A imprensa e os hackers. Agostinho Rosa

Transcrição

1 A imprensa e os hackers Agostinho Rosa

2 A imprensa e os hackers. Agostinho Rosa da Silva Todos os direitos reservados. Trabalho depositado na Biblioteca Nacional. Versão /01/2.001 A versão mais recente deste documento pode ser obtida no site Citação bibliográfica: Silva, Agostinho Rosa. A imprensa e os hackers. [on-line] 12/02/ Disponível em Capturado em / /. -2-

3 Nem sempre a imprensa informa bem: às vezes ela erra, como se erra em qualquer atividade profissional. Às vezes por incompetência e algumas vezes por algum tipo de interesse. Mas há um tipo de erro adicional, bastante comum, e sobre o qual é mais fácil atuar: a imprensa erra porque o repórter não conhece adequadamente o assunto sobre o qual está falando ou escrevendo e não faz um trabalho de pesquisa apropriado. Nestes casos, cabe à comunidade envolvida e especializada no assunto em questão fazer contato com o meio de comunicação e dar as explicações necessárias a que o erro seja sanado. Esse processo é educativo, salutar, e deve ser desempenhado por todos quantos detenham algum conhecimento e prezam a educação alheia (do público, principalmente) como forma de se atingir um mundo melhor. Essa atuação às vezes deve ser imediata, antes que o erro se difunda tanto que ganhe força de verdade. Essa difusão do erro está acontecendo no caso dos peritos em computadores. Na passagem do ano de para 2.000, um sem número de repórteres deu cobertura ao esperado erro do milênio. Esse contato generalizado e bastante duradouro com a comunidade de informática, porém, parece não ter acrescido muito do assunto à cultura dos profissionais da imprensa. Não cabe afirmar que esse foi um evento isolado e já esquecido e que, portanto, os repórteres continuam a não ser especialistas na área de informática, como não o são em neurologia ou em tectônica de placas. A área de informática já permeia praticamente todas as atividades profissionais; além disso, a própria imprensa gosta bastante das novidades do setor, e lhe dão ampla e continuada cobertura. -3-

4 Esse convivência, porém, não tem sido suficiente para evitar uma grande injustiça com uma parte significativa e importante dos profissionais que lidam com computadores: no final de 2.000, o apresentador de um dos principais telejornais do país presenteou seu público com a seguinte frase: Hackers são aqueles piratas de computadores, que invadem principalmente sites da Internet. Há erros grosseiros na afirmativa. E não foi uma infelicidade ou uma atitude isolada. A grande maioria da imprensa, escrita e falada, comete os mesmos erros. O primeiro erro é a utilização do termo hacker. Isto vem na esteira de um modismo já bastante difundido de se usar palavras estrangeiras sem necessidade. Neste caso, o termo possui tradução, que deveria ser usada. O termo inglês hacker deve ser traduzido pelo português micreiro. O segundo erro é dizer que os micreiros são piratas. Micreiros são pessoas apaixonadas pela tecnologia dos computadores, que dedicam-se a aprender seu funcionamento, na maior parte das vezes através de auto-aprendizado, tanto ao nível do equipamento propriamente dito quanto ao nível dos programas que neles funcionam. O termo micreiro não tem autoria registrada mas, com certeza, foi cunhado em razão da disseminação, a partir do início dos anos 1.980, dos computadores pessoais ou microcomputadores. Por -4-

5 seu baixo custo, o microcomputador permitiu que pessoas fora do ambiente universitário tivessem acesso a um equipamento até então custando algumas centenas de milhares de dólares. Antes do advento dos microcomputadores, ou computadores pessoais, os micreiros gostavam de se auto-denominar programadores de verdade. Conheciam de cor cada instrução de cada processador. E faziam programas diretamente na linguagem da máquina. Programadores de verdade eram raros e se restringiam basicamente a ambientes de Universidades, que eram capazes de arcar com os custos dos equipamentos. A queda dos preços dos equipamentos e sua conseqüente difusão permitiu a proliferação desses programadores. Micreiros são programadores de verdade; e a maioria dos programadores de verdade hoje são micreiros. Um dos maiores prazeres de um micreiro é auxiliar outras pessoas a resolver problemas em seus computadores. É fácil identificar um micreiro (ou um futuro micreiro): qual empresa ou escritório não possui aquela pessoa que é sempre chamada quando o computador trava? Poucos se autodenominam micreiros; mas todos à sua volta o reconhecem como sendo um. O gosto pelo aprendizado, por repassar o que aprenderam e por discutir os assuntos que os interessam, cedo levou os micreiros a formar comunidades. Em pouco tempo, os computadores isolados já não atendiam à sede de mais saber: começou a interligação em rede. Quando as empresas utilizavam seus XT apenas para emissão de notas fiscais e para edição de cartas no Wordstar, os micreiros já trocavam mensagens entre os computadores; segundo um jornal de meados dos anos 1.980, utilizando um aparelhinho que é ligado entre o computador e o telefone (sic). -5-

6 Os micreiros criaram a USENET, a primeira rede mundial de trocas de mensagens. Milhares de micreiros de todo o mundo criaram os BBS ( Bulletin Board System : sistemas eletrônicos de mensagens). A maior parte desses BBS funcionava em garagens ou nos fundos de apartamentos, em um único equipamento, totalmente custeado pelo micreiro. Em determinadas horas do dia (mas principalmente da noite), ele era encarregado de fazer a difusão das mensagens de seus usuários, repassando-as para o próximo nó da rede. As mensagens iam de nó em nó até atingir o destino. Dependendo do destino, uma mensagem eletrônica levava 2 ou até 3 dias para alcançar o BBS do destinatário. Isso era uma revolução. Imagine, receber o texto de uma revista do exterior em dois dias! Muitas vezes eram revistas das quais nem se sabia da existência. As assinaturas eram caríssimas e demoravam muito mais. Os grupos de discussão foram ainda mais marcantes. Poder conversar com pessoas as quais não se poderia conhecer de outra forma; trocar idéias sobre programação, sobre comandos não documentados, com pessoas do mundo todo! Isso sem sair de casa e com apenas uma ligação telefônica local. No início de minha experiência com BBS, participei de grupos de discussão onde um sujeito que se identificava como P.Norton dava dicas incríveis! Só bem mais tarde fui conhecê-lo na capa de seus livros (era Peter Norton, autor de inúmeros livros sobre computadores). Nesse tempo esse conhecimento não estava ainda difundido pelo grande público. A maioria das pessoas que hoje navega pela Internet começou a fazê-lo com o lançamento do Sistema Operacional Windows 95. Estou me referindo a um período pelo menos 10 anos antes. -6-

7 A troca de informações fez o progresso tecnológico crescer exponencialmente. Mais e mais micreiros se juntavam às comunidades. Os programadores de verdade então criaram a Internet. Programadores que se transformaram em micreiros que trabalhavam em laboratórios, mas também micreiros que trabalhavam em casa, que faziam programas que melhoravam dia-a-dia as comunicações. Micreiros que substituíram seus BBS por servidores FTP. Que depois lançaram sites GOPHER. Que criaram o servidor Apache. Que depois lançaram sites www. Aí sim, a coisa atingiu um nível de qualidade que pode atingir a população em geral. Hoje parece fácil navegar pela Internet. E é. Mas a Internet continua funcionando sobre várias camadas de programas, cada uma delas feita por micreiros diferentes; pessoas que falam idiomas diferentes, que vivem em climas diferentes, em situações diferentes. Mas todos micreiros. E a coisa toda funciona. A Internet é a babel que deu certo. Conseguiu-se construir uma estrutura descentralizada, democrática, à qual todos podem se conectar. O que pode haver de mais simples e elegante, mas ao mesmo tempo mais poderoso, do que a estrutura DNS de endereços da Internet? Do Brasil se consegue chegar a um site do Japão sem que exista uma lista de endereços ; essa lista não existe num lugar: ela está em todos os lugares ao mesmo tempo. Isso é criação típica de um micreiro: se alguém quiser dominar o mundo via Internet vai ter um trabalhão danado para centralizar tudo. E provavelmente não vai conseguir. Para os usuários comuns, tudo parece fácil. Mas quantos usuários sabem o que acontece numa conexão TCP/IP? Ou que sabem configurar um DNS? Os micreiros sabem e fazem isso o tempo todo; apenas para facilitar a vida dos usuários comuns e as suas próprias. E fazem programas para facilitar a -7-

8 vida desses usuários comuns e os distribuem de graça; afinal, se eu sei, preciso contar aos outros : esse é o lema dos micreiros. Isso é que possibilitou a entrada de pessoas não especializadas na Internet. E eles continuam trabalhando para que as pessoas comuns possam usufruir da tecnologia sem precisar entender como ela funciona. Um meio de comunicação respeitado aparece então e diz que os micreiros são piratas. Micreiros são pessoas que estudam, que aprendem, que constroem e que ensinam aos outros o que aprenderam; e que dividem com os outros o que construíram. E os piratas? Piratas são piratas mesmo: são pessoas destrutivas, que não conseguem dar uma contribuição e, então, se dedicam a destruir o que os outros fizeram. Em inglês, o termo para pirata é cracker, um destruidor. Em português, o termo pirata traduz melhor o conceito, principalmente por já ser bastante difundido como representando uma pessoa que rouba programas de computador. Micreiros não são piratas, assim como guardas não são assassinos por portarem armas. Ambos possuem o mesmo equipamento: cada um deles, guardas e assassinos, usam esse equipamento conforme seus propósitos, diametralmente opostos. Micreiros e piratas também possuem o mesmo arsenal. Conhecem bem a tecnologia que faz a informática. E é por isso mesmo que todos os micreiros acreditam piamente na necessidade de total difusão do conhecimento. O conhecimento não pode estar na mente de poucos, já que alguns desses poucos podem resolver fazer mal uso dele. Quanto mais educado for o público, menor a chance de que -8-

9 os piratas tenham sucesso em seus crimes. Se não concordassem com a essência dessa postura, provavelmente os jornalistas parariam imediatamente de noticiar crimes e falcatruas: afinal, se mais alguém ficar sabendo, poderá querer fazer também. Voltemos à afirmativa do nosso ingênuo repórter. Piratas não se dedicam principalmente a invadir sites da Internet. Pelos menos não no sentido dado na reportagem, de colocação de mensagens ofensivas em substituição às páginas do site. O motor tanto de micreiros quanto de piratas é a busca de informação. A diferença entre os dois grupos está no uso que cada um faz dessa informação. A maior parte das ações dos piratas, portanto, está na busca de informações que possam lhes render algo, principalmente em termos financeiros. Há piratas que roubam números de cartões de crédito, outros roubam informações pessoais para venda, outros fazem espionagem industrial ou comercial. Ninguém deve se iludir: há mercado para todas essas informações. Dentre esses mercados-negros, um dos mais vibrantes é o de informações pessoais. Arquivos com milhares de nomes são encontrados todos os dias nos classificados dos jornais. Você não imagina que alguém conheça todas as pessoas daquela lista e ficou digitando tudo aquilo, não é mesmo? E não é difícil obter bem mais do que o endereço eletrônico em computadores invadidos. Por exemplo: a maioria dos usuários usa o sistema operacional Windows. Esse sistema possui um arquivo de troca de dados, para simular a existência de mais memória do que o sistema realmente possui; esse mecanismo é bastante eficiente e otimiza o uso dos recursos disponíveis. Ocorre que quase tudo o que o usuário faz no micro fica de alguma maneira registrada nesse arquivo. Como ele é um arquivo bastante grande, cabem muitas informações lá. Uma análise cuidadosa dele revela muitas coisas interessantes, -9-

10 como lugares mais visitados na Internet, mensagens, textos digitados e até senhas. E o usuário nem fica sabendo que teve seu micro invadido. Há sites especializados em divulgar números de série de programas comerciais. Outros em divulgar senhas de sites pagos. Enfim, mentes perversas sempre encontram o crime que lhes corrompe. Vários micreiros dedicam-se a encontrar furos em programa, comerciais ou não. E, quando encontram, divulgam-nos o mais rapidamente possível. Desta forma alertados, os usuários podem se precaver. Caso o furo não seja divulgado, um pirata, que também detém conhecimentos semelhantes aos do micreiro, poderá descobrí-lo e prejudicar um sem número de usuários incautos. A maior preocupação dos micreiros está justamente nos programas de conexão, que podem deixar desprotegidos os micros dos usuários. Cabe à imprensa dar o devido crédito e tratar com o respeito merecido profissionais de tal forma abnegados. Os micreiros são, em sua grande maioria, anjos da guarda dos usuários: estão sempre envolvidos em conseguir e divulgar informações que facilitem a vida e protejam a privacidade deles. Isso não quer dizer que os micreiros queiram fama. Nenhum deles está procurando reconhecimento público. Mas daí a serem chamados de bandidos, há uma grande diferença. E não há como dizer uma coisa aos leigos, pela imprensa, e outra aos micreiros, desculpando-se que é difícil explicar coisas técnicas em tempo curto ou espaço limitado. Os micreiros não estão em um lugar determinado, ou unidos numa seita centralizada. Os micreiros estão em toda parte, em todas as empresas, em casa, nas universidades. A imensa maioria é anônima e assim quer continuar. A -10-

11 humanidade ainda não havia produzido forma mais efetiva e democrática de vigília. Se não é possível render-lhes homenagens, reservemos a todos um pouco de respeito. E aos piratas, a lei. -11-