Maria Aparecida Papali, Maria José Acedo del Olmo e Valéria Zanetti 1

Transcrição

1 A resistência indígena em São José dos Campos (1760) Maria Aparecida Papali, Maria José Acedo del Olmo e Valéria Zanetti 1 Na década de 1980, o brasilianista Stuart Schwartz anunciava, numa revista histórica, um grande achado: um documento de 1790 evidenciando um tratado contendo um programa de reivindicações dos escravos do engenho de Santana, em Ilhéus, na Bahia, encaminhada ao seu senhor. Com a descoberta desse documento, Schwartz propunha, na época, uma releitura da resistência escrava sob nova perspectiva: a da negociação ou do pacto sistêmico, estabelecido entre escravos e senhores. Tal achado foi, realmente, extraordinário, dinamizando uma efervescente polêmica historiográfica. De um lado, alguns historiadores se debatiam à nova perspectiva, argumentando que as relações escravistas estavam baseadas em classes nitidamente antagônicas, o que sugeria a ausência de qualquer tipo de acordo ou negociação. De outro, as novas abordagens, alicerçadas pelo grande achado, propunham uma resistência escrava calcada na capacidade do escravo negociar sua condição, uma vez que teria que viver sob regime escravista. Para isso, faziam-se acordos sistêmicos, estabelecidos estrategicamente dentro do sistema escravocrata. Explorando em proveito próprio as condições escravistas, senhores e escravos tiveram de encontrar os caminhos para uma convivência muito estreita, uma vez que, segundo essa abordagem, seria complicado se o sistema funcionasse somente mediante o exercício da violência. Não cabe aqui discutirmos a historiografia escravista. Nossa intenção está em mostrar como um achado documental pode mudar o rumo dos discursos históricos. O achado de Schwartz dizia a respeito à resistência de escravos descendentes de africanos num engenho, contra as condições de trabalho impostos pelo seu senhor. Um estudo mais detalhado mostrou que esses escravos haviam sido de uma administração jesuítica que permitia algumas regalias como constituição de família e descanso nos dias santos, reivindicações estas estabelecidas no tratado que elaboraram e enviaram ao seu proprietário. 1 Professoras e Pesquisadoras da UNIVAP, integrantes do Projeto Pró-Memória.

2 Uma investigação histórica sobre o passado de São José dos Campos nos proporcionou também um importante achado que pode revolucionar as discussões historiográficas a respeito do universo indígena do Brasil setecentista. Numa carta, sem datação - mas que por estar no meio de um montante de documentos da década de presume-se ser deste período, encontra-se também, assim como no achado do engenho de Santana, uma reivindicação dos índios da aldeia de São José. Índios Maurice Rugendas Nela consta a reclamação que os índios fazem do diretor da vila, encaminhada ao Presidente da Província. Conta-nos, o documento que o administrador da vila, aproveitando-se de sua posição, humilhava os indígenas e aproveitava-se das mulheres, amancebando-se com várias ao mesmo tempo. Além disso, o diretor é acusado pelos índios de explorar tanto o trabalho deles que chega ao ponto de aleija-los. A forma utilizada para o diretor conseguir seus intentos era intimidar os índios com prisões deixando claro que ele tudo podia por ser um capitão-mor

3 e os índios uns "caboclos". Ao relatar na carta as arbitrariedades do diretor da aldeia, os índios enfatizam que tudo isso ele faz "com palavras desonestas que não podemos explicar por respeito a V. Exª, pois na boca dele só não vê, senão porcarias e desonestidades sem temor de Deus que nunca o tem nem mostra que o tivesse, para aquelas com quem vive concubinado." 2 Por não termos elementos evidentes na carta que sugiram o nome do escrivão, lançamos a hipótese de que pode ter havido a colaboração de um religioso na elaboração do documento, uma vez que é notório o domínio dos termos linguísticos da época. Também não podemos esquecer que os índios aldeados sofreram forte intervenção cultural com o processo de alfabetização a partir da presente vocação educacional jesuítica. A alfabetização era algo inerente à cristianização dos aborígenes. 2 Atualizamos a grafia para facilitar a compreensão do texto. O texto original pode ser visualizado no site do Projeto Pró-Memória. Microfilme da década de Arquivo Público Municipal de São José dos Campos.

4 Em suas correspondências, José de Anchieta dá-nos conta do viver e aprender nas aldeias, relatando-nos as exaustivas aulas de gramática divididas entre três classes diferentes 3, donde se ensinava "pela manhã até à noite". 4 Grande empreendedor espiritual, Anchieta se anima ao relatar que "o ensino dos meninos aumenta dia a dia e é o que mais nos consola; os quais vêm com gosto à Escola..." 5 O teor da carta dos índios aldeados de São José evidencia um franco processo de aculturamento. Os índios não só temiam a Deus como se diziam cristãos. Isso é nítido na fala a seguir: "(...) esta é Excelentíssimo Senhor, o bom exemplo que nos dá o diretor, e V. Excelência não há de permitir semelhante coisas e destruições de honras pois isto não é serviço de Deus nem de Sua Magestade. Tratam-nos como negros contra as ordens de S. Magestade, descompondo os oficiais com palavras desonestas sempre com o diabo na boca, e nós sofrendo tudo por obediência a V. Exa e suposto Sr. Que somos índios, somos filhos de Deus Cristãos batizados e sentimos os desprezos que nos fazem." 6 3 Minhas Cartas, por José de Anchieta. Associação Comercial de São Paulo e Diário do Comércio, p. 7."em três classes diferentes" quer dizer no ensino de Gramática Latina, que se dividia ao modo clássico em ínfima, média e suprema. 4 Idem. P Idem. P Microfilme da década de Arquivo Público Municipal de São José dos Campos.

5 Índios Jean Baptiste Debret Os indígenas deixam claro, portanto que, se seus pedidos não forem atendidos, tomariam drásticas atitudes: "despejaremos a aldeia que já não podemos sofrer mais de tão inimigo da igreja, e de todo o bem espiritual." 7 Essa fala deixa entrever mais os interesses dos religiosos da vila, do que dos próprios índios, uma vez que evidencia-se a indignação com o impedimento de se ensinar a doutrina cristã e de ouvir missa de madrugada. De acordo com o próprio documento, "impediu todo o bem espiritual de sorte que estamos quase outra vez no gentilíssimo.". Acrescentam ao documento relatos sobre as condições da aldeia: "e esta aldeia (está) em pior estado que nunca temos 7 Idem.

6 casas para morar, e não quer dar-nos tempo para fazê-las. Está tudo destruído." Relatam também a exploração do trabalho indígena pelo diretor: "Com o nosso trabalho recebeu duas doblas e meia e comprou do nosso ganho um cavalo e não deu nada a nenhum (de nós). Isto há perto de uns anos, servindose com sete rapazes sem lhes dar mais que pau-mandados. De tal sorte as deu em uma picada de uma cobra que lhes arrebentaram as mãos e esta foi a cura que lhe deu e assim paga a quem o serve e sempre andando como negros de uma parte para a outra a mandados dele sem conveniência nenhuma." Quando os índios afirmam que o diretor os põe a trabalhar "como negros [andando] de uma parte para a outra a mandados dele", percebe-se uma forma de entendimento que eles faziam sobre a sua própria condição social. Os índios de São José se consideram pessoas livres das imposições sofridas pelos negros africanos em condições escravistas, portanto, para defenderem a natureza do seu trabalho, não admitem sofrerem explorações daquele tipo. É provável que os religiosos, interessados em manter os índios reduzidos às suas aldeias, tivessem divulgado a notícia da proibição de sua escravização. No Artigo 19 do Regimento de 1686, o rei faz recomendações aos missionários de que devem lembrar aos "índios que não se escusem sem justa causa para acompanharem os colonos ao sertão." 8 Essa instrução do rei é fruto das recorrentes investidas dos bandeirantes às aldeias. As comunidades aldeadas sofriam, constantemente, a visita de agenciadores de mão-de-obra que rondavam as aldeias e vilas brasileiras atrás da força de trabalho indígena. Recrutados à força, os índios "missionados" eram aproveitados nas fazendas mercantis. 8 SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão. RJ: Nova Fronteira, P.25.

7 Índios Escravizados Jean Baptiste Debret O Regimento de 1686 também proíbe o trabalho infantil e o labor dos velhos e doentes, assim como pede aos missionários para cuidar para que os índios não vivam na ociosidade, persuadindo-os às vantagens da vida honesta de seu trabalho. O documento também faz menção ao pagamento oportuno dos salários combinados. Pelas reivindicações feitas pelos índios joseenses é bem provável que soubessem do teor deste documento real. O que provavelmente os índios não sabiam é que pretextos para os escravizar era o que não faltava. Voltemos ao documento reivindicatório dos índios. Rechaçando a figura do administrador da Vila, os índios se expressavam: "Eis aqui, V. Exª quem é o diretor da aldeia de S.José de que V. Exª ainda não está inteirado que mais parece diabo batizado que cristão, e por isso recorremos a V. Exª como nosso pai por não termos de quem nos valermos para que ponha em nós os olhos com piedade, atendendo pela honra de Deus e a nossa miséria." Pedem outro capitão-mor para a aldeia e, como justificativa da reivindicação se sentem no direito de substituir o diretor, pois, segundo o documento: "Nós trabalhamos e queremos trabalhar por ser o proveito nosso e pagamos dízimos a S. Magestade há muitos anos como podem dizer os dizimeiros que nos tem cobrado. Nós nos sujeitamos às ordens de V.Exª que

8 nos tire este (diretor) logo, e nos dê um diretor casado, temente a Deus nosso Senhor ou um capitão mor da Aldea que nos governe, que em tudo lhe obedeceremos, e não a este lobo que nos põem na última consternação a que chegamos (...) na maior desesperação, desestimando-nos e destruindo-nos a nossos filhos e mulheres e dizendo que por isso somos mais honrados." Caso seus pedidos não fossem atendidos, os índios dispersariam a aldeia, como fica claro no trecho a seguir: "E, se V.Exª o não põem já fora, dispersaremos a aldeia, assim homens como mulheres e buscaremos o centro dos matos donde tivemos a nossa origem." Na carta, os índios dizem que as arbitrariedades do direto são muitas e que registraram parte delas, que continham "cousas que por não poderem falar a V. Exª ficam em silêncio." Infelizmente, não sabemos se o diretor foi substituído mas uma coisa é certa; podemos confirmar que a jurisdição espiritual que coube aos jesuítas, a partir do trabalho de catequização e conversão do gentio surtiu grandes efeitos. Isso é notório no documento encontrado, uma vez que os índios dispersados das aldeias jesuíticas, fixaram-se no novo aldeamento, agora sob condição civil, mantendo fortemente a vocação cristã adquirida em condição de governo temporal. Isso permite-nos estabelecer uma coincidência histórica. Assim como em Ilhéus, os índios da Vila de São José dos Campos haviam sido administrados pelos jesuítas. Enquanto lá se negociavam questões ligadas ao mundo do trabalho, em São José, utilizava-se da conduta e dos preceitos cristãos para organizar e moralizar a vila.

9 BIBLIOGRAFIA: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000 ( Grandes nomes do pensamento brasileiro). HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Brasiliense, MAESTRI, Mário. Terra do Brasil: a Conquista Lusitana e o Genocídio Tupinambá. São Paulo: Moderna, 1993 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e Bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro) PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O Livro de Ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001 SILVA, José Bessa da. 1500: A Invasão do Brasil. São José dos Campos, SP, 2000.