Dados internacionais de catalogação Biblioteca Curt Nimuendajú
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- Alice Marina Sintra Azevedo
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1 Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira Bibliotecária/CRB 1100 Revisão final: Karla Bento de Carvalho Projeto Gráfico: Fernando Selleri Silva Dados internacionais de catalogação Biblioteca Curt Nimuendajú CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - 3º GRAU IN- DÍGENA. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, Semestral ISSN Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Departamento de Documentação / FUNAI. CDU (81) : 37 UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso Coordenação do 3º Grau Indígena Campus Universitário de Barra do Bugres Caixa Postal nº Barra do Bugres/MT - Brasil Telefone: (65) indiobb@vspmail.com.br SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso Superintendência de Desenvolvimento e Formação de Professores na Educação Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo Cuiabá/MT - Brasil Telefone: (65) FUNAI - Fundação Nacional do Índio Departamento de Educação DEDOC - Departamento de Documentação SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1º Andar Brasília/DF - Brasil Telefone: (61) / dedoc@funai.gov.br
2 EXERCITANDO O SER Severiá Maria Idioriê Xavante* Sou índia Karajá e Javaé. Cursei Letras Modernas e Literaturas Correspondentes, Goiânia/GO. Cresci em Goiânia, com minha família adotiva. Aos 9 anos, perdi minha mãe, de sarampo. Aos 12, meu pai morreu. Não sei a causa de sua morte até hoje. Esqueci a língua Karajá, falo Português, entendo e falo um pouco de Inglês e estou aprendendo a língua Xavante. Aos 6 anos de idade, eu senti que precisava sair de minha aldeia. Não sabia o porquê. O tempo e as experiências fora da aldeia me fizeram sentir que a inquietude se devia aos últimos dias de vida de minha família. Iríamos começar a sobreviver. E a sobrevida me inquietava. Não sabia como poderia assegurar o nosso direito à vida. Senti que era necessário ampliar meus conhecimentos sobre o mundo que me cercava. Entender tudo, refletir, escolher os caminhos e buscar soluções. Meu objetivo: estudar e voltar para meu povo. Minha educação escolar não foi específica, nem diferenciada. Aprendi a falar Português e a ler. E conheci o mundo, lendo. Aos 19 anos, comecei a trabalhar como monitora de crianças, próximo a uma favela. Tive várias dúvidas quanto à minha profissão, igual a qualquer jovem branca. A única certeza que eu tinha: não quero ser professora. Minha família, de classe média, me convenceu a estu- * Índia Karajá e Javaé, Professora Auxiliar na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I. 41
3 dar Magistério, porque consegui uma bolsa de estudos de Inglês. Há muito tempo queria aprender Inglês. Para minha surpresa, adorei estudar temas referentes à educação. Prestei vestibular para Direito na Universidade Federal. Não passei. Prestei para Letras. Todos sabiam que assim que eu terminasse os estudos retornaria à aldeia. Senti que precisava voltar ao meu povo, porém não desejava ir primeiro ao Karajá ou Javaé. Busquei informações sobre os projetos da universidade. Foi aí que começou a grande guinada. Tinha novos questionamentos e reflexões. Sempre tinha tido a certeza de que minha formação me auxiliaria na aldeia. Na prática, visitando e trabalhando em um Projeto de Educação, em uma aldeia Krahó, em Tocantins, constatei o quanto os conceitos da cultura branca estavam impregnados em mim. A visão de mundo, o conceito de higiene, beleza física e sexualidade eram diferentes do povo indígena. Entrei em contato com o preconceito pesado dos não-índios. Vi o ódio e o espanto nos olhos das pessoas não-índias. Na aldeia, constatei que meus conhecimentos urbanos não me permitiriam sobreviver. Não conhecia o cerrado, não sabia fazer fogo ou buscar alimentos. Em casa, comecei a refletir sobre aquilo que iria me fazer novamente feliz. Confrontei as diferenças dos conhecimentos e sentimentos. Pude ver quem eu era, minha essência. Deixei meu coração me guiar e vi que nunca havia deixado de ouvir os tambores, as vozes do meu povo. Senti que tinha sido formada para colocar o meu conhecimento à disposição do meu povo. Juntos poderíamos afirmar, cada vez mais, nossa identidade, nossa capacidade de exercer nossa cidadania, continuar o exercício de ser. Casei-me com um índio Xavante. Tenho uma filha 42
4 lindíssima chamada Clara. Xavante e Karajá são inimigos tradicionais. Xavante é caçador. Karajá é pescador. Xavante é sociedade patriarcal. Karajá, sociedade matriarcal. Começava minha formação. Os Xavante são considerados guerreiros ferozes pela sociedade envolvente. Porém, nunca conheci uma família mais carinhosa, mais gentil, mais risonha, mais respeitosa. O inimigo me ensinou o quanto é importante trabalhar as diferenças para fazer este mundo um pouco melhor. Ensinou-me que a missão mais nobre é trabalhar pela paz, pela felicidade de todos. Que nós devemos aprender com os erros. Comecei a trabalhar com projetos de meio-ambiente. Iniciamos a implementação do Projeto Jaburu, na Reserva Xavante Rio das Mortes, Aldeia Pimentel Barbosa. A filosofia do projeto estava fundamentada nos costumes tradicionais de caça e foi pensada pelos anciãos Warodi e Sibupá. Este projeto consistia em verificar as causas da diminuição dos animais cinegéticos (animais de caça) utilizados pelos Xavante. Uma vez detectadas as causas, buscar as soluções. Para os Xavante, a caça não é apenas um alimento físico, mas sobretudo um alimento espiritual. Se não há caça, não há sonho. Se não há sonho, não há Xavante. Ao desenvolvermos este projeto, começamos um diálogo com a sociedade envolvente. Começamos um processo educacional e de sensibilização. Nosso objetivo era que a sociedade nos conhecesse e nos passasse a respeitar como pessoas de cultura diferenciada, mas pertencente à sociedade brasileira contemporânea. Recebemos vários amigos na aldeia, pessoas e povos do Brasil e do exterior. Fizemos palestras e exposições. Lançamos, junto com o Núcleo de Cultura Indígena, o CD Etenhiritipá, cantos da tradição Xavante. Participamos do lançamento do CD Txai, de Milton Nascimento, e gravamos uma participação no CD 43
5 Roots, da banda de rock Sepultura. Aprendemos e ensinamos muito. Foi um processo de aprendizagem muito rico. Até 1994, eu não havia iniciado meus trabalhos de educação escolar por pura insegurança. Iniciei algumas atividades de educação ambiental. Não queria atrapalhar o processo educacional próprio da comunidade Xavante. Quando via as crianças brincando, aprendendo, fazendo o exercício de ser eu me perguntava: Qual é o papel do professor? Para que a escola? Os conhecimentos tradicionais não são suficientes para fazê-los cidadão Xavante/brasileiro e viverem bem? Durante a minha formação nos conhecimentos Xavante, comecei a viver segundo a visão daquele povo. No início, tive resistência. Afinal, eu tinha estudado na cidade. Eu sabia muita coisa. Não queria voltar ao primitivo. Foram processos internos de aprendizagem: o que é essencial, o que é dispensável. Ainda estou em formação. Estou melhorando meu nível de compreensão do mundo e respeitando a visão das outras pessoas. Mudando aquilo que é possível em mim. Confesso que é um processo difícil, nem sempre alegre. Porém, é bem gratificante. E estou aprendendo que, quando as coisas não são fáceis, a melhor coisa é dar um mergulho no rio e dar umas boas gargalhadas. Depois, sentar e ouvir os velhos vendo um céu todo estrelado. Ver, sentir, ouvir, falar e perguntar tudo que se queira saber. É necessário assegurar a continuação do conhecimento tradicional. É importante garantir a continuidade dos conhecimentos tradicionais e possibilitar o acesso aos conhecimentos universais. É necessária a ampliação do conhecimento sobre os não-índios para entendermos as suas atitudes. Mas é fundamental que a formação na aldeia, a formação tradici- 44
6 onal, assegure o exercício de ser: continuar sentindo o orgulho de ser Karajá, Xavante, Bororo, Potiguara. Somente dessa forma seremos respeitados como pessoa, povo pertencente à grande raça humana, que tem o direito de exercitar a diferença de pensamento e expressão cultural. É necessário que o povo indígena sinta e analise a sua realidade e os seus objetivos para poder executar ações positivas que fortaleçam sua identidade. É este o nosso desafio maior. Ao mesmo tempo, é necessário conseguirmos aliados da sociedade envolvente. É importante podermos contar com pessoas da sociedade não-índia, para trabalharmos juntos às questões educacionais. Pessoas que entendam e conheçam o processo histórico ocorrido no país. Isto porque pude constatar na prática os preconceitos diários que sofremos quando estamos na cidade. Diariamente, temos que provar que somos gente. Para analisar a formação em educação escolar indígena, é fundamental a ampliação de nossa visão para observar todos os aspectos. Cada povo deve pensar sua realidade de educação escolar. Há que se pensar em alguns pontos: - Qual é a importância da escola e do professor para a comunidade? - Qual é o compromisso pessoal de cada membro da comunidade em relação à escola? - O que é ser educador/professor? - Quais são os objetivos da educação oferecida na escola? - Quais são os conhecimentos e as atitudes que o educador/professor devem ter? - Como trabalhar com pesquisadores, amigos, universidade, poder público e privado? É necessário buscar parceiros? 45
7 Estes são alguns pontos que devemos observar para a definição do tipo de educação escolar que permite ao nosso povo continuar o exercício de ser: ser gente feliz. É através da análise destes vários aspectos que poderemos executar ações positivas que consolidem uma educação escolar diferenciada e específica. Uma educação escolar que deve primar pela alta qualidade de trabalho e de profissionais da educação. Uma educação escolar que busque analisar sua realidade e a sociedade em que se está inserida. E, deste modo, busque soluções inteligentes e adequadas para os problemas. Para nosso povo, aprende-se fazendo, exercitando, observando o outro. Vivendo um contínuo exercício de ser. Uma hora sendo mestre, outra hora sendo aluno. 46
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