A reinserção dos desenraizados
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- Cacilda de Figueiredo Santiago
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1 Ferdinand Tönnies sugere que o que distinguia a comunidade antiga da moderna era um entendimento compartilhado por todos os seus membros. Não um consenso, que não é mais do que um acordo alcançado por pessoas com opiniões essencialmente diferentes. O entendimento ao estilo comunitário não precisa ser procurado, e muito menos construído; esse entendimento já está lá completo e pronto para ser usado. Não é uma linha de chegada mas o ponto de partida de toda união. É um sentimento recíproco e vinculante. No círculo aconchegante não há espaço para o cálculo frio impor-se à razão. Robert Redfield elenca como atributos da comunidade: a distinção divisão entre nós e eles ; a pequenez comunicação interna densa que a tudo alcança e a autosuficiência o isolamento em relação a eles seria quase completo. Quando as trocas com o mundo exterior se intensificam e passam a pesar mais do que a trocas mútuas internas, as condições da comunidade começam a desabar. De agora em diante toda unidade precisa ser construída: o acordo artificialmente produzido será a única forma disponível de unidade. O entendimento comum só poderá ser uma realização alcançada ao fim de longa e torturosa argumentação e persuasão. Nenhum acordo será imune à reflexão, contestação e discussão, e nunca atingirá o status de contrato preliminar. Identidade deve a atenção que atrai e as paixões que desperta ao fato de ser substituta da comunidade, do lar supostamente natural. Identidade significa aparecer, ser diferente, e por essa diferença, ser singular. É um processo de estabelecimento de fronteiras, num mundo que se globaliza. E só depois que os marcos das fronteiras são cravados, os mitos sobre a antiguidade e as fronteiras são inventados. A reinserção dos desenraizados O moderno arranjo capitalista do convívio humano tinha uma face emancipatória e outra coercitiva. Para que se adaptassem às novas condições, os futuros trabalhadores tinham antes de ser transformados numa massa, despidos dos antigos hábitos comuntariamente sustentados. A guerra contra a comunidade foi declarada em nome da libertação do indivíduos. O resultado foi a destruição dos poderes de fixar padrões e papéis da comunidade. A ética do trabalho do início da era industrial foi uma tentativa de reconstituir no ambiente da fábrica, através de comando, vigilância e punição, a habilidade no trabalho anteriormente estabelecida no âmbito da densa e intricada rede de interações comunitárias que dotava o trabalho de sentido. A era da grande transformação foi uma era de engajamento; governados e governantes estavam amarrados entre si, presos as seus lugares. Na maior parte de sua história, a modernidade foi uma era de engenharia social em que não se acreditou na emergência e na reprodução espontânea da ordem: com o desaparecimento das instituições autoregenerativas da sociedade pré-moderna, a única ordem concebível era uma ordem projetada com os poderes da razão e mantida pelo monitoramento e manejo quotidianos (p. 39). O poder moderno dizia respeito à capacidade de gerenciar pessoas, padronizar, vigiar, monitorar e dirigir suas ações. Notas técnicas 1/5
2 A certeza das pessoas de que se encontrariam por um longo porvir e a suposição de que a sociedade tem uma longa memória fundamentavam a experiência de comunidade biografias compartilhadas e uma expectativa de longa interação. Essa experiência é que falta hoje em dia. As dores dos indivíduos não se somam, não se acumulam nem se condensam numa espécie de causa comum que possa ser adotada e unir forças. Tempos de desengajamento segundo tempo À medida que a ideia de que só o mérito deve ser premiado, as provisões previdenciárias, aquele seguro comunitário contra o infortúnio individual, outrora vistas como direito universal, são desmanteladas. A identidade deve ser flexível e sempre passível de experimentação e mudança, pronta a ser abandonada assim que deixa de ser satisfatória. A comunidade deve ser tão fácil de decompor quanto foi fácil de construir. A orientação é dada mais pela estética do que pela ética. Comunidades estéticas baseadas numa aprovação consensual do juízo ou numa conduta uniforme não se baseiam na autoridade ética e na visão dos líderes, mas são orientadas pela sedução insinuada pela indústria do entretenimento. A união é sentida e vivida como se fosse real, a comunidade transformada numa manifestação e confirmação da autonomia individual. Não há sanções contra os que saem da linha e se recusam a prestar atenção a não ser pelo horror de perder uma experiência que os outros (tantos outros!) prezam e de que desfrutam (p. 63). Uma coisa que a comunidade estética definitivamente não faz é tecer entre seus membros uma rede de responsabilidades éticas e portanto de compromissos de longo prazo (p. 67). Seus laços devem ser experimentados, e experimentados no ato (p. 68). Os indivíduos que lutam para se tornar senhores de seu próprio destino por meio de atos e não apenas de declarações públicas procuram um tipo de comunidade que possa tornar a realidade algo de que sentem falta e que sozinhos não conseguem concretizar. Procuram uma comunidade ética, que teria de ser tecida por compromissos de longo prazo, que pudesse ter tratada como variável dada no planejamento e nos projetos de futuro (p. 68). Esses dois modelos de comunidade são muitas vezes misturados e confundidos no discurso comunitário hoje em dia. Direito ao reconhecimento, direito à redistribuição Na modernidade em seu estágio líquido o modelo da justiça social foi praticamente abandonado em favor de uma regra/padrão/medida de direitos humanos. Se os modelos de justiça social tentam ser substantivos e compreensivos, o princípio dos direitos humanos é sempre formal e aberto. A elite global do poder, extraterritorial, abandonou as ambições, comuns às elites modernas, de produzir uma nova e melhor ordem. Os projetos de alta civilização, alta cultura e alta ciência não estão mais na Notas técnicas 2/5
3 moda. É da natureza dos direitos humanos que, embora se destinado a um gozo em separado, tenham de ser obtidos coletivamente. A luta pelos direitos individuais e sua alocação resulta numa intensa construção comunitária. Nancy Fraser diz que justiça hoje requer tanto redistribuição quanto reconhecimento. Um resultado dessa ideia é que o traço fundamentalista de qualquer reivindicação de reconhecimento, que tende a absolutizar a diferença, pode ser desintoxicado do veneno do sectarismo uma vez colocado no quadro da justiça social. As demandas por redistribuição feitas em nome da igualdade são veículos de integração, enquanto que as demandas por reconhecimento em meros termos de distinção cultural promovem a divisão, a separação e acabam na interrupção do diálogo (p. 72). De fato, se o reconhecimento for definido como direito à participação na interação social em condições de igualdade, sendo concebido como uma questão de justiça social, isso não significa que todos têm o direito iguais à estima social, mas apenas que todos têm o direito de procurar a estima social em condições de igualdade. Para que a ideia da boa sociedade possa reter seu sentido atualmente ela precisa significar uma sociedade que dá a todos uma oportunidade cuidando da remoção dos impedimentos ao aproveitamento da oportunidade. a única estratégia disponível para realizar o postulado da sociedade justa é a eliminação dos impedimentos à distribuição equitativa das oportunidades (p. 73) O mais baixo nível: o gueto A segurança num mundo inexoravelmente individualizado e privatizado é uma tarefa que toca a cada indivíduo. A defesa do lugar vista como condição necessária de toda segurança deve ser uma questão do bairro, um assunto comunitário. Onde o Estado fracassou, a comunidade local, corporificada em um território, fornece aquele estar seguro? Segundo Sharon Zukin, as décadas de 1960 e 70 foram um divisor de águas na institucionalização dos temores urbanos. A política do medo cotidiano, a ideia das ruas inseguras mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da habilidades para participar da vida pública. No acesso seletivo a enclaves defensáveis, na separação em lugar da negociação da vida em comum, na criminalização da diferença, uma nova concepção de comunidade se forma comunidade como segurança, uma variante do gueto, que alia confinamento espacial com fechamento social. Um gueto de onde se pode sair e cujo objetivo é impedir a entrada de intrusos. A vida no gueto (não voluntária) não sedimenta a comunidade. Compartilhar estigma e humilhação pública Notas técnicas 3/5
4 não faz irmãos os sofredores, que provavelmente não desenvolverão respeito mútuo (p. 110). Muitas culturas, uma humanidade? Construir o Estado moderno consistiu em substituir a velhas lealdades à paróquia, à vizinhança ou à corporação dos artesãos por novas lealdades, ao estilo do cidadão para com a totalidade abstrata e distante da nação e das leis da terra. As novas lealdade... tinham de ser cuidadosamente planejadas e meticulosamente instiladas num processo de educação organizada de massa. (p. 114). Não é mais esse o caso nesse tempo de desengajamento. Em nenhum caso o antiquado engajamento é mais necessário. O panóptico dá lugar à autovigilância e automonitoramento por parte dos dominados. O que sobra é a manipulação indireta e oblíqua através da sedução; uma administração à distância. A regulamentação normativa foi substituída pelos poderes sedutores do excesso. Os enxames não precisam de sargentos; encontram seu caminho sem a colaboração do estado-maior. O manejo dos seres humanos está sendo substituído pelo manejo das coisas. Espera-se que os homens sigam as coisas e ajustem suas ações a essa lógica. Nenhuma ordem é dada, não se ouvem apelos à disciplina. A sanção para a conduta imprópria é o prejuízo auto-infligido, atribuído à ignorância do interesse individual e não do bem de todos. O enxame pode mover-se sem que tenha a mais vaga ideia do que signfica o bem comum (p. 115). O destino das normas foi selado com o nascimento da sociedade e da mentalidade de consumo, aproximadamente no último quartel do século XIX, quando a teoria do valor trabalho foi confrontada com a teoria da utilidade marginal, quando se disse que o que dá valor às coisas não é o suor necessário à sua produção mas um desejo em busca de satisfação. Numa sociedade de produtores o excesso equivalia ao desperdício. O excesso, esse inimigo da norma, se tornou a própria norma. Se a sequência dos passos não está predeterminada por uma norma... só a experimentação contínua poderá sustentar a esperança de vir a encontrar o alvo... O excesso se torna preceito da razão... numa vida de experimentação, excesso e desperdício são tudo, menos inúteis são de fato as condições indispensáveis da busca racional dos fins (p. 119). Cada descoberta pode beneficiar todos os exploradores, qualquer que tenha sido o caminho tomado. Isso não quer dizer que todas as descobertas tenham o mesmo valor; mas seu verdadeiro valor só poderá ser estabelecido através de um longo diálogo, em que todas as vozes poderão ser ouvidas e comparações poderão ser feitas (p. 122). O reconhecimento da variedade cultural é o começo e não o fim da questão. A universalidade da cidadania é a condição preliminar de qualquer política de reconhecimento significativa (p. 126). A universalidade da humanidade não se opõe ao pluralismo das formas de vida humana; mas o teste de Notas técnicas 4/5
5 uma verdadeira humanidade universal é sua capacidade de viabilizar e encorajar a discussão contínua sobre as condições compartilhadas do bem. Tal teste só pode se realizar em condições da vida republicana. As fontes da sensação de insegurança estão imbricadas na crescente condição de individualidade de jure e a tarefa de obter a individualidade de facto. A construção de comunidades cercadas nada faz para diminuir essa distância (p. 128). Todos precisamos ganhar controle sobre as condições sob as quais enfrentamos os desafios da vida... Na realização de tais tarefas a comunidade nos faz falta. Aqui reside a chance de que a comunidade venha a se realizar uma comunidade de interesses e responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos (p. 134). Notas técnicas 5/5
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