. Por outro lado, existem disposições legais especiais que estabelecem a impenhorabilidade absoluta de determinados rendimentos, como acontece com os subsídios de férias e de natal dos funcionários públicos (art. 17.º do DL n.º 496/80, de 20 de Outubro), com o direito de subsídio de morte de funcionário público (art. 8.º do 6

7 DL n.º 223/95, de 8 de Setembro) e a prestação inerente ao direito do rendimento mínimo social de inserção (art. 23.º da Lei 13/2003, de 21 de Maio). Porém, conforme resulta do art. 12.º do preâmbulo do DL n.º329-a795, de 12 de Dezembro, não são invocáveis em processo civil as disposições legais que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no art. 824.º. Logo, estes rendimentos estão sujeitos à regra geral de penhorabilidade relativa resultante do art. 824.º, n.º1 e 2 do C.P.C. Esta solução legal acabou por ser um reflexo da doutrina plasmada nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 349/91 e 411/93, que julgou a inconstitucionalidade da norma do art. 48.º da Lei 28/84, na medida em que isentava de penhora a parte das prestações devidas pelas instituições da segurança social que exceda o mínimo necessário a uma sobrevivência condigna por, por um lado, encerrar um sacrifício excessivo do direito do credor e, por outro, atribuir aos pensionistas da segurança social um benefício injustificado, em comparação com os pensionistas de outras instituições, assim violando o princípio da igualdade. Outra questão controversa é a que respeita a saber se o valor do rendimento sujeito à penhora se reporta ao vencimento líquido ou ilíquido auferido pelo executado. Da nossa parte, consideramos que o valor a ter em conta na penhora deverá ser o valor ilíquido do salário auferido pelo executado. E isto porque, quando a lei estabelece o valor do salário mínimo nacional, também o estipula sem considerar o valor dos descontos obrigatórios por lei. Questão de particular importância é a possibilidade, consagrada nos nºs 4 e 5 do art. 824.º, de o agente de execução, a requerimento do executado, isentar de penhora os rendimentos daquele ou reduzir para metade a parte penhorável dos seus rendimentos, pelo prazo de seis meses, consoante o agregado familiar do requerente tenha um rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica igual ou inferior a três quartos do valor do Indexante de Apoios Sociais, ou superior a três quartos e igual ou inferior a duas vezes e meia do valor de tal indexante (actualmente o valor deste indexante é de 419,22, nos termos do DL n.º323/2009, de 24 de Dezembro). É entendimento de alguns que este novo regime pretende alargar, custe o que custar, a panóplia dos poderes do agente de execução, mesmo ao arrepio da Constituição. E esta desrespeita-se frontalmente nos novos nºs 4 e 5 do art. 824.º, ao atribuir-se ao agente de execução a prática de actos jurisdicionais. Entendem estes autores que, face ao disposto no art. 202.º, n.º1 e 2 da CRP, apenas os tribunais exercem a função jurisdicional, na circunstância reportada à resolução de um conflito de pretensões entre o exequente, que pretende a satisfação integral do seu crédito, e 7

8 o executado, que deseja perceber um rendimento que lhe assegure, bem como ao seu agregado familiar, uma existência decorosa. Salvo o devido respeito, não concordamos, de todo, com esta posição. Com efeito, a norma em causa não concede ao agente de execução qualquer poder jurisdicional uma vez que a sua aplicação se traduz, apenas, na verificação matemática do rendimento do agregado familiar do executado e a concessão destes benefícios caso esse rendimento não atinja determinados valores. Assim, mediante requerimento do executado, o agente de execução deverá solicitar documentos comprovativos da composição e rendimentos do agregado familiar do executado. Seguidamente, o valor do rendimento do agregado familiar deverá ser dividido por todos os seus elementos e se, por cada um, o valor for igual ou inferior a três quartos do valor do indexante de Apoios Sociais (actualmente, 314,41 ) deverá o agente de execução isentar de penhora os rendimentos do executado por um período de seis meses. Tomemos como exemplo um agregado familiar composto por um casal com dois filhos, e cujo rendimento total é de O valor dividido por cada um dos seus elementos é de 300, logo inferior a três quartos do valor do indexante de Apoios Sociais (314,41 ). Neste exemplo o agente de execução deve isentar de penhora os rendimentos do executado por um período de seis meses, nos termos do disposto no art. 824.º, n.º4. A esta isenção ou redução da penhora operada pelo agente de execução pode o exequente opor-se, provocando a intervenção do juiz na apreciação desta questão. Porém, os fundamentos desta oposição apenas podem ter por base o valor dos rendimentos e a composição do agregado familiar do executado tido em conta para este cálculo. Já as alterações da parte penhorável dos rendimentos do executado previstas nos nºs 6 e 7 do art. 824.º são da competência do juiz, mediante proposta do agente de execução devidamente fundamentada, a qual deverá conter um projecto de decisão que o juiz pode sustentar. Trata-se aqui de introduzir critérios de equidade, em contraposição à rigidez dos critérios matemáticos legais. É certo que estes normativos assentam na mera possibilidade de o agente de execução formular ao juiz tais propostas, sem qualquer carácter de obrigatoriedade. Mas caso o mesmo entenda não as apresentar, sempre podem as partes provocar a intervenção do juiz para a sua apreciação, nos termos gerais. 8

9 Não podemos aqui deixar de concordar com a posição perfilhada por alguns no sentido de entender que esta previsão legal, ao possibilitar ao agente de execução a elaboração de uma proposta devidamente fundamentada tendente à alteração da parte penhorável dos rendimentos do executado, designadamente atendendo à natureza do crédito exequendo, às necessidades do executado e do seu agregado familiar, traduz uma evidente violação ao principio de reserva de jurisdição, já que atribui ao agente de execução verdadeiros poderes de apreciação jurisdicional. Daí que, no entender do professor Lebre de Freitas, possa o agente de execução recusar legitimamente o exercício de tais competências, recusando-se a propor. I.3- A PENHORA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL O estabelecimento comercial é um bem unitário, uma realidade autónoma composta por uma universalidade que representa uma verdadeira unidade jurídica. Esta universalidade integra um conjunto de vários elementos, coisas corpóreas e incorpóreas, unificados pela vontade do proprietário com vista à sua afectação a uma determinada actividade económica. Assim, o estabelecimento comercial é uma realidade heterogénea que engloba direitos e bens da mais variada natureza. A penhora do estabelecimento comercial concretiza-se através da elaboração do auto de penhora em que o agente de execução deve discriminar todos os elementos que o compõem. Assim, o auto de penhora assume aqui natureza constitutiva da penhora, de tal modo que só os elementos dele constantes ficam abrangidos pela penhora. Porém, quando dele façam parte direitos de crédito, há ainda que proceder à notificação do devedor nos termos do disposto no art. 856.º, n.º1. É o que acontece com o direito ao arrendamento, pois pertencendo o local onde se encontra o estabelecimento a terceiro, deve ser este notificado de que o direito de arrendamento fica à ordem do agente de execução. Se do estabelecimento comercial fizerem parte bens ou direitos cuja oneração a lei sujeita a registo, determina o art. 862.º-A, n.º6 que deve o exequente promovê-lo, nos termos gerais, quando pretenda impedir que sobre eles possa recair penhora ulterior. Assim, a penhora do estabelecimento, enquanto universalidade de direitos, não está sujeira a registo. Mas se abranger bem cuja oneração a lei sujeita a registo, deve o 9

10 exequente promovê-lo, quando pretenda impedir que sobre eles possa recair penhora ulterior. Daí deverem os elementos necessários à sua efectivação constarem do auto de penhora. Esta regra impeditiva de penhora ulterior sobe os mesmos bens, em desvio ao regime consagrado no art. 871.º, justifica-se pela tutela da unidade jurídica que caracteriza o estabelecimento comercial. Consagra expressamente o art. 862.º-A, n.º6 de que compete ao exequente promover o registo desta penhora. E isto porque tal registo, sendo apenas condição de eficácia da penhora, deve ser efectuado nos termos gerais. Não se aplica aqui o disposto nos art. 838.º n.º1, ou seja, o registo através de comunicação electrónica à conservatória. Na promoção de tal registo, no termos gerais, deverá o exequente estar munido de certidão do auto de penhora do estabelecimento comercial elaborado pelo agente de execução, onde esses bens imóveis ou móveis sujeitos a registo são mencionados. Se do estabelecimento fazem parte bens sujeitos a registo e o exequente não tenha registado a penhora, nos termos acima expostos, é admissível a penhora posterior desses bens em outra execução. É certo que, em vez de se penhorar o estabelecimento comercial como universalidade, podem somente penhorar-se os bens que o integram, nos termos expressamente admitidos pela 1.ª parte do n.º5 do art. 862.º-A (o que acontecerá quando o valor da execução não justificar a penhora de todo o estabelecimento comercial, em cumprimento do princípio da proporcionalidade e adequação da penhora). Se tal ocorrer, a ulterior penhora do estabelecimento não inclui essas coisas simples, por desafectadas da unidade jurídica em que aquele se traduz, quando se perspectiva a sua transferência global em processo de execução. Mas, se o bem que integra o estabelecimento for dele inseparável, não pode ser objecto de uma penhora autónoma. É o que ocorre, por exemplo, com o direito de alvará de estabelecimento, que só é relevante em conexão com a exploração daquele. Note-se, porém, que nada impede a pluralidade de execuções sobre o mesmo estabelecimento, nos termos do disposto no art. 871.º. Por outro lado, porque se trata de uma organização de factores de produção, a penhora do estabelecimento comercial não deve obstar ao prosseguimento da actividade comercial, conforme resulta do disposto no art.862º-a, n.º2. Por tal motivo, não devem ser relacionados e apreendidos os bens do estabelecimento cujo destino seja o mercado económico, precisamente porque 10

11 constituem o próprio objecto da intermediação, fabricação, ou criação. Estes serão, à partida, bens impenhoráveis. Assim, só devem ser apreendidos os bens cuja indisponibilidade não comprometa a futura gestão ou funcionamento normal do estabelecimento penhorado. Ou seja, deve a penhora abranger as máquinas, os computadores, etc., mas já não deve incluir as mercadorias que se destinem a ser vendidas. O funcionamento do estabelecimento comercial levanta outra questão, que é a de saber quem o prossegue e quem o fiscaliza. Na penhora de estabelecimento comercial não há lugar à nomeação de depositário, salvo se a sua actividade estiver paralisada ou dever ser suspensa, conforme resulta do disposto no art. 862.º-A, n.º3 e 5. Se o exequente não se opuser, a actividade e a gestão ordinária do estabelecimento será assegurada pelo próprio executado, podendo ser nomeada pelo agente de execução pessoa com funções de fiscalização, aplicando-se aqui os preceitos referentes ao depositário. Caberá a este fiscal verificar se o executado está exercendo a gestão com a diligência e o zelo de um bom pai de família e pedir-lhe contas sempre que entenda necessário, conforme resulta do disposto no art. 843.º, n.º1. Havendo razões para que o executado não se mantenha a gerir o estabelecimento, o juiz, a requerimento do exequente, designa um administrador para o efeito. Embora a lei não o diga, esta é uma competência do juiz na medida em que haverá que apreciar (jurisdicionalmente) os fundamentos invocados pelo exequente que justificam esta oposição. Em último caso, se à data da penhora a actividade do estabelecimento estiver paralisada ou houver razões para ordenar a sua suspensão, designar-se-á um depositário para a mera administração dos bens que o integram. Dada a especial natureza e a complexidade do objecto da penhora, é derrogada a norma do art. 848.º, n.º1 (não há lugar à remoção dos bens móveis), sendo livre a escolha do depositário. Mas nada impede que, consideradas as circunstâncias do caso, seja depositário o próprio agente de execução. Por fim, o facto de o estabelecimento comercial estar paralisado à data da penhora não implica que não possa ser decidida a sua reabertura, designando-se um administrador para a gestão. Aliás, o funcionamento do estabelecimento pode ser necessário para impedir a resolução do contrato de arrendamento do local em que esteja instalado, nos termos da lei de arrendamento. 11

12 FIM 12