FUNDAÇÃO PARA A SAÚDE. António Sampaio da Nóvoa. 27 de Setembro, 17 horas
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- Sebastião Teixeira Igrejas
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1 FUNDAÇÃO PARA A SAÚDE António Sampaio da Nóvoa 27 de Setembro, 17 horas Foi uma grande imprudência ter aceitado este convite. No meio de tantas pessoas que conhecem tudo deste campo, que posso eu dizer? Apenas apontamentos genéricos, esperando que não se aplique ao campo da Saúde aquilo que, em tempos, denunciei para o campo da Educação [História do meu livro Evidentemente]. Mas este apelo, por parte de pessoas que tanto admiro, obrigavam-me a um dever de presença. O Serviço Nacional de Saúde é uma das grandes referências de Abril e da democracia. É certamente um dos poucos domínios em que Portugal cumpriu a ambição das nossas melhores gerações: não a de ser um país excepcional, messiânico, sebastianista, mas justamente o contrário, a de ser um país normal. António Sérgio bateu-se por esta ambição (que parece pequena, mas é a maior de todas) ao longo de toda a sua vida. [Referência ao prefácio de António Sérgio a Gilberto Freyre, O Mundo que o Português Criou.] 1
2 O Serviço Nacional de Saúde alimentou-nos esta ilusão, a ilusão de que somos um país normal (um país onde há bibliotecas, abertas todo o dia, com livros nas prateleiras, com leitores, com pessoal de apoio, com serviços de qualidade com tudo o que faz um país normal). Onde está bibliotecas, por favor, escrevam hospitais! Ora é esta normalidade que a crise, melhor dizendo, as sucessivas crises têm vindo a pôr em causa, a enfraquecer, a debilitar. E aqui entra a política, as escolhas de sociedade que definem não apenas o que somos hoje, mas sobretudo o que seremos amanhã. Pela minha parte, apetece-me repetir uma das personagens de Clarice Lispector: Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca mais poderia voltar à sua dimensão antiga. No domínio que aqui nos junta, o Serviço Nacional de Saúde, nenhum de nós está disposto a voltar ao antigamente. E para que isso não aconteça permitam-me que partilhe convosco três preocupações: sobre o espaço público, sobre a formação e sobre a salutaridade (palavra que vos proponho à falta de outra que me sirva melhor). 2
3 1. Em primeiro lugar, sobre o espaço público, apropriando-me deste conceito de Jürgen Habermas e trazendo-o para o campo da saúde. A democracia não acaba no Parlamento. Falta-nos uma dimensão de participação, de formas organizadas de participação e de decisão que permitam consolidar escolhas e assumir responsabilidades. O que se percebe hoje, com mais nitidez ainda do que no passado, é a fragilidade da sociedade portuguesa. Como se o país fosse uma película fina que se desfaz à mais leve trepidação... É esta fragilidade que nos assusta e que nos obriga, sobretudo no domínio da saúde, a olhar, a olhar todos os dias, para as formas de pobreza e de miséria que nos atingem e que nos magoam. O Serviço Nacional de Saúde tem-nos mostrado que podemos ser um país normal e até nos tem dado a ilusão de que conseguimos tratar quase por igual pobres e ricos. Nos últimos anos, tenho falado da necessidade de construir um Espaço Público da Educação que é um espaço mais amplo do que o espaço institucional da escola. Também o Espaço Público da Saúde é um espaço mais amplo do que o espaço das suas instituições especializadas. 3
4 A educação, a saúde, a segurança, o território são temas que não podem ficar nas mãos de tecnocratas e de gestores. Não porque o seu conhecimento especializado não seja importante (é muito importante, é mesmo decisivo em domínio tão complexos como a saúde e num país com tantas dificuldades de organização como o nosso), mas porque a saúde tem uma dimensão privada e pública que os ultrapassa. Uma dimensão que abrange pessoas e instituições, também do terceiro sector, que tem de lidar com as novas realidades da vida e da sociedade, do ambiente e do envelhecimento. Imaginar, e construir, este espaço público, de pensamento, de acção, de debates, no plano nacional, mas também de decisões e de escolhas no plano local, parece-me um caminho necessário para que o país não ande sempre a voltar para trás e para que, progressivamente, se instale a normalidade que nunca (ou quase nunca) tivemos na nossa vida colectiva. 2. O meu segundo apontamento e tenho a obrigação de o fazer é sobre a formação dos profissionais da saúde, em particular sobre a formação universitária. Nenhum de nós desconhece os enormes avanços que se têm feito neste campo. Mas todos temos a consciência de que há um desfasamento, uma distância enorme, entre aquilo que dizemos (e que queremos) e aquilo que fazemos. 4
5 Estamos perante duas revoluções com enormes consequências no plano da formação: - a primeira é a revolução da convergência, para adoptar a expressão inventada pelos nossos colegas do MIT: convergência entre disciplinas, em áreas de fronteira, convergência das ciências da vida, das ciências físicas e das engenharias, convergência que permite ir mais longe no conhecimento e na compreensão do mundo; - a segunda é a revolução (sempre adiada) da abertura, da interdependência, da capacidade para formar os estudantes numa perspectiva mais alargada, mais ampla, de abertura a várias disciplinas, a um leque alargado de conhecimentos, de práticas e de culturas interdependentes. Na Universidade de Lisboa avançámos, há dois anos, com um curso de Estudos Gerais (nas artes, humanidades e ciências fundamentais), que rompe com a tradição universitária portuguesa (e da Europa continental). Não será possível fazer o mesmo no interior do campo da Saúde, em vez de continuarmos, tantas vezes, a produzir essa estranha criatura a que Michel Serres dá o nome de culto ignorante [SSS spécialiste spécialement spécialisé]. Estranhamente, o Processo de Bolonha que devia contribuir para estas duas revoluções da convergência e da abertura tem sido concretizado de um modo que estreita ainda mais os estudos universitários e que provoca uma profissionalização especializada precoce. 5
6 3. Finalmente, um último apontamento, mais arriscado, sobre a salutaridade, sobre a qualidade de ser e de estar salutar, de ter saúde. Creio que a palavra não existe, e também não é muito bonita, mas ilustra o que quero dizer. De tempos a tempos, regresso aos mesmos autores. Agora, tenho andado às voltas de novo com Ivan Illich, em particular com os seus escritos da década de setenta sobre a convivialidade e sobre a desescolarização da sociedade. Por esta altura, escreveu também a némesis médica em torno da expropriação da saúde. O tema merece ser revisitado para marcar um duplo movimento, individual e colectivo. No plano individual, para sublinhar a importância do conhecimento da pessoa e não apenas da doença, para valorizar o que o doente sabe sobre si mesmo para além da informação médica sobre a doença. Uma abordagem exclusivamente técnica tende a privar o doente da sua liberdade e, até, da sua pessoalidade. A autonomia de cada um sobre a sua própria existência, e sobre as decisões da sua vida, define uma relação salutar, íntegra, que pensa a pessoa na sua inteireza humana. No plano colectivo, para afirmar que as grandes causas da saúde se resolvem, não na saúde, mas na sociedade: na educação, nas condições de vida e de trabalho, na relação com os outros. Não se aprende a cuidar de nós sem se aprender a cuidar dos outros. Dizem-me que a palavra solidariedade caiu 6
7 em desuso, que vivemos um outro tempo! Mas, sem ela, como conceber um Serviço Nacional de Saúde? Estes dois movimentos têm consequências concretas, políticas e organizacionais, no sentido de evitar o crescimento exponencial de lógicas de medicalização e de tecnologização, sempre suportadas em grandes negócios e interesses, no sentido de devolver a saúde às pessoas e de afirmar a sua dimensão pública. A salutaridade convoca estes dois movimentos, pressupõe que se assuma uma responsabilidade individual e colectiva, pessoal e pública, sobre as condições que definem a qualidade da nossa saúde, de cada um e de todos. Aqui ficam três apontamentos, que valem o que valem. Espero que valham sobretudo como apoio a esta iniciativa de reforço do nosso Serviço Nacional de Saúde. Não sei se, no campo da saúde, isto é da vida, tudo se resume à pergunta que nos faz Cruzeiro Seixas, o mestre surrealista: Afinal, quantos anos de aprendizagem são necessários para um homem morrer?. E para morrer tentando morrer em pleno voo Bela metáfora da viagem. De uma viagem por águas agitadas. Com uma certeza, que a vossa iniciativa confirma: temos de fazer alguma coisa antes que alguma coisa se faça contra nós. 7
8 Agora, que trago outra vez Torga na cabeça, é mesmo com ele que termino, quando confessa, no seu Diário, que teve um dia em cheio: Desde as nove da manhã até às sete da tarde a semear confiança! Até já me doía a garganta. Mas fechei o consultório, consolado. O rapaz melancólico deve reagir, a moça apaixonada vai certamente recuperar o namorado, e o homem dos zumbidos, com um pouco de resignação e as pílulas que lhe receitei, talvez passe melhor. É bom isto de ser médico e poeta. São dois a dar. Que sejamos, também nós, não dois, mas muitos a dar pelo Serviço Nacional de Saúde. 8
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