Pulsão de Vida e Pulsão de Morte

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1 Pulsão de Vida e Pulsão de Morte Congresso Brasileiro de Psicanálise o terrível e a morte são os lugares obrigatórios do humano. Nicole Loraux Suad Haddad de Andrade O tema proposto para esta mesa, Pulsão de Vida e Pulsão de Morte envolve uma dualidade, o que para nos, psicanalistas, é uma constante. Desde o início Freud se defrontou com a tarefa de lidar com dualismos: instinto de auto-preservação e instinto sexual, consciente e inconsciente, processo primário e processo secundário, princípio do prazer e princípio da realidade, instinto de vida e instinto de morte, objeto bom e objeto mau etc. Mas este tema, pulsão de vida e pulsão de morte, de todas as dualidades, me parece a mais polêmica. Até hoje não há unanimidade quanto à aceitação da pulsão de morte. E evidentemente não cabe a uma mesa como esta entrar na polêmica. Prefiro ficar com a Hanna Segal que diz: aceitar a dualidade pulsional é extremamente útil no trabalho clínico onde nos defrontamos permanentemente com embates, com conflitos. A existência de duas forças antagônicas no psiquismo é inquestionável: uma que tende à construção e outra à destruição, uma que congrega e outra que é desagregadora. Mas a questão que ainda fica é: destruímos para sobreviver ou destruímos por destruir? É interessante como aceitamos facilmente a existência e a importância da agressividade. Quando falamos de agressividade falamos de energia, de combatitividade, de disposição ativa e empreendedora, de defesa, de auto-proteção. A agressividade está, para muitos autores, ligada à pulsão de vida. Já a existência da uma 1

2 destrutividade interna, não seria suficiente ou não bastaria para provar a existência da pulsão de morte - a tendência a destruir não seria natural, mas apareceria, ou passaria a existir à partir das frustrações provocadas pelas falhas ambientais. Para Antonino Ferro pulsão de morte ou instinto de morte poderia ser apenas resultado de inadequações reais da capacidade de nossa espécie de transformar informações sensoriais. Alguns autores que não concordam com a existência de um instinto de morte dizem que na verdade o que existe é sempre um empenho em dar forma ao que não tem forma, é encontrar representatividade ao que está sem representação, é preencher o vazio intolerável. Matte Blanco, por sua vez, vê no conceito de pulsão de morte de Freud, a presença da interação entre os modos consciente e inconsciente de pensar, o que amplia, em muito, nossas possibilidades de pesquisa. Se aceitamos que a destrutividade está à serviço da vida então estamos descartando a existência da pulsão de morte como tal. Em 1967 o saudoso Armando Ferrari, num artigo da RBP mostra como alguns tipos de reações patológicas provam que o I. M. existe e existe para destruir mesmo. Mas a maioria dos autores fica no aspecto intermediário que vê a pulsão de morte como pulsão mobilizadora da vida. As defesas, por ex., existem para nos proteger da atuação da destrutividade interna e representam então uma força de vida. Penso que ambas vêm juntas, formam uma unidade e interagem no psiquismo, como consciente-inconsciente, e são responsáveis pela atividade mental. Mas se não temos como provar a existência do instinto de morte, temos que nos contentar com a proposta freudiana de que os instintos são figuras míticas: os instintos são seres míticos soberbos e indefinidos. 2

3 O que é evidente é que vivemos conflitos todo tempo; até para estarmos, aqui, agora, cada um de nós enfrentou o conflito da escolha e da perda, que sempre ocorre quando escolhemos. Como psicanalistas sabemos que o que importa não é corrermos em busca das soluções dos conflitos mas sempre na identificação dos conflitos. Não negar o conflito, admitir sua existência e torná-la clara para o paciente, é nossa tarefa. A filósofa Suzanne Langer faz, muitas vezes em seus escritos, a distinção entre homens e animais. A colocação básica é de que os homens se diferenciam dos animais porque constroem símbolos: o pensar acerca das coisas, a linguagem, a imaginação, a especulação são os principais produtos da mente humana. Mas é o conhecimento antecipado da morte a diferença fundamental; só o ser humano sabe que vai morrer. Só o ser humano é capaz de se observar, se conhecer, enfim, se pensar e pensar sobre tudo que o rodeia. E sabe que a morte é seu destino. Sabemos da morte porque a vemos acontecer ao nosso redor? Aprendemos sobre ela por observações? Não, sabemos da morte porque a conhecemos internamente, nas múltiplas e constantes mortes que vivemos dentro de nós, nós que temos a capacidade de pensar, de desejar, que vivemos para nos auto-afirmar, buscando a felicidade. Os animais vivem para dar continuidade à espécie, nós vivemos para dar continuidade a nossa própria existência, para nos auto-realizarmos. Costumamos dizer, então, que estamos condenados à morte. Mas também estamos condenados à vida. Desde que somos concebidos, estamos, digamos assim, condenados a viver, a lutar pela vida. E também condenados a nos desenvolver, a criar e a fazer liames que nos garantem 3

4 o envolvimento com a humanidade, com os outros homens. Suzanne Langer fala ainda que é no protocolo, no ritual, na investidura de autoridades, em sansões e honras onde se situa nossa segurança contra a perda de envolvimento com a Humanidade; e estas ligações, estes vínculos vão garantir nossa liberdade e nossa individualidade. Como psicanalistas, penso, podemos ir mais longe, ou mais fundo: não é o liame com a humanidade, não é no social que nos definimos humanos. Na verdade teríamos antes que definir quando se inicia a socialização; para muitos autores é a vivência edípica que inaugura o processo socializador em cada um, quando desistimos da fusão com o genitor e partimos para a aceitação do casal parental do qual estamos excluídos; buscamos então ao nosso redor (irmãos, avós, baba) com quem partilhar nossas vivências. Mas eu penso que antes mesmo desta socialização, desde o nascimento, quando tomamos conhecimento da existência de outra mente, nos definimos humanos. As duas mães, a que atende e a que frustra existem desde sempre; a existência da mãe já nos assinala a existência de outra mente, com outros desejos, e outras reações. É este envolvimento com o outro, com outra mente, que me define humano, que me dá a clara noção de minha existência, de meus limites e de minhas necessidades. E começamos muito cedo a luta pela sobrevivência. É a persistência desta energia de luta que nos manterá vivos. Antonio Medina Rodrigues, no seu livro sobre as utopias gregas fala que o ideal não é aquilo que nós queremos mas aquilo que nos faz querer alguma coisa; e a persistência da energia do querer é que nos mantém vivos. A ameaça de morte nos faz querer viver! E não só: se o estar satisfeito é o mais importante, nosso destino está comprometido com a estagnação, com a banalidade. São as insatisfações e ameaças que nos mantém permanentemente ativos e 4

5 criativos. Então o que nos mobiliza a viver e a explorar ao máximo nossos recursos são os perigos que a pulsão de morte trás já que a estagnação é a morte da vontade e a banalização é também uma destruição dos nossos reais valores. Pessoalmente não vejo como pensar a pulsão de vida sem incluirmos a pulsão de morte. E eu lembro aqui o trabalho do Gari, Negatividade e positividade, quando ele mostra que até os aspectos disruptivos podem ser vistos como positivos, na medida que expressam um esforço vital para salvar vínculos, para preservar o existir psíquico. Quando Freud falou ao mundo da existência do irracional as reações foram muito fortes. Parecia que ele estava atacando o ser humano e não como vemos hoje que o grande ataque é a negação do inconsciente; e eu penso o mesmo quanto à violência interna, que é do ser humano. Negar a destrutividade interna é nos rebelarmos contra nossa humanidade, que inclui amor e ódio. Freud não se deteve no biológico; ele ficou no psicológico quando falou de Vida e Morte. Klein fala de Amor e Ódio, de sentimentos, portanto. Não precisamos do biológico para sabermos da morte; ela é uma experiência interna comum: quando desanimados sabemos que está morrendo o ânimo; quando desamparados matamos a esperança, a alegria, a confiança em nossos próprios recursos. Quando cheios de ódio sabemos que estamos matando ou está morto o afeto, o querer bem. Estamos todo tempo lutando contra a morte dos bons sentimentos, contra a morte de nossos projetos, contra a morte da esperança e contra a estagnação do pensar. Então o que estou afirmando é, como diz Laplanche, pulsão de morte é pulsão da própria morte, ataca internamente quando são atacados os objetos internos e os recursos do ego. É sempre 5

6 destrutividade contra o self, mas que pode ser projetada para fora. Não temos idéia da morte, temos a vivência da morte quando nossos recursos internos são aniquilados; o medo adulto da morte também está ligado a este medo interno de aniquilamento do psíquico. Comentando um trabalho do Eduard Elias, intelectual palestino que escreveu um texto sobre Moisés e o monoteismo, do Freud, a inglesa Jacqueline Rose diz assim: Não há agremiação social sem violência; as pessoas se unem de forma efetiva pelo que concordam em odiar. O que amarra as pessoas umas às outras e ao seu Deus, é que estas pessoas o mataram. Ela comenta então que é aceita de modo geral a tese de que a violência está presente sempre na origem dos grupos humanos. Se as pessoas se unem de forma efetiva pelo que concordam em odiar, é preciso estarmos atentos ao fato de que elas se unem para poder sobreviver, por amor à vida. Ela, a Jacqueline Rose, acentua a violência mas a vontade de viver é o móvel mais importante. Portanto Amor e Ódio sempre juntos, sempre presentes. A questão da dualidade, ou da conciliação entre tendências opostas é básica no ser humano e comparece magnificamente na tragédia grega. E somos trágicos, como diz a Rachel Gazolla, enquanto somos lugar de conflito.o que é universal no homem é este aspecto trágico de uma luta permanente entre vida e morte. A condição trágica consiste em termos que viver com esta dualidade; este é nosso aspecto vulnerável que não é para ser eliminado mas para ser explorado. Para os gregos como para nós e para todo o ser humano em qualquer época a conclusão é: trágico é termos que conservar o que não pode ser perdido ou trágico é a queda na realidade, é a perda das ilusões e o termos que viver com nossas limitações. 6

7 Só que, a meu ver, e aqui eu repito a Hanna Segall, o que mais nos angustia é a sensação de aniquilamento, é o medo da morte, que existe desde sempre. Assim como existe desde sempre o desejo de matar. Freud fala de nosso desejo e do medo - de matar e de ser morto. O que é o Édipo senão isto! Atualmente o que os autores, filósofos e psicólogos, apontam insistentemente é a existência clara na nossa cultura ou na sociedade atual das posturas que chamam de indiferença e desinteresse. O que mais chama atenção é o desinteresse em buscar o significado dos acontecimentos, internos ou externos, o que é uma maneira de escapar da vivência dos próprios sentimentos; as pessoas agem muito e pensam pouco. Quando pensamos corremos sempre o risco de sentir os sentimentos, sentir amor ou ódio. Nos incidentes da escola pública na zona leste de S. Paulo, quando os alunos depredaram a escola e agrediram os professores, no acontecimento de Londrina, em que os estudantes de medicina depredaram o hospital e agrediram os pacientes, no cruzeiro para universitários entre Santos e o Rio quando uma jovem morreu por excesso de bebidas, podemos encontrar algo em comum: em qualquer das situações os jovens eram jovens ajustados e aparentemente festejavam suas conquistas. Aparentemente estavam bem adaptados. Mas ficamos em dúvida agora quanto à adaptação e o sentimento de conquista. Ou melhor, sem que eles mesmos se dessem conta, não estariam eles expressando que se sentem divididos, confusos e insatisfeitos? Se eles mudam de maneira tão significativa quando algo muda no contexto geral em que vivem, isto significa o que? Nossa sociedade está oferecendo aos 7

8 jovens mensagens contraditórias e extremamente falsas e por isto estarem ocorrendo estas explosões tão inesperadas e surpreendentes? Ou este é um tipo de defesas que não estamos ainda compreendendo bem? Alguns observadores vêem, nestes episódios, muito apelo ao prazer e muita facilitação. Como psicanalistas podemos ver mais. A destrutividade que está comparecendo agora, nestas situações descritas é sintomática, conseqüência de algo que ocorreu antes, com muita intensidade. Eu me arrisco a afirmar: não houve ódio ao que lhes foi oferecido até agora, e também não houve amor. Parece que apenas vivem as situações como lhes são propostas sem qualquer avaliação de se são boas ou más. Não puderam dar valor, não puderam amar o que recebiam e também não odiaram. Pior que isto, tudo foi vivido com indiferença e, portanto, destituído de significação. A indiferença destrói a dimensão ética e sem a conotação ética perdemos de nossa essência. Quando vivemos com intensidade nossos sentimentos de amor e ódio estamos certamente atribuindo significado às nossas ações e às dos outros; estaremos refletindo, pensando o que é melhor, mais justo etc. Parece que o que aprenderam ou vivenciaram não foi preservado como algo bom, importante, e sim como algo comum, corriqueiro, sem valor, tão pouco importante quanto qualquer outra gratificação do momento. Foi muito antes, lá atrás, que amor e ódio não foram vividos e daí os bons sentimentos, como gratidão e admiração não estarem existindo. Como também a capacidade de odiar não está clara: a quem eles atacam? O que reivindicam? O objeto atacado é anônimo, despersonalizado, e muda com facilidade. E não está diretamente relacionado com seus desejos ou seus objetivos; são ataques alheatórios. O que estes jovens estão mostrando em diferentes situações e contextos é: indiferença e indiscriminação. E 8

9 este tipo de postura nos remete imediatamente à idéia de autismo. Somos levados a pensar em componentes autistas, muito peculiares, e que se apresentam com uma roupagem diferente, com esta marca de atuação não pensada e não vinculada. O ataque aos vínculos é o grande problema já que são os vínculos que limitam, criam parâmetros e nos definem. Estes jovens vivem angustiados e não se dão conta disto; o ruim, o ameaçador, o desesperador é a escola, o hospital, a tarefa a ser cumprida; feita a projeção, eles atacam o ambiente, depositário de suas angustias. Este vértice leva a uma constatação: estes acontecimentos estão expressando o temor, nestes jovens, de uma invasão psicótica. Ou dito de outra maneira, não seria a parte psicótica da personalidade, encoberta e contida até agora, que estaria emergindo de sua cápsula protetora? E não seria este um pedido desesperado de contensão ou de significação? Foi o passado que os fez assim? È muito comum se fazer uma revisão minuciosa do passado para entender as condutas atuais, seja dos pacientes, ou de situações, como estas descritas. Não é o passado pontual que pode explicar qualquer coisa mas o que é feito dele, como o passado foi vivido, o que ficou dele, e o que foi transformado. Em psicanálise sabemos bem que não somos vítimas das personagens do passado mas de nós mesmos, de nossa bagagem interna, de nossos recursos ou da ausência deles. É o relacionamento com nossas pulsões, através do relacionamento com o outro, que nos faz únicos; nas nossas primeiras relações são nossas vivências em sentimentos que nos definirão para sempre. A única coisa que fica evidente nestas situações é o ataque à vida, à potência de vida como diz o Nietzsche. Nascemos com uma potência de 9

10 vida da qual não nos libertaremos nunca. A vontade de vida ou de viver nos é inerente e cobra de nos renovação permanente. Então é a vida que nos dá trabalho, que não nos permite repouso. Quando estes jovens destroem o que está organizado é porque estão, sem perceber, denunciando a ausência de vida, de vigor, de confiança em valores significativos e a presença do falso e do contraditório. Nossa sociedade parece não estar oferecendo continência ou um bom suporte para estes conflitos que são de cada um e de todos. Mas não é só, se está ocorrendo uma denúncia está também evidente a existência de uma fantasia infantil de busca do paraíso, onde se tem tudo de bom, de maneira fácil, confortável, sem conflitos, desconfortos ou insatisfações. Como mostra Ponde: vivemos numa sociedade maníaca pela construção social do paraíso. E este é o outro aspecto da pulsão de morte: a idéia de tranqüilidade tem a ver como a volta ao inanimado, primeira colocação de Freud para a pulsão de morte. A idéia de Paraíso inclui autonomia narcísica e negação da necessidade do outro. Vemos muito isto na clínica; é comum o paciente se considerar, ou ser considerado pelos outros como uma pessoas fraca porque faz análise. Eu costumo propor examinarmos esta idéia: é fraco quem admite ter problemas, quem admite precisar de ajuda e vai buscá-la? Quem reconhece limites e os aceita? Ou é fraco quem não pode admitir isto e precisa sempre se provar auto-suficiente? Quem está mais desamparado? O que nossos pacientes vão descobrir na análise é que eles não são o que descobrem ali conosco: ao se descobrirem eles deixam de ser quem são e passam a ser eles + a descoberta, eles + a aquisição feita sobre si mesmos, são eles enriquecidos com a nova percepção. E este tipo de enriquecimento encanta alguns e assusta outros. 10

11 Outro aspecto que quero mencionar e que expressa a presença da pulsão de morte dentro de nós são as depressões. De onde vem esta depressão que assola nossa sociedade e lota os consultórios psiquiátricos? Sentimento de culpa, claro! Mas qual a culpa? Um bom exemplo: estamos nos responsabilizando muito rápida e facilmente pela deteriorização do Planeta Terra o que mostra que acreditamos muito facilmente no nosso poder de fazer estragos e também no nosso poder de controlar o universo. Tanto em um extremo, quando nos sentimos extremamente destrutivos, como no outro, em que acreditamos ser totalmente responsáveis e salvadores, é nossa onipotência atuando. A depressão nada mais é do que o resultado da culpa terrível que sentimos onipotentemente e desde sempre: o desejo de eliminar o outro, frustrador, me faz acreditar ser um criminoso e vivo perseguido por isto, por uma culpa tão onipotente quanto a da arrogância de ser Deus e chegar ao paraíso. Numa sociedade onde a reflexão é desprezada e o que importa é termos o remédio rápido para o mal estar presente, a psicanálise é compreensivelmente dispensável, como o pensar é dispensável, o conhecer quem eu sou é dispensável. Importante é a gratificação imediata. O que importa é eu me sentir feliz já, poderoso, auto-suficiente sem qualquer desconforto interno. Nunca a verdadeira condição humana foi tão rejeitada, desprezada mesmo. Esta é a questão mortífera básica quando negamos nossos limites e também queremos negar ou eliminar o que é o núcleo da condição humana: a existência permanente do conflito entre Vida e Morte. FIM 11