A existência de equipes multidisciplinares é um fator importante no trabalho dos defensores?

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1 Simone Moreira Souza Entrevista concedida para a matéria Diagnóstico aborda atuação da Defensoria Pública em infância e juventude, página 7, Proteção Integral, boletim impresso da ABMP. Entrevista realizada, em outubro de 2010, com a defensora pública, Coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Simone Moreira de Souza. Nesta entrevista, Simone detalha o funcionamento da Defensoria Pública da Infância e Juventude no Rio, um dos estados que aparece em destaque no Diagnóstico apresentado no I Congresso Nacional de Defensores Públicos da Infância e Juventude. A Defensoria Pública do Rio, através da Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente, se destaca por realizar atendimento especial e integrado a crianças e adolescentes. Como é estruturado o trabalho dos defensores públicos específicos desta área? A Defensoria Pública do Rio de Janeiro estabeleceu uma Política de Atendimento Especializado a Crianças e Adolescentes, através da uniformização de procedimentos de defesa técnica, da descentralização dos órgãos de atuação em todo o estado e da contínua qualificação profissional. A Coordenadoria de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA), órgão administrativo da Defensoria Pública, compreende todos os órgãos de atuação destinados à defesa de crianças e adolescentes, mormente: os Núcleos de Atendimento Jurídico Especializado aos adolescentes acusados da prática de ato infracional, sob custódia do DEGASE (Sistema Socioeducativo) com atendimento in loco aos privados de liberdade, durante o processo de execução; os Núcleos de atendimento jurídico especializado à crianças e adolescentes em situação em de risco social - instituições de acolhimento, vivência nas ruas, etc (Sistema Protetivo); os Núcleos de Infância e Juventude de bairros e fóruns regionais (Primeiro Atendimento) e, ainda, os órgãos de atuação existentes perante as Varas de Infância, Juventude e Idoso de todo o estado (Acompanhamento de processos, audiências e medidas emergenciais). A especialização da defesa técnico-jurídica visa a preservação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, quer seja nas ações de Guarda, Tutela, Adoção e Destituição do Poder Familiar; nas que visam apurar abuso sexual, exploração do trabalho infantil e violência intrafamiliar ou de natureza penal juvenil, em prol de adolescentes privados de liberdade. A existência de equipes multidisciplinares é um fator importante no trabalho dos defensores? A existência de equipes multidisciplinares é fundamental para alicerçar qualquer atuação de defesa técnica em prol de crianças e adolescentes. O defensor público precisa do apoio operacional de profissionais da Assistência Social, Psicologia, Psiquiatria, Medicina, Pedagogia, dentre outros, para exercer escorreitamente seu munus. À guisa de exemplo, o defensor público precisa de subsídios técnicos para ingressar com requerimento de prestação jurisdicional, visando o adequado atendimento de saúde mental,

2 mediante o fornecimento gratuito de tratamento antidrogadicção de crianças e adolescentes ou ainda, para identificar, de imediato, no Núcleo de Primeiro Atendimento da Defensoria, a veracidade de denúncias de violência sexual que demandem atuação emergencial, como a postulação de afastamento do agressor. Ademais, para garantia dos direitos de crianças e adolescentes, é imprescindível o apoio técnico interdisciplinar para eventual impugnação de laudos, pela defesa; para minimização dos danos durante a oitiva, evitando tecnicamente a revitimização; para apresentação de quesitação pela defesa, antes da elaboração do Plano Individual de Atendimento ou da Reavaliação da Medida Socioeducativa; para subsidiar a defesa extrajudicial, assegurando a destinação de Medidas Protetivas, Benefícios de Prestação Continuada e outros encaminhamentos previstos pelo SUAS e não destinados voluntariamente. A Defensoria Pública do Rio tem conseguido garantir a crianças e adolescentes a prioridade absoluta no Sistema de Justiça? Se sim, de que forma? Nosso trabalho se caracteriza pela incansável busca da efetividade dos direitos assegurados por Lei às crianças e aos adolescentes, tentando superar a conhecida crise de implementação legal. Neste sentido, toda a atuação de defesa técnica visa assegurar o pleno exercício de direitos constitucionalmente previstos, tais como: acesso à Justiça, mediante assistência jurídica integral e gratuita; direito ao devido processo legal; direito à proteção, à vida e ao fornecimento de serviços de saúde pública; acesso à educação pública de qualidade, dentre outros, como corolários da doutrina da proteção integral, nacionalmente adotada. Os defensores públicos são imprescindíveis propulsores de significativas mudanças no Sistema de Justiça Nacional, promovendo o reconhecimento de direitos de crianças e adolescentes, mormente nas Instâncias Superiores, auxiliando na consolidação de entendimento jurisprudencial mais garantista. No Rio de Janeiro, quando a Defensoria Pública definiu as diretrizes da Política de Atendimento a crianças e adolescentes, primando pela especialização da defesa técnica, ao ingressar nas Unidades de Privação de Liberdade de Adolescentes, em 2001, encontrou um quadro absolutamente desfavorável, com inúmeras rebeliões e mortes; instituições superlotadas em razão da aplicação da Medida Socioeducativa de Internação fora das hipóteses legais; tortura institucional, além de inúmeras outras violações. Apenas com a uniformização de procedimentos de defesa técnica e, mediante o esgotamento das vias recursais, em menos de seis meses de atuação in loco, reduziu-se em 60% (sessenta por cento) o número de adolescentes privados de liberdade, comprovando-se a banalização da Medida de Internação até então vigente, número este, que se mantém até a presente data, bem como, a quase erradicação total dos casos de tortura e rebeliões. Com efeito, a presença da Defensoria Pública nas Unidades Privativas de Liberdade, além de garantir ao adolescente o pleno conhecimento das fases do Processo de Execução e assegurar outros direitos, traz maior tranquilidade ao Sistema Socioeducativo, pela possibilidade de interlocução semanal. Da mesma forma, no tocante a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, afastados compulsoriamente da convivência familiar, a Defensoria

3 Pública também tem atuado para assegurar a efetividade de seus Direitos, no exercício da Curadoria Especial. Não se pode conceber que crianças sejam alijadas de suas famílias de origem, sem a mínima possibilidade de defesa, sem qualquer representação legal, como meros objetos da intervenção estatal. É absolutamente incompreensível que à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade social privados do convívio familiar, não seja assegurada a plena possibilidade de defesa, o protagonismo, através da nomeação de Curador Especial. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro também realiza o atendimento in loco nas instituições de acolhimento, verificando os prontuários de crianças e adolescentes privados do convívio familiar e comunitário. Em tais atendimentos, pudemos constatar que, via de regra, os filhos são retirados das famílias de origem e inseridos em programas de acolhimento Institucional, apenas em razão da pobreza, sem que qualquer outra Medida Protetiva tenha sido aplicada. Mais uma vez, constatamos a banalização da institucionalização de crianças e adolescentes, ou seja, o afastamento das famílias fora das hipóteses legais. Na quase totalidade dos casos, a primeira e única medida aplicada é o acolhimento institucional, sem tentativas de colocação na família extensa, sem maiores cuidados na abordagem ou qualquer encaminhamento da família aos CRAS para inserção em programas sociais, sendo certo que, a única medida judicial adotada, tem sido a ação de Destituição do Poder Familiar, que visa precipuamente a sanção dos pais e não a efetiva proteção das crianças e adolescentes. Também nas instituições de acolhimento (abrigos), após o início da atuação técnica da Defensoria Pública no Rio de Janeiro, que possibilitou a reintegração familiar de cerca de 40% (quarenta por cento) das crianças atendidas, outros atores passaram a se mobilizar no atendimento à criança privada do convívio familiar, resultando em grande transformação da realidade social. Como se pode observar, compete aos defensores públicos e demais operadores do Direito transformar o abstrato em concreto, materializando a garantia constitucional da prioridade absoluta, ainda longe da realidade. Há diferenças no trabalho que é realizado no interior e na capital do estado? Sim, significativas. No interior do estado, os órgãos do Judiciário, em sua maioria, não têm competência exclusiva para Infância e Juventude, acumulando atribuições de Família e Idoso. Consequentemente, o defensor público passa a atuar perante a Vara de Família, Infância, Juventude e Idoso, com peculiaridades absolutamente distintas. O atendimento de Vara de Família, se caracteriza pelo grande volume, é um atendimento de massa. Já os demais atendimentos (criança, adolescente e idoso), compreendem os limites etários, que são destinatários de proteção especial e são os únicos sujeitos aos quais a Constituição Federal conferiu prioridade absoluta. Neste contexto, como o operador do Direito, quer seja ele defensor público, juiz ou promotor, pode assegurar prioridade e excelência do atendimento? De nossa parte, temos trabalhado pela descentralização e especialização dos órgãos de atuação da Defensoria, num processo longo que envolve a conscientização de diversos setores. Quais órgãos contribuíram, e ainda contribuem, para a estruturação da Defensoria Pública no Rio? E a sociedade civil, é um ator importante no trabalho das defensorias?

4 A atuação em parceria é indispensável à qualquer instituição atualmente. Mais uma vez, partimos do pressuposto da concretização do mandamento legal que prevê a articulação de ações governamentais e não-governamentais para construção da Política de Atendimento. Assim, não há possibilidade de desenvolvimento de qualquer trabalho dissociado dos demais atores. Com a sociedade civil, desenvolvemos atuações em parceria, tanto na seara socioeducativa, quanto na seara protetiva, com Centros de Defesa, Associações de Mães, Associações de Moradores e Oscips. O resultado do Diagnóstico gerou alguma modificação quanto à atuação da Defensoria Pública do Rio no campo da Infância e Juventude? Sim. Pudemos observar detidamente a realidade nacional e a necessidade de intensificar a atuação especializada em determinadas searas, como as questões alusivas à homofobia na adolescência, o respeito à diversidade religiosa, além do aprimoramento operacional. Segundo o Diagnóstico apenas 41 dos 740 Defensores Públicos do Rio atuam exclusivamente com infância e juventude. Vocês acreditam que esta quantidade de Defensores é suficiente para atender a defesa de direitos de crianças e adolescentes na capital e no interior do estado? Há um projeto para aumentar o número de defensores com atuação exclusiva nesta área? Observe que embora não atuem exclusivamente, o que seria ideal, há Defensores Públicos para assegurar a defesa técnica de crianças e adolescentes em todo o estado. Ainda que acumulem atribuições, por imperativo legal devem atuar em defesa de crianças e adolescentes com prioridade e assim acontece. O Rio de Janeiro é o estado com o maior número de defensores públicos especializados na defesa de direitos de crianças e adolescentes e colhe os frutos deste investimento diariamente, tendo fixado parâmetros de atuação técnica, nacionalmente utilizados. Há um programa institucional de descentralização e especialização do atendimento que vem sendo implementado paulatinamente, conforme são realizados concursos públicos para preenchimento dos cargos e seguindo uma diretriz de gestão administrativa diante dos conhecidos limites orçamentários. Embora no diagnóstico tenham sido identificados muito pontos positivos na atuação da Defensoria Pública no campo da infância e adolescência, quais são as dificuldades enfrentadas pelos Defensores Públicos no Rio? Como já destacamos, uma das maiores dificuldades ainda é o número insuficiente de defensores públicos para atuação exclusiva na defesa de direitos da criança e do adolescente, bem como, a carência de apoio técnico interinstitucional a subsidiar a atuação funcional especializada. Gostaria de ressaltar algum aspecto da entrevista ou mencionar algum assunto que não tenha sido abordado nas perguntas anteriores? Ainda que trabalhássemos 24 horas, juntos, todos os operadores do Direito da criança e do adolescente, muito ainda haveria que ser feito. Precisamos ultrapassar questões meramente corporativistas, vaidades dissociadas daquele que deve ser o objetivo comum: a efetiva garantia dos direitos de crianças e adolescentes e que ainda geram grandes distorções. Como

5 compreender, por exemplo, a recente reforma legislativa que, sob o pretexto de otimizar o procedimento de adoção, cria uma série de obstáculos a quem deseja adotar? O pretendente à adoção hoje, tem que apresentar certidão negativa de distribuição de processos cíveis e certidão de antecedentes criminais que, a lei não exige que seja negativa. Absolutamente surreal! Como compreender a existência de uma ordem cronológica entre as pessoas cadastradas para adotar, sem qualquer previsão de preferência cronológica entre as crianças que aguardam uma família?a quem se destina a prioridade absoluta? Ao adulto que deseja adotar ou à criança que precisa ser reinserida e para quem o tempo é fator determinante?