AS LEIS AMBIENTAIS E O OBSTÁCULO DA CULTURA PREDOMINANTE: UM ENFOQUE SOBRE A INOPERÂNCIA DA POLÍTICA PÚBLICA DA COBRANÇA DO USO DA ÁGUA.
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- Bárbara Fagundes Marques
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1 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun AS LEIS AMBIENTAIS E O OBSTÁCULO DA CULTURA PREDOMINANTE: UM ENFOQUE SOBRE A INOPERÂNCIA DA POLÍTICA PÚBLICA DA COBRANÇA DO USO DA ÁGUA. The Environmental Norms and the Obstacle of the Predominant Culture: An Approach on the Innoperancy of the Public Policies on the Charging of the Use of Water. Gislaine Rocha Simões da Silva 208 RESUMO Este trabalho objetivou analisar os obstáculos que a falta de uma transformação cultural dentro da sociedade civil, e dos próprios governantes representa para que efetivamente as leis ambientais, em especial a Lei Nacional de Políticas Públicas de Recursos Hídricos (PNRH) alcance os objetivos para os quais foram criados. Enfoca a existência de regulamentações da política pública que instituiu o va- 208
2 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun lor econômico à água como forma de contenção, conscientização e sustentabilidade com efeito prático tímido, diante da ausência de implementações em todos os Estados federados, sucumbidos pela inércia interessada em manter a disseminação da cultura capitalista da acumulação, concebido no pensamento essencialmente antropológico e imediatista para sustentar uma falsa noção de qualidade de vida, cujo custo é a degradação da natureza. Demonstra a clara evolução do pensamento na questão ambiental trazida pelos símbolos disseminados pelo discurso a partir da ECO 92, mas contrapõe com a insuficiência de absorção pelos atores sociais da gravidade da situação, principalmente quando envolve as gerações futuras que o artigo 225 da Constituição Federal também pretende proteger. ABSTRACT This work had the objective to analyze the obstacles that the lack of a cultural transformation inside of the civil society, and the proper governors represent so that the environmental norms, in special the National Law of Public Policies of Hydric Resources (PNRH) reach the objectives for which they had been created. It focuses on the existence of regulations of the public policy that instituted the economic value to the water as a way of containment, awareness and sustainability with shy practical effect, in face of the absence of implementations in all the Federative States, lost for the inertia interested
3 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun in keeping the dissemination of the capitalist culture of accumulation, conceived in the essentially anthropologic and immediate thought to support a false notion of quality of life whose cost is the degradation of nature. It shows the clear evolution of the thought in the environmental question brought by the symbols spread for the speech from ECO 92, but it opposes down the insufficience of absorption for the social actors of gravity of the situation, mainly when it involves the future generations that the art. 225 of the Federal Constitution also intends to protect. PALAVRAS-CHAVE: leis ambientais; política nacional de recursos hídricos; água; valor econômico da água; cultura. KEY-WORDS: Environmental norms; national policy of Hydric Resources; water; economic value of the water; culture. 1 INTRODUÇÃO
4 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun O discurso ambiental que vem sendo propalado desde a ECO 92, ensejou a criação de diversas legislações que orientam, punem, previnem e regulam o uso dos recursos naturais. Os dispositivos legais são tidos como conquista, resultado de debates, críticas, movimentos. Há uma extensa regulamentação federal, estadual e municipal a respeito, resultados de incansáveis pesquisas interdisciplinares que buscam alcançar o desenvolvimento sustentável. A implementação de políticas públicas que envolvam, não somente as ações estatais, mas toda a coletividade surgiu como um arcabouço de soluções que preservariam o meio às gerações e atenderiam o artigo 225 da Constituição Federal de Entre as legislações federais ambientais foi publicada em 09 de janeiro de 1997 a Lei que regula as Políticas Nacionais de Recursos Hídricos, criando institutos inéditos com intuito de proporcionar medidas que conciliassem desenvolvimento econômico com equilíbrio ecológico. Considerando as variáveis que as águas representam dentro do contexto social e econômico, a escassez da água foi o ponto crucial para a elaboração destes institutos. Contudo, mesmo diante das medidas previstas na legislação, as mudanças nas ações humanas é que ainda não são perceptíveis. A existência de políticas públicas que envolvam a sociedade sequer são amplamente difundidas e praticamente desconhecidas por grande parcela dos
5 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun indivíduos. A transformação social é tímida e necessita uma mudança cultural para atingir os fins que o discurso da lei almeja. O presente trabalho, sem a pretensão de esgotar o assunto, pretende abordar o obstáculo que a falta de mudança cultural representa para a efetiva transformação social, que impede ou dificulta que atinjam seus fins, as políticas públicas de recursos hídricos, criadas pela Lei 9.433/97, em especial, quanto à cobrança pelo uso da água. As posições adotadas denotam uma realidade que cerceia a implementação dos institutos dentro de um contexto tomado pela ideologia capitalista, mecanicista que persiste acima de qualquer consciência ambiental, e vão além das preocupações com as futuras gerações e o mundo. Percebe-se a contraposição entre o imediatismo ao que o indivíduo acostumou-se priorizar e o dever de preservar e defender a sadia qualidade de vida. Como já mencionava Junges (2004) os homens vivem a insignificância da vida e o imediatismo do presente. É esta racionalidade que deve ser superada, não apenas pelos membros da sociedade civil, mas pelos próprios governantes. Como preleciona Souza (2006), até a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado era considerado o dono da natureza, e pouco fez para preservá-la, pelo menos até então. O mesmo autor, inclusive, ressalta que muito fez para destruí-la, deixando o Estado de aplicar eficaz-
6 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun mente seu poder de polícia, agindo com descaso em relação ao meio ambiente, facilitando a geração das degradações ambientais. A partir da divulgação maciça dos efeitos da degradação ambiental, no aspecto formal muitas coisas mudaram. Mas a atuação prática dos atores sociais está ainda em lento processo de transformação, e a morosidade é um obstáculo que não acompanha o que a legislação ambiental, formalmente, pretende empreender. Neste artigo, busca-se apresentar esta incongruência. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 O fortalecimento do discurso ambiental Por muitas gerações não distantes da época atual, e na maior parte do mundo a água era tida como um recurso tão disponível como o ar. Não havia a preocupação quanto às regiões do mundo que esta acessibilidade era reduzida, tão pouco havia maior preocupação quanto à sua capacidade de renovação. Com a qualidade de inesgotável a sociedade a atribuía múltiplos usos, especialmente de ordem econômica.
7 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun A trajetória histórica da relação entre os cenários social e econômico, resultado da intensificação do mercantilismo pela descoberta de novas riquezas e novas trocas comerciais, culmina com o desenvolvimento da tecnologia que deu início à Revolução Industrial, trazendo as conseqüências ambientais que hoje a humanidade vivencia. Houve nesta trajetória a predominância do antropocentrismo, atribuído ao individualismo (ideal do Iluminismo), que prioriza o progresso material em detrimento da degradação e em favor da dominação da natureza. Este enfoque prevalece até o Século XX, quando o Estado organiza-se como promotor da qualidade de vida, intervindo na iniciativa privada para assegurar o interesse coletivo, incluindo aí, a preservação do meio ambiente. Neste vértice destaca-se a contenção do desgaste dos recursos naturais, em que a sociedade civil, em especial, as empresas inserem-se como atores sociais importantes na implementação de políticas ambientais que amenizem os efeitos de suas próprias ações degradantes, assim como para atender objetivos específicos internos ou exigências externas. A visibilidade dos efeitos do desgaste dos recursos naturais implicou na necessidade não somente de transformar a cultura, mas também de novas normas que visassem a contenção, através de políticas públicas, imputações de sanções e responsabilidades. Na visão de Berger e Luckrmann (1987), a continuidade da vida cotidiana somente é interrompida pelo aparecimento de um problema, quando isso acontece, a realidade da vida
8 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun cotidiana procura integrar o setor problemático dentro daquilo que já é nãoproblemático. A política e a legislação ambiental brasileira existem desde o período colonial, com previsões inicialmente de efeitos essencialmente econômicos, o que veio se modificando até a edição da Lei n /81, que inaugura uma visão holística dentro da normatização pátria. Sob a luz das normas ambientais advindas dessa nova linhagem postural, busca-se a descentralização da proteção e gestão dos bens ambientais, visando maior efetividade. Em relação aos recursos hídricos, criou-se a Lei 9.433/97, instituindo a Política Nacional de Recursos Hídricos, que entre todas as suas criações conferiu à água valor econômico, instituindo a cobrança pelo seu uso. Como bem dizia o poeta João Guimarães Rosa a água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba. Ainda que haja noção das conseqüências que o uso irrestrito da água poderia causar, somente quando são sentidos os efeitos nefastos é que se tomam providências de contenção e preservação. Pesquisas realizadas revelam dados quantitativos que demonstram um quadro alarmante quanto à disponibilidade dos recursos hídricos, conforme indica Machado (2005) quando informa que somente cerca 0,007% da água doce existente no planeta está disponível para o consumo, e 9% dos países concentram 60% dos recursos hídricos. No Brasil, cuja posição
9 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun é privilegiada, detém-se de 12 a 15% dos 0,0007% da água doce, mas a distribuição é totalmente desigual. Na Amazônia, concentra-se cerca de 7% da população e detém entre 70 a 80% dos recursos hídricos disponíveis no Brasil. Nesta concepção geográfica, fica claro a necessidade de limites em relação à utilização da água, seja para proporcionar a distribuição de investimentos às áreas menos favorecidas, seja para empreender uma consciência ecológica de contenção. Reconhecido os múltiplos usos da água, gerou-se a criação de normas específicas para a regulamentação de políticas de cunho financeiro e pedagógico. O atual tratamento dispensado aos recursos hídricos decorreu de uma conjuntura que não somente envolvia a questão ambiental, como econômica e social, empreendendo um embate complexo entre os mais variados setores que compõe a sociedade. Toda a questão ambiental envolve uma análise sistêmica. Tal característica pressupõe o levantamento de várias questões e suas relações que ultrapassam os limites da pesquisa focada simplesmente na questão geográfica e biológica. Que a água é vital para a manutenção dos seres vivos não é o único preceito que justifique as medidas restritivas de seu uso, que deve se equilibrar com outras áreas de desenvolvimento. Rodrigues (1990) em sua obra Campo Midiático enfatiza a força simbólica dos discursos que determinam as conveniências, que não somente devem ser freqüentes, intensas e aceleradas para não serem es-
10 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun quecidos, e, portanto, não perderem sua visibilidade simbólica, como também devem atingir maior variedade de dimensões alcançando a amplitude necessária para implantar estratégias funcionais em maior número de setores. O campo social em que se desenvolveram os estudos sobre a institucionalização das políticas públicas de recursos hídricos, representou exatamente o que este autor destacou. Debates tardios sobre a preservação do meio ambiente, degradados na excessiva demanda poluidora que não preocuparam a economia capitalista durante os muitos anos que se seguiram após a Revolução Industrial, somente ganharam força política e institucional a partir do momento que, constatado os efeitos degradantes da natureza, investiu-se na criação de comitês, grupos e associações formadas por entes governamentais ou particulares investidos de algum interesse, de legitimidade para a discussão dos meios de preservação. O discurso de movimentos sociais que defendiam a questão ecológica fortaleceu-se no campo social com manifesta intensidade que permitiu a reunião de líderes nacionais e internacionais cujos debates embasaram leis, normas e tratados que regem a questão ambiental com maior força política entre os entes. Como mencionara Melucci (2001), os movimentos sociais são um sinal. Não são apenas um produto da crise, os últimos efeitos de uma sociedade que morre, mas, ao contrário, trata-se da mensagem daquilo que está nascendo, indicando uma transformação profunda na lógica e nos processos que guiam as sociedades complexas.
11 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun As dimensões ou setores atingidos permitiram criar estratégias que envolvam toda a coletividade a participar do desenvolvimento de políticas públicas que preservem o meio ambiente. Dentro de uma sistemática que tentou incutir uma renovação da consciência que transformava a cultura. Como ensinou Melucci (2001) o agir coletivo que visa a solução de uma crise pressupõe uma necessidade história. O mundo exigia práticas que o permitissem sobreviver. O simbolismo que se verifica em campanhas e nas próprias normas pertinentes é de que a responsabilidade é de cada um e de todos, igualando os atos de indivíduos em sua vida cotidiana e de grandes indústrias. O que se questiona é a transferência desta responsabilidade aos particulares ser válida, verdadeiramente legítima e eficiente, uma vez que, em contrapartida, por exemplo, aos Estados não se cobra sequer maior agilidade em criar-se infra-estrutura para a redução em proporções possíveis do uso dos derivados do petróleo. Inegável que a força dos debates que instituíram o valor econômico da água tenha advindo da força discursiva e da amplitude que se atribuiu ao assunto, após os efeitos degradantes observados no mundo. Mas foi suficiente para transformar os paradigmas e injetar nos indivíduos, efetivamente, a consciência da importância da preservação do meio ambiente, não como um discurso oportuno, mas como uma necessidade proeminente?
12 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun Rodrigues (1990) quando trata da emergência da questão comunicacional e da nova racionalidade científica, aborda o desenvolvimento da tecnização das ciências humanas, criticando o imediatismo que evita um aprofundamento da problemática e mantém o interesse dominante, incutindo à comunidade necessidades que naturalmente não existem, como ocorreu com os debates que envolviam o meio ambiente. Admitiu-se por muitos anos a degradação do meio ambiente como meio de subsistir os meios tecnológicos para garantir as necessidades que se acredita à humanidade possuir. O interesse dominante põe em pauta interesse particular no campo social e o torna coletivo e público, como forma de estratégia de transferir funções e responsabilidades. No processo do conhecimento, a transição pressupõe um choque causado pelo deslocamento da atenção, como ensinam Berger e Luckmann (1987). A quebra de paradigmas onde se sustenta a prevalência do pensamento antropológico e transfere-se ao pensamento biocêntrico empreende significativo esforço para alterar a forma de pensar e agir. Neste aspecto, impossível ignorar o poder simbólico, estudado por Bourdier (1998), da divulgação positiva que invocava a preservação do meio ambiente, que invocava novas formas de agir dos homens, com informações detalhadas dos efeitos do aquecimento global, da poluição das águas, das queimadas florestais, das emissões de gás carbônicos. A própria Lei de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997), foi a forma de política pública implantada para instituir a cobrança do uso deste bem público como
13 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun meio de combater o uso desmedido do recurso natural, cuja escassez até poucos anos parecia ser ilusório. Contudo, as implementações carecem de efetividade, porque sucumbidos pelo interesse econômico, tornam-se meras simbologias. A trajetória histórica da relação entre os cenários social e econômico, resultado da intensificação do mercantilismo pela descoberta de novas riquezas e novas trocas comerciais, culmina com o desenvolvimento da tecnologia que deu início à Revolução Industrial. Segundo Machado (2005), por mais de 60 anos, as políticas públicas de recursos hídricos foram dominadas pela supremacia da geração da energia e para impulsionar o desenvolvimento e a industrialização. A idéia dominante de crescimento nacional focava a atividade a fomentação do capital. Antecedeu uma trajetória de predominância do antropocentrismo, atribuído ao individualismo, que prioriza o progresso material em detrimento da degradação e em favor da dominação da natureza. Este enfoque é prevalecente até o século XX. A preocupação em relação aos recursos naturais, em especial, aos hídricos, teve início quando as conseqüências ambientais que hoje a humanidade vivencia começaram a se agravar, não obstante fosse previsível. Superada (nos discursos) a idéia do individualismo dos direitos fundamentais, hoje já se propõe um comunitarismo ambiental ou de uma comunidade com responsabilidade ambiental, que engendra a participação
14 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun ativa do cidadão na defesa e proteção do meio ambiente. Há uma tendência em distribuir atribuições, e neste aspecto não se pode deixar de ressaltar a imprescindibilidade de que o Estado ou as entidades públicas deixem de participar, até para fins de preservar o interesse de toda a coletividade. Os alertas sobre a iminente crise da disponibilidade da água, que contou com dados quantitativos importantes para análises qualitativas, inseriram-se nos debates somente a partir de 1990, especialmente em virtude da ECO 92, fortalecendo-se com a Agenda 21 adotada na Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento. A própria ONU, na Assembléia Geral proclamou o período de 2005 a 2015 a Década Internacional para a Água: a água, fonte de vida, iniciada no dia 22 de março de 2005, fixando esta data consagrada como Dia Mundial da Água, segundo constata-se em Pompeu (2006). O Estado organiza-se como promotor da qualidade de vida, intervindo na iniciativa privada para assegurar o interesse coletivo, incluindo aí, a preservação do meio ambiente. No intuito de buscar medidas de contenção do desgaste dos recursos naturais, envolvendo vários atores sociais na participação, as próprias empresas foram investidas de atribuições como agente importante na implementação de políticas ambientais que amenizem os efeitos de suas próprias ações degradantes, assim como para atender objetivos específicos internos ou exigências externas.
15 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun Como ensina Souza (2003), para analisar a conjuntura é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo. A implementação da Lei 9.433/97 que regula as Políticas Nacionais de Recursos Hídricos surgiu deste contexto que visa preservação do meio ambiente dentro de uma estrutura que permita o desenvolvimento sustentável objetivando equilibrar o desgaste ecológico com a atividade empresarial. Atualmente já há referências ao Estado Constitucional Ecológico, com base nas regulamentações sobre as formas de participação política expressa na democracia sustentada, que proporcionem desenvolvimento equilibrado com o desenvolvimento social e econômico, associado às idéias de justiça intergeracional ou direitos das futuras gerações como mencionam Ferreira e Leite (2004). A partir dos anos de 1980 com a redemocratização, e as idéias difundidas por todos os meios de comunicações das implicações ambientais, como bem ressalta Marcovitch (2006) o ambientalismo assumiu uma nova feição pública e ganhou prioridade nas políticas governamentais. Embora a questão tenha se fortalecido somente na década seguinte, ainda na década de 1980 criou-se o Ministério do Meio Ambiente e Secretarias nos altos escalões de governos estaduais e municipais. Mas o que se questiona acompanha a mesma dúvida de Marcovitch (2006): depois destas conquistas legais e formais que estágio se encon-
16 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun tra o país nessa questão, quando se avança na primeira década do Século XXI? Basta verificar que no plano formal, o Brasil tornou-se, um dos países mais conscientes do mundo. Mas isto foi suficiente, ou foi apenas um passo? 2.2 Da necessária transformação cultural dos atores obstáculo às medidas de proteção ambiental A Lei não somente identifica os atores sociais envolvidos nas políticas instituídas como cria outros, tais como o Comitê de Bacias Hidrográficas. Entendam-se atores, não somente todos os usuários das águas (identificados como aqueles que a retiram do seu estado natural diretamente de sua origem), a União, Estados e Municípios, mas também os órgãos que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, em especial os Comitês de Bacia Hidrográfica, unidade administrativa criada pela Lei /97, que terá funções administrativas de gestão, planejamento, fiscalização e cobrança pelo uso da água. A Bacia passa a ser considerada unidade territorial de gestão.
17 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun Os comitês de Bacia Hidrográfica são compostos por membros dos mais variados setores, cujo discurso que o justifica é o de atender os interessados nos múltiplos usos da água. Machado (2005) questiona este gerenciamento colegiado que envolve atores com diferentes interesses e graus de poder. A gestão pública colegiada, integrada, descentralizada e participativa, permitiria não favorecer um ou outro interesse, mas interagir, permitindo ampla participação social (Poder Público, usuários, comunidades etc.), de forma descentralizada: Por outro lado, interesses políticos, econômicos e culturais impostas por uma parcela de atores que detém maior capacidade de dominação no seu uso e apropriação. Há a influência política e argumentativa que permite alguns participantes realizarem manobras, utilizarem astúcias, reorganizarem os meios para conduzir os recursos, resultando na barganha em argumentos de troca, para firmar pactos. Transformaria este espaço social em mais uma estratégia de finalidade econômica, afastando a preocupação preliminar quanto ao meio ambiente degradado. O envolvimento de vários indivíduos de diferentes representações pode implicar em um empurra-empurra de responsabilidades, motivo pelo qual Machado (2005) atenta para a necessidade de uma divisão eqüitativa de responsabilidade, envolvendo entes privados e públicos. Neste aspecto, destaca-se o comentário de Souza (2003) sobre relações de forças, quando afirma que as classes sociais, os grupos, os diferentes atores sociais estão em relação uns com os outros. Essas relações podem ser de con-
18 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun fronto, de coexistência, de cooperação e estarão sempre revelando uma relação de força, de domínio, igualdade ou subordinação. Para Freitas (2000), a perspectiva da Lei n /97é de que se considere a água como um bem inestimável, relevando-se como insumo indispensável para a produção, devendo ser tratada como recurso estratégico para o desenvolvimento econômico e como um bem cultural e social indispensável à sobrevivência e à qualidade de vida da população. Ao se adotar esta característica os mecanismos de preservação devem se estender a todos. E os envolvidos devem ter incutido uma noção moral ética clara dos princípios que a lei lhe impõe. A água como bem cultural pode ser explicada pelas determinações de Hall (1997) em suas reflexões sobre as revoluções culturais da contemporaneidade que induziram a entender como a cultura pode ser atualmente analisada sob a ascensão dos novos domínios, instituições e tecnologias associadas às indústrias culturais que transformaram as esferas tradicionais da economia, indústria, sociedade e da cultura em si: a cultura vista como uma força de mudança histórica global; a transformação cultural do cotidiano; a centralidade da cultura na formação das identidades pessoais e sociais. Vendo essa centralidade sob as dimensões epistemológicas, as ciências humanas e sociais concedem à cultura uma importância e um peso explicativo bem maior do que visto anteriormente.
19 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun A cobrança pelo uso de recursos hídricos tem como objetivos, de acordo com o artigo 2º da Lei Federal 9.433/97: reconhecer a água como bem econômico e fornecer ao usuário uma indicação de seu real valor, incentivar a racionalização do uso da água, e obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos recursos hídricos. Portanto, um dos objetivos da lei é realmente disseminar uma cultura de incentivo da racionalização, ou seja, uma transformação cultural. Uma revolução conceitual de peso está ocorrendo nas ciências humanas e sociais, colocando as questões culturais numa posição mais central, ao lado dos processos econômicos, das instituições sociais e da produção de bens, riquezas e serviços. A cultura passa então a ser vista como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente, provocando uma mudança de paradigma nas ciências sociais e na humanidade. Dá-se assim à cultura um papel constitutivo e determinado na compreensão e na análise de todas as instituições e relações sociais. Portanto, considerá-la um elemento fundamental para a eficácia de políticas públicas não é exagero. Nestes 11 anos desde a criação da Lei n /97, articulou-se muito, levantaram-se críticas na questão de políticas ambientais, mas, tal como sugere Soares (2003, p. 132) as políticas ambientais promovidas pelos governos federal, estadual e municipal, embora com abertura para a participação popular não têm força para interferir nas decisões macroeco-
20 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun nômicas do país, e isto acarreta a notória indiferença à legislação imposta quando não se volta aos interesses da classe dominante. Para a humanidade, a perspectiva da escassez da água é fator preocupante, assumindo papel relevante no plano dos fatores sociais, políticos, éticos, econômicos e culturais que fazem sobressair qualquer modificação efetuada pelo ser humano no ambiente natural com conseqüências que interferem de maneira negativa nos eventos da natureza. Uma das maiores preocupações atualmente é a de que vários países já sofrem a escassez de água e há previsões de que mais e mais países serão assolados pela seca, cabendo aos brasileiros, mediante este quadro, praticar uma administração eficaz para regulamentação e controle do uso da água. Um dos passos mais importantes nesse sentido foi realmente a aprovação da Lei no 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, definindo uma série de diretrizes e instrumentos destinados a racionalizar e harmonizar os diversos usos da água, que entre outras medidas estabeleceu instrumentos de cobrança pelo uso da água. Embora haja críticas que mencionam a mercantilização do recurso natural, transformando a água em produto, é inegável que os objetivos dos ideais ecológicos não contenham vantagens ao meio ambiente e ao custo de sua conservação. Daí a importância em verificar como está sendo recepcionada esta lei pela sociedade brasileira.
21 Revista Jurídica das Faculdades Secal Ponta Grossa v. 1 n. 1. jan./jun Granziera (2001) já categorizou a água juridicamente como uma coisa ou um bem de valor material, valor este que impõe uma relação jurídica. A medida deste valor é localizada pela satisfação de sua necessidade. Decorre deste aspecto a probidade do direito em considerar a água como material suscetível de valor, impondo para sua utilização, restrições, seja de cunho administrativo, seja de natureza financeira, como é o caso da cobrança pelo uso dos recursos hídricos. A sociedade não está preparada a pagar pelo uso da água. E o mais grave, maior parcela não conhece sequer a própria situação. Esta reflexão foi despertada por um artigo editado em um jornal de Ponta Grossa, PR Diário dos Campos em data de 18 de março de 2007, com o título Você conhece a nossa água?. O autor deste artigo Paulo Barros é engenheiro agrônomo, diretor do Departamento de Meio Ambiente da Prefeitura de Ponta Grossa, instiga a população pontagrossense a conhecer melhor o manancial de água da cidade de Ponta Grossa, iniciando com o paradoxo de que a maioria das pessoas tem bastante conhecimento sobre o Rio Nilo e o Rio Amazonas, mas não sabem que é o Rio Pitangui e o Rio Jutubá que fornecem a água para o consumo doméstico do Município. A crítica do artigo está em que é ilusório acreditar que a população preocupa-se com a preservação dos mananciais de água, se não os conhecem. Lembra o autor que até a década de 1970, estes rios eram saudáveis, necessitando apenas de um tratamento simples para tornarem-se potável, enquanto, hoje, há necessidade de um tratamento complexo e
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