Salário Nutrição: aplicabilidade ao setor agropecuário do Brasil

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1 Salário Nutrição: aplicabilidade ao setor agropecuário do Brasil Jefferson Andronio Ramundo Staduto Carlos José Caetano Bacha Resumo: O objetivo central deste trabalho é analisar a teoria do salário nutrição e sua aplicabilidade ao setor agropecuário brasileiro. A abordagem teórica de salário nutrição foi inicialmente proposta por Leibenstein (1957). No Brasil, investigações dessa natureza são, praticamente, inexistentes, apesar de haver evidência de sua aplicabilidade. A maior proporção de indivíduos vivendo abaixo da linha de pobreza no Brasil encontra-se entre a população rural, principalmente nos estados da região Nordeste do Brasil. Algumas iniciativas visando promover o salário nutrição foram tomadas no Estado de São Paulo, onde os empregadores oferecem alimentação aos trabalhadores rurais no corte da cana-deaçúcar. Uma série de constatações sobre o mercado de trabalho e das condições de vida da população rural conduz para a validade da aplicabilidade da teoria do salário nutrição no caso dos trabalhadores agrícolas temporários do Brasil. Palavras-chave: salário nutrição, fome, pobreza, Brasil. 1 - A Questão da Pobreza no Brasil O objetivo central deste trabalho é analisar a teoria do salário nutrição, bem como a sua aplicabilidade ao setor agropecuário brasileiro. Sabe-se que o meio rural apresenta alguns indicadores que revelam alto grau de subdesenvolvimento, o que se associa à pobreza e falta de segurança alimentar. Esse ambiente é propício à aplicação da teoria do salário nutrição. A questão da segurança alimentar no Brasil já é bastante conhecida. De modo geral, essa problemática não está associada à falta de capacidade de aumentar a oferta de alimentos em razão da insuficiência de estrutura produtiva ou por limitação de recursos naturais. Não se trata de uma questão de incapacidade de aumentar a oferta de alimentos, mas sim de aumentar a demanda doméstica de alimentos por parte dos que têm fome. A fome pode ser enfocada de forma bastante direta sob o ponto de vista de sua relação com o poder aquisitivo dos indivíduos. O poder aquisitivo depende em grande parte da capacidade da sociedade em gerar renda. Mas não basta gerar vultuosas quantidades de renda, 1

2 é também importantíssimo conhecer como ela será distribuída, ou seja, a questão da equidade é tão importante quanto a questão de aumentar renda. O número de pessoas pobres no Brasil não é preciso. Ele pode estar entre 30 milhões ou 40 milhões de pessoas, dependendo dos critérios utilizados. Mas, independente desta incerteza, os pobres são muitos e, conseqüentemente, são muitas pessoas que não conseguem gerar renda suficiente para garantir a sua própria segurança alimentar. Os indivíduos que estão abaixo da linha da pobreza se concentram principalmente nas zonas rurais, sendo a região Nordeste a mais crítica. Vários fatores históricos da formação desta região contribuem para esta situação, bem como fatores climáticos. Segundo Hoffmann (1995), o maior percentual de crianças até cinco anos com desnutrição crônica no Brasil encontra-se entre o pessoal com domicílio rural e mais intensamente na região Nordeste. Na década de 1990 praticamente todos os indicadores de pobreza melhoraram, mas não o suficiente para reduzir a pobreza em termos absolutos. As altas incidências de pobreza encontradas nos países não desenvolvidos são, comumente, consideradas como problemas sociais, mas elas têm, na verdade, óbvias implicações econômicas e políticas. De uma parte, a pobreza pode retardar ou comprometer o crescimento econômico, seja por limitar a capacidade produtiva dos recursos humanos, seja por inibir a expansão do mercado interno. Dentro destas circunstâncias, a incapacidade de contingentes significativos da população em prover, por seus próprios meios, suas necessidades básicas é a própria negação da equidade e pode ser capaz de gerar conflitos sociais e políticos desestabilizadores de uma nação (Albuquerque, 1995). Considerando o exposto acima, o tema central deste trabalho é examinar a influência que a pobreza, e mais especificamente o aspecto da fome, tem sobre o processo produtivo. Neste particular, a relação entre salário, nutrição e o processo produtivo é abordada. Estas três 2

3 variáveis se relacionam e invocam elaborações teóricas (a teoria do salário eficiência) que pouco foram aplicadas à análise da realidade brasileira. 2 - Abordagem Teórica sobre Salário Nutrição Os primeiros argumentos sobre a teoria do salário nutrição foram apresentados por Leibenstein (1957). Ele observou que no mercado de trabalho agrícola há certas circunstâncias que levam os grandes proprietários de terra tenderem a absorver parcelas crescentes de mão-de-obra para evitar a redução dos salários. Caso ocorresse o declínio dos salários, haveria como conseqüência a redução na produtividade do trabalhador, uma vez que os salários guardam estreitas proporcionalidades com a produtividade da mão-de-obra empregada. Esta relação se revela verdadeira principalmente quando se trata de tarefas braçais realizadas em países não desenvolvidos. Essas tarefas exigem grandes dispêndios de força física e são remuneradas com salários muito baixos. Conseqüentemente, a população trabalhadora possui baixo poder aquisitivo e isto implica grande potencial de insegurança alimentar, ou seja, o individuo não consegue ter renda suficiente, com a venda da sua força de trabalho, para alimentar adequadamente a si próprio e sua família. A nutrição do trabalhador está relacionada com o seu salário (direto ou indireto). Esse permite a aquisição de alimentos que geram energia ao trabalhador. Essa energia permite ao trabalhador se empenhar mais ou menos no processo produtivo. Caso haja uma situação que o salário se eleve; grande parte dos resultados do aumento salarial irá se reverter em maior empenho do trabalhador na realização de suas tarefas braçais, aumentando a produtividade do trabalho. Este aumento de produtividade compensa o empregador pelo aumento inicial do salário. Segundo a argumentação elaborada por Leibenstein (1957), os salários determinam os níveis nutricionais da mão-de-obra, os quais atuam no sentido de determinar a maior ou 3

4 menor produtividade do trabalhador. Este argumento revela uma relação causal inversa à que propõe a teoria da Síntese Neoclássica (Branson & Litvack, 1978), na qual é a produtividade do trabalho que determina o nível de salário que as empresas estarão dispostas a pagar. Podese considerar que a Teoria do Salário Nutrição é uma precursora da Teoria do Salário Eficiência, a qual considera que é o salário que determina o nível de produtividade do trabalhador e não o inverso 1. Stiglitz (1974), a partir da hipótese inicialmente elaborada por Leibenstein (1957), desenvolveu modelos mais elaborados que apontam a relação causal do salário determinando a produtividade para países não desenvolvidos e que apresentam desemprego e subemprego. O foco central do trabalho deste autor está nos custos da rotatividade da mão-de-obra, que acaba onerado o empregador do ponto de vista da perda de produtividade e dos custos de encargos da demissão do trabalhador. Desta forma, salários muito baixos seriam um incentivo para aumentar a rotatividade da mão-de-obra. Além disso, a rotatividade aumenta os custos dos empregadores em itens relacionados à ausência da mão-de-obra no trabalho e de falta de esforço no processo produtivo. Stiglitz (1976) realizou estudos analisando as implicações desses custos especificamente para o setor agropecuário dos países não desenvolvidos. Bliss & Stern (1978a), considerando a hipótese do salário nutrição elaborado por Leibenstein (1957), desenvolveram modelos considerando os indivíduos que têm fontes de consumo (renda própria) além da renda do salário, ou seja, indivíduos que são proprietários de terra e ao mesmo tempo assalariados. Dessa forma, Bliss & Stern (1978a) aproximaram suas análises mais da realidade do mercado de trabalho agrícola dos países não desenvolvidos. Em outro artigo, Bliss & Stern (1978b) complementaram o tratamento teórico dado aos modelos propostos, apresentando evidências empíricas sobre as necessidades mínimas 1 O modelo salário nutrição estabelece a idéia germinal de que a relação causal está na direção do salário para produtividade. Esta suposição teve re-elaboração teórica por um grupo de economistas denominados de novos keynesianos, sendo que esta evidência causal passou a ser chamada de salário eficiência. Ver Blanchard (2001, p ) sobre a teoria do salário eficiência. 4

5 nutricionais para o trabalhador nos países não desenvolvidos, e concluíram que essas necessidades são relativamente altas. Esse dois autores colocam que uma das dificuldades para realizar trabalhos empíricos que testam a hipótese do salário nutrição é a falta de disponibilidade de dados em países não desenvolvidos. No entanto, esses autores deixaram a sugestão que estudos dessa natureza poderiam ser feitos para a Índia devido à disponibilidade de dados. Neste sentido, Kumbhakar (1996) realizou um estudo testando a teoria do salário nutrição e considerando os trabalhadores agrícolas da cultura do arroz na Índia. O estudo Kumbhakar (1996) apresenta evidências que o mercado de trabalho da mão-de-obra utilizada na produção de arroz comporta-se conforme a hipótese do salário nutrição. No Brasil, a falta de dados sobre as relações entre salários (diretos e indiretos) e nutrição limita a realização de estudos sobre a teoria do salário nutrição. No entanto, é possível realizar análises exploratórias que procurem levantar evidências e formular argumentos para examinar a presença de comportamento de salário nutrição no mercado de trabalho brasileiro, em especial nas ocupações de baixas qualificações realizadas no setor agropecuário. 3 - Salário Nutrição: Aplicabilidade para o Brasil O setor agropecuário do Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1960, apresentou profundas mudanças, tais como, o aumento de produtividade, a alteração na pauta de produção, mudanças nas relações sociais de produção, por exemplo. Dentre as mudanças nas relações sociais de produção se destaca o aumento do uso de trabalhadores temporários em relação aos trabalhadores permanentes, sendo que esta primeira categoria tende a ser mais precária que a segunda, em razão da descontinuidade no trabalho, ausência de alguns direitos trabalhistas e ausência de salários indiretos (Staduto, 2002). Outro aspecto fundamental destas transformações foi o esvaziamento das propriedades rurais de trabalhadores residentes. Essa 5

6 residência permitia melhor bem-estar dos trabalhadores e sua família, pois os trabalhadores residentes tinham produção para autoconsumo e moradia gratuita. Ainda hoje, alguns trabalhadores permanentes ainda podem ter estas condições favoráveis. No entanto, para os trabalhadores temporários só existem os salários diretos, pois se tratam de trabalhadores volantes, que trabalham em várias propriedades agrícolas em atividades sazonais. Quanto mais eles se empenham no trabalho, maiores serão as suas remunerações diretas. O trabalhador temporário é, normalmente, pago de acordo com a quantidade de produto que ele gera. Esse é o caso do volante empregado no corte de cana-deaçúcar, colheita da laranja, da mandioca, arroz, café, e outros. Dentro desse ponto de vista, pode-se abordar o desempenho da força de trabalho na agropecuária, principalmente dos trabalhadores temporários, sob a ótica do salário nutrição. Os trabalhadores temporários, de forma generalizada, recebem salários monetários muito baixos (ver Staduto, 2002) e quase nenhum salário indireto, sob a forma de moradia, alimentação, por exemplo. Isto implica a ingestão de pouca energia na forma de alimentos, o que gera baixa produtividade no trabalho. Se fosse pago maior salário monetário ao trabalhador temporário, isto implicaria maior poder de consumo do trabalhador e, conseqüentemente, maior nível de produtividade. No entanto, o pagamento de maior salário direto (ou salário monetário) ao trabalhador temporário traria dois efeitos não desejados ao proprietário: primeiro, aumento do custo de produção; segundo, o trabalhador teria que dividir o acréscimo de alimentos a ser adquirido com sua família, o que não garantiria completo ganho de produtividade do trabalhador. Uma solução encontrada por parte das usinas de cana-de-açúcar no Brasil no início da década de 1990 para solucionar o problema de baixos salários diretos e falta de nutrição dos trabalhadores rurais temporários foi o programa de bóia-quente. As usinas ofereceram uma refeição quente diretamente aos trabalhadores volantes no local de trabalho. Assim, as 6

7 empresas melhoravam o salário (oferecendo salário indireto na forma de alimentos) e, com isso, garantiam maior produtividade. Tratou-se, portanto, de um caso típico de salário nutrição. 4 - Considerações Finais O presente trabalho analisou a teoria do salário nutrição e sua aplicabilidade ao setor agropecuário brasileiro. Segundo essa teoria, o salário pago ao trabalhador tem um efeito direto sobre o seu nível de nutrição, o qual afeta sua produtividade. A teoria do salário indireto foi criada em um momento onde havia grande predominância de força de trabalho na agropecuária e com baixo nível de nutrição. Apesar dessa situação ter se alterado em vários países, ela ainda é válida para certos países, como o Brasil. No Brasil, a maior proporção de indivíduos vivendo abaixo da linha de pobreza no Brasil encontra-se entre a população rural, principalmente nos estados da região Nordeste do Brasil. Nessa região ainda não existem iniciativas como as realizadas no Estado de São Paulo, onde os empregadores oferecem alimentação aos trabalhadores rurais no corte da cana-deaçúcar. À medida que esse programa de bóia-quente for estendido a outras regiões do Brasil, espera-se que a produtividade do trabalho aumente e o nível de nutrição da população melhore. Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, R.C. Estratégia de desenvolvimento e combate à pobreza. Estudos Avançados, v.9, n.24, p , BLANCHARD, O. Macroeconomia: teoria e política econômica. 2 a edição. Rio de Janeiro: Campus, BLISS, C; STERN, N. Productivity, wage and nutrition part I: theory. Journal of Development Economic, v.5, p , 1978 (a). 7

8 BLISS, C; STERN, N. Productivity, wage and nutrition part II: some observations. Journal of Development Economic, v.5, p , 1978 (b). BRANSON, W.H. & LITVACK, J.M. Macroeconomia. São Paulo: Editora Harper & Row do Brasil Ltda, HOFFMANN, R. Pobreza, insegurança alimentar e desnutrição no Brasil. Estudos Avançados, v.9, n. 24, p , KUMBHAKAR, S.A. A farm-level study of labor use and efficiency wage in Indian agriculture. Journal of Econometrics, v.72, p , LEIBENSTEIN, H. The theory of underemployment in backward economies. The Journal of Political Economy, n.2, April, p , STADUTO, J.A.R. Determinação dos salários na agropecuária brasileira período de 1971 a Tese de doutorado, ESALQ/USP. Piracicaba, fevereiro de STIGLITZ, J.E. Alternative theories of wage determination and unemployment in LDCs: the labor turnover model. Quarterly Journal of Economics, v.88, n.2, May, p , STGLITZ, J.E. The efficiency wage hypothesis, surplus labour, and the distribution of income in LDCs. Oxford Economic Papers, v.28, n.2, July, p ,