Comungar é tornar-se um perigo. Em nosso encontro no mês de março, conversamos sobre o significado de sacramento e encerrei

Transcrição

1 Comungar é tornar-se um perigo Prof. Dr. André Miatello do autor: Em nosso encontro no mês de março, conversamos sobre o significado de sacramento e encerrei minha fala afirmando que a Eucaristia, isto é, o sacramento do Corpo e do Sangue de Jesus é a presentificação do amor de Deus; amor que o evangelista João expressava com o vocábulo grego agápe que, diferentemente de eros, é o amor incondicional e inteiramente gratuito. João escreveu em sua carta: Deus é amor (Ho Theós agape estín). Entre tantas possibilidades de expressão do amor agápe de Deus, tomo apenas uma: como diz uma música brasileira, o amor não cabe em si. Os teólogos diziam que o amor é difusivo, transborda de si. Nós poderíamos acrescentar dizendo que o amor é comunicação, isto é, uma relação dialogal entre um Eu e um Tu que acaba originando um Nós. Entendido dessa forma, o amor é o contrário do EGO-ísmo: ele é comunitário. O amor transborda não para se perder, mas para agregar. Ele se difunde para unir. Um movimento centrífugo, em primeiro lugar, mas, depois, centrípeto. O ato de amar, portanto, tem consequência: ele une os diferentes numa comunhão, unidade indissolúvel que envolve o Eu e o Tu a partir do cerne de cada qual. É por isso que a Escritura afirma, lá no Gênesis, que o Homem e a Mulher, quando se casam, deixam de ser dois seres e se tornam uma só carne, um só ser vivente: o amor, quando é agápe, faz os diferentes participarem de uma mesma natureza. Se essa maravilha acontece quando dois seres humanos se amam, imaginem quanto deve ser ainda mais grandiosa a comunhão entre Deus e a Humanidade. Deus é amor. A natureza de Deus é amor. Vocês conseguem entender isso? A natureza do fogo é queimar, a natureza da luz é iluminar, a natureza da água é molhar. Não existe fogo que não queime, não existe luz que não se difunda,

2 2 não existe água em estado líquido que não molhe. A natureza de Deus é amar. E, repito, amar com o verbo agapein, isto é, amor agápe. Não o amor de ciúme, de posse, de exclusividade, de reciprocidade. O amor que Deus tem por nós é tão diferente do nosso que ele permite até que duvidemos dele, que lhe neguemos a existência: Deus não pode nunca deixar de amar, pois deixaria de ser Deus. Por que é tão difícil entender isso? Por que que eu continuo achando que Deus me ama só quando sou bonzinho? Que Deus me ama só quando vou à Igreja? Deus ama a mim, que sou bonzinho, ama às irmãs deste colégio, que são consagradas, ama a vocês, que são pais e mães devotados. Não é difícil de entender. Difícil é aceitar que Ele também ama a todos os assassinos e bandidos; ama as prostitutas tanto quanto ama as esposas fiéis. Ama os canalhas tanto quanto ama os homens sensatos e honestos. Porque Deus não ama os atos dos homens, ele ama os homens, no seu ser mais profundo. Quer dizer que posso ser ruim e Deus vai continuar me amando? Isso mesmo, eu posso! Primeira lição do verdadeiro amor, ele dá e respeita a liberdade do outro. Se Deus me ama, ele me deixa livre. Entretanto, a segunda lição do verdadeiro amor é: o amor melhora as pessoas! Na medida em que eu conheço a Deus como amor, me dou conta de que o amor é unitivo, ele faz de mim, um ser comum, participante do ser de Deus! Eu, imperfeito, cheio de vícios, torno-me participante do ser de Deus, isto é, do amor de Deus! Na medida em que amo, eu me torno amor. E Deus é amor, logo, o amor diviniza as pessoas, melhora as pessoas. Aliás, esse é um bom termômetro para eu saber se verdadeiramente amo a Deus: como é que eu vivo? Como um canalha? Como um depravado? Como um desonesto? Ainda não aprendi a amar! Não conheço a Deus. Vivo como um marido ríspido? Uma mulher fria? Um filho rebelde? Ainda não amo. Sou um patrão cruel? Um funcionário corrupto? Um colega falso? Um cidadão omisso? Estou longe do amor. Busco o meu interesse? Passo por cima das pessoas? Levo a intriga adiante? Não sei compreender as pessoas? Não, ainda não sei amar. Acho que eu sou melhor que os

3 3 outros? Tenho preconceito? Só perdoo quem me perdoa? Decididamente, o amor é algo estranho em minha vida. O amor! O amor me transforma! De posse dessa premissa, vamos dar mais um passo. O apóstolo Paulo, quando falava da Eucaristia, usava exatamente a expressão de são João: agápe. Junto com o termo eucaristia (que quer dizer ação de graças), agápe era o nome com que os primeiros cristãos chamavam a cerimônia em que o pão e o vinho se tornavam o Corpo e o Sangue de Jesus. A cerimônia chamava-se agápe porque era uma reunião em que pessoas diferentes (escravos e livres, homens e mulheres, ricos e pobres) encontravam a igualdade e se faziam irmãs mediante a comunhão do mesmo amor. Mas também o próprio Corpo e Sangue de Jesus podia ser chamado de agápe, pois, para os apóstolos, tratava-se de uma consequência lógica: se Deus é amor e o amor se doa inteiramente, nada reservando para si, onde é que essa entrega de Deus poderia ser mais evidente se não na eucaristia? Um Deus feito alimento! Como se não bastasse Deus ter-se feito homem, Ele se faz alimento! Se o amor estivesse submetido às leis da lógica, nunca poderíamos afirmar que Deus se fez homem, que o eterno entrou no tempo e, muito menos ainda, que Deus-Homem se fez comida! A Eucaristia é o agápe de Deus, é o próprio Deus à alcance de minhas mãos: a Eucaristia é Deus em minhas mãos! Que coisa estranha! Eu vim aqui hoje achando que a Primeira Comunhão de meu filho significava apenas um evento social, quando muito um rito de passagem, uma espécie de cerimônia religiosa de debutante que é bom comemorar para não queimar etapas, claro, eu fiz a minha Primeira Comunhão e quero que meu filho também faça. Eu vim para cá achando que comungar é receber um pão abençoado, uma hóstia benzida pelo padre, um símbolo do que Jesus fez; cheguei aqui crendo que comungar é apenas um rito, que não tem nada a ver com o que eu sou e o que eu

4 4 faço. Entretanto, estou voltando para casa com um baita problema nas mãos! E talvez, uma crise de consciência. Fazer a Primeira Eucaristia, comungar, é trazer o amor para dentro de minha vida, um amor que me impulsiona a deixar de ser egoísta, a deixar de ser materialista, a abandonar a hipocrisia. Isso mesmo: a abandonar a hipocrisia, essa ilusão de que sou bom, de que mereço consideração das pessoas, de que sou importante e todo mundo tem que me reconhecer. Comungar não é comer uma hóstia! É um compromisso que assumo de abandonar meus preconceitos, minha egolatria, minha desonestidade, minha falsidade! Comungar é deixar de pensar só em mim! É saber que eu só existo na medida em que coexisto e que não existe eu sem o tu. Vai enfiar isso na minha cabeça individualista, consumista, capitalista! Imagina só, por que que eu vou querer comungar? Faz 33 anos que eu vivo do meu jeito e agora vou ter de viver do jeito de Jesus Cristo? Quem esse homem pensa que é? Se comerdes a minha carne e beberdes o meu sangue, disse Jesus, tereis a vida em vós. É verdade: comungar é deixar de viver a minha vida e começar a viver a vida de Jesus. E como é que Jesus vivia? Isso é uma longa história; o que posso adiantar é que não havia homem no mundo por quem Jesus não se fizesse solidário. Não havia dor que não tentasse sarar. Não havia solidão que ele não procurasse consolar. Não havia injustiça que ele não denunciasse. Todo destino humano era importante para ele. Rico ou pobre, tanto faz, amava a todos e comia com todos, preferia os pobres, sim, porque o amor atua melhor onde o egoísmo é maior. Mas, Jesus não era só uma grande pessoa, como foi Madre Teresa, Zilda Arns, Gandhi, ou qualquer outro. Ele era mais do que homem, ele era Deus. Então, ele não fazia o bem só fisicamente ou psicologicamente. Seu amor atuava no íntimo dos homens. A verdade vos libertará, dizia ele. Sim. Quem se aproximava de Jesus entrava em contato com a verdade de si mesmo e melhorava de vida. Mas, todos quiseram melhorar de vida? De jeito nenhum.

5 5 O evangelho nos conta a história de um homem que se aproximou de Jesus perguntando o que era preciso para ir para o céu. Jesus disse para ele: obedeça aos mandamentos. Ele orgulhosamente respondeu: isso eu sempre fiz. Então, Jesus olhou bem no fundo do coração daquele homem, o amou, ressalta o evangelho, e lhe disse: se queres ser perfeito, uma só coisa te falta, vai vende tudo o que tens, dá aos pobres, e depois, vem e segue-me. Ouvindo isso, o homem foi-se embora triste, porque era possuidor de grandes bens. Vejam: o homem foi embora mesmo depois de ter sido amado por Jesus. Não quis a comunhão com ele porque era possuidor de muitos bens. Que bens? Casas? Carros? Dinheiro? Onde está tudo isso agora? Será que aquele homem ainda está vivo desfrutando de todas essas coisas maravilhosas? Diante disso, eu me pergunto: que sentido tem a comunhão no Corpo e no Sangue de Jesus se eu não quero comunhão com a vida de Jesus? Que sentido tem eu trazer meu filho para comungar a vida de Jesus se eu nem sei quem é Jesus e a vida dele não me importa? Estaria eu condenando meu filho a viver uma vida tão ruim que eu mesmo não quero viver? Por que eu tenho medo de amar? Por que eu acho que comungar é coisa para santos? Jesus não se cansou de dizer que ele veio para os fracos e os pecadores? Por que que eu devo ir à missa todos os domingos, não seria para poder renovar meu desejo de viver com Jesus? Não seria para aprender com ele o jeito cristão de viver? Não seria para encontrar aquelas pessoas que a fé me faz chamar de irmãos? É muito mais fácil eu dizer que amo todos os homens sentado no sofá de minha casa; o difícil é sair de meu sofá e partir para a convivência. A fé cristã é uma experiência comunitária. Nunca acontece isoladamente. Não é um caminho de purificação individual, como uma meditação que eu faço dentro de meu quarto. Jesus formou uma família e gostava de estar no meio dos seus familiares. Diz o evangelho que, após a partida de Jesus, a sua família, a Igreja, tornou-se a continuadora de sua presença. Como eu posso crer que sou capaz de estar com Jesus longe do lugar em que ele disse que estaria? Posso eu viver casado com uma esposa que eu só vejo uma vez por ano distraidamente? Posso eu ser um bom pai se não dedico

6 6 ao meu filho a atenção que ele precisa? Por que eu acho que posso dar atenção ao amor só quando eu sinto carência? Comungar! Que ato supremo do amor de Deus! Que ato grandioso da liberdade humana! Que decisão tremenda de mudança de vida. Que experiência imensa do amor que liberta. Quando eu vou diante do altar, para receber o Corpo e o Sangue de Jesus, Ele faz comigo como fez com aquele homem que queria ir para o céu: Jesus me olha bem lá no fundo; ele me ama como eu sou, inteiramente, cada aspecto de mim e me diz: André, se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, isto é, abandona tudo o que te impede de seres tu mesmo, homem livre, autêntico. Se queres ser perfeito, vem e segue-me. Não sigas as ilusões de tua cabeça, as opiniões sobre o amor que a vida te ensinou. Olha para mim, contempla o meu coração, não vês que ele foi rasgado pela lança? Põe teu dedo dentro de minhas chagas, vê, são reais, elas doem, foi por ti, porque te amo. Queres, queres mesmo viver o amor? Vem e segue-me, faze o mesmo que fiz, isto é, ama irrestritamente, sem impor condições ou limites. Queres ser perfeito? Sim? Então, terás de ir muito além da natureza, pois até os bandidos amam aqueles que lhes amam. Quanto a ti, terás de amar sobrenaturalmente, isto é, amar ainda mais aqueles que tua natureza diz que é impossível amar. Jesus diz isso e muito mais. Contudo, o importante aqui não é o que ele diz, mas o que eu digo para ele. Vou-me embora triste? Ou me agarro a Ele e, como Pedro, digo: aonde iremos, Senhor, só tu tens palavras de vida eterna. Posso passar a vida inteira sem comungar? Posso. Posso viver sem nunca ir à missa? Claro que posso. O que não posso é negar a Jesus a minha resposta ao seu convite: queres ser perfeito? Em outras palavras, queres ser verdadeiramente quem tu deves ser? Se eu disser sim, devo admitir que não poderei mais passar a vida sem comungar e nem me afastar da missa, ainda mais aos domingos. Se eu disser sim a Jesus, devo admitir que não há amor

7 7 sem doação, não há Cristo sem cruz, não há alegria sem eucaristia e que comungar é torna-se um perigo!