BOLETIM 13. Ato Médico

Transcrição

1 Centro de Estudos Atrasados Dona Luzia BOLETIM 13 Ato Médico Ato Médico: corolário da formação do profissional médico. Erasmo M. Castro de Tolosa A formação de mão de obra de nível superior em todas as áreas do conhecimento humano constitui preocupação básica de todo o governo em qualquer nível de poder. Nestas condições, torna-se importante, em um país em desenvolvimento, a existência de uma política incentivadora e disciplinadora do preparo de mão de obra de elevado nível, indispensável ao exercício profissional. Completada a formação profissional, certamente a maioria dos graduados exercerão suas atividades nas áreas afins, no mercado de trabalho. Pequena parcela dos graduados, por vocação, ingressarão na área acadêmica, devendo estes terem um tratamento especial para o desempenho satisfatório nas áreas da docência e pesquisa. Complemento, ou melhor, requisito indispensável para que o acima relatado tenha sucesso é a firme decisão de fortalecer a formação e capacitação de profissionais e acadêmicos. Achar a proporção adequada entre os profissionais de nível superior e os de nível médio constitui a interface ideal entre os mecanismos formadores e o mercado de trabalho. Uma das áreas mais carentes de uma política disciplinadora é a área de saúde. O sistema de Residência Médica, modalidade de ensino pós-graduado, interface entre o mercado de trabalho e a atividade acadêmica, implantado em nosso meio na década de 40, formou excelentes profissionais, mas a partir de 60, em decorrência da explosão da rede escolar que ainda persiste cada vez mais intensa e da ausência de normas oficiais eficientes, sofreu graves distorções, com reflexos diretos na política assistencial do país. Em 1975 ( Rev. Med. IAMSPE, vol 6, supl. 01), já afirmávamos :"Muito em breve teremos na medicina muitos alunos, muitos graduados, sem oportunidade de trabalho e elevado 1

2 número de docentes mal preparados, sem que o mercado de trabalho possa absorvê-los." Certamente esta situação não é nova. Cervantes, no Colloquio de Los Peros já admitia a gravidade da situação. Através da prosa de dois cães, um deles informava ao outro que naquele ano, dos 5000 alunos que cursavam as Universidades, 2000 estudavam Medicina. O outro cão, analisando a informação, inferiu que se os céus não mandassem desgraças ou doenças em número satisfatório esses médicos certamente morreriam de fome... Que tipo de Médico deve ser formado? Evidentemente que esta é a preocupação das Escolas Médicas, do governo e da própria sociedade. Da ata da sessão da Congregação da Faculdade de Medicina da USP, em 29/4/77, consta: "... o Professor Antonio Barros Ulhoa Cintra a respeito desse assunto, tão controvertido deseja salientar alguns feitos importantes e, que a seu ver são muito graves, em termo de discussão de currículos. Acontece que a representação discente, todos os anos, muda e eles não ouviram as razões aqui expostas pelo Professor Antonio Barros de Ulhoa Cintra que são de importância muito grande. Como está prestes a deixar a Faculdade, diz o seguinte: "gostaria de repetir aos alunos, mais uma vez, o que já disse em sessões passadas". Tipo de médico que o Brasil precisa. É uma frase demagógica, sem sentido, perigosa, extremamente perigosa para o pobre povo brasileiro. Não é o povo brasileiro que é defendido por esse tipo de medida. Acontece que o estudante que se forma hoje, vai trabalhar ou clinicar como médico durante 40 anos ou mais. Tive eu essa ventura de clinicar há mais de 40 anos. São bases que se aprendem na Faculdade de Medicina. Não é exclusivamente aprendendo vacinação, nutrição, verminose, etc que se trata a população brasileira. Não é. Isto a medicina sabe de sobra. Qualquer educador sanitário fará muito melhor. Formar um médico que é caro, que custa o dinheiro do operário que paga impostos para que os estudantes que aqui se formam, se formem à custa do sacrificado povo brasileiro. Não estamos aqui para formar educador sanitário caríssimo através da Faculdade de Medicina. É preciso saber criar a ciência médica necessária, complementação da sua vida. Os médicos querem casar, ter filhos, onde eles prestam atenção não em si próprios, mas em outros seres humanos, com afeto de quem quer tratar um indivíduo da sua própria geração. Ele vai querer um excelente médico para seu filho. Também têm direito os filhos de todos os brasileiros de terem um bom médico. Luto contra esta idéia que se ficou generalizando no país, a ponto de o próprio Ministro da Previdência Social dizer que há excesso de médicos clínicos e pouca Medicina Preventiva. Digo que se ampliem o mais possível a Medicina Preventiva, mas nunca à custa deste artifício 2

3 fantasmagórico e perigoso; não à custa de se amputar a medicina clínica e medicina cirúrgica, como se pudesse fazer isso sem sacrificar os mais legítimos interesses dos direitos humanos do povo brasileiro que é de ter assistência médica. Se discutissem comigo com toda a sinceridade, esses assuntos e não em foco de debates, mas sim com pessoas que meditem bem, ouvindo argumentos opostos, pensar bem para acertar em favor do pobre povo brasileiro. De modo que o tipo de médico, é o tipo que seria igual a todas as Escolas do mundo. Todas têm um objetivo único, formar médico com um potencial de poder se desenvolver para ajudar a pobre população brasileira, no momento. Eu gostaria de ter bem presente no espírito que não deve haver guerra entre as medicinas preventiva e curativa. Elas tem andar paralelas. Mas nunca fazer valorizar a medicina preventiva e diminuir, amputar ou sacrificar a medicina curativa. Não é possível. Tipo de médico não é problema. O problema que se coloca aqui é de formar médicos capazes de depois assumir, realizar um padrão médico de primeira ordem, porque dele se irradia o tipo de medicina e fazer também a pesquisa para nos libertar do colonialismo intelectual. São deveres para com o país, para com o povo. Essa disputa de cargas horárias precisa ser bem explicada. Nos Estados Unidos, o número de horas dedicado ao ensino é muito menor. Mas é que existe lá um estilo de ensino um pouco diferente; onde existem exigências da contribuição ativa do estudante que são muito maiores do que aqui. Aqui existe uma coisa que vou denunciar; é a passividade de aluno, que em lugar de ter suas iniciativas próprias e esforços, só desejam receber passivamente um tipo de ensino que é ensinado no ginásio, colégio, onde o estudante é armazenador e elaborador de idéias. Há uma transição para a Escola Superior onde ele precisa ter iniciativas próprias e acabar com uma espécie de paternalismo. Vejo aqui estudantes dizerem que o ensino está decadente. Como é que eles sabem se é pela primeira vez que eles estão estudando medicina. Sabem por ouvir falar ou comparando com gerações anteriores. São simplesmente frases demagógicas. Eles não sabem se está ou não piorando o ensino aqui. Não podem saber. Eu acho que o ensino aqui não está decadente coisa nenhuma, não está decadente nada. Digo isto porque vou ficar dentro de pouco tempo, desvinculado desta Faculdade, digo e afirmo, não decaiu coisa nenhuma, mas sim transformou-se, e transformou-se mediante debates. Aceitamos a crítica construtiva. Acho que devemos debater ainda muita coisa. Muita coisa deve ser explicada. Chamo a atenção dos senhores alunos que o sistema de aprendizado, no país como os Estados Unidos que conheço bem, é o sistema de livro para aluno ler. Aula-seminário para ver se ele aprende. São 3

4 tratados, textos de livros, que são lidos no espaço de uma semana, para serem discutidos na aula seguinte. O aluno tem que estudar e se não fizer isso, não entenderá o debate. Esse tipo de aula tradicional já não existe mais aula explicativa, assunto completo, mastigado, tentando explicar tudo para os alunos. Devemos dar aos alunos a orientação de como se deve ler e aprender. Ficamos espantados com a carga horária dos currículos de Escola Americana, quando falam em 15 horas numa disciplina, 12 na outra e são muito eficientes para o ensino de determinado curso. Essa carga horária se refere somente à aula onde se discute o assunto quando já foi estudado. Discussão final e esclarecedora. O aluno tem que estudar por si mesmo e nas bibliotecas, que deverão ficar repletas de alunos, pesquisando e estudando. O que os estudantes devem propugnar é que sejam publicados mais livros, pois há muita falta de literatura adequada para estudar, em língua portuguesa. Deixo aqui esses dois avisos: 1) o tipo de médico deve ser igual ao tipo de médico de todas as partes do mundo e já disse aqui nesta Congregação em sessões passadas, repito pela terceira vez, que o fígado de um dirigente russo é igual ao fígado de um dirigente norte-americano ou de um pobre indigente. Não tem diferença nenhuma. Agora, reconheço que o Brasil precisa também de Medicina Preventiva, precisa muito, mas nunca cortando, amputando, sacrificando qualquer outro ramo da medicina." Prosseguindo, considero fundamental abordar o tema: a quem cabe a formação do profissional médico? Embora a resposta de forma simplificada seria "à Escola" esta, na realidade, representa a ponta do iceberg. No Brasil, a expansão do ensino superior tem no aspecto técnico-educacional o fator menos relevante, sobrepujado pelo político, representado pelos critérios regionais de "demanda social incontida". O ensino médico, por suas características, é o que mais sofre com a desordenada e incontida pressão por aumento de vagas e as autoridades e os próprios discentes, ou melhor, "as próximas vítimas" que tudo fazem para continuar a criar escolas médicas. Paradoxalmente, os cursos médicos continuam a ter candidatos e a desistência durante o curso é significativamente menor que a dos demais cursos como engenharia e direito. Mesmo com todas adversidades no custeio do dispendioso curso, as dificuldades impostas e que influenciam na formação do médico não param por aí. Mesmo nos países mais desenvolvidos, os gastos com programas de saúde assumem proporções alarmantes. Em relação ao Produto Interno Bruto, os Estados Unidos gastam 14,6%, Canadá 9,6%, Reino 4

5 Unido 7,7%. No Brasil, o SUS, Sistema Unificado de Saúde, que inicialmente era SUDS e o "D" significava, descentralizado, não foge à regra é caro e tem deficiências, atingindo todos os hospitais universitários, públicos ou particulares conveniados. O exército da saúde, numeroso, mal preparado, pessimamente remunerado, não propicia ao aluno de medicina e ao residente em especialização uma formação adequada, quando muito dá mau exemplo. Depois de tanto esforço, vivendo em ambiente inadequado, o médico assim formado ainda tem dificuldades em ter um lugar no estrupiado sistema. Está sendo introduzido com grande intensidade o conceito de dívida da maioria contra as minorias, dando cores semelhantes à do pecado original, embora considere injusto certamente o governo estimula não só com o alheiamente mas com ações, tirando a competitividade de mérito para dar às minorias cotas privilegiando em nível de curso superior àqueles que de forma criminosa contribuíram para o despreparo dos mesmos, tendo em vista a situação precária e o despreparo dos professores das Escolas Públicas. Os egressos dos cursos superiores amparados pelo sistema de cotas engrossarão, com desvantagens, o mercado de trabalho já saturado. Considerando que o ensino deve se adaptar às condições atuais, transformar-se em uma forma adequada da formação do médico, com objetivos e programas flexíveis, visando a formação de recursos humanos. A reforma que se impõe dever ser global, atingindo todos os níveis, do curso secundário, em especial, ao superior e devemos concentrar esforços no sentido de, preservando a autonomia e objetivos de cada Instituição, buscando em cada região modalidades de ensino, em nível de graduação e de pós-graduação que possibilitem a formação não só de médicos, como também de outros profissionais da saúde. E o futuro? Depende certamente do rumo a ser tomado: A) manter o status quo com a certeza da tragédia iminente; B) ou adotar de modo rápido e inflexível as seguintes providências: a) impedir a criação de novos cursos ou considerar como numero clausus o total de vagas existentes no país, congelando o número de vagas de cada escola médica existente, isto é, em funcionamento; b) nas escolas médicas cuja avaliação de desempenho não foi considerada satisfatória, suspender o exame de admissão aos cursos e tentar melhorar o alunado remanescente; c) remanejar vagas de escolas sem maiores possibilidade de progresso, criando-se, assim, em outros locais novos estabelecimentos competentes de ensino; 5

6 d) programar esquemas de recuperação dos alunos das escolas médicas, cujo ensino não é satisfatório, utilizando-se dos recursos oriundos do patrimônio da mantenedora ou de seus dirigente. Código de Defesa do Consumidor? "Velho é, o que esta de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo..." Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas. 6