Observação Qualitativa 1

Transcrição

1 Observação Qualitativa 1 Sampieri, R.H.; Collado, C.F. & Lucio, P.B: Metodologia da Pesquisa, pp 383-9, 3ª. Ed., São Paulo, McGraw-Hill, 2006 Trata-se de uma técnica de coleta de dados (denominada também observação de campo, observação direta ou observação participante, apesar de que essa última elimina a observação não-participante) cujos objetivos são: a) explorar ambientes, contextos, subculturas e a maioria dos aspectos da vida social (Grinnell, 1997); b) descrever comunidades, contextos ou ambientes, e as atividades que se desenvolvem neles, as pessoas que participam em tais atividades e os significados das atividades (Patton, 1980); c) compreender processos, inter-relações entre pessoas e suas situações ou circunstâncias, e eventos que ocorrem com o tempo, assim como os padrões que são desenvolvidos e os contextos sociais e culturais onde acontecem as experiências humanas (Gorgensen, 1989); d) identificar problemas (Grinnell, 1997); e e) gerar hipóteses para futuros estudos. A observação qualitativa não é mera contemplação ("sentar e ver o mundo e fazer anotações"), nada disso. Implica entrar a fundo em situações sociais e manter um papel ativo, assim como uma reflexão permanente, e estar atentos aos detalhes (não às coisas superficiais) de fatos, eventos e interações. Os bons observadores precisam utilizar todos seus sentidos para captar os ambientes e seus atores. Tudo pode ser relevante: clima físico, cores, aromas, espaços, iluminação etc. É importante que o observador tenha ou desenvolva uma boa memória para lembrar a linguagem não-verbal, palavras específicas e outros aspectos, além de levar registros escritos e gravar as descrições, para que no momento de analisá-las não deixe de fora algo que seja importante. O observador vive pela "primeira vez" o que ocorre no contexto, o ambiente, a comunidade ou o fato. É importante que seja introduzido na comunidade, no contexto ou no ambiente gradualmente e na medida do possível, de maneira que cada vez menos seja visto como estranho, como algo externo e obstrutivo. Na investigação policial, para observar redes criminais e encontrar provas contra seus membros, o agente infiltrado age com cautela e sua prioridade inicial é ganhar a confiança dos criminosos. O observador qualitativo também age assim. Observação qualitativa: técnica de coleta de dados que tem como objetivo explorar e descrever ambientes De fato, a observação, de alguma forma, já foi praticada por todos. Quem já não visitou a casa de um amigo ou uma amiga para poder conhecê-lo(a) melhor? Para ver como vive, se é organizado(a) ou não, como arruma seu quarto. que pôsteres ou quadros têm pendurados no quarto, como são os membros de sua família e de que forma interage com eles etc. 1 Foram feitas pequenas alterações na ordem dos parágrafos para melhorar a fluência do texto. Com o mesmo objetivo forma introduzidas quebras de páginas inexistentes no texto original, além de pequenas modificações na diagramação. Não houve, entretanto qualquer modificação na ortografia, vocabulário ou estilo. Da mesma forma nãos se omitiu, alterou ou adicionou nenhum texto.

2 Algumas definições que são importantes observar, e que normalmente surgem da imersão inicial no campo, são: 1. O papel do observador Patton (I980, p. 138) sugere que o observador se coloque em diferentes posições para estabelecer seu papel (que é uma localização aproximada e não exata): Observador participante (participa ativamente em tarefas ou situações) Papel como avaliador-observador Observador que participa Observador apenas parcialmente participante (externo) não Papel perante os outros (membros do ambiente, comunidade ou contexto) Aberto (os outros conhecem seu papel e sabem que estão sendo observados) Intermediário (alguns conhecem seu papel, e sabem que estão sendo observados, e outros não) Oculto (ninguém conhece seu papel nem sabe que está sendo observado) Duração da observação (permanência do observador) Curta (uma hora, um dia) Longa (meses, anos) Focalizado (um elemento, um significado, uma interação em especial) Enfoque da observação Geral (holístico: todos os elementos ou as unidades) 2. Os registros e notas que foram realizados durante a observação É necessário manter registros e fazer anotações o mais rápido possível, após cada período) no campo, em separado (registro e notas do período um, independentes de registro e notas do período dois, registro e notas do período k). São como páginas separadas que se referem à segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sextafeira, sábado e domingo de um diário pessoal, inclusive é conveniente separá-las por páginas ou arquivos diferentes. Em cada período são anotadas data e hora correspondentes. Não é importante o meio de registro que é utilizado (computador de bolso, gravador de voz, papel e lápis ou vídeo, entre outros). Ao transcrever as gravações de áudio ou vídeo, é conveniente que o espaçamento seja duplo e com margens largas, tanto pela clareza como se depois queremos acrescentar algo. Ao obter os registros e as anotações escritas, os materiais de áudio e vídeo devem ser guardados, e não destruídos. Também é conveniente tirar fotos, elaborar mapas e esquemas sobre o contexto, comunidade ou ambiente físico (e em certas ocasiões, seus movimentos e os dos indivíduos observados). Por sua vez, Grinnell (1997) enfatiza a importância de incluir nossos próprios termos, palavras, sentimentos e comportamentos nas anotações. Assim, cada vez que seja possível (pelo menos uma vez por dia) é necessário ler novamente as anotações e os

3 registros e anotar novas idéias, comentários ou observações (e repetir o processo a cada semana). As anotações podem ser de diferentes tipos e convém ter todas em uma observação qualitativa. Basicamente são quatro (Grinnell, 1997, p ): 2.1- Anotações da observação direta:. Descrições do que estamos vendo, escutando, cheirando e tocando do contexto e das unidades observadas. Em geral, são ordenadas cronologicamente. Nos permitirão contar com uma narração dos fatos ocorridos (o que, quem, quando e onde). Por exemplo: "Era 8 de janeiro de 2001, 9h30, Román entrou no aposento onde estavam reunidos Ricardo e Gabriel, usava calças esportivas de cor azulmarinho; seu cabelo estava desarrumado; não havia tomado banho; seu olhar refletia tristeza; parecia cansado. Sentou-se no chão (em silêncio). Ricardo e Gabriel o observaram e o cumprimentaram com um leve sorriso; Román não respondeu. Durante aproximadamente cinco minutos ninguém disse nada nem olhou um ao outro. De repente, Román disse: 'Me sinto péssimo, na noite passada não devia ter... ' Interrompeu seu comentário e ficou em silêncio. Estava pálido com seus olhos marejados e vermelhos, a boca seca. Levantou-se e saiu do quarto... " 2.2- Anotações interpretativas: Comentários pessoais sobre os fatos, isto é, nossas interpretações do que estamos percebendo (sobre significados, emoções, reações, interações). Por exemplo: "Román havia consumido droga na noite anterior e sofria o efeito colateral; provavelmente cocaína, que é a substância que se costuma consumir nesse grupo, de acordo com observações prévias" Anotações temáticas: Idéias, hipóteses, questões de pesquisa, especulações vinculadas com a teoria, conclusões preliminares e descobertas que, a nosso ver, nos vão fornecendo as observações. Por exemplo: "Depois de um grande consumo de drogas, os jovens desse bairro evitam comunicar-se com seus amigos no dia seguinte" Anotações pessoais (dos sentimentos, as sensações do próprio observador). Por exemplo: "Sinto-me triste por Román. Dói vê-lo assim. Está chovendo e gostaria de sair do quarto e descansar. Ver tantos problemas, me aflige" Essas anotações podem ser feitas em uma mesma folha em quatro colunas diferentes ou podem ser colocadas em páginas diferentes, o importante é que estejam reunidas e sejam acompanhadas por anexos (mapas, fotografias, vídeos e outros materiais) caso refiram ao mesmo episódio. Depois, podemos classificar o material por data, temas (por exemplo, expressões depressivas, de consolo, de cansaço), indivíduos (Román, Gabriel, Ricardo), unidades de análise ou qualquer critério que consideremos conveniente, de acordo com o esboço do problema. Em seguida, fazer um resumo das anotações, tendo cuidado para não perder nenhuma informação valiosa. Por exemplo, as anotações, produto da observação direta de um episódio entre um médico e um paciente, seriam resumidas como mostra o Quadro 9.21 (diminuímos o espaço da letra por questão de espaço, mas lembre-se de que as anotações devem ter entrelinhamento maior).

4 Quadro Exemplo de resumo de anotações na observação qualitativa RESUMO O paciente foi muito hostil com o médico, tanto de maneira verbal como não-verbal. ANOTAÇÃO Eram 14h30, quando na recepção do hospital, o médico, que estava vestido com jaleco branco, pediu ao paciente que fosse para a sala de espera, para prepararse para o exame de rotina (seu tom foi amável e sua comunicação não-verbal, cortês; olhou para o paciente diretamente nos olhos). O paciente gritou para o médico, com firmeza: "Não vou entrar, vá para o inferno", e bateu na parede. Não fez contato visual com o médico. O médico respondeu com a mesma hostilidade, verbal e não-verbal. Iniciou-se uma escalada de violência verbal. O paciente fugiu da interação. O médico respondeu ao paciente (que é claro que estava vestido informalmente): "Vá para o inferno o senhor, e apodreça lá" e lançou o prontuário ao chão. O paciente respondeu: "Médico de quarta categoria, ultimamente não me deu nada nem me ajudou em nada. Esquece dos pacientes. Não duvido que faça isso com seus amigos. Tomara que morra..." O paciente, visivelmente incomodado, saiu da recepção do hospital em direção à rua.

5 A observação pode ser aberta ou dirigida, geral ou mais específica, mas sempre com um rumo, isto é, com direção. Para o primeiro caso, mostramos a seguir (Quadro 9.22) um guia de registro-observação de um episódio (reunião), para um estudo potencial que pretende analisar os obstáculos na implantação da tecnologia no âmbito escolar. Quadro Registro-resumo da observação geral DATA: EPISÓDIO, REUNIÃO, OBSERVAÇÃO: 1. Temas principais. Impressões (do pesquisador). Resumo do que ocorre no evento, episódio etc. 2. Explicações ou especulações, e hipóteses do que ocorre no lugar ou contexto. 3. Explicações alternativas. Relatórios de outros que experimentam ou vivem a situação. 4. Seguintes passos na coleta de dados. Derivado dos passos anteriores, outras questões ou indagações são necessárias. 5. Revisão, atualização. Implicações das conclusões. No segundo caso (observação enfocada), podemos estabelecer categorias ou pontos mais específicos a serem observados (algo similar à observação quantitativa), mesmo que registrando o principal ocorrido e fazendo anotações de todos os tipos. A seguir (Quadro 9.23) reproduzimos um guia de observação que foi utilizado após a imersão inicial no campo, proveniente do estudo sobre a moda e as mulheres mexicanas. Quadro Guia de observação com enfoque preenchido com um exemplo (A moda e as mulheres mexicanas) Data: 12/08/01 Lugar: Tienda de Cuernavaca Observador: RGA Horário de início: 11 h20 Horário de término: 13h30 Episódio: Desde a entrada da cliente na seção de roupa e acessórios femininos até a sua saída. Seção que vai primeiro: Roupa casual (confortável). Peças e marcas de roupa que escolhe ver: Vestidos (Marcia, Roeío, Valente), blusas (Rocío, Clareborma). Cores dos vestidos: branco, azul-marinho, preto. Cores das blusas: branco, azul-marinho com pontos brancos e vermelhos. Peças e marcas de roupa que decide experimentar: Vestido (Rocío) e blusas (Clareborma). Cores dos vestidos: branco e azul-marinho. Cores das blusas: branco e azul-marinho com pontos brancos. Peças e marcas de roupa que decide comprar: Vestido (Rocío) cor branco. Tempo de estada na seção: 60 minutos. Seção que vai depois (2º.lugar): Vestidos de noite (para festa). Cores: preto e roxo. Peças e marcas de roupa que decide ver: Vestidos de seda preta (Roclo). Peças e marcas de roupa que decide experimentar: Nenhuma. Peças e marcas de roupa que decide comprar: Nenhuma. Tempo de estada na seção: 30 minutos. Seção que vai em 3º lugar: Acessórios femininos.

6 Peças e marcas de roupa que decide ver: Braceletes dourados de bijuteria (Riggi), relógios pretos (Moss) e cachecóis pretos, quadriculado verde e azul (Lã Escocesa e Abril). Peças e marcas de roupa que decide experimentar: Cachecol preto (Abril). Peças e marcas de roupa que decide comprar: Cachecol quadriculado verde e azul (Lã Escocesa). Tempo de estada na seção: 40 minutos. Seção que vai em 4º lugar: Peças e marcas de roupa que decide ver: Peças e marcas de roupa que decide experimentar: Peças e marcas de roupa que decide comprar: Descrição da experiência de compra: A mulher entrou séria no local, com expressão fechada, sem dirigir sua atenção a ninguém e sem olhar nenhum objeto em especial. Estava vestida com uma roupa casual-informal, com saia até o tornozelo. Sua roupa, em tons café, era igual à sua bolsa (sic). Ao ver um manequim com a nova coleção dos trajes de banho (verde fosforescente) se deteve para olhá-lo (chamou a sua atenção) e sorriu, deixando para trás sua atitude séria; mudou de humor, relaxou e enquanto estava na seção de roupa casual mostrou-se alegre e entretida. Manteve-se assim durante toda a permanência na seção de roupa e acessórios femininos. Experiência de compra: Satisfatória, pois não demonstrou nenhum incômodo e sorriu durante toda a permanência; estava alegre e feliz, e foi amável com os funcionários que a atenderam. Seus olhos se "arregalavam" quando uma peça ou um artigo a agradava. Queixas: Nenhuma. Cumprimentos aos funcionários ou comentários positivos: Comentou com uma empregada: "Hoje, aqui, ganhei o dia. Compareceu: Sozinha Acompanhada de: Observações: Chamaram a sua atenção os manequins com trajes de banho e os aparadores (vitrinas) com os relógios. Pagou com cartão de crédito e saiu feliz com suas compras; até despediu-se do guarda da porta de saída. Nível sócio-econômico aparente da cliente: A/B (média alta) Idade aproximada: 48 anos NOTA: As marcas são nomes fictícios. Qualquer semelhança com uma marca real é mera coincidência. Morse (1999), em um projeto de pesquisa com pacientes traumatizados e em estado de dor evidente, explorava o significado de "confortar" por parte do pessoal da enfermaria, estudava o contexto que o paciente era reanimado e analisava o processo para dar conforto. Observou - entre outras dimensões - as estratégias que as enfermeiras utilizavam (verbais e não-verbais), o tom e volume das conversas, assim como as funções que o processo cobria. A seguir, reproduzimos um diálogo entre paciente e enfermeira (traduzido por Francisco J.Martínez e Elizabeth Alcántara, p. 11 e 12): Paciente: Aaaagh, aaagh (chorando). Enfermeira: Vou ficar aqui a seu lado. Está bem? (7h36). Vou ficar aqui a seu lado até..._ Está bem? Paciente: Ugh, ugh, ugh, ugh, ugh, ugh, ugh (chorando). Enfermeira: Já passou muito tempo, querida. Eu sei, sei que dói. Paciente: Ugh, ugh, ugh, ugh, ooooh (chorando).

7 Enfermeira: Não chore, querida. Eu sei, querida, eu sei... Está bem. Paciente: Agh, agh, agh, aaaagh (chorando). Enfermeira: Está bem, querida. Não chore (7h38). Paciente: Aaah, aaah (chorando). Enfermeira: Oh, está bem. Sei que dói, querida. Está bem, está bem. Paciente: Agafooo (chorando). Enfermeira: Eu sei. Paciente: Diga a eles que parem (chorando, gritando, gritando). Enfermeira: Precisam prender suas pernas um pouco mais, querida. Está bem? Daqui a pouco vão soltá-las. Está bem? (7h40)... Precisam manter suas pernas retas. Você já é grande... É... é... é importante. Está bem? Vou ficar aqui com você. Vou segurar sua mão. Está bem? Você segura minha mão, tá? Além das anotações diretas, interpretativas, de campo, temáticas e pessoais, convém no final de cada jornada de trabalho fazer um registro ou um diário no qual coloquemos nossas reflexões, pontos de vista, conclusões preliminares, hipóteses iniciais, dúvidas e incertezas. Uma vez. registradas as observações, o material é preparado para sua análise.