A questão iraquiana à luz dos acontecimentos de 11 de Setembro
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- Vitorino Costa Câmara
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1 João Madureira Conselheiro Jurídico da Representação Permanente de Portugal junto das Nações Unidas * 108 A questão iraquiana à luz dos acontecimentos de 11 de Setembro I COM A APROVAÇÃO DA RESOLUÇÃO 1382 do Conselho de Segurança 1 no final de Novembro passado, os Estados Unidos da América conseguiram adiar a questão iraquiana por mais seis meses, evitando assim desviar os esforços diplomáticos centrados na campanha do Afeganistão. Ao fazê-lo, procuraram não deixar transparecer a fraqueza que um adiamento como este sempre traduz, proferindo declarações duras indicando que, na sua perspectiva, a actual situação não poderia ser tolerada por muito mais tempo 2. Teriam mesmo deixado correr, desmentindo à boca pequena, que um ataque ao Iraque poderia estar iminente 3. Não é crível que, num momento em que se travava uma batalha no Afeganistão, se pudesse abrir nova frente, desviando recursos quando são mais precisos, correndo sobretudo o risco de dividir uma coligação empenhada no combate ao terrorismo internacional. Com efeito, uma coisa é a guerra no Afeganistão, justificada, no quadro da legítima defesa, pelo encobrimento de uma organização terrorista considerada culpada directa dos acontecimentos de 11 de Setembro, outra é o ataque ao Iraque, cuja implicação nos referidos acontecimentos não parece ser fácil de provar 4. Porém, dentro de seis meses, talvez a situação possa ser vista de maneira diferente. O acordo que permitiu esta última prorrogação do programa oil for food baseou- -se em dois pontos: 1.º a aceitação de que, a partir de fim de Maio 2002, as exportações para o Iraque se liberalizem, com excepção dos produtos constantes de uma lista de produtos * Foi delegado da representação de Portugal no Conselho de Segurança e no Comité de Sanções ao Iraque, presidido pelo Embaixador António Monteiro, no período Resolução 1382, de 29 de Novembro de Vd. declarações do Presidente Bush à imprensa em finais de Novembro de Segundo várias notícias publicadas na imprensa americana na sequência das declarações do Presidente americano. 4 Vd. declarações de Colin Powel à imprensa, admitindo a inexistência de factos concretos susceptíveis de implicar o Iraque nos acontecimentos de 11 de Setembro.
2 proibidos (goods review list) aprovada pelo Conselho 5. A Rússia, juntando-se agora ao consenso neste ponto, que reunia desde Julho passado o acordo dos outros membros permanentes, aceitou o princípio de utilização da referida lista na resolução que vier a ser adoptada no próximo ano; 2.º abertura à clarificação da Resolução Até aqui nunca tinha sido possível aceitar o princípio da revisão (ou clarificação) da Resolução Esta Resolução foi adoptada na sequência de um longo período de reuniões e consultas no Conselho de Segurança que se seguiu ao bombardeamento do Iraque pelas forças americanas e britânicas, em Dezembro de Culminando um profundo trabalho levado a cabo pelos painéis sob a presidência do Embaixador Celso Amorim (do Brasil), a Resolução 1284 procura apontar o road map para o encerramento dos dossiers em aberto na questão iraquiana (desarmamento e controlo de produção de armas de destruição maciça, nos seus diferentes dossiers, entrega de cidadãos e devolução de bens do Kuwait). Quanto ao mecanismo de sanções, a Resolução prevê que, após a entrada dos inspectores das Nações Unidas (UNMOVIC) no território iraquiano, estes procederão à montagem de um sistema de verificação contínuo de desarmamento (on going monitoring and verification OMV), com a colaboração do Iraque. Logo que o sistema fique operacional, e sempre pressupondo a efectiva colaboração do Iraque, o Conselho de Segurança decidirá a suspensão das actuais sanções. A Resolução foi adoptada com a abstenção de três membros permanentes França, China e Federação Russa e da Malásia. As razões desta posição assentavam, principalmente, na falta de garantias de que o Conselho de Segurança viria, em tempo oportuno, a suspender as sanções e que não entraria num complexo processo de determinação do grau de colaboração exigível do Iraque como requisito prévio da suspensão das sanções. O Iraque reagiu fortemente contra a Resolução 1284, que disse nunca aceitar. Porém, deu, recentemente, sinais de alguma abertura ao mencionar que a Resolução tem muitas áreas incompreensíveis, a necessitar de esclarecimentos Par. 2 da Resolução Par. 6 da Resolução Vd. actas da reunião pública do CS sobre o Iraque, em Julho 2001.
3 110 É pois nesta linha que parece surgir a pressão russa para a inclusão deste segundo ponto relativo à necessidade de clarificação da Resolução Foram estes os dois pontos que permitiram congregar os membros permanentes, que agora surgem unidos em torno do que parece ser um bom começo de solução para a questão iraquiana. Todos os membros do Conselho de Segurança realçaram estes dois pontos como cruciais para levar por diante o processo. Todos, com uma excepção significativa: os Estados Unidos da América. Com efeito, os Estados Unidos parecem pouco inclinados a ceder significativamente na clarificação da Resolução Principalmente, tendo em conta o que os russos parecem entender por clarificação, fazendo-a equivaler à garantia de que as sanções serão suspensas mal o Iraque aceite a entrada dos inspectores no seu território 9. Assim em Maio de 2002, no final de mais uma fase do programa oil for food,verse-á se entretanto foram efectuados esforços verdadeiros no sentido de concretizar os referidos dois pontos da Resolução de Novembro passado, ou se esta solução constituiu sobretudo uma forma de ganhar tempo. Ganhar tempo porque todas as atenções e esforços estão agora e estarão num futuro imediato virados para o Afeganistão. Ganhar tempo eventualmente para preparar a opinião pública para uma nova posição americana na questão iraquiana. II Vejamos então os cenários que se apresentam. À partida um acordo quanto à clarificação da Resolução 1284 tenderá, para ser eficaz, a ficar muito perto da concepção russa. Só assim será susceptível de vir a ser aceite pelo Iraque, cuja cooperação é necessária. Esta solução constituiria, no entanto, para alguns, uma cedência considerável americana, que passaria a ter dificuldade em explicar à opinião pública interna porque havia aceite suspender as sanções ao Iraque. Atitude tanto mais difícil de explicar quanto parece ser contraditória com o tom do discurso de Washington adoptado depois de 11 de Setembro a propósito do 8 Note-se que a Resolução 1382, ao aludir à necessidade de clarificação da Resolução 1284, nada disse quanto ao momento da sua efectivação. Diferentemente, a aplicação da lista de produtos proibidos começará a ser aplicada já em 30 de Maio de Parecendo reduzir a colaboração iraquiana à admissão dos inspectores no seu território, sem exigir o grau de colaboração plena e contínua previsto na Resolução 1284 que dê firmes garantias de verificação, inspecção e controlo da produção de armas proibidas.
4 perigo iraquiano no contexto do terrorismo internacional. Por seu lado, o Iraque faria reverter certamente a situação a seu favor, clamando vitória, pois sublinharia que só havia aceite a entrada de inspectores com o levantamento das sanções imposição sua desde 1998 ou, pelo menos, com garantia temporal da sua suspensão. Qualquer outra solução que não congregue o voto positivo russo parece destinada ao fracasso. Basta ver o se passou com a Resolução 1284, que dividiu os membros permanentes, e a sua ineficácia. Uma resolução operativa, que requeira a cooperação do Iraque, como no caso da entrada de inspectores da UNMOVIC, e que abra a porta ao desenvolvimento de acções de verificação no território iraquiano, só será eficaz se lograr o consenso do Conselho de Segurança. Não se chegando a acordo até Maio de 2002 sobre a clarificação da Resolução 1284, os Estados Unidos poderiam ser tentados a explorar junto da comunidade internacional a ideia de inadmissibilidade de uma situação de impasse de quase quatro anos, em que o Iraque pura e simplesmente não permite que se controle a capacidade de produção de armamento proibido nuclear, químico e biológico. Neste contexto, poderão ser levados a equacionar o recurso à utilização da força, no quadro mais vasto da guerra ao terrorismo, uma espécie de segunda fase pós-afeganistão 10, justificando-a como forma de dissipar receios de utilização do referido armamento e de anular o risco de o Iraque contribuir, ainda que apenas passivamente através da utilização de produtos originários do seu território, em acções terroristas. Tal pretensão encontraria possivelmente um ambiente propício na opinião pública americana, mas depararia por outro lado com sérias resistências na comunidade internacional, designadamente entre variados elementos desta comunidade que hoje apoiam os Estados Unidos na campanha do Afeganistão 11. Obviamente, o desenvolvimento da situação no Afeganistão será crucial para o desenho deste cenário. A disponibilidade de meios, a coesão da actual coligação de apoio aos Estados Unidos e a atitude dos países árabes serão determinantes para uma eventual tomada de posição americana. No entanto, do ponto de vista interno e mesmo internacional, dificilmente os americanos poderão reunir condições tão menos adversas à utilização da força como forma de induzir o Iraque ao cumprimento cabal das resoluções do Conselho de Segurança Vd. notícia da Associated Press referindo declarações de Colin Powel na Turquia, no início de Dezembro de 2001, segundo as quais o Presidente Bush não tinha ainda decidido se a próxima fase da guerra ao terrorismo deveria incluir o Iraque. 11 Vd. por exemplo as declarações à imprensa do Chanceler alemão contra o uso da força no Iraque em reacção às notícias acima referidas da imprensa americana.
5 112 O discurso do Presidente Bush sobre o estado da União, de 29 de Janeiro deste ano, é demonstrativo deste tipo de abordagem da questão. Ao nomear o Iraque entre os países incluídos no eixo do mal, o Presidente norte-americano terá sobretudo querido manter o estado de alerta na opinião pública para o perigo iraquiano e aumentar a pressão sobre aquele país enquanto decorrem as negociações com vista à adopção da próxima resolução do Conselho de Segurança. Obviamente, dirigiu-se também à frente interna, i.e. para aqueles que na Administração e no Congresso advogam uma linha musculada em relação a Bagdade. Uma coisa é certa, os acontecimentos de 11 de Setembro e a campanha no Afeganistão parecem ter já levado os americanos a assumir uma nova atitude face ao Iraque. De uma ideia de reformulação do regime de sanções, procurando converter as actuais sanções no Iraque em smart sanctions ideia que abraçaram e que estava subjacente ao projecto apresentado, ainda em Julho deste ano, pelos britânicos no Conselho de Segurança os americanos passam, agora, para uma atitude vincadamente mais exigente quanto ao cumprimento por parte do Iraque das obrigações decorrentes das resoluções daquele órgão. Parece assim que a ideia de smart sanctions, combatida pelos iraquianos, com o apoio da Rússia, por ser uma forma de eternizar um regime de sanções contra o Iraque e sujeitar este país a um controlo económico externo quase total, já teve o seu tempo, estando posta de parte, hoje também, pelos Estados Unidos. Resta ainda um outro cenário. O da prorrogação por mais seis meses da questão. Tal como em Novembro passado, tudo dependerá da campanha no Afeganistão e dos resultados do combate ao terrorismo internacional e da oportunidade de concentrar esforços diplomáticos na questão iraquiana. Tal adiamento, porém, correria o risco de ser visto como a confirmação da incapacidade do Conselho de Segurança em ultrapassar o impasse criado na questão iraquiana, favorecendo o arrastamento das sanções. Pelo menos até à queda do regime iraquiano actual que, nunca será demais recordar, tem sabido prolongar a sua existência para além das previsões iniciais daqueles que, deste lado do Atlântico, têm com alguma rotina previsto o seu desaparecimento.ne
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