O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE COMUNIDADES DE PRÁTICA LOCAIS NO AMBIENTE DA MODELAGEM MATEMÁTICA
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- Maria da Assunção Sabrosa da Costa
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1 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE COMUNIDADES DE PRÁTICA LOCAIS NO AMBIENTE DA MODELAGEM MATEMÁTICA Bárbara Cândido Braz Universidade Estadual de Maringá (UEM) Lilian Akemi Kato Universidade Estadual de Maringá (UEM) Resumo: Numa perspectiva sociocultural, a aprendizagem escolar da Matemática pode ser entendida como o processo de participação em práticas partilhadas na sala de aula. A partir deste ponto de vista, este texto tem como objetivo discutir algumas contribuições da Modelagem Matemática no processo de constituição de Comunidades de Prática Locais, LCoP; a partir do qual uma prática é construída e partilhada entre alunos e professor na aula de Matemática. Para tanto uma ferramenta de análise das ações dos alunos neste ambiente foi desenvolvida, com base no referencial adotado e, a partir de um episódio de sala de aula tais conceitos são apresentados e discutidos. Os resultados obtidos evidenciam que o ambiente de aprendizagem da Modelagem constitui-se um espaço rico em possibilidades para a constituição de uma LCoP, ao mesmo tempo em que apresenta algumas condições prévias para que ações concernentes à constituição de LCoP sejam desenvolvidas. Palavras-chave: Modelagem Matemática. Comunidades de Prática Locais. Aprendizagem Situada. Apresentação Recentemente, no âmbito de ensino de Matemática, as teorias de aprendizagem acríticas têm dado lugar àquelas que tomam o sujeito social como foco e sugerem que o conhecimento é construído a partir das interações entre os sujeitos, e deles com o mundo em que vivem (BOALER, 2001). A partir deste entendimento, a Teoria da Aprendizagem Situada, sistematizada inicialmente por Lave e Wenger (1991) tem oferecido uma nova perspectiva acerca do uso e desenvolvimento do conhecimento. Para Lave e Wenger (1991) o processo de aprendizagem dos sujeitos se dá a partir do seu envolvimento em práticas que se desenvolvem em contextos bem específicos, denominados de Comunidades de Prática (CoP). O processo de
2 desenvolvimento de uma CoP assume características particulares, que no ambiente da aula de Matemática são mais delimitados do que naquelas constituídas em outros contextos. Nesse sentido, no ambiente da sala de aula Winbourne e Watson (1998) intitulam tais CoP s de Comunidades de Prática Locais (LCoP) e descrevem características que precisam ser analisadas a fim de afirmar a sua constituição na aula de Matemática. De acordo com Boaler (2001) no domínio da Educação Matemática a perspectiva da aprendizagem no âmbito social, especificamente no da Teoria da Aprendizagem situada, têm enaltecido o papel da Modelagem Matemática. Por outro lado, não encontramos na literatura estudos que justifiquem como a Modelagem Matemática pode contribuir com o processo de constituição de LCoP; ambiente em que se desenvolve o processo de aprendizagem em tal perspectiva. Partindo deste aspecto, neste texto realizamos uma discussão acerca das possibilidades de constituição de LCoP nas aulas pautadas na Modelagem Matemática. Para tanto descrevemos uma perspectiva de se olhar uma aula de Matemática como uma LCoP e discutimos as ações desenvolvidas pelos alunos, neste ambiente, a partir de dados empíricos. Os resultados obtidos indicam que o ambiente de aprendizagem da Modelagem Matemática revela-se rico para a construção de uma prática partilhada entre os alunos, ao mesmo tempo em que apresenta algumas condições prévias para que ações concernentes à constituição de LCoP sejam desenvolvidas. A prática da Modelagem Matemática na concepção assumida Diversamente ao que ocorre no âmbito da Matemática Aplicada, no campo da Educação Matemática a Modelagem assume algumas variações de compreensões no que concerne às suas práticas. Se como método da Matemática Aplicada, a prática da Modelagem é bem definida: a simplificação de situações em termos matemáticos, com o objetivo de descrevê-las e fazer previsões acerca dos fenômenos; na Educação Matemática, diversas compreensões têm sido dadas ao fazer Modelagem. Desta diversidade de caracterizações da Modelagem emergem diversos fazeres pedagógicos na sala de aula (BARBOSA, 2001). Nesta perspectiva, inicialmente tomamos como foco o entendimento de prática de Modelagem Matemática aqui assumido, pois é esta a unidade de análise considerada neste estudo.
3 Compartilhamos da compreensão de Barbosa e Santos (2007) e Barbosa (2007) que entendem a prática dos alunos no ambiente de aprendizagem da Modelagem, como as ações desenvolvidas pelos alunos na abordagem de uma situação-problema oriunda de outras ciências (que não a Matemática), ou do dia-a-dia. Neste entendimento, a prática de Modelagem será sempre uma prática social, pois se tratam de ações desenvolvidas em determinados contextos. Esta compreensão de prática da Modelagem Matemática tanto apresenta a natureza da situação-problema que os alunos abordam (OLIVEIRA; BARBOSA, 2007), quanto evidenciam aspectos abarcados pela concepção de Modelagem Matemática que direcionou este estudo: um ambiente de aprendizagem, pautado nos processos de problematização e investigação de problemas com referência na realidade (BARBOSA, 2007). Tal ambiente de aprendizagem é posto na forma de convite, cabendo aos alunos aceitá-lo ou não. Caso alguns alunos não aceitem o convite para a atividade, as aulas pautadas na Modelagem podem tornar-se tradicionais, para estes alunos, em determinados momentos do seu encaminhamento. Por outro lado, o delineamento da atividade para desenvolvimento em grupos, pode favorecer o interesse e motivação dos alunos para a Modelagem (ZAWOJESKI; LESH; ENGLISH, 2003) e incentivar o aceite do convite proposto. O delineamento do ambiente de aprendizagem da Modelagem, desenvolvido a partir do trabalho em grupos, pode gerar algumas conseqüências. Para Fox (2006) o trabalho em grupo, em Modelagem, facilita a discussão, o debate, refinamento de ideias matemáticas. Além disso, a mesma autora salienta que o compartilhamento de conceitos e explicações matemáticas, geradas pela Modelagem, faz com que ela possa ser caracterizada como experiência social. No mesmo sentido, especialmente em relação às interações mantidas entre os alunos e entre alunos-professor neste ambiente, Barbosa e Santos (2007, p.4) afirmam que tais interações embasam a construção de modelos matemáticos; entretanto se desejamos compreender a prática de Modelagem dos alunos, não devemos buscar compreensões na relação dos atores sociais (alunos e professor) com Modelagem, mas na relação entre eles mediada pela Modelagem. Para se compreender a relação aluno-aluno e professor-aluno, mediada pela Modelagem Matemática, vêm a noção de espaços de interações, que se refere ao
4 encontro entre alunos e professor a fim de discutir uma atividade de Modelagem. A partir deste encontro os alunos empreendem processos, pautados nos seus discursos, que os conduzem a um modelo matemático. A este processo traçado pelos alunos, Barbosa (2007) chama de rotas de Modelagem. A ideia de rotas de Modelagem é associada as noções de discussões técnicas, matemáticas, reflexivas, mantidas entre os alunos e entre alunos e professor no encontro por meio da Modelagem. Estas discussões são o meio de mediação para as ações mantidas no ambiente de Modelagem (BARBOSA; SANTOS, 2007). De maneira sucinta, as discussões técnicas referem-se aos processos de simplificação e de matematização da situação-problema; as discussões matemáticas, por sua vez, referem-se estritamente aos conceitos e algoritmos matemáticos (BARBOSA; SANTOS, 2007) e as discussões reflexivas dizem respeito àquelas que retomam os critérios usados na construção do modelo e seus reflexos na sociedade. Além destes tipos de discussões, Barbosa (2007) ainda identificou um quarto tipo de discussão que emerge no ambiente de aprendizagem da Modelagem e que, embora não esteja diretamente vinculado à construção de um modelo, refere-se à reflexão sobre a vida em sociedade: as discussões paralelas. As discussões que podem surgir no ambiente de aprendizagem da Modelagem, denotando suas práticas, podem propiciar que alunos que normalmente não são reconhecidos como matematicamente competentes nas aulas de Matemática, sejam reconhecidos como tal, por meio das interações mantidas, como mostraram Zawojewski, Lesh, e English (2003). Ademais, a concepção de prática de Modelagem assumida, propicia a intercessão de práticas matemáticas escolares e extraescolares, visto que nesta perspectiva as vozes que circulam num certo contexto sócio-cultural que constituem as vozes particulares de cada um, as quais retornam para o ambiente social (BARBOSA; SANTOS, 2007, p. 4). Este aspecto é essencial para a compreensão do processo de aprendizagem da Matemática tal como discutido por Lave e Wenger (1991). Aprendizagem como prática social: a constituição de LCoP
5 Estudos desenvolvidos por Jean Lave 1 em contextos não escolares levaram-na a concluir que os conhecimentos dos indivíduos são construídos de forma particular por meio de experiências situadas (FRADE, 2003); levando-a a afirmar que o conhecimento é resultante das relações entre as pessoas, na atividade, e com o mundo social (MATOS, 1999; FRADE, 2003). A partir destes resultados, Lave e Wenger (1991) sistematizaram uma teoria de aprendizagem na perspectiva sociocultural. O objetivo dos autores não foi substituir as teorias de aprendizagem conhecidas, mas entender a aprendizagem como prática inerente a fatores sociais, culturais e contextuais. Enquanto aspecto da prática social, a aprendizagem envolve a relação com atividades específicas, e o tornar-se participante, membro de comunidades sociais. Para Lave e Wenger (1991), portanto, aprender está intimamente ligado ao fato de participar do que Lave e Wenger (1991) chamam de Comunidade de Prática, CoP. O conceito de CoP não pode ser entendido por meio de um protocolo, mas pela compreensão dos elementos que a caracterizam. Seja qual for a natureza da CoP, Wenger (1998) afirma que ela será sempre sustentada por um domínio de conhecimentos no qual os participantes estão preocupados em manter; uma comunidade de pessoas interessadas em manter o domínio e uma prática que os mantém unidos. Ademais esclarece que três elementos serão fonte de coerência da prática em relação à comunidade: o engajamento mútuo, o empreendimento articulado e o repertório partilhado, que se referem respectivamente a fazer as coisas juntos, manter uma responsabilidade mútua em relação às ações negociadas e desenvolvidas e à criação e/ou adoção de práticas, discursos, histórias que são comuns aos membros da CoP. Os autores ainda caracterizam uma CoP enquanto a participação num sistema de atividades acerca das quais os participantes partilham compreensões (significados) relativamente àquilo que estão fazendo e o que isso significa para as suas vidas e para as suas comunidades (p. 98). A análise da constituição de CoP s no ambiente da sala de aula, entretanto, exige maiores cuidados, considerando-se que inicialmente esta teoria não foi sistematizada a partir do ambiente escolar, ou da sala de aula. Por outro lado, a partir do posicionamento de Lave e Wenger (1991) que afirmam ser potencialmente útil pensar a aprendizagem 1 Tais estudos são apresentados no livro da autora, intitulado Cognition in Practice (1988).
6 escolar a partir deste referencial, diversos autores têm procurado interpretar a noção de CoP e as implicações da sua constituição nas aulas de Matemática. Dentre esses autores estão Winbourne e Watson (1998). Winbourne e Watson (1998) consideram as restrições impostas pelo contexto da sala de aula da Matemática escolar, e denominam tais CoP s desenvolvidas nas aulas de Matemática, de Comunidades de Prática Locais (LCoP). De acordo com os autores, tais comunidades são mais restritas, locais, em termos do tempo que duram, do espaço que ocupam, e das práticas normais escolares. O objetivo é proporcionar uma visão da constituição de CoP na aula de Matemática e para isso apresentam seis características que representam a constituição de uma LCoP: 1. Os alunos verem-se, a eles próprios, como funcionando matematicamente e para esses alunos fazer sentido o ser matemático como uma parte essencial de quem são naquela aula; 2. Através das atividades e papéis assumidos há reconhecimento público do desenvolvimento da competência naquela aula; 3. Os alunos verem-se a trabalhar conjuntamente, com um propósito, para conseguirem um entendimento comum; 4. Existem modos partilhados de comportamento, linguagem, hábitos, valores e uso de ferramentas; 5. A aula é, essencialmente, constituída por participação ativa dos alunos e professor; 6. Os alunos e o professor podem ver-se engajados na mesma atividade. (WINBOURNE ; WATSON, 1998, p. 103) Em relação à operacionalização realizada por Winbourne e Watson (1998), entretanto, Matos (1999) afirma que os autores não consideraram as principais críticas que podem ser feitas à interpretação da atividade matemática escolar como participação em CoP s. De acordo com o autor, Jean Lave evidencia que o princípio básico para a participação em CoP s, é a voluntariedade do sujeito, que enseja nele o desejo em tornar-se algo. Diante da crítica tecida, encontramos na Modelagem, argumentos que justificam a voluntariedade dos alunos para a participação nas práticas que se constituem na sala de aula. Burak (2004), por exemplo, ressalta o caráter motivacional da Modelagem, o querer participar voluntariamente. Além disso, de acordo com Boaler (2001), a Modelagem Matemática ainda pode favorecer a aprendizagem situada da Matemática por permitir que práticas matemáticas escolares sejam utilizadas em outros contextos.
7 Desta forma, tomando como foco de análise a prática social (discursiva) dos alunos, a análise da constituição de LCoP s no desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática, torna-se possível. O processo de análise da constituição de LCoP aspectos metodológicos Winbourne e Watson (1998) relataram atividades matemáticas de alunos trabalhando de forma individual na sala de aula e analisaram como a participação de alunos e professores constituíram as atividades propostas. A partir desta análise afirmaram a existência e inexistência de uma LCoP naquelas aulas. Neste estudo e em outros posteriores, entretanto, os autores utilizaram as características que julgam necessárias na análise da constituição de uma LCoP, sem especificarem que aspectos são considerados em relação à cada uma delas. Na ausência de uma explanação que embasasse nosso processo de análise das ações desenvolvidas pelos alunos, e adotando como ponto de partida as ideias de Lave e Wenger (1991) e Wenger (1998) realizamos uma análise interpretativa das propriedades apresentadas por Winbourne e Watson (1998) a fim de caracterizar a prática dos alunos como desenvolvendo-se numa LCoP. As ideias centrais consideradas em relação a cada característica são apresentadas no Quadro 1. Quadro 1 Aspectos considerados como ferramenta de análise da constituição de LCoP. Características definidoras da constituição de Aspectos considerados em relação à sua uma LCoP existência 1) Os alunos verem-se, a eles próprios, como Análise da participação de cada aluno e funcionando matematicamente e para esses as formas como reconhecem suas próprias alunos fazer sentido o ser matemático como participações na atividade. uma parte essencial de quem são naquela aula. 2) Através das atividades e papéis assumidos há reconhecimento público do desenvolvimento da competência naquela aula. 3) Os alunos verem-se a trabalhar conjuntamente, com um propósito, para conseguirem um entendimento comum. 4) Existem modos partilhados de comportamento, linguagem, hábitos, valores e uso de ferramentas. 5) A aula é, essencialmente, constituída por participação ativa dos alunos e professor. 6) Os alunos e o professor podem ver-se engajados na mesma atividade. Fonte: Elaborado pelas autoras deste texto. Análise da questão: Como as participações dos alunos são reconhecidas pelos demais participantes do seu grupo? Análise da existência de um Domínio que sustente a atividade proposta. Análise da existência de um Repertório Partilhado. Análise das Formas de Participação de professor e alunos. Análise da existência de Empreendimentos articulados entre alunos e por alunos e professora.
8 A ferramenta de análise constituída procura abarcar aspectos que permitem examinar a existência da constituição de uma prática que seja compartilhada pelos alunos envolvidos. Neste sentido, buscamos contemplar a análise das relações mantidas entre os alunos, entre alunos e professor, a auto-análise da participação, e as formas de participação em relação à atividade proposta. Neste texto, a ferramenta de análise apresentada é utilizada para analisar as ações desenvolvidas por 11 alunos de um terceiro ano de um curso de Formação de Docentes da Educação Infantil e Anos iniciais do Ensino Fundamental, em nível médio, de uma escola pública. A atividade foi orientada pela primeira autora do texto e teve duração de 150 minutos (3 horas-aula). Para esta atividade os alunos (cujos nomes atribuídos são fictícios) foram divididos em três grupos G1, G2, G3 assim constituídos: G1) Matias, Rosana, Rogério, Antônio; G2) Natany, Paola, Lúcio, Leda; G3) Ana, Raiane, Aline. Após a realização da atividade, entrevistas semi-estruturadas foram realizadas individualmente com os alunos a fim de identificar, principalmente: suas impressões quanto à própria participação; suas impressões quanto à participação dos colegas de grupo. A atividade foi conduzida de forma que, inicialmente a turma realizou uma discussão acerca da abrangência do seu tema, com a participação de todos e, em seguida, dividiram-se em três grupos. Na discussão inicial foram levantadas hipóteses e determinados os processos matemáticos seguidos pelos grupos, posteriormente. Os dados analisados foram coletados no primeiro semestre do ano de 2013 a partir da gravação das aulas em áudio e vídeo. Todas as discussões mantidas nas aulas foram transcritas e, somadas aos registros escritos dos alunos, e às anotações realizadas pela professora constituíram o material analisado. Práticas Partilhadas no ambiente da Modelagem: uma LCoP foi constituída? A atividade de Modelagem Matemática discutida neste texto teve como tema um projeto ambiental, intitulado Troca Verde, desenvolvido na cidade de Iretama-PR onde a escola se localiza. O projeto funcionava da seguinte forma: algumas vezes durante o mês, em datas pré-estabelecidas, a população poderia trocar sacolas com resíduos recicláveis, separados em suas casas, por sacolas com verduras orgânicas ou melancias, cultivadas na horta municipal.
9 Naquela ocasião o projeto desenvolvido no período de 2008 a 2012, não estava funcionando, provocando discussões entre os habitantes da cidade e, especialmente entre os alunos, em relação sua à relevância para o município. O tema da atividade proposta, assim como os processos de elaboração da situação-problema, simplificação, coleta de dados qualitativos e quantitativos e resolução foram realizados essencialmente pelos alunos, e orientados pela professora. Dentre os alunos presentes na aula, Paola, Lúcio e Leda não conheciam profundamente o projeto em questão, pois residiam em outra cidade. Diante da situação, Ana, Paola e Natany pediram para que Antônio explicasse sobre o funcionamento do projeto, pois este aluno participava ativamente do Troca-Verde. Por este motivo, Antônio foi reconhecido pelos colegas como alguém competente para discutir o assunto: Antônio: o Troca-Verde é assim olha dentro da sua cozinha, você separa o lixo orgânico do reciclável, o que é reciclável você empacota em sacolas, e aí nos dias marcados pela secretaria de meio ambiente você leva as sacolas; sai o anúncio, olha, Troca-Verde, em tal lugar e tal hora, e aí a prefeitura que tem uma horta, no centro de produção rural; você leva 3 sacolas de recicláveis e ganha uma sacola de verdura [...] É um comércio. Você está comprando verdura, usando o lixo como moeda de troca. A partir da fala de Antônio, gerou-se uma discussão a respeito do projeto Troca- Verde, em que algumas questões foram geradas na turma, tais como: Quanto de lixo é arrecadado nas Trocas? (LÚCIO); Quantas pessoas participam do Troca? (PAOLA); e Quanto de verdura as pessoas recebem? (ANA). A partir de tais questionamentos, interroguou-se: Quais os impactos do projeto Troca-Verde para a cidade, em termos de resíduos coletados e verduras orgânicas distribuídas?, e mais: Se o projeto estivesse sendo realizado em 2013 qual seria a previsão de participantes para as Trocas?. Tais questionamentos evidenciam a articulação das questões já levantadas pelos alunos em relação ao tema da atividade. Este é um traço da característica 5 apontada por Winbourne e Watson (1998), pois foi a partir da participação dos alunos e da professora que a atividade passou a ser constituída; ou seja, não houve adoção de uma prática pré estabelecida pela professora, por parte dos alunos. Neste caso, as opiniões dos alunos foram fundamentais para a elaboração da questão de investigação.
10 A análise dos impactos do Projeto Troca-Verde foi realizada a partir dos dados referentes ao projeto, cedidos por uma das fundadoras do projeto e ex-secretária Municipal de Meio Ambiente, apresentados no Quadro 2: Quadro 2 Dados referentes às trocas-verde realizadas de 2008 a Fonte: Dados cedidos pelos fundadores do projeto. A análise inicial dos dados apresentados no Quadro 2 mostrou que as quantidades de verduras distribuídas apresentavam-se em caixas ao invés de sacolas. Para que pudessem analisar as questões propostas, a turma concordou que em cada caixa caberiam no mínimo 3 e no máximo 5 sacolas de verduras. Esta hipótese foi levantada pela turma, a partir dos depoimentos dos alunos participantes do Troca-Verde. Esta informação era importante devido à estratégia de estudo que estava sendo formulada pela turma. Matias havia proposto que a análise dos impactos do Troca-Verde fosse realizada em duas partes: a gente pode calcular separadas, a quantidade de lixo arrecadado e depois a quantidade de verdura distribuída nesses anos (MATIAS). A estratégia foi sintetizada por Matias, posteriormente, e consistiu em delimitar o estudo nas seguintes etapas: a) Estudo da quantidade de material reciclável arrecadada nas trocas, anualmente; b) Estudo da quantidade de sacolas de verduras orgânicas distribuídas anualmente; c) Cálculo da quantidade de sacolas de verduras orgânicas distribuídas em cada troca no decorrer de cada ano; d) Estimativa da quantidade de participantes do projeto a partir dos dados obtidos anteriormente.
11 Os grupos G1 e G2 desenvolveram esta estratégia analogamente, diferindo-se entre si quanto às formas de discussões mantidas em cada grupo. Ambos representaram os dados considerados no estudo por meio de gráficos de barras e, por meio de estimativas relacionadas ao crescimento e decrescimento da quantidade de materiais arrecadados e verduras distribuídas determinaram a quantidade de participantes do projeto, por troca, no ano de O engajamento evidenciado pelos alunos se deu no mesmo sentido do da professora: o de análise da situação de estudo, por meio do ferramental matemático, ou seja, a análise do projeto Troca-Verde. Os processos empreendidos pelos alunos, com orientação da professora podem ser entendidos como os empreendimentos articulados pelos alunos, na busca de respostas para alcançar um objetivo em comum. Neste sentido, traços da característica 6, referente a constituição de uma LCoP, puderam ser observados. Os empreendimentos articulados pelos alunos nos grupos G1 e G2, culminaram num repertório compartilhado por ambos. Neste sentido, podemos entender como repertório partilhado todos os processos percorridos pelos alunos e representados por seus registros matemáticos, tais como os registros apresentados na Figura 1: 1) Hipóteses assumidas pelo grupo; 2) Representação por meio do gráfico de barras da quantidade de lixo (em Kg) arrecadado anualmente pelo projeto. Quanto de lixo arrecadado? Quanto de verdura? 3) Relação entre quantidade de sacolas e melancias distribuídas anualmente; 4) Cálculo da quantidade de sacolas distribuídas em cada troca, no ano. Figura 1 Processos percorridos por G1 no estudo do Projeto Troca-Verde. Fonte: Elaborado pelos alunos do G1. A Figura 1 apresenta parte dos processos empreendimentos por G1, por meio das ações de negociação mediadas pela professora. Desta forma, inferimos a existência da característica 4, concernente à constituição de LCoP.
12 Este repertório partilhado pelos alunos dos grupos G1 e G2 foi possível de ser construído pelo fato de alunos e professora terem trabalhado num mesmo Domínio de conhecimento. Neste caso, o Domínio, característica 3 referente à LCoP, foi constituído pela prática da Modelagem Matemática na concepção assumida. Ainda que os alunos participantes dos grupos G1 e G2, bem como a professora, tivessem trabalhado num mesmo Domínio de conhecimentos, isso não implicou numa participação homogênea por parte dos alunos, ou mesmo da professora frente às diversas situações, como já previsto por Wenger (1998). Este fato fez com que os alunos tivessem suas participações reconhecidas uns pelos outros, por diferentes aspectos. Matias e Natany, por exemplo, foram reconhecidos pelos colegas por conduzirem discussões de cunho matemático, como evidenciado nas falas de Leda: Eu acho que a Natany me ajudou mais, e também ajudou o grupo, e Antônio: No meu grupo a participação foi muito boa. Não tinha como não participar [...] E outra, eu peguei pessoas que gostam de Matemática [...] o Matias... pra mim foi bem, porque como eu não vou bem, com eles acabou que eu caminhando junto, nas entrevistas realizadas ao fim da atividade. Este reconhecimento pelas participações uns dos outros, no processo de constituição da atividade de Modelagem em si, evidencia traços de que os alunos se reconheceram mutuamente naquelas aulas. Para além do reconhecimento das participações dos colegas de grupo, os alunos ainda reconheceram a si próprios como funcionando matematicamente naquela aula, como indica a seguinte fala de Antônio: Eu achei que até eu, sem saber de nada, ajudei eles, e ensinei um monte de coisas que eles não sabiam também [...] não é a área deles. Tais reconhecimentos são essenciais no processo de constituição de uma LCoP, e referem-se à existência das características 1 e 2, apontadas por Winbourne e Watson (1998). Nesta atividade, como se pode indicar a partir da fala de Antônio, a Modelagem Matemática estimulou a existência de tal reconhecimento na medida em que partiu de um tema de interesse e conhecimento dos alunos. Este fato permitiu que a inserção na prática que se constituiu na aula se desse por outros caminhos que não apenas o da Matemática pura, mas pelos conhecimentos dos alunos a respeito do tema em questão. A inserção na prática que se constituiu na aula, por meio da Modelagem, entretanto, tão somente pode se dar a partir do momento em que os alunos aceitam os
13 vários convites para a Modelagem, que são postos pelos demais alunos e pelo professor, no seu decorrer. Esse convite não foi aceito pelas alunas do G3. Ainda que na discussão inicial com a turma, Raiane, Daiane, Aline e Ana tivessem se mostrado interessadas pela atividade, cujo tema elas próprias ajudaram a delimitar, quando a responsabilidade pela condução da atividade passou a ser do grupo, não se pôde identificar engajamento das alunas em relação à atividade. No G3, as ações das alunas desenvolveram-se apenas a partir do estímulo da professora. Embora Ana se mostrasse engajada na atividade, não houve um engajamento mútuo do grupo, empreendimentos articulados ou repertório partilhado. O material produzido pelo grupo foi constituído pelo trabalho individual em G3. A ausência de engajamento de Raiane, Aline e Daiane ficou indicada em vários trechos de conversa entre as alunas e Ana, ou entre as alunas e a professora, como se pode exemplificar com o trecho a seguir: Ana: Professora, eu tô vendo aqui, tô analisando os dados pra organizar na tabela. (Meninas) Vamos me ajudar, por favor? Raiane: Para facilitar... Em 2008, 10 mil e... Ana: Gente me ajuda! O excerto exemplifica a falta de engajamento mútuo do grupo, embora houvesse engajamento na atividade, por parte de Ana. Este fato resultou na falta de reconhecimento das suas participações na atividade, como se pode inferir a partir da fala de Ana, na entrevista realizada: Bom, eu tentei levar sempre a sério, mas tem pessoas que não levam tão a sério, tem outras que tem muita dificuldade em Matemática, mas a minha participação foi importante. Além disso, nem todas as alunas reconheceram-se como matematicamente competentes naquela aula, como sugeriu a seguinte fala de Aline: eu não conseguiria fazer nada disso sozinha.... Evidenciou-se que em G3: a) Não houve reconhecimento mútuo entre as alunas, como evidenciado pela fala da Ana; b) Nem todas as alunas enxergaram-se como funcionando matematicamente naquela aula, como indicou a fala de Aline; c) As alunas não compartilharam um repertório; d) Nem todas as alunas engajaram-se na atividade de Modelagem Matemática ainda que fossem elas próprias as definidoras do encaminhamento da atividade em questão. A inexistência de ações que justifiquem a constituição de uma LCoP por alunas de G3, pode ter se dado em virtude da não aceitação dos convites para a Modelagem Matemática.
14 Algumas reflexões No desenvolvimento de atividades de Modelagem Matemática, um ambiente de aprendizagem tão somente pode ser constituído a partir do aceite dos alunos ao convite posto pelo professor ou outros alunos. A partir deste aceite, uma prática pode ser constituída e em conseqüência, também uma LCoP. Em outras palavras, a análise da constituição de uma LCoP a partir de atividades de Modelagem apenas pode ser discutida a partir do aceite dos alunos à tal ambiente. Considerando-se este pressuposto, a constituição da LCoP no grupo G3 foi dificultada, na medida em que as alunas pareceram não aceitar os vários convites postos para a Modelagem Matemática, no decorrer das aulas. Este fato permite-nos inferir que o aceite do convite para a Modelagem é condição necessária, mas não suficiente, para a constituição de uma LCoP entre os participantes. Uma vez aceito o convite para a atividade, tal como ocorreu nos grupos G1 e G2, no transcorrer da atividade as participações dos alunos diferem-se entre si tanto quanto às formas de participações nos diversos tipos de discussões, como quanto às relações com os outros participantes. Este fato implica em participações heterogêneas e diferentes tipos de (auto)reconhecimento das participações. No ambiente de aprendizagem da Modelagem constituído pelos grupos G1 e G2, na atividade aqui discutida, o direcionamento de diferentes tipos de discussões, tais como as discussões matemáticas por Matias, ou discussões técnicas e paralelas por Antônio, garantiram-lhes reconhecimento da participação. Tal reconhecimento foi assegurado pelas possibilidades de discussões geradas pela Modelagem. Por fim, enfatizamos que a característica da Modelagem Matemática, de se estudar uma situação problema cujo domínio não é necessariamente a Matemática, neste caso incentivou o engajamento individual de alunos familiarizados ao tema de estudo, projeto Troca-Verde, e conseqüentemente, o engajamento mútuo dos grupos G1 e G2, condição essencial à constituição de LCoP. Referências BARBOSA, J. C. Modelagem Matemática: concepções e experiências de futuros professores f. Tese (Doutorado) Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2001.
15 BARBOSA, J. C. A prática dos alunos no ambiente de Modelagem Matemática: o esboço de um framework. In J. C. Barbosa, A. D. Caldeira, e J. L. Araújo (Eds.), Modelagem Matemática na Educação Matemática Brasileira: pesquisas e práticas educacionais (p ). Recife, Brasil: SBEM, BARBOSA, J. C.; SANTOS, M. A. Modelagem matemática, perspectivas e discussões. In: ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 9, Belo Horizonte. Anais... Recife: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, CDROM. BOALER, J. Mathematics from Another World: Traditional Communities and the Alienation of Learners. Journal of Mathematical Behavior, 18 (4), , BURAK, D. A Modelagem Matemática e a sala de aula. In: I Encontro Paranaense de Modelagem em Educação Matemática-I EPMEM. Anais...Londrina: UEL, CD- ROM. FOX, J. L. A justification for Mathematica Modelling Experiences in the Preparatory Classroom. In: 29th annual conference of the Mathematics Education Research Group of Australasia, p July, 2006, Canberra, Austrália, FRADE, C. Componentes Tácitos e Explícitos do Conhecimento Matemático de Áreas e Medidas f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, LAVE, J.; WENGER, E. Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation. Cambridge: Cambridge University Press, MATOS, J. F. Aprendizagem e Prática Social: Contributos para a Construção de Ferramentas de Análise da Aprendizagem Matemática Escolar. Actas da II Escola de Verão. Sessão de Educação Matemática da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação. Santarém, OLIVEIRA, A. M. P.; BARBOSA, J. C. A primeira experiência de modelagem matemática e a tensão do "próximo passo". In: ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 9, Belo Horizonte. Anais... Recife: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, CDROM. WENGER, E. Communities of Practice: Learning, Meaning, And Identity. New York: Cambridge University Press, WINBOURNE, P.; WATSON, A. Participating in Learning Mathematics Througt Shared Local Practices in the Classrooms. In A. Watson (Ed.), Situated Cognition and the Learning of Mathematics, pp Oxford: Centre for Mathematics Education Research of the University of Oxford, ZAWOJWSKI, J.; LESH, R.; ENGLISH, L. A models and modelling perspective on small group learning activity. In R. Lesh and H. Doerr (Eds.) Beyond constructivism: Models and modeling perspectives on mathematics problem solving, learning and teaching. (p ). Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 2003.
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