O PROCEDIMENTO DA METALINGUAGEM EM POEMAS DE FLORBELA ESPANCA

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1 1 O PROCEDIMENTO DA METALINGUAGEM EM POEMAS DE FLORBELA ESPANCA Cleide Jane Neris de Santana (UFAL) Este trabalho tem como proposta fazer um estudo do procedimento da metalinguagem presente em poemas de Florbela espanca, para isso analisaremos dois de seus poemas: Tortura, que pertence ao Livro de Mágoas, e Ser poeta, poema que compõe o livro A Mensageira das Violetas. A escolha deles se deu pelo fato de encontrarmos em ambos a presença da função metalingüística como procedimento na elaboração dos poemas. Além dessa análise, explicitaremos alguns recursos poéticos contidos nos sonetos. Florbela Espanca é considerada a maior representante feminina da literatura portuguesa. Sua produção poética (muito mais significativa que seus contos) é produto de uma sensibilidade e fortes impulsos eróticos. Na verdade sua produção corresponde a um verdadeiro diário íntimo já que suas poesias refletem o seu estado de espírito, bem como a luta que travam dentro de si tendências e sentimentos contraditórios, como podemos constatar: Florbela Espanca tem sido considerada muito justamente a figura feminina mais importante da Literatura Portuguesa. Sua poesia, mais significativa que seus contos, e produto duma sensibilidade exacerbada por fortes impulsos eróticos, corresponde a um verdadeiro diário íntimo onde a autora extravasa as lutas que travam dentro de si tendências e sentimentos opostos. (MÓISES, 1975, p. 312) Ainda segundo Moisés (1975, p.312) a poesia de Florbela é o que se pode nomear de poesia-confissão, já que reproduz toda a angústia e sofrimento por que

2 2 passa uma mulher que estava à frente de seu tempo, e que conseguiu, apesar de todos os problemas que enfrentou expressar todo esse sentimento e transformá-lo nessa magnífica produção que foi o conjunto de sua obra: Trata-se de uma poesia-confissão, através da qual ganha relevo eloqüente, cálido e sincero, toda a angustiante experiência sentimental duma mulher superior por seus dotes naturais, fadada a uma espécie de donjuanismo feminino. É interessante observar como o sentimento do eu lírico presente nas obras confunde-se com a própria Florbela Espanca. Esse reflexo provavelmente se dá pelo fato de seus poemas serem verdadeiras confissões do estado da poeta. Uma característica marcante é o culto literário da Dor, essa dor que está presente inclusive nos dois poemas analisados. Iniciaremos nosso estudo com uma breve reflexão sobre o processo de comunicação que embasa nossa análise. Em seguida faremos uma análise interpretativa, bem como um levantamento do léxico existente e explicitaremos também alguns recursos poéticos presentes nos sonetos. O PROCESSO DE COMUNICAÇÃO: NOÇÕES PRELIMINARES O processo de comunicação, segundo Jakobson, citado por Compagnon (2010), pode ser definido através de seis fatores: o emissor, a mensagem, o contexto, o código e o contato. Cada um deles representa uma função específica, como podemos observar em Jakobson apud Compagnon (2010, p.97-98):

3 3 Jakobson, lembramo-nos, distinguia aí seis fatores que definiam a comunicação emissor, mensagem, destinatário, contexto, código e contato e determinando seis funções lingüísticas distintas. Duas dessas funções são aqui particularmente requisitadas: a função referencial, orientada para o contexto da mensagem, isto é, o real, e aquela que visa à mensagem enquanto tal, tomada em si mesma, função que Jakobson chamava de poética. Jakobson acentuava que seria difícil encontrar mensagens que preenchessem apenas uma única função [...] Vale salientar ainda que, para o próprio Jakobson, na arte da linguagem, ou seja, na literatura, era dominante a função poética com relação às outras funções, como podemos notar: Ele observava, no entanto, que na arte da linguagem, isto é, na literatura,a função poética é dominante em relação às outras, e que ela prevalece em particular sobre a função referencial ou denotativa. Em literatura, a tônica recairia sobre a mensagem.compagnon (2010, p. 98). Como já sabemos existe uma diversidade de funções que está diretamente ligada ao que Jakobson nomeou de ordem hierárquica de funções. A partir de uma estrutura verbal predominante teremos a função (básica) predominante, como podemos notar em: Embora distingamos seis aspectos básicos da linguagem, dificilmente lograríamos, contudo, encontrar mensagens verbais que preenchessem uma única função. A diversidade reside não no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de funções. A estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da função predominante. JAKOBSON (1973, p.123). Vale ressaltar que apesar de existirem seis funções da linguagem, (cada uma delas é empregada para uma determinada finalidade) normalmente não encontramos apenas uma função em um determinado texto. Na verdade, mais especificamente no caso de nosso trabalho, faremos apenas um estudo da função metalingüística da linguagem utilizada como procedimento para a elaboração do fazer poético.

4 4 ANÁLISE DOS POEMAS Os poemas analisados são formas fixas caracterizadas por dois quartetos e dois tercetos formando um soneto. No que diz respeito à disposição das rimas, o poema Tortura possui a organização ABAB/ BAAB/ CCD/ EED.Já o sonto Ser Poeta está organizado da seguinte forma: ABBA/ ABBA/ CDC/ EDE. Em ambos os poemas encontramos o que nomeamos aqui de procedimento da metalinguagem, já que ambos os sonetos explicam através do poema o fazer poético (no caso específico de Tortura ) e o que é ser poeta (Ser Poeta). TORTURA Tirar dentro do peito a Emoção, A lúcida Verdade, o Sentimento! - E ser, depois de vir do coração, Um punhado de cinza esparso ao vento!... Sonhar um verso de alto pensamento, E puro como um ritmo de oração! - E ser, depois de vir do coração, O pó, o nada, o sonho dum sentimento...

5 5 São assim ocos, rudes, os meus versos: Rimas perdidas, vendavais dispersos, Com que eu iludo os outros, com que minto! Quem dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar, isto que sinto! No que diz respeito ao poema Tortura, o título já é bastante sugestivo: lembra-nos o suplício, o sofrimento, nos remete a um tomento ou até mesmo a um lance difícil como se o fato de criar o poema fosse ao mesmo tempo um sofrimento ou algo (muito) difícil de ser produzir.é importante observar que essa sofreguidão, essa dificuldade não está relacionada com o fato de a poeta não estar apta a fazer o poema, muito pelo contrário: apesar de termos um eu lírico que fala do sofrimento que ele enfrenta ao criar os versos, existe um reflexo do sentimento da própria Florbela nesse soneto, como podemos notar inclusive em boa parte ou até mesmo em toda a sua produção artística. Diante do exposto observemos que essa tortura está relacionada diretamente ao fazer poético em si, ou seja, a essa luta que é travada pelo eu lírico para criar o poema. Podemos notar claramente a presença da função metalinguísticajá que o poema fala do sofrimento do eu lírico em produzir o próprio poema.

6 6 Outro aspecto que nos chama atenção é a relevância que se é dada às palavras Emoção, Verdade e Sentimento todas são substantivos abstratos, que demonstram disposições afetivas, levando a uma subjetividade, características que normalmente encontramos em um poema, nesse caso específico do soneto. Para melhor analisarmos o poema, será realizada a divisão dele em duas partes, ou melhor, em dois momentos. Para isso, primeiramente, observemos os dois primeiros quartetos: Tirar dentro do peito a Emoção, A lúcida Verdade, o Sentimento! - E ser, depois de vir do coração, Um punhado de cinza esparso ao vento!... Sonhar um verso de alto pensamento, E puro como um ritmo de oração - E ser, depois de vir do coração O pó, o nada, o sonho dum sentimento! Podemos observar, que neste primeiro momento o eu lírico apresenta a sua forma de fazer poesia, ou melhor, o próprio poema. Notamos claramente aí o aparecimento da função metalingüística, já que como já foi dito, está sendo

7 7 apresentado como o poema está sendo produzido através do próprio poema que foi construído. Ainda falando sobre esse primeiro momento, o eu lírico demonstra como ele cria o poema: colocando sentimento que por sua vez está supervalorizado (notemos pelo uso da inicial maiúscula) e reconhecendo a fugacidade desse sentimento representado pelas palavras que depois de saírem do coração serão um punhado de cinzas espalhadas ao vento, como comprova o fragmento a seguir: E ser, depois de vir do coração,/ um punhado de cinza esparso ao vento!... Notemos também que ainda nesses dois quartetos há a repetição de um verso: E ser, depois de vir do coração, o que nos leva a constatar que o eu lírico pretende (super) valorizar o sentimento que está aí representado. Podemos observar que nesse soneto existe a idéia de que o poeta sofre na tentativa de elaborar os versos e que existe uma insatisfação, uma desilusão com relação à criação do poema, como podemos notar quando o eu lírico fala que aquela emoção, sentimento que saiu do peito, depois de vir do coração, vira cinza ao vento. Enquanto no primeiro momento (dois quartetos) observamos uma apresentação dessa forma subjetiva de criar o poema, nos dois tercetos observa-se uma afirmação desses sentimentos e de como são representados no próprio fazer poético, ou, mais precisamente, no poema. Existe também ainda uma insatisfação no que diz respeito ao eu lírico com relação aos versos, já que são qualificados como ocos e rudes ; já as rimas são perdidas e consideradas como vendavais dispersos. Nota-se, porém, que no último terceto o eu lírico demonstra a relevância

8 8 que se é dada à criação artística, expressando a ideia de como é difícil criar um poema. Vale salientar que o soneto não é apenas uma explicação de como se fazer um poema. Ainda no caso desse soneto, nos chama atenção a presença de verbosem sua maioria no infinitivodando para nós uma ideia de impessoalidade, ou seja, esses verbos têm como característica indicarem uma ação ou estado, sem situá-los no tempo. Outra coisa que deve ser levada em conta é o fato de aparecer o verbo de ligação ser, que indica um estado, representando aí, o estado que se encontra o eu lírico. Como podemos constatar existe uma predominância de verbos no infinitivo (impessoal); os demais estão conjugados e pertencem à primeira pessoa (do singular e do plural). Analisaremos agora o outro soneto: SER POETA Ser poeta é ser mais alto, é ser maior! Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino e Aquém e de Além da Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja,

9 É ter garras e asas de condor! Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura 9 É ter fome é ter sede de infinito! Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma e sangue e vida em mim E dizê-lo cantando a toda gente! Semelhante ao outro soneto Tortura encontramos claramente a função metalingüística, já que esse soneto aborda não o fazer poético, mas a condição de se fazer poeta O título nos remete a uma condição, a um estado, que podemos constatar pela presença do verbo de ligação ser. Como sabemos esse verbo também expressa a uma impessoalidade já que o verbo encontra-se sob a forma do infinitivo. Atentemos também para o uso de algumas palavras com iniciais maiúsculas. Normalmente encontramos uma supervalorização dessas palavras no que diz respeito aos sentidos que elas têm para a construção do poema. Existem, além do verbo ser, outros verbos no infinitivo, que configura para nós uma impessoalidade.

10 10 Notemos que nesse soneto há superação da condição humana: o poeta mostrase como um ser além do que é ser humano, que podemos comprovar com as expressões astro que flameja ou até mesmo a simbologia do condor ave que voa alto e é solitária. Na verdade o poeta mostra-se como um ser que vai além, um ser superior. Podemos notar, como vimos no poema Tortura, uma certa luta que é travada pelo poeta no que diz respeito ao fazer poético: o elmo, capacete utilizado em batalhas, simboliza uma arma importantíssima para o poeta: a imaginação. E essa batalha é a escrita, a criação do poema. No último terceto o eu lírico nos mostra, ou melhor, nos faz acreditar que não basta fazer um apanhado do que é a palavra, mas é preciso transformá-la em poesia. Ambos os sonetos nos oferece um apanhado de características próprias da produção de Florbela: utilização do soneto como forma de expressão poética (que, diga-se de passagem, soube elaborar tão bem), produções impregnadas de simbologias, imagens, bem como um vocabulário ímpar, eu caracterizou muito bem toda a sua produção poética. Como podemos notar nesse pequeno exposto, a poesia de Florbela Espanca caracteriza-se, muitas vezes pelo que chamaremos agora de uma metapoesia, ou seja, a poesia que explica o próprio fazer poético. Vale salientar que toda essa produção está impregnada de emoção e sentimento que muitas se confundem com a própria Florbela: numa época em que a mulher era deixada de lado, nossa poeta firmou-se

11 11 como escritora, suplantando todo e qualquer preconceito, conseguindo firmar-se como poeta, deixando para nós uma magnífica produção literária. Referências: CONPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, ESPANCA, Florbela. Tortura. Sonetos. Amadora, Portugal : Bertrand, Disponível em: < Acesso em: 06 abr ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, (Pocket). Disponível em: < Acesso em: 06 abr JAKOBSON, Roman. Linguistica e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein, José Paulo Paes. 6. ed. São Paulo: Cultrix, MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1975.